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Acórdão 96/2016, de 29 de Junho

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Sumário

Julga inconstitucional o segmento normativo do n.º 2 do artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 1/2013, de 7 de janeiro (Procede à instalação e à definição das regras do funcionamento do Balcão Nacional do Arrendamento e do procedimento especial de despejo), no qual se prevê que «[a] não apresentação, no prazo de 10 dias, do documento previsto na subalínea i) da alínea b) do número anterior, é havida como desistência do pedido de pagamento de rendas, encargos ou despesas», interpretado no sentido de que tal desistência, em face do disposto no artigo 285.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, extingue o direito que se pretendia fazer valer

Texto do documento

Acórdão 96/2016

Processo 743/15

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional Relatório Eduardo Manuel Nunes da Silva, Jorge Manuel Nunes da Silva e Paulo Jorge Nunes da Silva, tendo sido notificados pelo Balcão Nacional de Arrendamento de que, devido à junção extemporânea do comprovativo da autoliquidação de taxa de justiça, não iriam prosseguir os trâmites necessários à execução para pagamento de quantia certa relativa ao pagamento de rendas em atraso, com recurso ao procedimento especial de despejo, em que eram requerentes, e de que aquela omissão é havida como desistência do pedido de pagamento de rendas, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 12.º do Decreto Lei 1/2013, de 7 de janeiro, reclamaram de tal decisão.

Remetidos os autos à Secção Cível da Instância Local do Tribunal da Comarca de Santarém, por sentença de 3 de julho de 2015, foi julgada parcialmente procedente a reclamação apresentada e, em consequência, decidiu-se:

«

a) Desaplicar, por materialmente inconstitucional por violação do artigo 20.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, o segmento do n.º 2 do artigo 12.º do Decreto Lei 1/2013 de 7 de janeiro que prevê que “A não apresentação, no prazo de 10 dias, do documento previsto na subalínea i) da alínea b) do número anterior, é havida como desistência do pedido de pagamento de rendas, encargos ou despesas [...]”

;

b) Revogar a decisão proferida pelo BNA na parte que determina que a falta de junção do comprovativo de pagamento da taxa de justiça respeitante à execução para pagamento de quantia certa é havida como desistência do pedido, mantendo-se, no mais, a decisão proferida.

»

.

O Ministério Público recorreu desta decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), requerendo a fiscalização da constitucionalidade da norma cuja aplicação havia sido recusada - a constante do n.º 2 do artigo 12.º do Decreto Lei 1/2013, de 7 de janeiro.

O Ministério Público apresentou alegações, tendo formulado as seguintes conclusões:

«

29.º Nessa medida, no seguimento da jurisprudência referida ao longo das presentes alegações, julga-se que este Tribunal Constitucional deverá, agora:

a) concluir ser materialmente inconstitucional

«

o segmento do n.º 2 do artigo 12.º do Decreto Lei 1/2013 de 7 de janeiro que prevê que “A não apresentação, no prazo de 10 dias, do documento previsto na subalínea i) da alínea b) do número anterior, é havida como desistência do pedido de pagamento de rendas, encargos ou despesas”, por violação do artigo 20.º, n.º 1 da Constituição da Re-pública Portuguesa,

«

o qual prevê que a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, uma vez que impede o titular do direito invocado de o exercer, configurando norma que comporta uma restrição desproporcional ao conteúdo essencial do direito fundamental de obter tutela jurisdicional efetiva, que aquela disposição constitucional visa asseverar”, bem como por violação do princípio do contraditório, integrante do direito a um processo equitativo, consagrado no n.º 4 do artigo 20.º da Constituição;

b) negar, nessa medida, provimento ao recurso obrigatório de constitucionalidade interposto pela digna magistrada do Ministério Público;

c) confirmar, em consequência, a sentença recorrida, de 3 de julho de 2015, da digna magistrada judicial do Tribunal de Santarém.

