Parecer sobre Estratégia Nacional de Educação para o Desenvolvimento (2010-2015)
Preâmbulo
No uso das competências que por lei lhe são conferidas, e nos termos regimentais, após apreciação do projecto de Parecer elaborado pelos Conselheiros Relatores Maria Emília Brederode Santos, Paula Santos e Nuno Venade, o Conselho Nacional de Educação, em reunião plenária de 15 de Julho de 2009, deliberou aprovar o referido projecto, emitindo assim o seu terceiro Parecer no decurso do ano de 2009.
Parecer
1 - Ponto prévio
O Ministério dos Negócios Estrangeiros solicita ao Conselho Nacional de Educação (CNE) que se pronuncie sobre a proposta de "Estratégia Nacional de Educação para o Desenvolvimento 2010-2015" (ENED). Tendo participado como observador nos trabalhos preparatórios, nos termos que decorrem do seu Estatuto, o Conselho é agora convidado a emitir a sua opinião formal sobre o documento, através de um Parecersufragado em Plenário.
O CNE entende ser pertinente a emissão do seu parecer sobre a Estratégia em causa, valorizando a relevância do tema e o facto de se tratar de um convite do MNE, alargando as colaborações do CNE. Acresce que esta é também uma questão actual, alvo de debate e recomendações em instâncias internacionais diversas, e com evidentes associações ao domínio da educação, em sentido lato.
No entanto, considerando:
O curto prazo de que o CNE dispõe para responder à solicitação;O significativo pendor de enquadramento histórico e conceptual do documento;
A previsão de que o Plano de Acção, parte integrante da ENED, será aprovado numa
etapa subsequente,
O CNE opta por efectuar uma apreciação sucinta do documento submetido, circunscrevendo-se aos objectivos e medidas mais directamente relacionados com a dimensão educativa e remetendo uma eventual reflexão mais aprofundada para momento posterior à apresentação do Plano de Acção anunciado. Neste sentido, o parecer não incide sobre o plano conceptual e pronuncia-se apenas sobre as medidas propostas pela ENED para a Educação Formal, sem que esta limitação signifique uma menorização da importância dos contextos e processos não formais de educação eformação ao longo da vida.
2 - Aspectos positivos
O documento é globalmente interessante e saúda-se pelo facto de vir ao encontro das responsabilidades internacionais de Portugal, constituindo um contributo para a concretização de recomendações e compromissos assumidos, designadamente no quadro da Década das Nações Unidas da Educação para o Desenvolvimento Sustentável (2005-2014) e das recomendações de várias instâncias sobre a importância da educação para a cidadania global.Reconhece-se a importância de aprofundar a consciência, a reflexão crítica, a participação e intervenção em torno das questões do desenvolvimento sustentável, da cidadania global, da multiculturalidade e interdependência, dos direitos humanos e da paz, das injustiças e das desigualdades. Este aprofundamento revela-se particularmente necessário num país como Portugal, tradicionalmente complacente com os fenómenos de pobreza, de disparidades associadas aos territórios, a grupos sociais específicos e ao género, bem como com as desigualdades no acesso e usufruto das várias expressões de "bem comum" (saúde, educação, rendimento, justiça...). A educação para o desenvolvimento (ED) está pouco presente e visível na esfera pública, na vida das comunidades e dos cidadãos, na vida das escolas.
Neste contexto, considera-se igualmente positiva a valorização do papel das Organizações da Sociedade Civil que actuam nestes domínios e de outros actores relevantes na área da educação, assim como a metodologia participada em que assentou a preparação da estratégia, fazendo convergir, numa perspectiva operacional,
entidades com abordagens distintas.
Considera-se também interessante o facto de a ENED contemplar diferentes formas de intervenção (incluindo de educação formal e não formal), orientadas para destinatáriosdiversos.
No entanto, dadas as condicionantes anteriormente apontadas para a elaboração deste Parecer e a ausência no documento de metas que permitam clarificar os objectivos e estratégias enunciados, o CNE pronuncia-se favoravelmente apenas em relação às medidas propostas pela ENED para a Educação Formal.
