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Acórdão 168/2010, de 28 de Junho

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Sumário

Decide não julgar inconstitucionais as normas dos artigos 1101.º, alínea a), do Código Civil e 814.º, alínea g), do Código de Processo Civil, quando interpretadas no sentido de que a mera instauração da acção de despejo, com fundamento no direito de denúncia para habitação do senhorio, não constitui facto extintivo ou modificativo da obrigação exequenda de entrega do locado pelo senhorio que já esteja na posse do mesmo. (Proc. nº 916/09)

Texto do documento

Acórdão 168/2010

Processo 916/09

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I - Relatório

1 - Manuel Maria Duarte instaurou execução para entrega de coisa certa contra Mariana Gil David, com base em sentença judicial que, julgando procedentes os embargos de executado por si deduzidos em execução antes instaurada por esta, reconheceu a validade e vigência de um contrato de arrendamento para habitação, onde um e outro figuram, respectivamente, como inquilino e senhoria.

Mariana Gil David deduziu oposição à execução, invocando, em síntese, ter denunciado, para sua habitação própria, mediante instauração da competente acção declarativa, ainda pendente, o referido contrato de arrendamento para habitação.

Conclui, pedindo, além do mais, se declare prejudicada a «obrigação de entrega do imóvel decorrente do reconhecimento judicial da vigência do aludido contrato de arrendamento [...] suspendendo-se para já os termos da execução».

Contestada a petição de oposição, pelo exequente-arrendatário, foi proferido saneador-sentença, que julgou improcedente a oposição à execução, por considerar que «o facto de a oponente ter proposto a sobredita acção judicial não constitui facto extintivo ou modificativo da obrigação, por não existir no momento em que foi invocado, ou seja, com a dedução da oposição, podendo apenas vir a sê-lo com a

procedência da acção».

Inconformada, apelou a executada/oponente para o Tribunal da Relação de Évora, alegando, em conclusão, no que respeita à questão da constitucionalidade, que o tribunal recorrido, ao interpretar as normas conjugadas dos artigos 1101.º do Código Civil e 814.º, alínea g), do Código de Processo Civil no sentido de que «a mera denúncia do contrato de arrendamento para habitação feita com a antecedência mínima de seis meses não tem qualquer relevância jurídica, designadamente para fundamentar a oposição à entrega da casa pelo senhorio-denunciante que já esteja de facto na posse dessa mesma casa», violou directamente o disposto nos artigos 8.º da CRP e 8.º da CEDH e, bem assim, os artigos 62.º e 65.º da CRP, sendo certo que «a casa de habitação de uma pessoa, o seu domicílio e a respectiva estabilidade não constituem uma realidade banal que possa estar sujeita a tais vicissitudes pelo único motivo de se estar a aguardar uma decisão judicial sobre a validade da denúncia já operada oportunamente pelo meio próprio» em 30.11.2007, ou seja, decorridos seis meses sobre a instauração da respectiva acção; acresce que «o (seu) direito, como proprietária deste único prédio, é de grau superior ao do oponido», pelo que, havendo colisão de direitos, deve ser dada prevalência à posição do senhorio.

O recurso foi, após contra-alegações do recorrido, julgado improcedente.

Quanto à questão de saber «se a entrega do imóvel ao exequente viola os artigos 8.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (respeito do domicílio), 8.º (direito internacional), 62.º (direito à propriedade privada) e 65.º (direito à habitação) da CRP», sustentou o Tribunal da Relação de Évora:

«[...] Não estando ainda judicialmente reconhecido o direito de denúncia, face à pendência da respectiva acção, tal pretenso direito não está em condições de ser exercido na presente oposição à execução, não se podendo ainda considerar radicado

na esfera jurídica da oponente».

«Assim, não tendo a oponente demonstrado ser titular da invocada posição jurídica activa, o instituto da colisão de direitos (artigo 335.º do C. Civil) deixa de poder aplicar-se, carecendo de sentido a invocação da violação [das citadas normas] [...]».

«Face à falta de reconhecimento judicial do (alegado) direito à habitação do imóvel que a oponente pretende fazer valer na acção de denúncia, não se vislumbra que a restituição deste ao apelante viole as aludidas disposições legais, nomeadamente o direito à habitação/domicílio.

