Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2010
Processo 3976/06.0TTLSB.L1.S1 (Revista)
Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:
I
1 - No Tribunal de Trabalho de Lisboa, Transportes Sardão, S. A., propôs, ao abrigo do disposto nos artigos 183.º e seguintes do Código de Processo do Trabalho, contra ANTRAM - Associação Nacional de Transportes Públicos Rodoviários de Mercadorias e FESTRU - Federação dos Sindicatos de Transportes Rodoviários Urbanos, posteriormente extinta e incorporada por fusão na FECTRANS - Federação dos Sindicatos de Transportes e Comunicações, a presente acção especial de interpretação de cláusulas de convenções colectivas de trabalho, pedindo que se declare, «em sede de interpretação da cláusula 74.ª, § 7, do contrato colectivo de trabalho vertical dos transportes rodoviários de mercadorias, publicado no Boletim do Trabalho e Emprego, n.º 9, de 8 de Março de 1980, e no Boletim do Trabalho e Emprego, n.º 16, de 29 de Abril de 1982 (cujo clausulado se mantém até à actualidade):a) Que o valor da retribuição mensal prevista na cláusula 74.ª, § 7, se obtém com recurso à seguinte fórmula: rm74.ª,§7 = rh x 52 x 5: 12, sendo rm74.ª,§7 o valor mensal da remuneração prevista na cláusula 74.ª, § 7, e rh o valor de duas horas de trabalho suplementar;
b) Que é legítimo o empregador liquidar a remuneração da cláusula 74.ª, § 7, multiplicando por 22 - número aproximado de dias de trabalho por mês - o valor correspondente a duas horas de trabalho suplementar, dado esse montante estar próximo, por excesso, do valor exacto daquela retribuição mensal;
c) Subsidiariamente, se não for atendida a pretensão expressa nas duas alíneas precedentes, que a retribuição mensal prevista na cláusula 74.ª é igual ao valor de duas horas de trabalho suplementar a multiplicar por 22.» Alegou, em síntese, que:
As rés outorgaram o contrato colectivo de trabalho do sector dos transportes, publicado nos aludidos números do Boletim do Trabalho e Emprego, sendo que a 1.ª ré é uma associação empresarial, de que a autora é filiada, e a segunda é uma associação sindical que integra o Sindicato dos Transportes Rodoviários e Urbanos do Norte (STTRUN), no qual se encontram filiados diversos trabalhadores da autora;
Existem divergências na interpretação da cláusula 74.ª, n.º 7, relativamente à remuneração dos trabalhadores deslocados no estrangeiro, entendendo a autora e a 1.ª ré, diversamente do que têm sustentado alguns trabalhadores, com o apoio do STTRUN, que essa remuneração especial (duas horas de trabalho extraordinário por dia) deve ser multiplicada por 22 dias, e não por 30 dias de calendário, porque a remuneração especial visa compensar maior penosidade de trabalho prestado no estrangeiro, o qual pressupõe normalmente a prestação de trabalho extraordinário de difícil controlo, daí estabelecer-se uma remuneração fixa que visa compensar eventual prestação de trabalho a mais nos dias úteis, e, assim sendo, a multiplicação deve ser por 22 dias de trabalho, em similitude com o regime de isenção de horário de trabalho;
Além do mais, o CCT não afasta o regime do trabalho suplementar em dias de descanso e feriados (cláusula 41.ª), e, caso haja tal prestação, os trabalhadores são já mais bem remunerados por via desta disposição;
Assim, a cláusula 74.ª, n.º 7, remunera o trabalho extraordinário em dias úteis e a cláusula 41.ª os dias de descanso semanal e feriados, sob pena de duplicação.
Foram citadas as outorgantes do CCT para alegarem e apresentarem os seus meios de prova, nos termos do artigo 184.º do Código de Processo do Trabalho, tendo ambos usado dessa faculdade.
A ANTRAM, apoiando-se em parecer de ilustre jurisconsulto que fez juntar aos autos, aderiu à tese da autora, sobre a fórmula de cálculo do n.º 7 da cláusula 74.ª, segundo o qual as duas horas de trabalho extraordinário se reportam ao dia normal de trabalho.
