Assento
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I - O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto do Tribunal da Relação de Coimbra vem recorrer extraordinariamente - ao abrigo do disposto nos artigos 437.º, n.º 2, e seguintes do Código de Processo Penal, a que pertencerão todas as demais disposições legais que venham a referir-se - do acórdão da mesma Relação tirado a 8 de Maio de 1991 no processo 402/89, com base nas razões que de seguida e em síntese se passam a indicar:
Relativamente à mesma questão de direito, no domínio da mesma legislação, está em oposição o ali decidido com a solução a que se chegou no aresto da Relação do Porto de 7 de Novembro de 1990, publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano XV, 1990, t. V, pp. 151 a 152 (em fotocópia, de fl. 16 a fl. 17), que aqui se toma como acórdão fundamento.
Consiste semelhante oposição em se ter entendido, no acórdão posto em crise, constituir nulidade insanável a omissão total da indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, a que alude o n.º 2 do artigo 374.º, em diverso sentido tendo julgado o acórdão fundamento.
II - A legitimidade do recorrente encontra-se garantida pelo despacho de admissão do recurso, a confirmar o prazo em que foi interposto, a espécie e o regime adequados.
Observado o estabelecido nos artigos 439.º a 440.º, procedeu-se ao exame preliminar e, em seguida à conferência, em que se concluiu pela oposição de julgados.
III - Havendo, por conseguinte, os autos prosseguido e tendo-se colhido o visto simultâneo, a que se refere o n.º 3 do artigo 442.º, cumpre agora decidir.
E é inquestionável que qualquer dos dois citados acórdãos, mantendo-se inalterada a legislação, chega a diversa solução quando se debruça sobre a mesma questão de direito.
Ambos apreciam, na verdade, o problema da falta de indicação das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, no relatório por que sempre se inicia a sentença, e que se nomeia na parte final do n.º 2 do já aludido artigo 374.º
Só que o aresto recorrido considera tratar-se de nulidade insanável, de que deve oficiosamente conhecer-se e como tal deve declarar-se, enquanto no acórdão fundamento se entende que essa omissão constitui nulidade dependente de arguição e que se pode invocar na motivação do recurso.
Qualquer das decisões em conflito transitou em julgado, nada obstando ao conhecimento deste pelo plenário.
A) O ilustre procurador-geral-adjunto neste Supremo Tribunal começa, todavia, por suscitar o problema de saber se, neste momento, poderá proceder-se como que a um segundo exame preliminar, à semelhança do que sucedia quando, em caso como o dos autos, era aplicável o Código de Processo Civil.
É consabido que o anterior Código de Processo Penal não dispunha de normas a regularem, como agora, o recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, assim havendo que lançar mão daquele outro diploma legal, prescrevendo o § único do seu artigo 668.º que deviam observar-se as regras para idêntico recurso em matéria cível.
E hoje não há nenhuma disposição como o n.º 3 do artigo 766.º do Código de Processo Civil, que estabelece:
O acórdão que reconheça a existência da oposição não impede que o tribunal pleno, antes da solução de fundo do conflito de jurisprudência, ao apreciar o recurso, tivesse de novamente verificar se a oposição dos acórdãos se confirmava.
Parece que o problema perdeu actualmente toda a acuidade, uma vez que, como já se afirmou, no vigente Código de Processo Penal está totalmente regulado um tal recurso extraordinário e o legislador não teria deixado de formular idêntica regra se esse fosse seu propósito.
Isto, porém, não significa que o plenário das secções criminais, se porventura se apercebesse de que a falada «oposição de acórdãos» não se verificava, não pudesse isso mesmo decidir, mais uma vez aplicando o n.º 3 do citado artigo 766.º, ex vi do que estatui o artigo 4.º
Aliás, refere o Exmo. Procurador-Geral da República, conselheiro Cunha Rodrigues, nas Jornadas de Processo Penal, do Centro de Estudos Judiciários, que «salvo pormenores de regulamentação que devem procurar-se, por via analógica, no Código de Processo Civil [artigo 4.º deste Código], os recursos penais passam a obedecer a princípios próprios, possuem uma estrutura normativa autónoma e desenvolvem-se segundo critérios a que não é alheia uma opção muito clara sobre a necessidade de valorizar a atitude fundamental do juiz.
O Código rompe abertamente com a tradição que há quase um século germinou os recursos penais e cíveis». (P. 384).
