Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1 - O Exmo. Magistrado do Ministério Público, junto do Tribunal da Relação de Coimbra interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, dizendo que "no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 03/06/2008, proferido nos autos em epígrafe, decidiu-se que as normas do Decreto-Lei 157/2006, de 8 de Junho, emanadas pelo Governo, e que não se encontram abrangidas pela autorização legislativa concedida pela Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro nomeadamente os seus artigos 1.º, 4.º a 11.º e 24.º a 27.º, sofrem de inconstitucionalidade orgânica e, por isso, encontra-se vedada a sua aplicação ao caso vertente, por força do artigo 204.º da Constituição da República.(...) vem, na sequência da notificação que lhe foi efectuada, interpor para o Tribunal Constitucional recurso limitado à questão de inconstitucionalidade do diploma e normas indicadas no acórdão, acima referidas."
2 - Notificado para alegar, veio o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto, junto do Tribunal
Constitucional, concluir o seguinte:
«l.º Inclui-se no âmbito da 'reserva de parlamento', estabelecida no artigo 165.º, n.º 1, alínea h), da Constituição da República Portuguesa, a definição dos pressupostos materiais que condicionam, num arrendamento 'vinculístico', a faculdade de denúncia pelo senhorio, nomeadamente com fundamento na demolição do prédio arrendado ou na realização neste de obras de restauro ou remodelação profunda.2.º Tais pressupostos - que se não mostram minimamente definidos nos artigos 1101.º e 1103.º do Código Civil, na redacção emergente da Lei 6/2006 - são estabelecidos, em termos constitutivos e inovatórios, pelo Decreto-Lei 157/06, em particular pelas disposições conjugadas dos artigos 5.º, 6.º, 7.º e 24.º e 25.º deste
último diploma legal.
3.º Não estando o Governo, ao editar o Decreto-Lei 157/06, legitimado, face ao objecto e extensão da respectiva lei de autorização legislativa, constante do artigo 63.º da Lei 6/2006, para regular os aspectos substantivos da extinção do arrendamento urbano, na sequência do exercício pelo senhorio do direito de denúncia, com base na pretendida demolição ou restauro profundo do locado, são organicamente inconstitucionais as normas que integram o objecto do presente recurso.4.º Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado pela
decisão recorrida.»
Em contra alegações, veio o recorrido, GCO - Consultadoria e Gestão de Obras,Lda., concluir:
«[...]
3.ª É notório o desacerto do aresto em recurso quando sustenta a inconstitucionalidade orgânica do DL n.º 157/2006, não só por o regime especial previsto neste diploma relativamente à denúncia do contrato para realização de obras de remodelação e restauro profundos não integrar o regime geral do arrendamento e não estar, por isso, sujeito a prévia autorização da Assembleia, mas também por a própria Assembleia ter expressamente previsto tal regime especial e não o ter disciplinado nem proibido oGoverno de o disciplinar.
4.ª Se a isto se acrescentar que o regime especial de denúncia do contrato para obras de remodelação ou restauro profundos é uma mera concretização do regime geral - o qual prevê a denúncia do contrato para a realização de tais obras no art.º 110l.º/b) do C. Civil - e que vem estabelecer uma regulamentação em sentido protector ao arrendatário - assegurando-lhe o pagamento de todos os danos ou o realojamento (v.art.os 6.º e 25.º do DL n.º 157/2006) - , mais notório se torna que ao estabelecer o regime especial de denúncia do arrendamento para realização de obras de remodelação e restauro profundos o Governo exercitou uma competência legislativa primária, não carecendo, como tal, de qualquer autorização legislativa por parte da Assembleia da
República.
Consequentemente,
5.ª Ao recusar a aplicação ao caso sub júdice do DL n.º 157/2006 com fundamento na sua inconstitucionalidade orgânica, o aresto em recurso incorreu num flagrante erro de julgamento, porquanto a emanação do regime especial de denúncia do arrendamento para realização de obras de remodelação e restauro profundos foi expressamente previsto pela Assembleia ao aprovar o regime geral do arrendamento e esta não definiu tal regime nem proibiu o Governo de o fazer, razão pela qual ao disciplinar aquele regime especial o Governo exercitou a competência legislativa primária que lhe é reconhecida pela alínea a) do art.º 198.º da Constituição (v., neste sentido, autor ejurisprudência citada no texto).