Aludindo à execução que a ora executada/oponente havia primeiramente instaurado contra o ora exequente/oponido para entrega do imóvel ora reclamado por este, através da qual lograra obter a sua desocupação e efectiva entrega, lê-se ainda no

mencionado acórdão:

«Ademais, tal restituição, com a inerente privação do uso e fruição do imóvel que na primeira execução lhe foi atribuído, não se configura como arbitrária ou intolerável, tanto mais que, por muito prementes que sejam as necessidades habitacionais da oponente/locadora, elas não se podem sobrepor ao direito de uso e fruição do locatário que foi violado, ilicitamente, pela conduta daquela ao promover, de forma injusta, a execução no âmbito da qual obteve a entrega do imóvel.

«Por outro lado, a Constituição admite restrições ao direito de uso e fruição (uma das componentes do direito de propriedade), não sendo, como é sabido, a propriedade privada um direito subjectivo ilimitado, sendo o seu conteúdo e limites definidos por

lei.».

É contra este acórdão e o modo como foi resolvido o problema de constitucionalidade por si suscitado, que a executada/oponente se insurge, mediante recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, interposto ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da lei do Tribunal Constitucional, pretendendo ver apreciada a questão da constitucionalidade da interpretação - perfilhada pela 1.ª instância e confirmada pela instância ordinária de recurso - segundo a qual a mera instauração de acção de despejo, com fundamento em denúncia para habitação, não constitui facto extintivo ou modificativo da obrigação exequenda de entrega do locado, por parte do senhorio-executado, podendo apenas vir a sê-lo com a procedência da acção (cf.

requerimento de interposição de recurso e esclarecimento posteriormente prestado pela recorrente, para tanto convidada, quanto ao objecto do recurso).

Tendo prosseguido o recurso, foram apresentadas alegações, em que a recorrente

formula as seguintes conclusões:

«1.ª O artigo 1101.º, alínea a), do Código Civil dispõe que o senhorio pode denunciar o contrato de arrendamento em caso de necessidade de habitação pelo próprio ou pelos seus descendentes em 1.º grau e o artigo 1103.º, n.º 1, estipula que a denúncia é feita nos termos da lei de processo, com antecedência não inferior a seis meses sobre a

data pretendida para a desocupação.

«2.ª A recorrente denunciou o contrato nos termos da lei do processo através de acção de despejo proposta em 31-05-2007, denúncia essa cuja eficácia é marcada pela

própria lei para 30-11-2007.

«3.ª A oposição nos presentes autos, invocando como fundamento e pretendendo fazer valer a referida denúncia, foi deduzida em Outubro de 2008, quando ainda se aguardava a apreciação daquele pedido de despejo.

«4.ª A lei dispõe que a acção de despejo para este efeito deve ser intentada com data não inferior a 6 meses sobre a data pretendida para a desocupação (artigo 1103.º, n.º

1, do Código Civil).

«5.ª A acção intentada em 31-05-2007 deveria ter conduzido à "desocupação" em 30-11-2007, desocupação essa em sentido impróprio porquanto é a própria recorrente que já se encontra na posse da casa de habitação desde 2003 estando em curso uma acção executiva para que esta seja entregue ao inquilino em cujo favor foi entretanto reconhecida a vigência de um contrato de arrendamento que prejudicou a anterior entrega judicial do prédio à ora recorrente.

«6.ª Porém, já quase no fim do ano de 2008 a ora recorrente veio invocar nesta acção a denúncia do contrato de arrendamento por si feita na acção intentada em 31-05-2007 e o julgador decidiu que essa denúncia não era relevante pelo facto de

ainda não mostrar validada por sentença.

«7.ª A prolação da sentença corresponde ao exercício de uma actividade jurisdicional que em nada depende da recorrente, a qual todavia fez a denúncia nos termos da lei do processo do contrato de arrendamento que o tribunal decretara subsistir não obstante a ora recorrente e os demais herdeiros de seu marido terem invocado, como era sua convicção, que aquele contrato de arrendamento caducara há vários anos.

«8.ª O direito à habitação consagrado na Constituição tem de ser entendido além do mais como direito fundamental de carácter social, análogo a direitos, liberdades e garantias, na medida em que não pode deixar de tutelar os cidadãos contra a privação arbitrária de habitação ou contra o impedimento na obtenção de uma habitação.