»

Os Recorridos não apresentaram contraalegações. * Fundamentação 1 - Da delimitação do objeto do recurso A decisão recorrida desaplicou, com fundamento em inconstitucionalidade, por violação do artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, o segmento normativo do n.º 2, do artigo 12.º, do Decreto-Lei 1/2013, de 7 de janeiro, no qual se prevê que “[a] não apre-sentação, no prazo de 10 dias, do documento previsto na subalínea i) da alínea b) do número anterior, é havida como desistência do pedido de pagamento de rendas, encargos ou despesas [...]”.

Conforme decorre da fundamentação da aludida decisão, o tribunal a quo considerou que a

«

desistência do pedido

» a que faz referência a norma desaplicada tem os efeitos previstos no artigo 285.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, e que, por isso, extingue o direito que se pretendia fazer valer.

Ora, tendo sido este o sentido em que a norma sindicada foi interpretada pelo tribunal a quo, esta dimensão normativa deverá integrar o objeto do recurso, de modo a que, sobre a mesma possa incidir o juízo deste Tribunal a respeito da sua conformidade constitucional. Importa, por isso, proceder a uma delimitação do objeto do recurso.

Em face do exposto, o objeto do presente recurso consiste no segmento normativo do n.º 2 do artigo 12.º do Decreto Lei 1/2013, de 7 de janeiro, no qual se prevê que “[a] não apresentação, no prazo de 10 dias, do documento previsto na subalínea i) da alínea b) do número anterior, é havida como desistência do pedido de pagamento de rendas, encargos ou despesas [...]”, interpretado no sentido de que tal desistência, em face do disposto no artigo 285.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, extingue o direito que se pretendia fazer valer.

2 - Do mérito do recurso Tendo em atenção a delimitação do objeto do recurso ora efetuada, a questão de constitucionalidade que importa apreciar é a de saber se o segmento normativo do n.º 2, do artigo 12.º, do Decreto Lei 1/2013, de 7 de janeiro, no qual se prevê que “[a] não apresentação, no prazo de 10 dias, do documento previsto na subalínea i) da alínea b) do nú-mero anterior, é havida como desistência do pedido de pagamento de rendas, encargos ou despesas [...]”, interpretado no sentido de que tal desistência, em face do disposto no artigo 285.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, extingue o direito que se pretendia fazer valer, viola o artigo 20.º, n.º 1, da Constituição.

Para melhor apreciação desta questão de constitucionalidade, importa, antes de mais, fazer uma breve referência ao regime jurídico infraconstitucional no qual se enquadra a norma desaplicada.

A Lei 31/2012, de 14 de agosto, procedeu a uma significativa revisão do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), que havia sido aprovado pela Lei 6/2006, de 27 de fevereiro. Entre as alterações introduzidas por aquela lei, são de referir as modificações ao regime substantivo da locação e ao regime transitório dos contratos de arrendamento celebrados antes da Lei 6/2006, de 27 de fevereiro, e ainda a criação de um procedimento especial de despejo do local arrendado.

O procedimento especial de despejo encontra-se regulado nos artigos 15.º a 15.º-S da Lei 6/2006, de 27 de fevereiro, na redação que lhe foi conferida pela referida Lei 31/2012, de 14 de agosto, retificada pela Declaração de Retificação n.º 59-A/2012, de 12 de outubro. No seguimento destas alterações, o Decreto Lei 1/2013, de 7 de janeiro, veio proceder

«

à instalação e à definição das regras do funcionamento do Balcão Nacional do Arrendamento, adiante designado por BNA, e do procedimento especial de despejo, previstos nos artigos 15.º a 15.º-S da Lei 6/2006, de 27 de fevereiro, na redação que lhe foi conferida pela Lei 31/2012, de 14 de agosto, retificada pela Declaração de Retificação n.º 59-A/2012, de 12 de outubro

»

(cf. artigo 1.º do Decreto-Lei 1/2013, de 7 de janeiro).