E na nota 3 ao artigo 441.º, na 4.ª edição do seu Código Anotado, escreve Maia Gonçalves:
E, embora o prosseguimento seja para decidir o fundo, ou seja, o sentido em que a jurisprudência deve ser uniformizada, cremos que, tal como sucede em processo civil, o plenário das secções não está vinculado pelo que em conferência foi decidido sobre questões preliminares. O Código nada nos diz sobre esta questão: trata-se de um caso omisso em que o processo civil se harmoniza com o processo penal, em que, portanto, e nos termos do artigo 4.º, nos devemos socorrer da analogia.
Aliás, parece-nos impensável proceder de outro modo, pois estaria o plenário das secções a fixar jurisprudência, quando de antemão se tinha apercebido da inexistência de acórdãos contraditórios, o âmbito do estabelecido no artigo 437.º, e da falência, por conseguinte, de um dos requisitos essenciais justificativos da sua actividade.
B) Resolvida a primeira questão aflorada pelo Exmo. Procurador-Geral-Adjunto neste Supremo, passemos àquela que este plenário é chamado a solucionar.
Toda a problemática se resume a decidir se a omissão, na sentença criminal, da indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal constituirá nulidade insanável, ou não.
É que, como já se referiu, no acórdão recorrido entendeu-se que a falta de indicação das provas que serviram para fundar a convicção do tribunal constituía nulidade insanável da decisão, que desse modo tinha decidido, e, desse jeito, de conhecimento oficioso.
Julgou-se, ao contrário, no acórdão fundamento que a aludida omissão, constituindo embora nulidade, não era daquela espécie, não sendo, por conseguinte, do conhecimento oficioso, podendo arguir-se na motivação do recurso.
Deve dizer-se que neste sentido tem vindo este Tribunal a pronunciar-se uniformemente, como nos acórdãos que de seguida se transcrevem:
1 - As nulidades da sentença são nulidades dependentes de arguição, que podem ser arguidas na motivação dos recursos e, portanto, dentro do prazo da motivação.
2 - A obrigatoriedade de indicação, na sentença, das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, estabelecida no artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, destina-se a garantir que na sentença se seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova, não sendo, portanto, uma decisão ilógica, arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum na apreciação da prova [cf. o artigo 410.º, n.º 2, alíneas a), b) e c), do Código de Processo Penal].
3 - Sendo a indicação de tais provas feita sucinta e dispersamente (fora do local indicado no artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal), não se tratará de nulidade, mas de irregularidade processual, a submeter ao regime do artigo 123.º do Código de Processo Penal, suposto que a indicação, como é feita, ainda satisfaz a finalidade indicada no n.º 2. [Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Junho de 1989, no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 388, p. 364, processo 40023].
No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Fevereiro de 1991, no processo 41200, lê-se que «a nulidade, arguida na motivação, foi-o em tempo». (Actualidade Jurídica, n.os 15/16, n.º 3258, p. 6.) No mesmo sentido são os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Junho de 1989, processo 40094, e de 21 de Junho de 1989, processo 40024.
«1 - A ausência total, na sentença, da referência às provas que constituíram a fonte de convicção do tribunal constitui violação do artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o que acarreta nulidade da decisão, por força do artigo 375.º
2 - Tal nulidade tem de ser invocada na motivação de recurso do acórdão, porque não aplicável o artigo 120.º, n.º 3, alínea a), do Código de Processo Penal.» (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Março de 1991, no processo 40874, Actualidade Jurídica, n.º 17, n.º 3713, p. 5.)
«1 - A fundamentação da sentença ou acórdão é uma actividade complexa, onde se enquadram funções de enumeração, exposição e indicação.
2 - A 'indicação' destina-se a assegurar a inexistência de violação do princípio da inadmissibilidade das proibições de prova. E, no pressuposto de que a normal e diligente actuação dos interessados não deixará de denunciar a utilização pelo tribunal de provas proibidas, a lei não exige a 'especificação da prova na sentença', reduzindo, a respeito, a nulidade a simples falta de 'referência às chamadas' pieces à conviction.» (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Junho de 1991, processo 41644.)
No sentido inverso, e no mesmo do acórdão recorrido, pode ver-se o Acórdão da Relação de Coimbra de 15 de Fevereiro de 1989, sumariado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 384, p. 674:
Sofre de nulidade [artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, alínea a), do Código de Processo Penal] a sentença na qual não se fez indicação das provas que serviram para formar a convicção do julgador.