«9.ª É este claramente um caso flagrante desta natureza, em que o Estado consagra o direito à habitação própria, fazendo prevalecer legislativamente tal direito se necessário contra o direito do inquilino ao uso da mesma casa, daí resultando que nesse conflito de interesses e por determinação legal prevalece o direito do senhorio/proprietário se estiver em causa a sua própria necessidade de habitação.

«10.ª Sendo tão óbvio o sentido da opção legislativa e estipulando a lei que o senhorio pode denunciar o contrato em caso de necessidade de habitação pelo próprio e que a denúncia é feita nos termos da lei do processo, resulta claramente violado o direito à habitação do senhorio proprietário se o artigo 1101.º do Código Civil for interpretado no sentido de que a propositura e pendência da correspondente acção de despejo pelo senhorio que já se encontra de facto a habitar a casa, não constitui por si só denúncia do contrato, só se considerando como tal a sentença que validará a denúncia.

«11.ª Uma tal interpretação do disposto no artigo 1101.º do Código Civil viola o disposto nos artigos 62.º e 65.º da Constituição da República.

«12.ª A recorrente invocou como facto modificativo ou extintivo da sua obrigação de entrega, ao abrigo do disposto no artigo 814.º, alínea g), do CPC ter já denunciado o contrato de arrendamento para habitação própria com a antecedência necessária de despejo, mas o Mmº Juiz considerou que esse facto não tem relevância jurídica para fundamentar a oposição e que só terá a sentença que venha a ser proferida quanto ao

pedido de despejo.

«13.ª Esta interpretação desprotege e viola arbitrariamente o seu direito ao domicílio e à respectiva estabilidade, que lhe são garantidos pelos artigos 8.º da CEDH e pelo

artigo 8.º da Constituição da República.

«14.ª Efectivamente, a recorrente encontra-se a viver desde há mais de seis anos na única casa de que é proprietária e que constitui o seu domicílio, e requereu em devido tempo ao tribunal o reconhecimento do seu direito à cessação de um contrato de arrendamento do mesmo local a favor de terceiro.

«15.ª Só porque o Tribunal ainda não validou definitivamente a denúncia não obstante já terem decorrido os prazos estabelecidos para o efeito na lei do processo, não lhe poderá ser imposta coercivamente a privação de tal domicílio - no mínimo a sua

expulsão temporária dele.

«16.ª O domicílio de uma pessoa - de mais a mais uma pessoa de idade avançada e sozinha - estabelecido na única casa de que é proprietária e onde vive rodeada das pequenas coisas que constituem o seu mundo, é uma realidade protegida, um habitat cuja privação e devassa consequentes da sua entrega forçada a terceiros que neste momento são apenas titulares de um direito virtual de uso, ainda que se trate de uma expulsão temporária, atentam contra o seu direito fundamental à habitação e ao

domicílio.

«17.ª A interpretação contrária do artigo 814.º, alínea g), do CPC conjugado com o disposto no artigo 1101.º, n.º 1, do Código Civil, constante da decisão recorrida, viola o disposto nos artigos 8.º da CRP e 8.º da CEDH.

«18.ª Devendo ser julgadas inconstitucionais as normas dos artigos do Código Civil e do Código (de Processo) Civil supra interpretadas na interpretação que o tribunal "a

quo" delas fez.».

O recorrido contra-alegou, pugnando pela manutenção do julgado.

Cumpre apreciar e decidir.

II - Fundamentação

2 - Deve começar por dizer-se, como ponto prévio, que, à semelhança do que este Tribunal teve já oportunidade de afirmar noutras ocasiões (cf., entre outros, Acórdãos n.os 322/93, 223/95 e 121/97, publicados no Diário da República, 2.ª série, de 29 de Outubro de 1993, 27 de Junho de 1995 e de 30 de Abril de 1997, respectivamente), que não se justifica apreciar a eventual desconformidade entre as questionadas normas de direito interno, na interpretação adoptada pelo acórdão recorrido, e a invocada disposição do artigo 8.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, na parte em que assegura o direito ao domicílio, quando é certo que nada se diz neste preceito que se não contenha na CRP, designadamente no artigo 65.º, que figura já como parâmetro

de constitucionalidade.