Nestes termos, Deve ser revogada a decisão em recurso com fundamento na não declaração da inconstitucionalidade do DL n.º 157/06, maxime das normas da al. a) do art.º 1, art.º 4.º a 11.º, e 24.º a 27.º, com as legais consequências.»Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação
3 - O presente recurso vem interposto pelo Exmo. Magistrado do Ministério Público, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea a) da Lei do Tribunal Constitucional, do Acórdão da Relação de Coimbra, no segmento em que desaplicou, fundando-se em inconstitucionalidade orgânica, as normas constantes no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal - artigos 1.º, alínea a), 4.º a 11.º e 24.º a 27.º do Decreto-Lei 157/06, de 8 de Agosto - que integram o regime aplicável "à denúncia ou suspensão do contrato de arrendamento para demolição ou realização de obras de restauro profundo do local arrendado." (citado artigo 1.º, alínea a).No entanto, não obstante o recurso ter sido interposto ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea a) da Lei do Tribunal Constitucional, encontramo-nos em sede de fiscalização concreta de constitucionalidade, pelo que o Tribunal Constitucional tem de formular um juízo de conformidade ou desconformidade constitucional, no que concerne às normas desaplicadas no caso concreto.
Ora, conforme se constata no elenco dos preceitos legais supra referenciados, estamos perante normas de conteúdo diverso, quer quanto à previsão, quer quanto à respectiva
estatuição.
Na situação em apreço, está-se perante um processo que tem por objecto a denúncia de um contrato de arrendamento para habitação, com fundamento em demolição do locado para construção de um novo edifício, sendo estranho a esse objecto aquele conjunto de normas que não têm na mencionada demolição a sua razão de ser, como seja, e, nomeadamente as referentes à remodelação ou restauro profundos, à suspensão do contrato, à edificação em prédio rústico, à denúncia do arrendamento para fim não habitacional e à actualização da renda.Assim, não cabe ao Tribunal conhecer de invocadas inconstitucionalidades relativamente aos artigos 4.º, 5.º, 9.º, 10.º, 11.º, 26.º e 27.º do Decreto-Lei 157/06, de 8 de Agosto, por tais preceitos não terem sido, efectivamente desaplicados, face ao caso concreto em apreciação, no que se refere, agora, e, designadamente ao juízo de conformidade constitucional que vem solicitado a este Tribunal.
Relativamente aos restantes preceitos legais referidos, ou seja, os artigos 1.º, alínea a), 6.º, 7.º, 8.º, 24.º e 25.º, tendo em vista, conforme se assinalou, que o objecto do pedido se cinge à denúncia do contrato de arrendamento, com fundamento em demolição do locado, teremos de equacionar a questão atinente à "reserva de lei"
consignada no artigo 165.º, n.º 1, alínea h) da Constituição.
4 - Desta forma, a questão a tratar, no que concerne à aludida "reserva de lei"
traduz-se em indagar se a denúncia do contrato para demolição do local arrendado se integra no aludido regime geral do arrendamento, por contender com o seu regime substantivo, no atinente à extinção do contrato respectivo.
Se isto, assim, ocorre, se nos encontrarmos numa situação inclusiva do respectivo regime geral, então terá o Governo de se encontrar municiado da devida credencial parlamentar para poder alterar tal regime, nomeadamente se a situação legal objecto da intervenção legislativa for de considerar inovatória.
Com efeito, o Tribunal Constitucional tem entendido que esse regime compreende "as regras relativas à celebração de tais contratos e às suas condições de validade, definidoras (imperativa ou supletivamente) das relações (direitos e deveres) dos contraentes durante a sua vigência e definidoras, bem assim, das condições e causas da sua extinção. A definição dos pressupostos condicionantes do exercício pelo senhorio, do direito de denúncia do arrendamento para habitação do andar locado respeita a aspectos significativos e substantivos do regime legal do contrato, pelo que se encontra compreendida no âmbito da reserva de competência legislativa relativa da Assembleia da República." (Acórdão 70/99 [publicado no Diário da República, 2.ª série, de 6 de Abril] em que se citam, também, neste mesmo sentido, os Acórdãos n.os 352/92 e
311/93).
Importa, agora, analisar se, na situação em apreço, existe lei habilitante e se as soluções encontradas se acham balizadas nos limites da autorização legislativa.Verifica-se, efectivamente, que o Decreto-Lei 157/2006 foi emitido no uso de autorização legislativa, ou seja, com base no artigo 63.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, da Lei 6/2006, que aprovou o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU) Na situação que ora nos ocupa, a acção de denúncia do contrato de arrendamento funda-se, numa perspectiva substantiva, no artigo 1103.º do Código Civil.
No tocante a esta disposição legal constante do Código Civil, verifica-se que a mesma foi buscar a sua actual redacção à Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro, e limita-se, no respectivo segmento dispositivo, a remeter para "legislação especial" a temática atinente "à denúncia do contrato para demolição ou realização de obras de remodelação ou restauro profundos" (artigo 1103.º n.º 8).