Por seu turno, a FESTRU sustentou que a norma em causa deve ser interpretada no sentido de as duas horas de trabalho extraordinário se referirem a 30 dias, dado que a remuneração especial, nela consignada, não depende da prestação efectiva de trabalho, sendo sempre paga, visando compensar a penosidade acrescida nas condições de trabalho, sendo que o elemento literal não impede que recebam ainda a remuneração do trabalho prestado em dias de descanso e feriados, estes sim dependentes de prestação efectiva; e defendeu que a fórmula de cálculo do valor da hora normal se encontra expressamente prevista na cláusula 42.ª do CCT: (rn x 12):
(52 x n.º h trabalho normal).
Proferido despacho saneador com valor de sentença, nele se dirimiu a controvérsia, com a solução vertida no segmento dispositivo assim redigido:
«Julgo parcialmente procedente o pedido da autora, e em sede de interpretação da cláusula 74.ª, § 7, do CCTV publicado no Boletim do Trabalho e Emprego, n.º 9, de 8.03.80, e Boletim do Trabalho e Emprego, n.º 16, de 29.04.82:
a) Declaro que o valor da retribuição mensal aí previsto se obtém com recurso à seguinte fórmula: (remuneração normal x 12): (52 x n.º de horas de trabalho semanal);
b) Declaro que a retribuição mensal aí prevista de duas horas de trabalho extraordinário por dia se referem a 22 dias.» 2 - Apelou a FECTRANS - Federação dos Sindicatos de Transportes e Comunicações, com êxito, visto que o Tribunal da Relação de Lisboa julgou precedente o recurso, «alterando a sentença recorrida e interpretando da seguinte forma o n.º 7 da cláusula 74.ª do CCTV publicado no Boletim do Trabalho e Emprego, n.º 9, de 8 de Março de 1980, e no Boletim do Trabalho e Emprego, n.º 16, de 29 de Abril de 1982:
A retribuição mensal de duas horas de trabalho extraordinário por dia prevista na cláusula 74.ª, n.º 7, do CCTV publicado no Boletim do Trabalho e Emprego, n.º 9, de 8 de Março de 1980, e no Boletim do Trabalho e Emprego, n.º 16, de 29 de Abril de 1982, refere-se a 30 dias.» Veio a autora pedir revista do acórdão que assim decidiu, tendo da respectiva alegação extraído as seguintes conclusões:
«A. Contrariamente ao juízo formulado no acórdão recorrido, trabalho extraordinário, na terminologia da convenção de trabalho em causa, é trabalho prestado em dias de trabalho fora do período normal, não sendo assim designado o trabalho prestado em dias de descanso e feriados.
B. A cláusula 74.ª, n.º 7, não se destina a compensar maior penosidade e esforço acrescido da actividade de motorista TIR.
C. Não é exacto que o direito a essa especial retribuição não depende da prestação efectiva de qualquer trabalho extraordinário, e que 'a referência a trabalho extraordinário tem a ver apenas com afixação do respectivo montante' [fruto de se querer ver nela algo mais do que um modo especial de retribuir trabalho prestado fora do horário normal de trabalho, mas difícil de verificar e pagar tal e qual].
D. Da similitude da cláusula 74.ª, n.º 7, com o regime de isenção do horário de trabalho, do qual foi decalcada (não sujeição aos limites máximos dos períodos normais de trabalho, sem prejuízo do direito aos dias de descanso e aos feriados, tendo o trabalhador isento de horário de trabalho direito a uma retribuição especial correspondente a determinado número de horas de trabalho suplementar por dia), resulta, como bem decidiu a 1.ª instância, tratar-se dos dias em que não está sujeito aos limites máximos dos períodos normais de trabalho, isto é, dos dias de trabalho, ou dias úteis - que é o critério seguido no regime de isenção de horário de trabalho.
E. A cláusula 74.ª, n.º 7, não é devida em relação a todos os dias do mês pelo facto de ser uma retribuição mensal (logo, regular e periódica), ou de ser susceptível de criar no espírito do trabalhador a convicção de que não é mais do que um complemento do seu salário, pois não deixa de ser mensal, contrapartida normal das funções de motorista nos transportes internacionais e susceptível de criar no seu espírito a convicção de que não é mais do que um complemento do seu salário, pelo facto de ser calculada tendo em conta o número médio de dias de trabalho do mês e não o número médio de dias de calendário.