Analisar-se-á, pois, apenas, a questão da inconstitucionalidade das normas dos artigos 1101.º do Código Civil e do artigo 814.º, alínea g), do Código de Processo Civil, na interpretação segundo a qual a mera denúncia do contrato de arrendamento não tem qualquer relevância jurídica para fundamentar a oposição à entrega da casa pelo senhorio-denunciante que já esteja de facto na posse dessa casa, por alegada violação

dos artigos 62.º e 65.º da CRP.

É sabido que um dos traços que mais marcantemente caracteriza o «arrendamento vinculístico» consiste no facto de o senhorio, contrariamente ao arrendatário, não gozar, em princípio, do direito de denúncia do contrato de arrendamento, isto é, na terminologia adoptada na versão originária do Código Civil, do direito de se opor à sua renovação no termo do prazo (inicial ou sucessivo) convencionado ou fixado por lei.

Esta solução, por constituir um claro desvio ao princípio da liberdade contratual, foi originariamente consagrada como transitória, num contexto de crise subsequente à Primeira Grande Guerra; manteve-se, contudo, vigente, ao longo do tempo, convertendo-se de excepção em princípio geral (princípio da prorrogação forçada do contrato de arrendamento) digno de expressa consagração no Código Civil de 1966

(artigo 1095.º).

E o que justificou a permanência no tempo de um tal regime restritivo foi o reconhecimento de que, para lá das razões conjunturais que aconselhavam a adopção de medidas tendentes a garantir a subsistência do arrendamento, estava em causa a garantia de um espaço vital de realização humana objecto de expressa tutela

constitucional: o direito à habitação.

Assim é que, apesar de sublinhar a natureza positiva de um tal direito fundamental, concebido nuclearmente como um «direito a prestações» cujo sujeito passivo é, antes de mais, o Estado, não deixou este Tribunal de afirmar, em jurisprudência retomada em sucessivos acórdãos, a legitimidade constitucional das «normas que subtraem o contrato de arrendamento para habitação à regra da liberdade contratual e o submetem à regra da renovação automática e obrigatória»:

«[...] fundando-se o direito à habitação na dignidade da pessoa humana (ou seja, naquilo que a pessoa realmente é - um ser livre com direito a viver dignamente), existe aí um mínimo que o Estado sempre deve satisfazer. E para isso pode, até, se tal for necessário, impor restrições aos direitos do proprietário privado. Nesta medida, também o direito à habitação vincula os particulares, chamados a serem solidários com o seu semelhante (princípio da solidariedade social); vincula, designadamente, a propriedade privada, que tem uma função social a cumprir. [...]» (Acórdão 151/92, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 172, de 28 de Julho de 1992; cf., ainda, entre outros, os Acórdãos n.os 311/93 e 420/2000, publicados no Diário da República, 2.ª série, n.os 170, de 22 de Julho de 1993, e 270, de 22 de Novembro de

2000, respectivamente).

É certo que, desde então, o legislador, porque também não está a tal constitucionalmente obrigado, tem vindo gradualmente a deixar de fazer uso dessa possibilidade tida como constitucionalmente legítima de garantir o direito à habitação (do locatário) mediante a adopção de medidas legislativas objectivamente restritivas do direito de propriedade do locador; mais, tem mesmo (re)introduzido mecanismos de igualação da posição do senhorio e do inquilino tendentes a conferir ao contrato de arrendamento e, designadamente ao destinado à habitação do locatário, a feição original de um espaço de exercício da liberdade contratual.

Assim, com a reforma operada pela Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro, passou também a reconhecer-se ao senhorio, mesmo nos arrendamentos habitacionais, o direito de se opor à renovação do contrato (nos contratos com prazo certo) ou de denunciá-lo de forma não fundamentada (nos contratos de duração indeterminada) e, desse modo, recuperar a sua liberdade de utilizar o imóvel dado de arrendamento (artigos 1096.º, n.º 2, e 1101.º, alínea c), do CC).

Ponto é que, no primeiro caso, a declaração de oposição à renovação se faça com uma antecedência não inferior a um ano do termo do contrato (artigo 1097.º do CC), e que, no segundo caso, a comunicação de denúncia se efectue com uma antecedência não inferior a cinco anos sobre a data em que se pretenda a cessação e seja confirmada com uma antecedência máxima de 15 meses e mínima de um ano sobre a data da sua efectivação (artigos 1101.º, alínea c), e 1014.º do CC).

