Acórdão doutrinário
Processo 29956. - Autos de recurso penal vindos da Relação de Coimbra. - Recorrente para o tribunal pleno, Ministério Público. Recorridos, Manuel Gaspar Vieira, Companhia de Seguros Tagus e outros.
I
1. Em 23 de Fevereiro de 1956, cerca das 18 horas, no sítio do Sobreiro Torto, da comarca de Estarreja, estrada nacional n.º 1, chocaram, quando marchavam em sentido oposto, os automóveis RN-13-26 e OT-13-89, respectivamente conduzidos por Jaime de Deus Leite e Manuel Gaspar Vieira. Daí a morte do passageiro do segundo carro Marcolino da Silva, lesões corporais nos dois motoristas e nos passageiros da mesma segunda viatura Abílio Bastos e Vasco Simões, bem como danos no primeiro e no segundo automóvel, nos valores respectivos de 29.000$00 e 27.462$50.
O desastre resultou das duas seguintes condutas:
a) Na lomba de estrada ali existente ter o primeiro réu ultrapassado certa camioneta dianteira, sem prèviamente se certificar da ausência de perigo na execução de tal manobra;
b) Conduzir o segundo réu o automóvel OT-13-89 com velocidade excessiva, atendendo ao estado escorregadio da estrada, cujas obras, chuva e flocos de neve transformaram em lamaçal a zona do acidente. Donde a marcha do carro em ziguezagues e a falta de domínio.
2. Conforme decidiu o acórdão de fl. 561:
Transgrediram: o primeiro réu, o artigo 10.º, n.os 2 e 5; o segundo, o artigo 7.º, n.º 2, alínea g), do Código da Estrada.
Cometeram-se várias violações da lei penal, mas inexiste acumulação, visto aquelas resultarem de conduta uma por parte de cada um dos motoristas. Impõe-se, pois, atender sòmente ao delito mais grave, como base punitiva, tomando-se em conta os restantes eventos como agravantes.
O homicídio vem a ser punido pelo artigo 59.º do Código da Estrada, visto a morte resultar de culpa grave por banda de ambos os condutores.
Em face do aludido aresto ficaram condenados:
a) O Jaime Leite: na pena de dez meses de prisão e multa de 20$00 diários, mais a multa de 200$00; na inibição de conduzir por dois anos, e nas indemnizações: de 55.000$00 a favor da viúva do sinistrado Marcolino; de 20.000$00 ao segundo réu; de 200$00 ao ofendido Abílio, e de 100$00 ao ofendido Vasco;
b) O Manuel Vieira: na pena de seis meses de prisão e multa de 20$00 diários, mais a multa de 200$00; na inibição de conduzir por um ano, e nas indemnizações: de 35.000$00 a favor da referida viúva; de 18.000$00 ao primeiro réu; de 150$00 ao ofendido Abílio, e de 50$00 ao ofendido Vasco.
A responsabilidade dos motoristas a respeito das indemnizações foi transferida, respectivamente, para as companhias seguradoras Portugal Previdente e Tagus.
Por último ficou definido não ser de impor a solidariedade quanto à obrigação do pagamento das indemnizações.
3. O Ministério Público recorreu para o tribunal pleno do aludido veredicto, que se pode ler no Boletim do Ministério da Justiça (82-340), com o fundamento de existir oposição entre ele e o aresto deste Supremo, de 30 de Julho de 1958, inserto no citado Boletim (79-391), sobre as seguintes questões de direito:
a) Alcance e aplicação das alíneas b) e d) do artigo 61.º do Código da Estrada, a propósito da inibição de conduzir;
b) Alcance e aplicação do artigo 2372.º do Código Civil, quanto à solidariedade no pagamento das indemnizações, nos casos de concorrência efectiva de causas ou de causalidade cumulativa.
A secção criminal deu seguimento ao recurso, pois julgou serem opostos os focados acórdãos sobre os referidos pontos de direito.
O ilustre magistrado do Ministério Público recorrente apresentou brilhantes alegações, as quais fecharam como seguinte projecto de doutrina a firmar:
I. A alínea d) do n.º 2 do artigo 61.º do Código da Estrada refere-se também a crimes culposos;
II. O artigo 2372.º do Código Civil abrange os casos de comparticipação e os de concorrência efectiva de causas ou de causalidade cumulativa.
Ninguém mais alegou.