Diga-se ainda, a propósito, não se justificar actualmente o recurso às regras estabelecidas no Código de Processo Civil, como tem vindo a decidir-se neste Supremo Tribunal, podendo citar-se, por todos, o Acórdão de 9 de Janeiro de 1992, no processo 41991, em que se lê:
Ora, casos omissos poderiam verificar-se no domínio do Código de Processo Penal de 1929, com o subsequente recurso ao processo civil, neste aspecto das nulidades da sentença, que nele não se encontravam reguladas.
Outro tanto não sucede com o Código actual, em que as mesmas estão previstas e taxativamente enumeradas, por o pensamento legislativo que lhe preside ter sido dominado pela preocupação de as restringir.
E depois da referência a alguns arestos deste Supremo Tribunal, em que pacificamente se sufraga a tese defendida pelo acórdão fundamento, passemos a enunciar alguns dispositivos legais do Código de Processo Penal que importa ter em mente para a dissolução do problema:
Artigo 374.º
Requisitos da sentença
1 - A sentença começa por um relatório, que contém [...]
2 - Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
3 - ...
Artigo 379.º
Nulidade da sentença
É nula a sentença:
a) Que não contiver as menções referidas no artigo 374.º, n.os 2 e 3, alínea b); ou
b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver fora dos casos e das condições previstas nos artigos. 358.º e 359.º
Artigo 118.º
Princípio da legalidade
1 - A violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei.
2 - Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular.
3 - As disposições do presente título não prejudicam as normas deste Código relativas a proibições de prova.
Artigo 119.º
Nulidades insanáveis
Constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais:
a) A falta do número de juízes ou de jurados que devam constituir o tribunal, ou a violação das regras legais relativas ao modo de determinar a respectiva composição;
b) A falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48.º, bem como a sua ausência a actos relativamente aos quais a lei exigir a respectiva comparência;
c) A ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência;
d) A falta de inquérito ou de instrução, nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade;
e) A violação das regras de competência do tribunal, sem prejuízo do disposto no artigo 32.º, n.º 2;
f) O emprego de forma do processo especial fora dos casos previstos na lei.
Artigo 120.º
Nulidades dependentes de arguição
1 - Qualquer nulidade diversa das referidas no artigo anterior deve ser arguida pelos interessados e fica sujeita à disciplina prevista neste artigo e no artigo seguinte.
2 - Constituem nulidades dependentes de arguição, além das que forem cominadas noutras disposições legais:
a) O emprego de uma forma de processo quando a lei determinar a utilização de outra, sem prejuízo do disposto na alínea f) do artigo anterior;
b) A ausência, por falta de notificação do assistente e das partes civis, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência:
c) A falta de nomeação de intérprete, nos casos em que a lei a considerar obrigatória;
d) A insuficiência do inquérito ou da instrução e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade.
3 - As nulidades referidas nos números anteriores devem ser arguidas:
a) Tratando-se de nulidade de acto a que o interessado assista, antes que o acto esteja terminado;
b) Tratando-se da nulidade referida na alínea b) do número anterior, até cinco dias após a notificação do despacho que designar dia para a audiência;
c) Tratando-se de nulidade respeitante ao inquérito ou à instrução, até ao encerramento do debate instrutório ou, não havendo lugar a instrução, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito;
d) Logo no início da audiência nas formas de processo especiais.
Uma vez aqui chegados, tendo presentes a jurisprudência deste Supremo Tribunal, que se mencionou, e as normas legais acabadas de referir, curemos de averiguar que espécie de nulidade se nos depara quando, numa sentença criminal, falta a indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
Em vista da clareza daquelas disposições já transparece, com natural evidência, tratar-se de uma nulidade, e de uma nulidade sanável, como já deixamos antever, no sentido da mencionada jurisprudência, de resto uniforme.
Aliás, é esta a solução que ressalta desses textos da disciplina das nulidades de que se ocupam.
O título V («Das nulidades»), inserido no livro II («Dos actos processuais») da parte I do Código de Processo Penal, a que pertencem os dispositivos legais que se transcreveram, dedica-se, pois, às nulidades dos actos processuais em geral, incluindo, portanto, também as da sentença.