F. A invocada nulidade do § 8 da cláusula 74.ª não inviabilizaria a sua relevância para a interpretação do § 7 da cláusula, designadamente com o sentido que lhe é atribuído pela sentença da 1.ª instância, pelos Profs. Júlio Gomes e Romano Martinez, e pela autora.
G. Sem conceder, a tese da nulidade do § 8 sustentada no acórdão recorrido é tão infundada quanto aos seus fundamentos como quanto aos efeitos que lhe são atribuídos.
H. Acrescer o valor da cláusula 74.ª, n.º 7, pela inclusão no seu cálculo dos dias de descanso compreendidos no mês constitui uma dupla remuneração sempre que um motorista de transportes internacionais passa em viagem dias de descanso: a) vai à cláusula 41.ª buscar um acréscimo de 200 % em cada hora; b) vai à cláusula 74.ª buscar mais o valor de duas horas de trabalho suplementar.
I. Ora, quer a letra e o espírito das duas cláusulas, quer a lógica e a unidade do CCT em causa impõem a seguinte conclusão: os efeitos da aplicação das duas cláusulas cumulam-se, mas não se duplicam.
J. A orientação de que a cláusula 74.ª, n.º 7, é devida em relação a todos os dias de calendário do mês negligencia a relevância da base do cálculo da cláusula 74.ª, n.º 7, para efeito da determinação do seu montante.
K. Para o cálculo da retribuição prevista na cláusula 74.ª, § 7, por força da cláusula 42.ª do CCTV e do artigo 264.º do CT, começa por se achar o valor da hora de trabalho, partindo do valor da remuneração mensal, determinado pela fórmula rh = rm x 12): (52 x n), em que n é o número de horas do período normal de trabalho semanal.
L. Ora, o valor que resulta desta fórmula equivale aproximadamente ao valor da hora de trabalho que se obtém através da divisão da retribuição mensal por 22 (dias de trabalho por mês) e por 8 (horas de trabalho por dia).
M. Em síntese, o acórdão recorrido, ao decidir que a retribuição mensal de duas horas de trabalho extraordinário por dia prevista na cláusula 74.ª, n.º 7, do CCTV em causa se refere a 30 dias, interpretou erradamente essa disposição, que deve ser interpretada, como foi julgado em 1.ª instância, como referindo-se a 22 dias (úteis).
Nestes termos, e nos mais de direito, deve o presente recurso de Revista ser julgado procedente, sendo revogado o acórdão da relação e decidindo-se que a retribuição mensal de duas horas de trabalho extraordinário por dia prevista na cláusula 74.ª, n.º 7, do CCTV em causa se refere a 30 dias (úteis).» As partes recorridas não alegaram.
Neste Supremo Tribunal, a Exma. Magistrada do Ministério Público, sufragando a interpretação alcançada pelo Tribunal da Relação, pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso, parecer que não suscitou qualquer resposta.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II
1 - A decisão proferida sobre a matéria de facto não vem impugnada e não se vê fundamento para sobre ela exercer censura, havendo que registar como definitivamente assentes os seguintes factos, que da mesma se reproduzem:«A. A autora é uma empresa de transportes públicos rodoviários de mercadorias.
B. A 1.ª ré é uma associação empresarial dotada da qualidade de associação de empregadores, que tem por objectivo a defesa e promoção dos interesses empresariais de todas as entidades singulares ou colectivas que desenvolvam a actividade de transportes públicos rodoviários de mercadorias, incumbindo-lhe, designadamente, celebrar convenções colectivas de trabalho vinculativas das empresas nela filiadas.
C. A autora está filiada na 1.ª ré.
D. A 2.ª ré é uma associação de sindicatos representativos de trabalhadores que exercem a sua profissão no sector de transportes rodoviários e urbanos, tendo como sindicato filiado, entre outros, o Sindicato dos Trabalhadores de Transportes Rodoviários e Urbanos do Norte (STTRUN).
E. Diversos motoristas assalariados ao serviço da autora que efectuam transportes internacionais são associados do STTRUN.
F. 1.ª e 2.ª rés celebraram em 1980 e em 1982 um contrato colectivo de trabalho vertical do sector dos transportes rodoviários de mercadorias, publicado no Boletim do Trabalho e Emprego, n.º 9, de 8 de Março de 1980, e no Boletim do Trabalho e Emprego, n.º 16, de 29 de Abril de 1982, cujo clausulado se mantém, apesar das alterações publicadas no Boletim do Trabalho e Emprego, n.º 29, de Maio de 1996, e n.º 30, de 15 de Agosto de 1997.