II
4. Ratifica-se plenamente o decidido sobre a oposição de julgados, por satisfazer o condicionalismo prescrito nos artigos 668.º do Código de Processo Penal e 763.º do Código de Processo Civil.
Passemos ao conflito de jurisprudência pela ordem dos problemas em debate.
A) 1.º problema:
5. O exposto no anterior parágrafo 2 mostra à saciedade terem os dois condutores sofrido pena correccional por crime praticado no exercício da condução.
Este caso enquadra-se a rigor na alínea d) do n.º 2 do artigo 61.º do Código da Estrada. Com efeito, aí se consigna que serão inibidos temporàriamente da faculdade de conduzir e privados das respectivas licenças:
Por tempo não superior a cinco anos, variável conforme a gravidade da infracção, os condutores condenados em pena correccional por qualquer crime cometido no exercício da condução ou que tenham utilizado o veículo ou licença de condução para o prepararem ou executarem.
O grifado é do punho do relatante.
O transcrito preceito fala ipsis verbis de "qualquer crime». Tal genérica expressão engloba, só por si, os dois tipos de delito: voluntários e involuntários.
Mas a leitura ad verbum - à parte o indefinido "qualquer» - mostra terem-se abrangido as duas referidas espécies.
Precisando. O crime praticado pura e simplesmente no exercício da condução é o involuntário. O crime que o agente preparou ou executou, utilizando para esse fim certo veículo ou licença de condução, já é voluntário.
Repugna admitir o emprego da latitudinária fórmula verbal "qualquer crime», se houvesse o propósito de apenas abranger os crimes dolosos e, consequentemente, exceptuar os inúmeros crimes por negligência, que clamorosamente provêm do puro exercício da condução.
Reforça o entendimento aqui adoptado a sintomática particularidade de o mesmo diploma falar, em vários passos, ora de crimes voluntários, ora de crimes involuntários, nos casos em que só estes ou aqueles quis abranger. Vejam-se: artigo 46.º, n.º 2, alínea a), n.os 1.º, 2.º e 3.º, alínea c), n.º 2.º, e artigo 58.º, n.º 4.
6. Argumenta-se ex adverso:
Aplicando a focada norma aos crimes involuntários adviriam iniquidades. Assim, e v. g., um motorista seria privado de conduzir, embora punido com leve pena de multa, por cometer um dano culposo de insignificante valor.
Retorquindo:
1.º A dita alínea absteve-se por completo de impor limite mínimo sobre a inibição de conduzir. Deste modo, o período temporal da medida de segurança pode fixar-se "conforme a gravidade da infracção», como aliás recomenda até a própria alínea d).
2.º Mesmo que contivesse um limite mínimo elevado. Quando se cumpre a lei não se ofende ninguém.
7. Analisemos a alínea b) do n.º 2 do artigo 61.º
Conforme ela dispõe, serão inibidos temporàriamente da faculdade de conduzir e privados das respectivas licenças:
Até três meses, seis meses e um ano, pela primeira, segunda e sucessivas infracções, os condutores:
1.º Que no cruzamento com outros veículos não diminuam a intensidade das luzes de modo a evitar o encandeamento:
2.º Que usem de velocidade excessiva ou pratiquem manobras perigosas.
As manobras perigosas vêm definidas no anterior n.º 1, segunda parte, do mesmo artigo 61.º
Portanto, a versada alínea b) só compreende contravenções, e, destas, as respeitantes aos seguintes assuntos:
Cruzamento de veículos sem diminuição de luzes a impedir o encandeamento (artigo 30.º, n.º 2, segunda parte). Velocidade excessiva (artigo 7.º, n.º 1, segunda parte). Sentido do trânsito; início de manobra; prioridade de passagem; cruzamento de veículos; ultrapassagem; mudança de direcção; inversão do sentido da marcha; marcha atrás (artigos 5.º, n.os 2 e 5, última parte, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 12.º e 13.º, respectivamente).
Assim, quando no exercício da condução se cometer - além das enumeradas contravenções - ainda um crime voluntário ou involuntário, pelo qual o condutor vier a ser condenado em pena correccional, só é aplicável a discutida alínea d).
Um parêntesis. O Supremo Tribunal Administrativo chegou já a decidir que a medida de segurança pelos factos vistos na focada alínea b) é da competência da Direcção-Geral de Transportes Terrestres (Acórdão de 24 de Abril do corrente ano, tirado pelo Exmo. Conselheiro Teixeira Martins, recurso n.º 5401).