Nele estatui, por conseguinte, sobre os vários tipos de invalidade e seus efeitos, sem estar a destrinçar os vários actos processuais afectados, mas antes remetendo para os diversos preceitos que, pelo Código adiante, se lhes vão referindo e que as integram.
É o que, por acaso, defende, na sua tese de doutoramento - Do Processo Penal Preliminar -, Germano Marques da Silva, quando, a pp. 472 e 473, escreve:
Com excepção da inexistência jurídica, que é uma construção doutrinária, o Código trata das nulidades em geral no título V do livro II da parte I. Além dos casos aí expressamente considerados, que respeitam essencialmente às nulidades do processo, o Código contempla dispersamente muitos outros casos de nulidades a propósito da disciplina de cada acto [...].
O desrespeito ou não acatamento do formalismo processual determinado na lei produz, como se sabe, a imperfeição do acto processual, que pode ir, consoante o grau desta, passando por vícios que constituem nulidade sanável ou insanável, desde a simples irregularidade, de diminuta importância, até à própria inexistência jurídica do acto.
E como flui do n.º 2 do citado artigo 118.º, nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular, estatuindo o artigo 123.º que «qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto [...]».
Daqui já resulta, com nitidez, referir a própria lei expressamente os vícios que conduzem à nulidade do acto, dando lugar a simples irregularidade os restantes, quando não se esteja ante hipótese da sua inexistência jurídica.
O artigo 119.º, por sua vez, inventaria nas suas seis alíneas os casos que constituem nulidades insanáveis, afora as que como tal se cominarem noutras disposições legais.
Desta norma já se infere o que a seguir estabelece o artigo 120.º, n.º 1, que qualquer nulidade que não constitua alguma daquelas é sanável, portanto, e deve ser arguida pelos interessados.
Sendo assim, o artigo 379.º, alínea a), ao determinar que o omitir-se na sentença a indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal (conforme a parte final do n.º 2 do artigo 374.º) constitui nulidade, não a integra nas nulidades insanáveis.
Ora, desde que esta não se encontra abrangida no número das insanáveis, não pode deixar de concluir-se que se está ante nulidade sanável, incluída no artigo 120.º, dependente, pois, de arguição pelos interessados.
Neste sentido opina Maia Gonçalves, ao escrever no seu Código de Processo Penal Anotado, 1991, 4.ª ed., na nota 2 ao artigo 379.º:
Como já se tem acentuado, há no pensamento legislativo que presidiu à feitura do Código o intuito de restringir as nulidades, cuja enumeração é taxativa.
Assim, a sentença só será afectada de nulidade nos casos taxativamente previstos neste artigo ou noutras disposições da lei.
E sucede ainda que, como as nulidades aqui previstas não estão enumeradas no artigo 119.º como nulidades insanáveis de conhecimento oficioso, para que sejam declaradas e produzam efeitos devem ser arguidas nos termos do artigo 120.º, n.º 3.
Pode ainda ler-se, na mesma orientação, o Código de Processo Penal Anotado, de Costa Pimenta, 1.ª ed., a p. 1023, em anotação ao artigo 379.º «Natureza e regime»:
As nulidades da sentença enumeradas neste artigo têm natureza relativa (sanável) e obedecem ao regime estabelecido nos artigos 120.º e 121.º, para cuja anotação remetemos.
Fica assim destituído de qualquer fundamento o decidido, em sentido oposto, no acórdão recorrido, com base na expressão que no artigo 379.º se utiliza, «É nula a sentença [...]», com o que apenas se quis cominar esta nulidade nos casos aí previstos, desse modo se afastando a simples irregularidade, desde logo pondo de parte a insanabilidade da nulidade, conforme o artigo 119.º
Se aquela fosse a intenção do legislador, não teria ele deixado de usar a expressão concisa, como, por exemplo, «Padece de nulidade insanável a sentença [...]», à luz do estatuído no artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil.
Tudo conduz, por conseguinte, a solucionar o conflito de jurisprudência gerado entre os Acórdãos da Relação de Coimbra de 8 de Maio de 1991, protelado no processo 46/91, e da Relação de Lisboa proferido a 7 de Novembro de 1990, no processo 25997, fixando a jurisprudência pelo modo que se segue:
Não é insanável a nulidade da alínea a) do artigo 379.º do Código de Processo Penal de 1987, consistente na falta de indicação, na sentença penal, das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, ordenada pelo artigo 374.º, n.º 2, parte final, do mesmo Código, por isso não lhe sendo aplicável a disciplina do corpo do artigo 119.º daquele diploma legal.