Conforme resulta do seu regime, previsto nos aludidos artigos 15.º a 15.º-S da Lei 6/2006, de 27 de fevereiro (aditados pela Lei 31/2012, de 14 de agosto e cuja redação foi posteriormente alterada pela Lei 79/2014, de 19 de dezembro), bem como das regras de funcionamento do Balcão Nacional de Arrendamento, estabelecidas no Decreto Lei 1/2013, de 7 de janeiro, o procedimento especial de despejo tem por finalidade a obtenção de um título executivo para despejo do locado e, eventualmente, caso tal seja requerido, para pagamento de rendas, encargos ou despesas.

Rui Pinto caracteriza o procedimento especial de despejo como um “processo especial sincrético”, declarativo e executivo, através do qual tem lugar a

«

formação de título suficiente para despejo, seja em caso de não oposição do inquilino ao requerimento, seja por emissão de decisão judicial de despejo, em caso de oposição não procedente do inquilino

»

(cf. Manual da Execução e Despejo, Coimbra Editora, 2013, pág. 1160), integrado por diferentes fases processuais, que têm por função a constituição do título executivo, em caso de não cumprimento voluntário:

uma fase injuntória, de natureza administrativa, em que o título se forma por inversão do contraditório perante o BNA e uma fase contenciosa, em que há um processo judicial, iniciado após a convolação da instância em caso de oposição do requerido, e que corre perante um juiz a quem os autos serão distribuídos. A fase executiva, por seu turno, destina-se à realização coativa do direito à entrega do locado e tem lugar após a formação do título executivo numa das fases anteriores do procedimento especial de despejo (cf. ob. cit, pág. 1169).

O artigo 15.º, n.º 1, da Lei 6/2006, de 27 de fevereiro, depois de definir, no seu n.º 1, o procedimento especial de despejo como

«

um meio processual que se destina a efetivar a cessação do arrendamento, independentemente do fim a que este se destina, quando o arrendatário não desocupe o locado na data prevista na lei ou na data fixada por convenção entre as partes

»

, elenca, no n.º 2, as situações que em que o senhorio pode lançar mão de tal procedimento.

Nas hipóteses taxativamente enumeradas nesta norma, o senhorio pode dar início ao procedimento mediante a apresentação no BNA do requerimento de despejo, nos termos previstos no artigo 15.º-B da Lei 6/2006, de 27 de fevereiro.

Por outro lado, para além deste objeto primário, o procedimento especial de despejo pode ter como objeto uma pretensão acessória, uma vez que, conforme resulta do n.º 5 do artigo 15.º, nas situações em que possa haver lugar a procedimento especial de despejo, o senhorio pode deduzir, cumulativamente com o pedido de despejo, o pedido de pagamento de rendas, encargos ou despesas que corram por conta do arrendatário, desde que tenha sido comunicado ao arrendatário o montante em dívida.

Apresentado o requerimento, este poderá ser objeto de recusa pelo BNA, nos casos previstos no artigo 15.º-C, n.º 1, da Lei 6/2006, de 27 de fevereiro, entre os quais se inclui, conforme aliás refere a decisão recorrida, o caso em que não se mostre paga a taxa de justiça (cf. alínea h) deste artigo 15.º-C, n.º 1), sendo que, em caso de recusa,

«

o requerente pode apresentar outro requerimento no prazo de 10 dias subsequentes à notificação daquela, considerando-se o procedimento iniciado na data em que teve lugar o pagamento da taxa devida pela apresentação do primeiro requerimento ou a junção do documento comprovativo do pedido ou da concessão do benefício do apoio judiciário na modalidade de dispensa ou de pagamento faseado da taxa de justiça e dos demais encargos com o processo

»

(cf. n.º 2, do artigo 15.º-C, da Lei 6/2006, de 27 de fevereiro).

Conforme se referiu, nos casos em que, no requerimento inicial do pedido especial de despejo, tenha formulado pedido de pagamento de rendas, encargos ou despesas, que corram por conta do arrendatário, o senhorio poderá, desta forma, obter título executivo que poderá servir de base à execução para pagamento de quantia certa relativamente aos montantes em causa. É o que resulta do n.º 5, do artigo 15.º-J, da Lei 6/2006, de 27 de fevereiro, o qual dispõe que

«

[o] título para desocupação do locado, quando tenha sido efetuado o pedido de pagamento das rendas, encargos ou despesas em atraso, e a decisão judicial que condene o requerido no pagamento daqueles constituem título executivo para pagamento de quantia certa, aplicando-se, com as necessárias adaptações, os termos previstos no Código de Processo Civil para a execução para pagamento de quantia certa baseada em injunção

»

.