3 - Limites
Uma parte significativa do documento incide sobre a exposição dos vários conceitos associados à ED e outras "Educações para..." que lhe são próximas, bem como sobre as etapas da sua evolução. Se isto permite compreender melhor o pensamento subjacente e os processos envolvidos, denota um pendor talvez excessivamente doutrinário e autojustificativo, apresentando, num ou noutro aspecto, pouca precisão na integração dos vários contributos. Estes limites serão, seguramente, tributários das distintas perspectivas em presença e, até, aceitáveis, considerando a experiência adquirida. Poderão, contudo, vir a ser um obstáculo à eficaz concretização da estratégia. A este propósito, constata-se a existência de um grande campo de convergência de várias "educações para...", em especial, entre a ED e a "Educação para a cidadania global" e, por outro lado, a "Educação para o desenvolvimento sustentável". Compreendendo, embora, os traços específicos da ED, intuem-se os riscos de cada uma se pretender abrangente e integrada, em particular quando confluemnum mesmo contexto de educação formal.
Por outro lado, embora se perceba o enfoque decorrente do quadro de referência da cooperação internacional alargada, entende-se que a educação para a cidadania global e o desenvolvimento não deve descurar a contextualização na realidade portuguesa, devendo ser mais valorizada a problematização das suas situações de pobreza, desigualdade, periferia e diversidade territorial e cultural, bem como a especial atenção à relação com a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.Ao documento apresentado falta, nitidamente, um Plano de Acção que possibilite a compreensão do caminho a trilhar e dos recursos a envolver para o período
considerado (2010-2015).
Na ausência do Plano de Acção que, conforme expressamente previsto, integrará a ENED, considera-se que sai reforçada a pertinência da explicitação das metas que estão associadas aos objectivos específicos e medidas propostas no documento.
4 - Conclusões e Recomendações
1 - Sem prejuízo de aprofundamento futuro do quadro teórico e doutrinário, parece que, na fase actual, deverá ser dada prioridade à explicitação das metas da ENED, à elaboração do Plano de Acção, à concretização das medidas e à disseminação e enraizamento das iniciativas, tentando rentabilizar o que já está no terreno e valorizando uma plataforma de articulação entre entidades diversas. Nesta linha, fará sentido, por exemplo, aprofundar a articulação com a Estratégia Nacional de Desenvolvimento Sustentável (ENDS) ou a aposta na promoção do património imaterial visada pelaUNESCO.
2 - Entendendo a Educação para o Desenvolvimento como uma das dimensões da Educação para a Cidadania, no contexto da educação formal e no plano curricular, deverão ser potenciadas as singularidades e as sinergias dos conteúdos e competênciasjá visados nos curricula em vigor.
A ENED identifica as Áreas Curriculares Não Disciplinares de Formação Cívica e Área de Projecto como áreas privilegiadas para o desenvolvimento da Educação para a Cidadania. Na elaboração do Plano de Acção deverá ser muito bem equacionado o risco associado à tendência para incluir todas as matérias de carácter transversal nessas áreas, o que pode provocar um "transbordamento" com resultados opostos ao pretendido. Uma nova intervenção desse tipo deverá ser devidamente ponderada, recomendando-se mesmo, ao Ministério da Educação, que seja retomado o ciclo da reorganização curricular do Ensino Básico de uma forma sistémica. A contribuição da ED para a Educação para a Cidadania deveria ser apreciada neste quadro, mas nada impede, antes parece de todo o interesse que, entretanto, possam ser postas em práticaas medidas enunciadas na ENED.
Os objectivos da ENED podem igualmente ser trabalhados no âmbito das restantes disciplinas, bem como em actividades regulares de carácter não disciplinar (ex.: clubes), em especial no Ensino Secundário, onde não existe Formação Cívica. Releva-se, também, a Área de Integração dos Cursos Profissionais e, no 12.º ano dos Cursos Humanístico-Científicos, a Área de Projecto.3 - A Educação para a cidadania não deve ser algo que se aprende na escola para viver fora dela, pelo que a própria organização da escola deverá favorecer o desenvolvimento de competências a ela associadas, através do envolvimento e participação dos e das discentes e profissionais na discussão e tomada de decisão sobre regras e resolução de problemas, na assunção de responsabilidades concretas e na promoção de práticas de convivência e funcionamento que sejam expressão de justiça, igualdade, respeito pela diversidade humana e cooperação.
Deverá também ser valorizada a experiência de intercâmbio entre alunos, escolas portuguesas e outras realidades em outros Países, como forma de conhecer o mundo e a realidade subjacente à ENED. A utilização das tecnologias de informação e comunicação, designadamente a internet, pode e deve assumir um papel importante
neste contexto.
4 - O Plano de Acção deverá contemplar as questões óbvias de calendarização e orçamentação. Por outro lado, as escolas ganharão com o aprofundamento da colaboração com as Organizações da Sociedade Civil que têm experiência nesta área, reforçando a abertura ao exterior, incorporando práticas da educação não formal e de formação-acção, pelo que o Plano deve também precisar os modos de "participação das comunidades educativas" no "sector da educação formal", conforme se refere nodocumento.