A decisão recorrida deverá ser oportunamente alterada em consonância com a jurisprudência agora estabelecida pelo tribunal que a preferiu.
Sem custas.
Lisboa, 6 de Maio de 1992. - José Alexandre Lucena Vilhegas do Valle - José Correia de Oliveira Abranches Martins - Armando Pinto Bastos - Fernando Faria Pimentel Lopes de Melo - José Henriques Ferreira Vidigal - Manuel da Rosa Ferreira Dias - Victor Manuel Lopes de Sá Pereira - António Cerqueira Vahia - Agostinho Pereira dos Santos - Luís Vaz de Sequeira - Bernardo Guimarães Fischer Sá Nogueira (vencido, nos termos da declaração que junto) - Noel Silva Pinto (vencido, nos termos da declaração de voto do Exmo. Conselheiro Sá Nogueira).
Declaração
Vencido.
Nos processos n.os 41657 e 43163, de que fui relator, e de que seguidamente se transcrevem as partes com interesse, tomou-se uma posição que, sem focar o problema posto na formulação do presente assento, se funda na ideia implícita que a nulidade resultante da falta de indicação da matéria dada como não provada será de conhecimento oficioso (ainda que nos dois casos concretos acima referidos tenha havido arguição da nulidade pelos recorrentes).
Por tal razão, defendi que o assento a formular deveria ter a seguinte redacção:
É insanável a nulidade da alínea a) do artigo 379.º do Código de Processo Penal, constante da falta de indicação na sentença das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, ordenada pelo artigo 374.º, n.º 2, parte final, do mesmo Código, pelo que lhe é aplicável a disciplina do artigo 119.º do mesmo diploma.
[...]
41657:
[...]
[...] por seu lado, entende que o acórdão é nulo, por falta de indicação da matéria dada como não provada, por existência de contradição insanável na matéria dada como provada, por falta de cumprimento das regras processuais respeitantes à alteração não substancial dos factos da acusação, por contradição entre a matéria de facto provada e as conclusões, baseadas num discurso hipotético (e do qual, de resto, se demarcou um dos membros do colectivo), e por insuficiência da matéria de facto para a extracção das conclusões formuladas, pelo que pede a repetição do julgamento.
O que poderia existir, nas apontadas condições, seria uma deficiente indicação da matéria de facto dada como provada, mas entende-se que se não verifica tal defeito, em virtude de a análise do espírito do sistema de prova instituído pelo Código de Processo Penal actual levar à conclusão de que se não justifica a indicação de certos factos como provados ou não provados quando o respectivo âmbito e natureza os coloque na situação de se mostrarem irrelevantes para a decisão da causa.
Na verdade, só assim adquire significado e relevância jurídica a disposição da alínea a) do n.º 4 do artigo 340.º do mesmo diploma, quando permite ao tribunal o indeferimento dos requerimentos de produção de prova se for notório que as provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas.
É que dos muitos factos trazidos ao processo e ao julgamento diversos são manifestamente irrelevantes ou não significativos, do que resulta não deverem ser incluídos no conjunto de matéria sobre a qual o tribunal se deve pronunciar para dizer que se produziram ou não.
É isso, de resto, que resulta da leitura do n.º 2 do artigo 368.º do Código de Processo Penal, em que se indicam os pontos de facto que devem ser enumerados, discriminada e especificadamente relevantes para as questões a decidir, e que tenham sido alegados pela acusação e pela defesa, ou que resultem da discussão da causa.
E é precisamente por isso, também, que o mencionado Código permite que se invoque como fundamento de recurso para o tribunal superior a insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada [alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º].
Mas o recorrente, como se frisou, e ainda em relação com esta matéria, vem afirmar que o tribunal, ao agir como se deixa indicado, violou o disposto nos artigos 355.º e 356.º do Código mencionado.
Vejamos, por isso, se assim é.
Esses artigos respeitam à força probatória das provas (documentais, periciais, constantes de redução a escrito de audições de pessoas com intervenção no processo, e outras, como as resultantes da existência de objectos apreendidos, etc.) e determinam que os mesmos não têm valor se as respectivas provas não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência.