8. Se vingasse a tese adversa surgiriam impressionantes situações. Atente-se no exemplo que se vai expor.
Um motorista pode causar pela primeira e segunda vez vários homicídios involuntários apenas devido a imperícia ou a descuido com o perfeito funcionamento dos aparelhos de travagem e manobra. Nesta hipótese, e dada a inaplicabilidade da alínea d), não haveria lugar a medida de segurança, por se inverificar qualquer dos restantes casos de inibição enumerados no predito artigo 61.º
O Código da Estrada francês (Decreto 54724, de 10 de Julho de 1954), impõe a inibição de conduzir, de um mês a dois anos, ao condutor condenado por homicídio ou ofensas corporais involuntárias cometidas no exercício da condução.
Se ao delito se seguir a fuga ou tiver lugar em estado de embriaguez, aqueles limites sobem, respectivamente, para um e quatro anos (artigo 131).
B) 2.º problema:
9. No exemplo dos autos os dois réus não colaboraram conscientemente num plano ou objectivo comum. O processo apenas patenteia um nexo espacial e temporal de duas actividades completamente distintas. Não há, assim, a figura jurídica da comparticipação criminosa.
No douto aresto oposto a hipótese é idêntica, mas o problema da solidariedade não chegou a ser agitado pelas partes, pelo que nem sequer foi discutido pelo Supremo.
10. A solução do segundo conflito jurisprudencial depende do entendimento a dar ao artigo 2372.º do Código Civil.
O seu teor é o seguinte:
Se a ofensa dos direitos for cometida por mais de um indivíduo, serão todos solidàriamente responsáveis, salvo o direito do que pagar pelos outros a haver deles as quotas respectivas.
§ 1.º Estas quotas serão proporcionadas à responsabilidade criminal de cada um dos delinquentes, se essa responsabilidade for diferentemente graduada.
§ 2.º Esta proporção será regulada pelos tribunais, no mesmo acto em que a responsabilidade criminal for graduada, se o lesado tiver requerido a devida indemnização.
O proémio do transcrito artigo encontra-se redigido de forma latitudinária. Deste modo, compreende tanto os autores, cúmplices e encobridores do crime como ainda os agentes que, embora dissociados, contribuam com os seus actos ilícitos para a produção do mesmo dano. Por outras palavras, fica dentro do âmbito do preceito quer a figura da comparticipação delituosa, quer a da actuação paralela ou concurso de causas efectivas objectivamente ligadas entre si.
Isto representa um corolário da sentença latina: ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus.
11. Conforme a teoria da conditio sine qua non ou de equivalência das condições, de von Buri: cada coactividade determina toda a consequência - apud Demogue, Traité des Obligations en Général, 4-11, in fine, e 12.
Também pelo princípio causa causae est causa causati cada condição produz o resultado total, por tornar causais as outras condições.
Consequentemente: o co-autor é responsável pela reparação integral do dano, visto cada um provocar todo o prejuízo.
É a hipótese, verbi gratia, da morte do transeunte pelo embate entre dois automóveis em que um rodava fora de mão e outro com velocidade excessiva - Henri Mazeaud e Léon Mazeaud, Traité Théorique et Pratique de la Responsabilité Civile, 2.ª ed., 2-748 e 749.
No sentido de o artigo 2372.º abranger tanto os danos causados conjuntamente como os danos causados independentemente por várias criaturas: Prof. Adriano Vaz Serra, Responsabilidade Contratual e Responsabilidade Extracontratual, in Boletim do Ministério da Justiça, 85-132 a 135; Doutor F. M. Pereira Coelho, O Problema da Causa Virtual na Responsabilidade Civil, pp. 8 (nota 5) e 9.
III
Proferem-se, portanto, os seguintes dois assentos:
1.º O disposto na alínea d) do n.º 2 do artigo 61.º do Código da Estrada abrange o crime doloso e o crime culposo.
2.º O artigo 2372.º do Código Civil abrange o caso de comparticipação no facto ilícito e o de vários factos produzirem conjuntamente a ofensa.
Por conseguinte, o processo volta à secção criminal para ser alterado o recorrido aresto de conformidade com aquele segundo assento.
Sem imposto.