G. A ré FESTRU celebrou o referido CCTV em representação, entre outros, do citado STTRUN.» 2 - O contrato colectivo de trabalho supra-referido dispõe, no que aqui importa ponderar, o seguinte:
«Cláusula 74.ª
Regime de trabalho para os trabalhadores deslocados no estrangeiro
1 - Para que os trabalhadores possam trabalhar nos transportes internacionais rodoviários de mercadorias deverá existir um acordo mútuo para o efeito. No caso de o trabalhador aceitar, a empresa tem de respeitar o estipulado nos números seguintes.
2 - Os trabalhadores que iniciem o seu trabalho neste regime devem ter uma formação técnica adequada.
3 - Após acordo prévio, entre o trabalhador a empresa, e desde que se verifique que o trabalhador não disponha de formação profissional adequada para o desempenho da sua função, o mesmo deixará de a exercer.
4 - Nenhum trabalhador que complete 50 anos de idade ou 20 anos de serviço neste regime poderá ser obrigado a permanecer nele.
5 - Qualquer trabalhador que comprove, através de atestado médico reconhecido pelos serviços de medicina no trabalho, a impossibilidade de continuar a trabalhar neste regime, passa imediatamente a trabalhar noutro tipo de trabalho, dentro das possibilidades da empresa.
6 - No caso referido no n.º 4 desta cláusula, a empresa colocará o trabalhador noutro tipo de trabalho ou noutra função, mesmo que para tal haja necessidade de reconversão, nunca podendo o trabalhador vir a receber remuneração inferior.
7 - Os trabalhadores têm direito a uma retribuição mensal, que não será inferior à remuneração correspondente a duas horas de trabalho extraordinário por dia.
8 - A estes trabalhadores, de acordo com o estabelecido no número anterior, não lhes é aplicável o estabelecido nas cláusulas 39.ª ("Retribuição de trabalho nocturno") e 40.ª ("Retribuição de trabalho extraordinário").
9 - O número de cargas e descargas das mercadorias transportadas neste regime não pode ser superior ao estabelecido na lei.
Cláusula 39.ª
Retribuição do trabalho nocturno
O trabalho nocturno será remunerado com um acréscimo de 25 % em relação à retribuição a que dá direito o trabalho equivalente prestado durante o dia.
Cláusula 40.ª
Retribuição do trabalho extraordinário
1 - O trabalho extraordinário será remunerado com os seguintes adicionais:
a) 50 % para as primeiras quatro horas extraordinárias;
b) 75 % para as restantes.
Cláusula 42.ª
Determinação do valor da hora normal
Para efeitos de retribuição ou remuneração de trabalho extraordinário, de trabalho nocturno o valor da hora é determinado pela seguinte fórmula:(Remuneração normal x 12)/(Horas de trabalho semanal x 52) » 3 - A controvérsia tem, como decorre do supra-relatado, por objecto o sentido que deve ser conferido ao n.º 7 da cláusula 74.ª acima transcrita, em ordem a determinar se o valor mensal mínimo da atribuição patrimonial nele prevista se calcula multiplicando o valor de duas horas de trabalho extraordinário pelo número de dias que correspondem a um mês do calendário ou efectuando tal operação levando em conta o número de dias úteis de trabalho num mês.
3.1 - Na interpretação das cláusulas das convenções colectivas de trabalho de conteúdo normativo, ou regulativo - como é o caso -, há que ter presente, por um lado, que elas consubstanciam verdadeiras normas jurídicas e, por outro, que provêm de acordo de vontades de sujeitos privados.
Como se sustenta no douto acórdão recorrido, e traduz orientação dominante deste Supremo, a interpretação das cláusulas de conteúdo regulativo das convenções colectivas de trabalho deve obedecer às regras próprias da interpretação da lei - cf., entre outros, os Acórdãos de 10 de Novembro de 1993, Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano i, t. iii, n.º 291; de 9 de Novembro de 1994, Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano ii, t. iii, n.º 284; e de 10 de Maio de 2001, www.dgsi.pt, documento n.º SJ200105010003004; na doutrina, António Menezes Cordeiro, Manual de Direito do Trabalho (reimpressão), Almedina, Coimbra, 1997, p. 307: «a interpretação e integração das convenções colectivas seguem as regras próprias de interpretação e de integração da lei, com cedências subjectivistas quando estejam em causa aspectos que apenas respeitem às partes que as hajam celebrado» -, consignadas, em particular, no artigo 9.º do Código Civil.