Ao mesmo tempo, esclarecem em que condições se considera que as provas resultantes da audição de pessoas, produzidas fora da audiência de julgamento, podem ser examinadas e valorizadas para efeitos de julgamento, mas nada indicam sobre as condições em que os restantes meios de prova têm valor para os mesmos efeitos.
Ora, o nosso sistema processual penal, ao contrário do que ocorre com o sistema de direito americano, determina a incorporação no processo, ou a apensação a este, de todos esses meios de prova que, para além da redução a escrito de declarações dos intervenientes no caso, tenham interesse para a resolução deste, bem como a indicação oportuna, na acusação, e na pronúncia, quando a haja, de quais eles sejam (artigos 157.º, 164.º, 165.º, 166.º, 168.º, 178.º a 186.º, 188.º, 190.º, 92.º a 95.º, 283.º e 308.º do Código de Processo Penal).
E, precisamente por ter sido esse o sistema adoptado, o julgamento efectuado pelo tribunal implica as obrigações de examinar e de atender, em harmonia com a lei, todas essas provas existentes no processo, constantes daquelas peças processuais.
É por tal razão que é vedado ao mesmo tribunal proceder a uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver (artigo 339.º), salvas as excepções consignadas nesta disposição legal.
Resulta, assim, dos comandos referidos que todas as indicadas provas, não correspondentes a redução a escrito de depoimentos ou declarações de intervenientes no processo, são «examinadas» no julgamento, sem haver lugar à sua leitura pública (contrariamente ao que sucede, repete-se, no direito americano), leitura esta só permitida pela lei quanto às mencionadas reduções a escrito de depoimentos e declarações dos intervenientes.
Não se vislumbra, por tais razões, que o Tribunal, ao tomar em consideração todas as mencionadas provas existentes nos autos, tenha infringido o comando daqueles artigos 355.º e 356.º, visto que, ao fazê-lo, se limitou a dar estrito cumprimento ao preceituado no primeiro desses artigos.
42163:
[...]
Inconformado, recorre para este Supremo Tribunal o digno representante do Ministério Público, a pedir o decretamento da nulidade do acórdão, e o consequente reenvio do processo, por se não ter feito indicação dos fundamentos probatórios que estiveram na base de se terem dado como não provados os factos respeitantes ao arguido Raposo dos Santos e por existir contradição insanável entre factos provados e não provados.
I - O problema da fundamentação da decisão. Seu âmbito
Como é sabido, o Código de Processo Penal de 1929, na esteira, aliás, do nosso regime legal anterior, não admitia a indicação dos fundamentos da decisão sobre matéria de prova, e de igual forma dispunha o Código de Processo Civil de 1939.
A filosofia que estava subjacente a esse sistema era a de que o juiz formava a sua convicção livremente, em função do conjunto das provas produzidas, num regime que se contrapunha a um outro que vigorara anteriormente, segundo o qual havia valores diferentes e mais ou menos vinculativos quanto a determinados tipos de prova (uma só testemunha não tinha qualquer valor, os depoimentos de pessoas de certas categorias sociais tinham mais valor do que os de outras pertencentes a diferentes estratos, etc.).
E, muito embora essa filosofa correspondesse, na essência, a um progresso relativamente ao sistema anterior acabado de referir, o certo é que, com o decurso do tempo, começaram a surgir críticas à forma como alguns tribunais apreciavam as provas produzidas, dentro de um esquema legal que acabava por impedir que as instâncias superiores procedessem à adequada fiscalização do julgamento da matéria de facto feito pela 1.ª instância.
Por tal motivo, e porque o trabalho doutrinário no nosso país se acha especialmente centrado no direito e no processo civis, a censura sobre o sistema legal que decorria dessa filosofia começou por incidir sobre o processo civil, e só depois de este ter sido alterado se dirigiu ao processo penal.
Relativamente ao processo civil, veio a ser oportunamente alterado o artigo 653.º do Código respectivo, por forma a exigir-se a fundamentação das respostas em matéria de facto, mas apenas em relação aos factos dados como provados, e a jurisprudência acabou por considerar que a exigência legal da fundamentação ficava satisfeita com uma indicação, mais ou menos genérica, de que o tribunal chegara a conclusão indicada «com base nos depoimentos das testemunhas ouvidas sobre o facto, que se tinham mostrado conhecedoras da respectiva matéria».