Lisboa, 9 de Dezembro de 1959. - Silva e Sousa [o relator lavrou o acórdão só por a tese acerca do primeiro problema se harmonizar com o projecto que apresentou em mesa. Razões da sua discordância quanto à solução dada ao segundo conflito jurisprudencial.
1. Um dos meios de perscrutar a mens legis é constituído pelo confronto entre o texto interpretando e o texto anterior donde emana.
O artigo 2372.º teve a sua origem no artigo 106.º do Código Penal de 1852 - ver Prof. Jaime Gouveia, Da Responsabilidade Civil, 1933, p. 145. Esta norma apenas impunha a solidariedade aos comparticipantes, de que só faziam parte os autores e os cúmplices, segundo o sistema do respectivo diploma - artigos 24.º, 197.º, 198.º e 431.º, § único.
Sem dúvida o prefulgente visconde de Seabra e a esclarecida comissão revisora ter-se-iam expressado de maneira diferente da contida no artigo 2372.º se quisessem estender o ónus da solidariedade aos co-agentes sem a categoria jurídico-penal de comparticipastes, por falta de colaboração, quer dolosa, quer culposa.
Também se não vê transparecer das Actas, p. 364, a mínima ideia no sentido de impor aquele gravame aos actos autónomos mais objectivamente comprometidos no evento. Isto é, sem intenção única, para que o acto de cada um esteja presente na actividade de todos, no dizer de Chironi - La Culpa en el Derecho Civil Moderno, traduzido da segunda edição italiana de Bernardo de Quirós, II, 307.
2. Já Birkmeyer observou representar um sofisma o princípio causa causae est causa causati. Confrontem-se: Demogue, ibidem, p. 15, e Prof. Eduardo Correia, Direito Criminal (lições), p. 229.
A qualidade de cada falta faz parte essencial da causalidade do dano. Uma balança encontra-se em repouso e com um peso de 10 kg num dos pratos. Colocados no prato oposto três pesos, respectivamente de 7 kg, 2 kg e 1 kg, aquela movimenta-se e fica equilibrada. Contudo, ninguém dirá que foi 1 kg a causa total do movimento, embora sem este peso a balança permanecesse queda. Para o pleno equilíbrio contribuíram os três últimos pesos na proporção de sete décimos, dois décimos e um décimo.
Também cada falta contribui proporcionalmente na consumação do dano. Por isso, cada um deve indemnizar na medida do seu desmando - Joatton, Essai Critique sur la Théorie Génerale de la Responsabilité Civile, 1933, pp. 104 a 107.
3. Solidariedade passiva. Em face dela pode ser exigido o pagamento integral da indemnização apenas a um dos co-devedores. Se este pagar, terá o direito de haver dos outros as quotas proporcionadas à responsabilidade de cada um - Código Civil, artigos 752.º, 754.º e 2372.º, § 1.º
Tal regime, no domínio das realidades e sob a focada matéria, pode afectar sèriamente a justiça.
Um exemplo. O prejuízo computou-se em várias centenas de milhares de escudos. Conforme o grau das correlativas culpas, coube pagar: ao Primus, meia dúzia de contos; ao Secundus, o restante. Este, no entanto, encontra-se econòmicamente em apuros, ao passo que o outro é pessoa de largos haveres.
Resultado. O Primus, cuja culpa é diminuta, vem a pagar tudo. Daí, quiçá, a sua ruína; a desgraça dele e dos seus. Vide Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, 12-948 (com citação de Pirson e de Villé).
Creio que o artigo 2372.º só comporta semelhante desfecho no caso de comparticipação. Como seria se o Primus tivesse colaborado com o Secundus, dolosa ou culposamente, no ilícito penal] - Lopes Cardoso - Alves Monteiro - Carlos de Miranda - F. Toscano Pessoa - Campos de Carvalho - Thomaz Pereira - S. Figueirinhas - Sousa Monteiro - Anselmo Taborda - Barbosa Viana - Agostinho Fontes (vencido quanto ao segundo assento pelas razões expostas pelo ilustre relator) - Eduardo Coimbra (vencido nos mesmos termos) - Mário Cardoso (vencido nos mesmos termos e pelas mesmas razões do voto de vencido do douto relator) - (Tem igual voto de vencido do Exmo. Sr. Conselheiro Morais Cabral, que não assina por não estar presente - Silva e Sousa).
Está conforme.
Secretaria do Supremo Tribunal de Justiça, 16 de Dezembro de 1959. - O Secretário, Joaquim Múrias de Freitas.