Por sua vez, a invocada «legislação especial» é composta por três blocos normativos constantes nas três alíneas do n.º 1 do artigo 1.º do mencionado Decreto-Lei 157/2006: i) "denúncia ou suspensão do contrato de arrendamento para demolição ou realização de obras de remodelação ou restauro profundos (alínea a); ii) a "realização de obras coercivas pelos municípios, nos casos em que o senhorio as não queira ou não possa realizar (alínea b) e iii) "a edificação em prédio rústico arrendado e não sujeito a
regime especial" (alínea c).
Da análise do referenciado diploma legal verifica-se que o mesmo extravasa a norma de autorização legislativa consignada no artigo 63.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, da Lei 6/2006, já que para o que ora importa, só existe autorização legislativa para o "regime de obras coercivas" e já não para a "denúncia ou suspensão do contrato dearrendamento para demolição (...)".
Assim, torna-se inequívoco que o legislador, no atinente a todas as questões que envolvam a denúncia do contrato para demolição do prédio arrendado, por não integrarem o regime das "obras coercivas", carecia, em termos manifestos, de credencial parlamentar para legislar inovatoriamente.Na verdade, é inequívoco que são inovatórios os preceitos onde se encontra exarada a definição substantiva dos pressupostos materiais do direito de denúncia para demolição, constantes dos artigos 6.º e 7.º, 24.º e 25.º do mencionado diploma legal.
Os pressupostos materiais do direito de denúncia para demolição estabelecidos, respectivamente nos artigos 24.º, com referência ao artigo 7.º n.º 2 e 25.º, são inovatórios, relativamente aos artigos 1101.º, alínea b) e 1103.º n.º 8 do Código Civil, que se limitam a referir a existência de uma mera faculdade de denúncia para demolição, sem explicitar os respectivos pressupostos (artigo 1101.º), submetendo, por seu lado, o seu regime a legislação especial (artigo 1103.º) Acresce que o precedente regime legal - Lei 2088 de 3 de Julho de 1957 -, revogada pelo artigo 49.º do Decreto-Lei 152/06, não regulava tais matérias, nomeadamente pela forma que vem de ser referida, pelo que a intervenção legislativa, em análise, é,
manifestamente, inovatória.
Já no que concerne ao artigo 1.º n.º 1 alínea a) do citado diploma legal, o mesmo reveste de carácter meramente enunciativo, limitando-se a explicitar que vem dar tradução ao comando contido no artigo 1103.º n.º 8 do Código Civil, pelo que irreleva qualquer aproximação de controlo constitucional.No que se refere ao artigo 8.º, o mesmo apresenta nos seus números 1.º a 5.º, conteúdo meramente instrumental ou regulamentar, pelo que tais disposições não integram a reserva, contrariamente ao que ocorre com o n.º 6.
Não merece, assim, censura a desaplicação das normas legais constantes dos artigos 6.º, 7.º, 8.º n.º 6., 24.º e 25.º do Decreto-Lei 157/06, face à sua inconstitucionalidade orgânica, por violação do disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea
h), da Constituição.
O mesmo não sucede, pelo que vem de ser afirmado, no tocante ao artigo 1.º n.º 1alínea a) e artigo 8.º n.º s 1 a 5.
III - Decisão
5 - Nestes termos, acordam em:
a) não conhecer do recurso, relativamente à invocada inconstitucionalidade dos artigos 4.º, 5.º, 9.º, 10.º, 11.º, 26.º e 27.º do Decreto-Lei 157/06, de 8 de Agosto;b) negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar o juízo de inconstitucionalidade formulado na decisão recorrida, apenas, no tocante aos 6.º, 7.º, 8.º n.º 6., 24.º e 25.º do mesmo diploma legal.
Sem custas.
Lisboa, 24 de Março de 2009. - José Borges Soeiro - Maria João Antunes - Gil Galvão - Carlos Pamplona de Oliveira (com declaração) - Rui Manuel Moura
Ramos.
Declaração de voto
No acórdão pondera-se que a disciplina do Decreto-Lei 157/2006 se deve conter na «norma de autorização legislativa consignada no artigo 63.º n.º 1 alínea a) e n.º 2 da Lei 6/2006, já que para o que ora importa, só existe autorização legislativa para o "regime de obras coercivas" e já não para a "denúncia ou suspensão do contrato de arrendamento para demolição ou para a realização de obras de remodelação ou restauro profundos".» Ora, a verdade é que, conforme resulta da alínea h) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição, apenas o «regime geral» do arrendamento rural e urbano se inclui na reserva relativa de competência parlamentar, o que em meu entender deixa ao governo um espaço de liberdade de conformação legislativa na área restante que se não reduz às disposições de «conteúdo meramente instrumental ou regulamentar» conforme diz o aresto. Por essa razão, entendo, salvo o devido respeito, que os argumentos apresentados no acórdão não são totalmente convincentes de que as normas analisadas são constitucionalmente desconformes por razões orgânicas.
Carlos Pamplona de Oliveira.
201775807