Assim, haverá que atender ao enunciado linguístico da norma, por representar o ponto de partida da actividade interpretativa, na medida em que esta deve procurar reconstituir, a partir dele, o pensamento das partes outorgantes da convenção colectiva (n.º 1 do citado artigo 9.º) - tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada -, sendo que o texto da norma exerce também a função de um limite, porquanto não pode ser considerado entre os seus possíveis sentidos aquele pensamento que não tenha na sua letra um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (n.º 2 do mesmo artigo 9.º).
Para a correcta fixação do sentido e alcance da norma, há-de, outrossim, presumir-se que os outorgantes souberam exprimir o seu pensamento em termos adequados e consagraram a solução mais acertada (n.º 3 do artigo 9.º), do que decorre, no ensinamento de João Baptista Machado - Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador (reimpressão), Almedina, Coimbra, 1999, p. 189 -, que o texto da norma «exerce uma terceira função: a de dar um mais forte apoio àquela das interpretações possíveis que melhor condiga com o significado natural e correcto das expressões utilizadas»; por isso, «só quando razões ponderosas, baseadas noutros subsídios interpretativos, conduzem à conclusão de que não é o sentido mais natural e directo da letra que deve ser acolhido, deve o intérprete preteri-lo».
3.2 - O acórdão recorrido, após desenvolvidas e pertinentes considerações sobre os critérios a observar na interpretação das normas das convenções colectivas de trabalho, concluiu, divergindo da decisão da 1.ª instância, pela interpretação segundo a qual «a retribuição mensal de duas horas de trabalho extraordinário por dia prevista na cláusula 74.ª, n.º 7, do CCTV publicado no Boletim do Trabalho e Emprego, n.º 9, de 8 de Março de 1980, e no Boletim do Trabalho e Emprego, n.º 16, de 29 de Abril de 1982, refere-se a 30 dias».
Nele se observou:
«A propósito da natureza da prestação a que se refere o n.º 7 da cláusula 74.ª, escreveu-se no Acórdão do STJ de 13.10.98 (BMJ, 480, p. 180):
''O n.º 7 da cláusula 74.ª do referido CCTV aplicável consagra o direito dos trabalhadores dos transportes internacionais rodoviários de mercadorias a uma retribuição mensal que não pode ser inferior à remuneração correspondente a duas horas de trabalho extraordinário por dia.
Destina-se essa especial retribuição a compensar os referidos trabalhadores pela maior penosidade e pelo esforço acrescido, inerentes ao tipo de actividade em que se ocupam.
E foi, naturalmente, determinada a sua atribuição pela consideração de que o exercício de tais funções impõe, normalmente, a prestação de trabalho extraordinário, que é difícil de controlar.
O direito a essa especial retribuição não depende, porém, da prestação efectiva de qualquer trabalho extraordinário.
Dadas as suas características e os termos em que é estabelecido tal benefício, não pode deixar este de ser qualificado como uma compensação, complementar da retribuição e que a integra, cabendo no conceito legal de retribuição normal definida no artigo 82.º do regime jurídico aprovado pelo Decreto-Lei 49 408.
Como expressamente se diz no preceito em causa, trata-se de uma retribuição mensal, por conseguinte, regular e permanente, devida em relação a todos os dias do mês, independentemente da prestação efectiva de qualquer trabalho, acrescendo sempre à retribuição base devida.
A referência a trabalho extraordinário tem a ver apenas com a fixação do respectivo montante.
Trata-se afinal de uma compensação idêntica à que é devida aos trabalhadores, em geral, com isenção de horário de trabalho.
Nos termos do citado artigo 82.º, n.º 2, 'a retribuição compreende a remuneração de base e todas as outras prestações regulares e periódicas feitas, directa ou indirectamente, em dinheiro ou em espécie'.