Vários anos após a fixação desta doutrina verificou-se a crítica às disposições do Código de Processo Penal de 1929 que impediam a fundamentação das respostas em matéria de facto (nomeadamente o seu artigo 469.º), as quais chegaram mesmo, mas sem êxito, a ser acusadas de inconstitucionalidade.
Posteriormente, entrou em vigor o actual Código de Processo Penal, que se fez eco daquelas críticas e que, para além de ter abolido o regime de formulação de um questionário sobre os factos que deveria ser respondido pelo tribunal colectivo, veio dispor no seu artigo 374.º, n.º 2, o seguinte:
Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
Torna-se, assim, bem nítida a amplitude da evolução do regime da fundamentação da decisão sobre prova, que passou a abranger, no processo penal, a própria matéria de facto não provada, mas esta modificação não é, por si só, suficiente para se determinar qual o alcance do correspondente preceito legal, pois se não sabe em que condições e de que forma se deve proceder à indicação da fundamentação da indicação dos factos não provados.
E essa imprecisão conduz-nos à necessidade de afloração de um outro problema, que é o da fundamentação da matéria dada como não provada.
Teoricamente, haverá duas situações em relação às quais determinada matéria alegada não seja dada como provada: ou sobre a mesma não foi feita qualquer prova, ou a prova que se produziu não convenceu o julgador de que o referido facto correspondesse à realidade.
Se não houve qualquer produção de prova sobre determinada matéria, não se poderá, com rigor, estar a indicar «as provas que serviram para formar a convicção do tribunal», como o exige a parte final do n.º 2 daquele artigo 274.º, mas parece que, devido à circunstância de se tornar, em regra, extremamente impreciso o poder-se saber se foi ou não produzida alguma prova sobre essa matéria, se deverá sempre indicar qual a fundamentação em que o tribunal se baseia para concluir que se não provaram determinados factos de interesse para a caracterização do ilícito ou para a desqualificação criminal dos actos do arguido.
Daí que se defenda que, qualquer que seja a razão de não prova desses factos, se deva sempre proceder à indicação da fundamentação de tal não prova, seja porque sobre a mesma se não fez a menor prova, seja porque a prova produzida não convenceu o tribunal.
Isto é, e de acordo com a nossa lei actual, haverá que indicar sempre a fundamentação da convicção do julgador relativamente aos factos dados como provados e aos factos dados como não provados, ainda que, em relação a estes últimos, se nenhuma prova tiver sido produzida, seja suficiente a afirmação de que a mencionada convicção se fundou precisamente nessa falta de produção de prova.
Problema diferente, mas com ele relacionado, é o de se saber se a fundamentação da matéria provada e da não provada pode ser feita em moldes concisos e semelhantes aos que a jurisprudência já estabeleceu para o processo civil ou se deve ser estruturada em moldes mais concretos, à semelhança do que ocorre no direito alemão, que, como se sabe, se encontra bastante na base da formulação ideológica do nosso processo penal, e em que se exige uma indicação muito precisa dos meios de prova a que o julgador atendeu e do próprio grau de convicção ou de não aceitação do que deles resultou que esteve na base da decisão sobre a matéria de facto.
Razões de ordem histórica e de unidade tendencial do sistema jurídico têm levado a que se esteja a estabelecer a corrente jurisprudencial de que, a exemplo do que se definiu para o processo civil, se considere como suficiente para se ter como cumprida a exigência legal de fundamentação no processo penal uma indicação concisa desta, em moldes semelhantes aos que se encontram estabelecidos para aquele tipo de processo, isto é, uma indicação de que a convicção do tribunal se baseou nos depoimentos testemunhas, adequadamente identificadas, que convenceram, pela forma como depuseram, que estariam a dizer a verdade, sem se tornar necessário referir pormenorizadamente (ao contrário do que se passa no já aludido direito alemão) que esta ou aquela testemunha afirmaram isto ou aquilo e se mostraram mais convincentes do que outra ou outras, que afirmaram o contrário, mas não convenceram, por estas ou aquelas razões.
Ora, no caso concreto, o acórdão recorrido é completamente omisso quanto à fundamentação dos factos que considerou como não provados, embora tenha dado uma fundamentação bastante completa quanto aos factos que considerou como provados.
Na verdade, do mesmo acórdão não consta a menor referência à fundamentação da decisão de considerar como não provados os factos havidos como tais.
Por isso, e neste aspecto, tem razão o recorrente. - Sá Nogueira.