Nessas situações, uma vez feita a conversão do requerimento de despejo em título para desocupação do locado (nos termos do artigo 15.º-E da Lei 6/2006, de 27 de fevereiro) ou proferida decisão judicial nos termos do n.º 3 do referido artigo 15.º-E da Lei 6/2006, de 27 de fevereiro, o BNA notifica o requerente para, em 10 dias, juntar ao processo o comprovativo de pagamento da taxa de justiça respeitante à execução para pagamento de quantia certa.

É o que estabelece também a subalínea i), da alínea b), do n.º 1, do artigo 12.º, do Decreto Lei 1/2013, de 7 de janeiro, onde se prevê que

«

[t]endo o requerente, no requerimento de despejo, formulado pedido de pagamento de rendas, encargos ou despesas, o BNA, feita a conversão do requerimento de despejo em título para desocupação do locado ou proferida decisão judicial para desocupação do locado, deve:

[...] b) [n]otificar o requerente para em 10 dias:

i) Juntar ao processo o comprovativo de pagamento da taxa de justiça respeitante à execução para pagamento de quantia certa;

[...]

»

.

Uma vez recebido o comprovativo de pagamento da taxa de justiça, bem como os demais elementos previstos na alínea b) do n.º 1 deste do artigo 12.º,

«

o BNA remete, por via eletrónica, o requerimento de despejo para o tribunal nele indicado, juntamente com o título ou a decisão judicial para desocupação do locado, o documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça ou da concessão de apoio judiciário e, se for caso disso, a procuração referida na subalínea ii) da alínea b) do n.º 1, valendo o conjunto destes documentos como requerimento executivo idóneo a iniciar a execução para pagamento de quantia certa

»

(cf. n.º 3 do artigo 12.º do Decreto Lei 1/2013)

No caso de falta de apresentação pelo senhorio, no prazo de dez dias, do aludido comprovativo, é aplicável o n.º 2 do deste artigo 12.º do Decreto Lei 1/2013, de 7 de janeiro, no qual se prevê que tal omissão

«

é havida como desistência do pedido de pagamento de rendas, encargos ou despesas, não prosseguindo o BNA com os trâmites necessários à execução para pagamento de quantia certa

»

, norma esta que, como vimos, foi em parte objeto de recusa de aplicação pela decisão recorrida. A respeito do sentido desta norma, Laurinda Gemas (Algumas questões controversas do novo regime processual de cessação do contrato de arrendamento, in Revista do Centro de Estudos Judiciários, 2.º Semestre 2013, n.º 2, págs. 29) refere que a mesma

«

não pode ser interpretada de forma puramente literal, sob pena de flagrante inconstitucionalidade

»

, acrescentando que

«

caso o senhorio se atrase a pagar a taxa de justiça ou considere que não vale já a pena avançar com a execução, designadamente porque não conhece bens ao arrendatário, seria descabido e contrário ao disposto no artigo 290.º do CPC, presumir, de forma inilidível, que tal constitui uma desistência do pedido de pagamento de rendas, encargos ou despesas. Portanto, o que a norma significa é que o senhorio desistiu de intentar ação executiva, não prosseguindo o BNA com os trâmites necessários à execução para pagamento de quantia certa.

»

. Já Rui Pinto (cf. Manual de Execução e Despejo, pág. 1201, nota de rodapé n.º 3478), por sua vez, considera que a cominação prevista nesta norma é

«

inconstitucional, por desproporcionada, pois, como se sabe, a desistência do pedido importa a extinção dos créditos que se pretendia fazer valer, por força do artigo 295.º, n.º 1 = artigo 285.º, n.º 1, nCPC. Bastaria que o efeito fosse a desistência da instância (cf. n.º 2 do mesmo artigo)

»

.