Atento o seu carácter de regularidade, periodicidade e permanência, a questionada prestação é susceptível de criar no espírito do trabalhador a convicção de que não é mais do que um complemento do seu salário, constituindo uma contrapartida normal do trabalho que se obrigou a prestar, independentemente da prestação eventual de qualquer trabalho extraordinário, sendo mensal e, portanto, devida em relação a todos os dias do mês, mesmo que de descanso obrigatório, de férias, feriados ou folgas.'' Em sentido idêntico se pronunciaram os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Janeiro de 1999 (BMJ, n.º 483, p. 122), de 20 de Dezembro de 2000 (www.dgsi.pt), de 9 de Abril de 2003 (www.dgsi.pt), e de 18 de Janeiro de 2005 (www.dgsi.pt), lendo-se, neste último, em que se citam entre outros os Acórdãos do mesmo Tribunal de 12 de Julho de 2000 (Revista n.º 96/2000), de 30 de Novembro de 2000 (Revista n.º 56/2000) e de 2 de Junho de 2004 (Recurso n.º 1005/04), o seguinte:
''No n.º 7 referido consagra-se, pois, o direito dos trabalhadores dos transportes internacionais rodoviários de mercadorias a uma retribuição mensal que não pode ser inferior à remuneração correspondente a duas horas de trabalho extraordinário por dia.
Trata-se de uma retribuição especial, que tem por objectivo compensar aqueles trabalhadores da maior penosidade e esforço acrescido inerentes à sua actividade, tendo sido atribuída pela consideração de que essa actividade impõe, normalmente, a prestação de trabalho extraordinário de difícil controlo.
Mas não pressupõe uma efectiva prestação de trabalho extraordinário, revestindo carácter regular e permanente e, como tal, integrando a retribuição.
Por isso, a mesma é devida em relação a todos os dias do mês, independentemente da prestação efectiva de qualquer trabalho, acrescendo à retribuição de base devida.
Como tem sido afirmado pela jurisprudência deste tribunal, o pagamento da retribuição específica prevista na cláusula 74.ª, n.º 7, do CCT, corresponde a uma compensação idêntica à que é devida aos trabalhadores, em geral, com isenção de horário de trabalho, tendo a referência a trabalho extraordinário que ver apenas com a fixação do respectivo montante, e não com a realização efectiva desse trabalho extraordinário.'' Não vemos qualquer razão para nos afastarmos do que tem sido a jurisprudência uniforme do nosso mais alto Tribunal, já por nós seguida no Acórdão de 12 de Março de 2009 (processo 205/06.0TTLSB) e, assim, concluímos que os dias a ter em conta para o cálculo do valor da retribuição especial prevista no n.º 7 da cláusula 74.ª, são os dias de calendário, ou seja, 30 e não apenas os dias de trabalho úteis - 22.» Enfrentando o argumento que, em sentido contrário, poderia extrair-se do preceituado no n.º 8 da mesma cláusula, onde se consigna a não aplicação do estipulado nas cláusulas 39.º e 40.º do CCT, desse modo, se afastando a possibilidade de o trabalhador exigir o pagamento do trabalho nocturno e do trabalho extraordinário nas condições previstas e reguladas pelos artigos 30.º do Decreto-Lei 409/71, de 27 de Setembro, 4.º a 7.º do Decreto-Lei 421/83, de 2 de Dezembro, então vigentes - a que correspondem os artigos 257.º, 199.º, 200.º e 258.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei 99/2003, de 27 de Agosto, e 266.º, 227.º, 228.º e 268.º do Código do Trabalho, actualmente em vigor, aprovado pela Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro -, o acórdão recorrido considerou que o n.º 8 da cláusula 74.ª «contraria estas normas legais cuja natureza imperativa é manifesta e estabelece um regime que importa para os trabalhadores tratamento menos favorável do que o previsto por lei» e prosseguiu:
«Ora, conforme se prescrevia nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 6.º do Decreto-Lei 519-C1/79, de 29 de Dezembro - artigos 533.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei 99/2003, de 27 de Agosto, e 478.º do Código do Trabalho, actualmente vigente, aprovado pela Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro -, os instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho não podem contrariar normas legais imperativas nem incluir qualquer disposição que importe para os trabalhadores tratamento menos favorável do que o estabelecido por lei.
Nos termos do n.º 1 do artigo 13.º do RJCIT - artigos 4.º e 5.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei 99/2003, de 27 de Agosto, e 3.º do Código do Trabalho, actualmente vigente, aprovado pela Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro - as fontes de direito superiores prevalecem sempre sobre as fontes inferiores, salvo na parte em que estas, sem oposição daquelas, estabeleçam um tratamento mais favorável para o trabalhador.