Conferiu-se, pois, inovatoriamente, ao senhorio, também nos contratos de duração indeterminada, um direito de denúncia livre ou não fundamentado apenas sujeito a um

prazo de pré-aviso e confirmação.

Manteve-se, contudo, paralelamente, a figura da denúncia justificada ou fundamentada na necessidade de habitação do senhorio, já antes excepcionalmente reconhecida ao senhorio, desde a década de 50, face à regra geral que lhe vedava o direito de se opor

à continuação do vínculo locatício.

Ora, ainda no contexto da afirmação legal de um tal princípio da prorrogação forçada do contrato de arrendamento, não hesitou o Tribunal Constitucional em afirmar a legitimidade constitucional, à luz do disposto no mesmo artigo 65.º da CRP, do direito excepcional de denúncia, pelo senhorio, com tal fundamento (necessidade para

habitação):

«[...] é indubitável que as normas que reconhecem ao senhorio o direito de denúncia do contrato de arrendamento, quando aquele necessitar do prédio para habitação, desde que se verifiquem os requisitos - bem rigorosos e apertados - indicados no artigo 1098.º do Código Civil, não infringem aquele preceito constitucional.

«Com efeito, as normas do Código Civil respeitantes à denúncia do contrato de arrendamento para habitação pelo senhorio, com fundamento na necessidade deste em utilizar o prédio para sua habitação, visam resolver um conflito entre o direito à habitação do senhorio e o direito à habitação do inquilino. Em face desse conflito, a lei atribui preferência ao direito à habitação do senhorio - o qual se fundamenta no direito de propriedade sobre o prédio urbano, direito esse garantido pelo artigo 62.º, n.º 1, da Constituição - sobre o direito a habitação do inquilino - o qual se baseia no contrato de arrendamento urbano, que é obrigatoriamente renovável nos termos da lei.

«Ora, é perfeitamente legítimo, sob o ponto de vista constitucional, que, na hipótese de colisão entre aqueles dois direitos à habitação - um (o do senhorio) alicerçado no direito fundamental de propriedade privada, com assento na Constituição, e outro (o do arrendatário) baseado no contrato - o legislador dê primazia ao do senhorio.» (Acórdão 131/92, publicado no Diário da República n.º 169, de 24 de Julho de 1992; cf., no mesmo sentido, entre outros, o citado Acórdão n.os 151/92, os Acórdão n.os 174/92 e 4/96, publicados no Diário da República, 2.ª série, n.os 216, de 12 de Setembro de 1992, e 101, de 30 de Abril de 1996, respectivamente).

E é precisamente sob esta perspectiva que a recorrente pretende ver resolvida a questão de constitucionalidade por si suscitada no presente recurso.

Com efeito, partindo da premissa de que a denúncia por si exercida, na respectiva acção de despejo, apesar de ainda não judicialmente validada, operou decorridos seis meses sobre a instauração desta, sustenta a recorrente que, estando em causa a própria necessidade de habitação do senhorio/proprietário, deve o respectivo direito à habitação própria, constitucionalmente tutelado, prevalecer «se necessário contra o direito do inquilino ao uso da mesma casa» (conclusão 9.ª).

Tal linha de argumentação padece, contudo, de dois vícios de raciocínio.

Primeiro, não é verdade que a denúncia fundada na necessidade do prédio para habitação opere decorridos seis meses sobre a data da instauração da acção de

despejo com tal fundamento.

Com efeito, a exigência, imposta pelo n.º 1 do artigo 1103.º do CC, no sentido de que a denúncia pelo senhorio, com qualquer dos fundamentos previstos nas alíneas a) e b) do artigo 1101.º do mesmo Código, seja feita nos termos da lei de processo «com antecedência não inferior a seis meses sobre a data pretendida para a desocupação», embora fundada no pressuposto inverosímil de que a acção de despejo terminará nesse prazo, não parece comportar tal sentido interpretativo.

O que apenas se pretende, com tal exigência temporal, é impor ao senhorio, mesmo nos casos de denúncia fundamentada, um prazo mínimo de aviso prévio, de modo a que o inquilino, apesar da justiça material de decisão de despejo, não seja confrontado com a possibilidade de ser subitamente despejado sem que tenha tido tempo para deslocalizar o seu centro de vida para outro lugar e domicílio.