Foi justamente neste último sentido que a norma em causa foi interpretada pela decisão recorrida, conforme se pode constatar pela respetiva fundamentação. Com efeito, considerou tal decisão que a cominação constante desta norma é extremamente gravosa para o requerente, por desproporcionada com a omissão em causa, uma vez que, em face do disposto no artigo 285.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, a desistência do pedido extingue o direito que se pretendia fazer valer.

Mais entendeu a referida decisão que a norma do n.º 2, do artigo 12.º, do Decreto Lei 1/2013, de 7 de janeiro, é difícil de compreender, tendo em conta que, no artigo 15.º-C do NRAU, em que estão previstos os motivos que conduzem à recusa do requerimento de despejo, consta o facto de não se mostrar paga a taxa de justiça (al. h) do n.º 1). Por isso, refere-se ainda na aludida decisão, a consequência deveria bastar-se pelo não prosseguimento ou extinção dos trâmites necessários à execução para pagamento de quantia certa ou fazer equivaler tal omissão à desistência da instância, o que permitiria ao requerente faltoso instaurar nova ação para tentar fazer valer o direito invocado.

Conclui, por isso, a decisão recorrida que a disposição legal, no segmento em que estabelece que a não apresentação, no prazo de 10 dias, do documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça, nos termos expostos, é havida como desistência do pedido de pagamento de rendas, encargos ou despesas, é inconstitucional, por violação do disposto no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, configurando uma norma que comporta uma restrição desproporcional ao conteúdo essencial do direito de obter tutela jurisdicional efetiva, que aquela norma visa assegurar.

Este artigo 20.º da Constituição garante a todos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos (n.º 1), impondo ainda que esse direito se efetive através de um processo equitativo (n.º 4).

A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem entendido que o direito de acesso aos tribunais ou à tutela jurisdicional implica a garantia de uma proteção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efetiva, cujo âmbito normativo abrange nomeadamente:

(a) o direito de ação, no sentido do direito subjetivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional;

(b) o direito ao processo, traduzido na abertura de um processo após a apresentação daquela pretensão, com o consequente dever de o órgão jurisdicional sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada;

(c) o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas, no sentido de a decisão haver de ser proferida dentro dos prazos preestabelecidos, ou, no caso de estes não estarem fixados na lei, dentro de um lapso temporal proporcional e adequado à complexidade da causa;

(d) o direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade, no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas (veja-se, neste sentido, entre outros, o Acórdão 440/94, acessível na internet em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/, assim como os restantes acórdãos adiante referidos sem outra menção expressa).

Como resulta também da vasta jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre esta matéria, o direito de ação ou direito de agir em juízo, efetivado através de um processo equitativo, entendido num sentido amplo, significa não apenas que o processo deverá ser justo na sua conformação legislativa, mas também que deverá ser um processo informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais, de modo a que seja adequado a uma tutela judicial efetiva.

Neste mesmo sentido, a doutrina e a jurisprudência têm procurado densificar o princípio do processo equitativo através de outros princípios:

(1) direito à igualdade de armas ou direito à igualdade de posições no processo, com proibição de todas as discriminações ou diferenças de tratamento arbitrárias;

(2) o direito de defesa e o direito ao contraditório traduzido fundamentalmente na possibilidade de cada uma das partes invocar as razões de facto e de direito, oferecer provas, controlar as provas da outra parte, pronunciar-se sobre o valor e resultado destas provas;

(3) direito a prazos razoáveis de ação ou de recurso, proibindo-se prazos de caducidade exíguos do direito de ação ou de recurso;

(4) direito à fundamentação das decisões;

(5) direito à decisão em tempo razoável;

(6) direito ao conhecimento dos dados processuais;

(7) direito à prova, isto é, à apresentação de provas destinadas a demonstrar e provar os factos alegados em juízo;

(8) direito a um processo orientado para a justiça material sem demasiadas peias formalísticas. (Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª Edição Revista, Coimbra Editora, 2007, págs. 415 e 416).