No mesmo sentido preceituava o n.º 2 do artigo 14.º do RJCIT que 'As cláusulas do contrato de trabalho que importarem para o trabalhador regime menos favorável do que o estabelecido em preceitos imperativos conside-ram-se substituídas por estes' - artigos. 114.º, n.º 2, do Código do Trabalho, aprovado pela Lei 99/2003, de 27 de Agosto, e 121.º, n.º 2, do Código do Trabalho, actualmente vigente, aprovado pela Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro.
Sendo de incluir na categoria de preceitos imperativos todos aqueles que não podem ser afastados por cláusula contratual, é evidente a nulidade do n.º 8 da cláusula 74.ª a qual não determina, porém, a nulidade do n.º 7, mesmo que se admita que foram negociados em conjunto os dois números, como decorre da aplicação do princípio utile per inutile non vitiatur, consagrado abertamente no n.º 1 do citado artigo 14.º que, reproduzindo a redução estabelecida pelo artigo 292.º do Código Civil, prescreve que 'A nulidade ou anulação parcial do contrato de trabalho não determina a invalidade de todo o contrato, salvo quando se demonstre que os contraentes ou algum deles o não teriam concluído sem a parte viciada.'.
Neste sentido pode ver-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Outubro de 1998, já citado.» 3.3 - Como nota o acórdão recorrido, é pacífica a jurisprudência deste Supremo Tribunal no sentido de que a atribuição patrimonial consignada no n.º 7 da cláusula 74.ª assume a natureza de retribuição especial (natureza que decorre do próprio texto convencional, onde se lê que o trabalhador «tem direito a uma retribuição mensal») e destina-se a compensar os trabalhadores pela maior penosidade, esforço e risco acarretados pela possibilidade de desempenho de funções no estrangeiro, atribuída pela consideração de uma actividade que possa conduzir a tal desempenho, implicando uma prestação de trabalho extraordinário de difícil controlo, não dependendo, pois, a dita retribuição de uma efectiva prestação deste tipo de trabalho.
Trata-se, por conseguinte, de uma retribuição complementar destinada à indicada compensação e à disponibilidade para uma tal prestação de trabalho, fazendo parte da retribuição global, não tendo a ver com a efectiva realização de trabalho extraordinário, assim se aproximando da figura da compensação ou retribuição estabelecida, para os trabalhadores em geral, pela isenção de horário de trabalho - entendimento este reiteradamente afirmado, como se pode ver no Acórdão de 12 de Setembro de 2007 (Recurso n.º 1803/07) e, bem assim, nos Acórdãos de 5 de Fevereiro de 2009 (Recurso n.º 2311/08) e de 17 de Dezembro de 2009 (Processo 949/06.2TTMTS.S1).
Tal como se observou no primeiro dos referidos arestos, a estipulação constante do referido n.º 7 não pode ser desligada do contexto de toda a cláusula e esta inicia-se com a prescrição constante do n.º 1, que pressupõe a existência de um acordo entre o trabalhador e a empresa empregadora para que ele possa trabalhar nos transportes internacionais rodoviários de mercadorias, sendo que, no caso de o trabalhador aceitar essa possibilidade, a empresa fica vinculada a respeitar o disposto nos números seguintes da mesma cláusula e, pois, a pagar-lhe, cumpridos que sejam os requisitos de formação adequada, a aludida retribuição mensal complementar.
Atenta a caracterização da mesma, e face o teor do referido n.º 1, não se torna necessário, para efeitos de aplicação do n.º 7, um efectivo desempenho de funções em deslocação no estrangeiro, bastando a vinculada disponibilidade do trabalhador para esse efeito, pois, a exigir-se, como pressuposto da retribuição especial o efectivo e contínuo desempenho nas referidas condições, ela perderia a sua razão de ser, no ponto em que se destina a compensar a disponibilidade para laborar no transporte internacional de mercadorias.
O elemento literal dos incisos em exame, ponto de partida para a reconstituição do pensamento dos outorgantes, e que funciona como limite à especulação interpretativa, não favorece, antes parece excluir, pelo emprego da expressão retribuição mensal, a sujeição do modo de cálculo da retribuição prevista no referido n.º 7, ao regime estabelecido para a remuneração do trabalho extraordinário, conferindo-se à referência feita a «duas horas de trabalho extraordinário» o sentido de estipular uma base de cálculo meramente pecuniária.