5 - De forma a assegurar as condições para a concretização de acções sistemáticas e de qualidade, é importante encontrar formas adequadas de abordagem da ED na formação inicial e contínua dos professores e facilitar o acesso dos profissionais a materiais didácticos de apoio à realização de projectos e intervenções educativas de ED, tanto de educação formal como não formal, conforme previsto no documento. É igualmente desejável o apoio sustentado à investigação sobre ED e à divulgação de experiências positivas já existentes, nomeadamente nas instituições de ensino superior, acompanhado do reforço da cooperação das redes universitárias e de investigação daCPLP.
6 - Por último, recomenda-se que o dispositivo de avaliação interna a concretizar seja flexível, coerente com o conceito de "educação para o desenvolvimento" preconizado e ajustado à prioridade que deve ser dada ao investimento na concretização do plano de acção. Prevendo-se uma avaliação externa, o documento da ENED deveria, ainda, explicitar as suas principais características e modo de concretização.
15 de Julho de 2009. - A Presidente, Ana Maria Dias Bettencourt.
Declaração de Voto
Esta declaração visa apenas deixar claro um ponto de vista crítico que enunciei durante o debate e que gerou interpretações erradas no decurso do mesmo.O documento em apreço recorre insistentemente à perspectiva de que a educação para o desenvolvimento "tem por objectivo a transformação social".
Na melhor tradição do CNE, importa enunciar pontos de vista críticos a esta perspectiva, o que poderá vir a melhorar tanto o texto em apreço como o Plano de
Acção. Relevo duas notas:
1 - O documento acentua uma perspectiva funcionalista e utilitarista da educação, na linha das tradicionais perspectivas funcionalistas (economicismo, produtivismo, etc.), que não se coaduna com uma visão mais profunda e ampla acerca dos fundamentos da educação e que está também presente na tradição do CNE. De facto, ao subordinar sistematicamente a educação "ao objectivo da transformação social" (outros funcionalismos podem-na colocar ao serviço da "conservação social"), corre-se o risco de desviar a educação escolar das suas finalidades essenciais: transmitir às novas gerações o "thesaurus cultural" herdado do passado e promover o desenvolvimento humano e a integração social de cada pessoa/cidadão.O livre desenvolvimento da personalidade humana, de todos os seres humanos sem excepção, está no coração da missão da educação escolar, uma educação para a autodeterminação, para a capacidade para determinar os rumos da vida, tanto na sua dimensão pessoal como na sua dimensão social e solidária (como acentua recorrentemente a Unesco). A educação escolar contribui, a par da educação familiar e social, em geral, para o desvelamento e o florescimento da identidade e da autenticidade humanas, em confronto com a cultura e a ciência, com o Bem, o Belo e a Verdade (como diziam os antigos) e em diálogo social permanente, no quadro das
novas sociedades abertas e multiculturais.
Este risco é grave na medida em que todos os funcionalismos podem representar derivas ao mandato social central da educação escolar, contribuindo para fazer das escolas instâncias de doutrinação e não de educação para e na liberdade. Uma coisa será favorecer, com as "educações para", a inserção e a participação social, activa e crítica, por parte de todos os cidadãos, outra coisa é subordinar a educação necessariamente à "transformação social" ou à "conservação social" ou a quaisquer outras funcionalidades estreitas. É pobre, curto e perigoso.Porquê e para quê continuarmos a querer buscar fora dos fundamentos da educação a sua razão de ser (na economia, no capital humano, na produtividade, na transformação social, na conservação social, no ambiente, no desenvolvimento social, etc. etc.), quando qualquer um destes funcionalismos pode servir para acorrentar a educação, para a afastar do seu veio humanista, veio este reafirmado com clareza tanto pela Declaração Universal dos Direitos Humanos como pela Constituição da República Portuguesa? Além do mais, podemos estar a desviar o quotidiano das escolas da sua missão principal, introduzindo-lhes um "transbordamento" de mandatos que rapidamente se traduz na crescente folclorismo das escolas e da educação escolar.
2 - Seria também importante enfatizar o papel da educação social e não deixar esta análise tão contida na educação escolar. De facto, no quadro dos novos paradigmas da educação ao longo de toda a vida e com a vida, não podemos circunscrever de modo tão acentuado a "estratégia de educação para o desenvolvimento" à educação escolar.
Não faz sentido, é curto e pobre. Podemos e devemos valorizar muito mais o papel da educação social, promovido pelo mais amplo leque de instituições sociais, em articulação com as escolas. - Joaquim Azevedo.
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