Por outro lado, conforme tem sido entendimento do Tribunal Constitucional, se é certo que a exigência de um processo equitativo não afasta a liberdade de conformação do legislador na concreta modelação do processo, impõe, contudo, no seu núcleo essencial, que os regimes adjetivos proporcionem aos interessados meios efetivos de defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, bem como uma efetiva igualdade de armas entre as partes no processo, não estando o legislador autorizado a criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem, arbitrariamente ou de forma desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva.

A questão em causa nos autos enquadra-se num conjunto vasto de casos, que o Tribunal já foi chamado a apreciar, em que é imposto um ónus processual às partes (neste caso, a junção, em determinado prazo, do documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça) e em que a lei prevê uma determinada cominação ou consequência processual para o incumprimento de tal ónus (no caso concreto, a omissão de cumprimento do aludido ónus é havida como desistência do pedido de pagamento de rendas, encargos ou despesas, não prosseguindo o BNA com os trâmites necessários à execução para pagamento de quantia certa).

Ora, a respeito das exigências decorrentes da garantia constitucional de acesso ao direito e à justiça, quando estejam em causa normas que impõem ónus processuais, o Tribunal tem afirmado que tal garantia não afasta a liberdade de conformação do legislador na concreta estruturação do processo, não sendo incompatível com a imposição de ónus processuais às partes (cf., neste sentido, entre outros, por exemplo, os Acórdãos n.os 122/02 e 46/05).

No entanto, com também tem sido salientado pelo Tribunal, a ampla liberdade do legislador no que respeita ao estabelecimento de ónus que incidem sobre as partes e à definição das cominações e preclusões que resultam do seu incumprimento está sujeita a limites, uma vez que os regimes processuais em causa não podem revelar-se funcionalmente inadequados aos fins do processo (isto é, traduzindo-se numa exigência puramente formal e arbitrária, destituída de qualquer sentido útil e razo-ável) e têm de se mostrar conformes com o princípio da proporcionalidade. Ou seja, os ónus impostos não poderão, por força dos artigos 13.º e 18.º, n.os 2 e 3, da Constituição, impossibilitar ou dificultar, de forma arbitrária ou excessiva, a atuação procedimental das partes, nem as cominações ou preclusões previstas, por irremediáveis ou insupríveis, poderão revelar-se totalmente desproporcionadas face à gravidade e relevância, para os fins do processo, da falta cometida, colocando assim em causa o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva (cf., sobre esta matéria, Carlos Lopes do Rego, “Os princípios constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade dos ónus e cominações e o regime da citação em processo civil”, in

«

Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa

»

, Coimbra Editora, 2003, pp. 839 e ss. e, entre outros, os Acórdãos n.os 564/98, 403/00, 122/02, 403/02, 556/2008, 350/2012, 620/13, 760/13 e 639/14 do Tribunal Constitucional).

O Tribunal Constitucional, procurando densificar, na sua jurisprudência, o juízo de proporcionalidade a ter em conta quando esteja em questão a imposição de ónus às partes, tem reconduzido tal juízo à consideração de três vetores essenciais:

- a justificação da exigência processual em causa;

- a maior ou menor onerosidade na sua satisfação por parte do interessado;

- e a gravidade das consequências ligadas ao incumprimento dos ónus (cf., neste sentido, os Acórdãos n.os 197/07, 277/07 e 332/07).

Regressando ao caso dos autos, não restam dúvidas que a exigência processual em causa, de junção aos autos do comprovativo da autoliquidação da taxa de justiça, encontra justificação, num sistema em que o acesso à justiça não é gratuito e em que o andamento dos processos pressupõe o pagamento de taxas de justiça que são tidas como condição necessária ao impulso processual.

Já no que respeita à onerosidade, para as partes, da exigência processual em questão, esta também não se revela excessiva, nem de difícil cumprimento.