Importa notar que o regime traçado para o trabalho extraordinário, na cláusula 18.ª, o define como trabalho prestado fora do período normal de trabalho (n.º 1), sendo tal prestação proibida com carácter de regularidade (n.º 2) e apenas admitida em casos inteiramente imprescindíveis e justificados (n.º 3), prescrições que, de modo algum, se adequam ao regime de trabalho para os trabalhadores deslocados no estrangeiro.
A especial característica de retribuição mensal, supra-assinalada, de compensação de uma acordada disponibilidade, tornando-a alheia à efectiva prestação de trabalho extraordinário, não tem qualquer ligação com o período normal de trabalho, que compreende os dias úteis do mês; por outro lado, diversamente da remuneração por trabalho extraordinário, é uma atribuição patrimonial regular que radica na possibilidade do exercício da actividade em particulares condições de penosidade e risco, e não em situações excepcionais referidas ao tempo normal de trabalho.
O elemento sistemático, assente nos distintos regimes, correspondentes às distintas características da retribuição mensal especial e da remuneração por trabalho extraordinário, aponta, por conseguinte, no sentido de a primeira, apesar de ter como base mínima pecuniária de cálculo o mesmo valor diário da última, nada mais ter em comum com esta.
Deste modo, tratando-se de remunerações que correspondem a situações que, na sua essência, nada têm em comum, não pode falar-se de duplicação de remuneração pela mesma actividade, se, além da retribuição mensal especial, o trabalhador receber a remuneração correspondente ao trabalho prestado em dias de descanso e feriados, por aplicação do disposto na cláusula 41.ª do CCT.
Da similitude com o regime de isenção de horário de trabalho não pode extrair-se argumento em sentido contrário, porquanto, se é certo que em tal regime se prevê expressamente que a isenção não prejudica o direito a dia de descanso semanal, obrigatório ou complementar, a feriado ou a descanso diário (artigos 15.º do Decreto-Lei 409/71, de 27 de Setembro, 178.º, n.º 3, do Código do Trabalho de 2003, e 219.º, n.º 3, do Código do Trabalho de 2009), o que significa que a atinente retribuição especial se reporta aos dias úteis, ou seja, aos dias em que o trabalho deve, normalmente ser prestado, a verdade é que essa retribuição não tem como razão de ser uma particular e permanente (em todos os dias do mês) penosidade e um particular risco inerentes ao exercício da actividade de motorista de transportes internacionais.
Finalmente, é de ponderar que o n.º 8 da cláusula 74.ª contém uma norma que contraria - como bem notou o acórdão recorrido, na esteira do citado Acórdão deste Supremo Tribunal de 13 de Outubro de 1998 - disposições legais imperativas, dela se não podendo extrair quaisquer efeitos.
De todo o modo, encontrada a natureza da retribuição especial consignada no n.º 7 da mesma cláusula, acima caracterizada, tem de considerar-se que a mesma é devida com relação a todos os dias do mês.
III
Em face do exposto, decide-se, negando a revista e confirmando o acórdão impugnado, fixar o sentido e alcance da norma convencional em causa nos seguintes termos:«A retribuição mensal prevista no n.º 7 da cláusula 74.ª do contrato colectivo de trabalho celebrado entre a ANTRAM - Associação Nacional de Transportes Públicos Rodoviários de Mercadorias e FESTRU - Federação dos Sindicatos de Transportes Rodoviários Urbanos, publicado no Boletim do Trabalho e Emprego, 1.ª série, n.º 9, de 8 de Março 1980, e no Boletim do Trabalho e Emprego, 1.ª série, n.º 16, de 29 de Abril de 1982, tendo como base mínima de cálculo o valor equivalente a duas horas extraordinárias, é devida em relação a todos os dias do mês do calendário.» Custas a cargo da autora.
Oportunamente, cumpra-se o disposto na parte final do artigo 186.º do Código de Processo do Trabalho.
Lisboa, 9 de Junho de 2010. - Adelino César Vasques Dinis - Mário Manuel Pereira - Manuel Joaquim Sousa Peixoto - António Fernando da Silva Sousa Grandão - Manuel Joaquim de Oliveira Pinto Hespanhol.