O efeito extintivo da denúncia, caso a acção de despejo venha a ser julgada procedente, apenas operará, contudo, com a própria sentença que, com tal fundamento, o decrete, assumindo esta, como é sabido, um alcance claramente

constitutivo.

É que, além do mais, deixou de vigorar a regra prevista no artigo 53.º do RAU (aprovado pelo Decreto-Lei 321-B/90, de 15 de Outubro, entretanto revogado) segundo a qual quando o senhorio pretende fazer cessar o arrendamento, nos casos em que a lei o permita, deve interpelar a outra parte, fazendo-se a interpelação, quando seja exigida acção judicial, através da citação, cujo efeito substantivo era precisamente, de acordo com o regime então vigente, a cessação do arrendamento (artigos 52.º, n.º

1, e 54.º, n.º 1, do RAU).

À luz deste regime pretérito, os efeitos processuais e substantivos da denúncia reportavam-se, pois, ao momento da citação do arrendatário para a acção de despejo, retroagindo os efeitos do caso julgado, atenta a sua eficácia retroactiva, a tal momento

prévio.

Não é, contudo, este o regime vigente e aplicável ao caso vertente.

Por outro lado, também não é sustentável considerar, como pretende a recorrente, que à data da oposição à execução por si deduzida, fosse já titular do direito à habitação de que se arroga, por via do exercício, pela forma e prazo legais, do direito de denúncia fundado na necessidade do locado para sua habitação própria.

Na verdade, por força da sentença, transitada, que julgou procedentes os embargos de executado deduzidos pelo ora recorrido e reconheceu a existência de um contrato de arrendamento válido e em vigor sobre o imóvel que este, na execução principal, foi forçado a desocupar, não só não tinha a recorrente o direito a habitar no locado como, pelo contrário, era sua obrigação proporcionar ao recorrido, como decorria das obrigações contratualmente assumidas, o respectivo gozo, para o mesmo fim

habitacional.

É que, estando em causa o exercício de um direito fundamentado e não livre de denúncia, com claras repercussões no direito do inquilino em permanecer, com garantia constitucionalmente tutelada de estabilidade, na habitação locada, cumpre ao senhorio alegar e provar que se verificam os requisitos previstos na lei e, nuclearmente, a necessidade do locado para a sua própria habitação (artigo 1102.º do CC).

Como bem sublinhou o acórdão recorrido, só com tal demonstração em juízo, é possível equacionar o conflito de interesses habitacionais concorrentes entre locador e locatário e resolvê-lo, como imposto por lei e consentido pela lei Fundamental, em

favor do primeiro.

E é indiferente que, durante a pendência da acção de despejo, a recorrente se encontre a habitar o locado, atenta a génese ilegal ou injusta de tal situação de facto, face ao reconhecimento judicial da validade e vigência do contrato de arrendamento.

Com efeito, ainda que se perspective no direito constitucional à habitação uma dimensão negativa, análoga à dos direitos, liberdades e garantias, como sustentado pela recorrente (neste sentido expresso, apenas se pronunciou o acórdão 101/92, com duas declarações de voto divergentes), comportando também «o direito de não ser arbitrariamente privado da habitação», a verdade é que, como é bem ver, não são inconstitucionalmente irrelevantes as circunstâncias de facto que estiveram na origem da própria apropriação material do espaço habitacional pela pessoa que invoca um tal

direito fundamental.

Assim, quando a lei reconhece ao arrendatário habitacional o direito de permanecer no locado fá-lo porque lhe reconhece um título legítimo de origem contratual; do mesmo modo, quando impõe a este que desocupe o locado para que o locador possa aí passar a residir, por dela comprovadamente necessitar, fá-lo porque reconhece a este os poderes de uso e fruição que integram o conteúdo do seu direito de propriedade; e a conformação constitucional das opções legais em matéria de arrendamento urbano, de pendor mais ou menos vinculístico, assentam no pressuposto básico de que locador e locatário são titulares de interesses que, apesar de potencialmente conflituantes, são

ambos merecedores da tutela do direito.

Ora, no caso vertente, a recorrente recuperou a posse do imóvel, sua propriedade, em execução que veio a ser julgada extinta por efeito da procedência do embargos de executado deduzidos pelo inquilino, que neles fez prova de que, afinal, tinha o direito, contratualmente fundado, de habitar o locado que foi forçado a desocupar, recaindo sobre a exequente a correspondente obrigação contratual.