No entanto, não sendo excessivo o ónus imposto, já o é a consequência resultante do seu não cumprimento. Com efeito, a não junção dentro do prazo estabelecido do documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça poderá, razoavelmente, ser tida como um impedimento ao prosseguimento dos trâmites de determinado procedimento ou processo (neste caso os trâmites necessários à execução para pagamento de quantia certa, implicando que o BNA não remeta para o tribunal indicado no requerimento de despejo os elementos a que alude o artigo 12.º, n.º 3 do Decreto Lei 1/2013, de 7 de janeiro). Já a outra consequência prevista - a de tal omissão ser havida como desistência do pedido, no sentido de, em face do disposto no artigo 285.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, extinguir o direito que se pretendia fazer valer -, para além de manifestamente desajustada em relação aos fins pretendidos, é também claramente desproporcionada, uma vez que associa à referida omissão uma consequência que, no plano substantivo, implica a perda irremediável de um direito, consequência essa que não se mostra justificada com base num critério de necessidade (com efeito, bastaria, a exemplo do que acontece noutros regimes processuais que tal consequência tivesse efeitos apenas no plano da extinção da instância e não já no que respeita à extinção do direito em questão).

Assim, a norma do n.º 2, do artigo 12.º, do Decreto Lei 1/2013, de 7 de janeiro, na interpretação cuja aplicação foi recusada pela decisão recorrida, ao prever, como consequência para a sua inobservância a perda imediata e irremediável do direito de crédito que se pretendia fazer valer, viola o disposto nos n.os 1 e 4 do artigo 20.º da Constituição, na medida em que a garantia da via judiciária aí consagrada, conferida a todos os cidadãos para tutela e defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, abrange não só a atribuição do direito de ação judicial, mas também a garantia de que o processo, uma vez iniciado, deve seguir as regras de um processo equitativo.

Pelo exposto, concluindo-se pela inconstitucionalidade da norma cuja aplicação foi recusada pela decisão recorrida, deverá ser negado provimento ao recurso.

* Decisão Pelo exposto, decide-se:

a) julgar inconstitucional, por violação do artigo 20.º, n.º 1 e 4, da Constituição, o segmento normativo do n.º 2, do artigo 12.º, do Decreto-Lei 1/2013, de 7 de janeiro, no qual se prevê que “[a] não apresentação, no prazo de 10 dias, do documento previsto na subalínea i) da alínea b) do número anterior, é havida como desistência do pedido de pagamento de rendas, encargos ou despesas [...]”, interpretado no sentido de que tal desistência, em face do disposto no artigo 285.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, extingue o direito que se pretendia fazer valer;

b) e, consequente, negar provimento ao recurso.

Sem custas. Lisboa, 4 de fevereiro de 2016. - João Cura Mariano - Ana Guerra Martins - Fernando Vaz Ventura - Pedro Machete - Joaquim de Sousa Ribeiro.

209677244

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2647744.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 2006-02-27 - Lei 6/2006 - Assembleia da República

    Aprova o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), que estabelece um regime especial de actualização das rendas antigas, e altera o Código Civil, o Código de Processo Civil, o Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de Novembro, o Código do Imposto Municipal sobre Imóveis e o Código do Registo Predial. Republica em anexo o capítulo IV do título II do livro II do Código Civil.

  • Tem documento Em vigor 2012-08-14 - Lei 31/2012 - Assembleia da República

    Procede à revisão do regime jurídico do arrendamento urbano, altera o Código Civil, o Código de Processo Civil e a Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro. Republica em anexo o capítulo IV do título II do livro II do Código Civil e o capítulo II do título I e os títulos II e III da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro.

  • Tem documento Em vigor 2013-01-07 - Decreto-Lei 1/2013 - Ministério da Justiça

    Procede à instalação e à definição das regras do funcionamento do Balcão Nacional do Arrendamento (BNA) e do procedimento especial de despejo.

  • Tem documento Em vigor 2014-12-19 - Lei 79/2014 - Assembleia da República

    Revê o regime jurídico do arrendamento urbano, alterando o Código Civil e procedendo à segunda alteração à Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, à terceira alteração ao Decreto-Lei n.º 157/2006, de 8 de agosto, e à segunda alteração ao Decreto-Lei n.º 158/2006, de 8 de agosto

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