Face à existência, reconhecida por sentença transitada, de um contrato de arrendamento válido e em vigor, cujos efeitos obrigacionais subsistem até que a senhoria demonstre, na competente acção, que tem o direito de denúncia para habitação, é de concluir que é materialmente ilegítima, também sob o ponto de vista constitucional, a própria vivência no espaço habitacional que a recorrente pretende ver protegida durante a pendência de tal acção declarativa.

Assim configuradas as coisas, não se afigura inconstitucional a interpretação que, considerando justamente irrelevante o facto de a executada-senhoria se encontrar a habitar o locado, manda prosseguir a execução instaurada pelo exequente-inquilino, com a consequente entrega coerciva do locado a este último, apesar do facto de aquela ter instaurado acção de despejo, com fundamento no direito de denúncia do locado para sua habitação própria, ainda pendente.

Interpretação contrária é que poderia porventura pôr em causa o direito à habitação constitucionalmente tutelado do locatário, que, apesar de ver judicialmente reconhecido o direito à habitar no locado, por ser dele arrendatário, estaria impedido de executar um tal direito enquanto decorresse a discussão judicial em torno da questão de saber se assistia à senhoria o direito ou não de denunciar tal contrato.

É que o direito à habitação do locador apenas pode ser processualmente exercido na respectiva na acção de despejo, só relevando a delonga desta na perspectiva constitucionalmente autónoma, que a recorrente não equacionou, do direito constitucionalmente consagrado de obter uma decisão judicial em prazo razoável (artigo

20.º, n.º 4, da CRP).

E só com a procedência definitiva da acção é que opera o efeito extintivo da denúncia, cessando, com tal fundamento, a própria relação locatícia que até esse momento legitimou a afectação do locado às necessidades habitacionais do locatário.

Até lá, o que existe juridicamente e merece tutela constitucional é, tão-só - sublinhe-se de novo -, o vínculo obrigacional constituído por efeito do contrato de arrendamento para habitação que une senhoria e inquilino, cujo conteúdo integra, como pólo activo, o direito do locatário a habitar o locado e, como pólo passivo, a obrigação do locador de proporcionar, nas condições contratualmente estipuladas e exigidas por lei, o exercício, pelo locatário, de tal direito. E é essa circunstância que justifica que não possa relevar, sem mais, a mera invocação do direito de propriedade, tal como está consagrado no

artigo 62.º da Constituição.

Por tudo isso, não é constitucionalmente ilegítima a interpretação que não reconhece à simples instauração da acção de despejo, com o fundamento invocado (denúncia para habitação), ainda que nos termos da lei do processo e com a antecedência legalmente imposta, relevância extintiva ou, mesmo modificativa, da obrigação exequenda de entrega que recai sobre o senhorio que já se encontra, de facto, na posse do locado.

III - Decisão

Pelo exposto, decide-se:

a) não julgar inconstitucionais as normas dos artigos 1101.º, alínea a), do CC, e 814.º, alínea g), do CPC, quando interpretadas no sentido de que a mera instauração, ainda que com a antecedência mínima de seis meses imposta por lei, da acção de despejo, com fundamento no direito de denúncia para habitação do senhorio, não constitui facto extintivo ou modificativo da obrigação exequenda de entrega do locado, pelo senhorio, que já esteja na posse do mesmo, podendo apenas vir a sê-lo com a procedência da

acção;

b) e, consequentemente, negar provimento ao recurso.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 UC.

Lisboa, 28 de Abril de 2010. - Carlos Fernandes Cadilha - Vítor Gomes - Ana Maria Guerra Martins - Maria Lúcia Amaral - Gil Galvão.

203401662

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/2010/06/28/plain-276568.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/276568.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1990-10-15 - Decreto-Lei 321-B/90 - Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações

    Aprova o regime do arrendamento urbano.

  • Tem documento Em vigor 2006-02-27 - Lei 6/2006 - Assembleia da República

    Aprova o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), que estabelece um regime especial de actualização das rendas antigas, e altera o Código Civil, o Código de Processo Civil, o Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de Novembro, o Código do Imposto Municipal sobre Imóveis e o Código do Registo Predial. Republica em anexo o capítulo IV do título II do livro II do Código Civil.

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