Acórdão
Acordam na 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo (STA):
O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto deste STA veio, ao abrigo do disposto nos artigos 26.º, n.º 1, alínea i), e 11.º, ambos do Decreto-Lei 129/84, de 27 de Abril [Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF)], e 66.º e 67.º do Decreto-Lei 267/85, de 16 de Julho [Lei de Processo nos Tribunais Administrativos (LPTA)], deduzir pedido de declaração de ilegalidade, com força obrigatória geral e com eficácia retroactiva a 15 de Março de 1988, das normas regulamentares contidas nos artigos 14.º a 18.º do Regulamento do Estágio para Solicitador, homologado pelo Ministro da Justiça por seu despacho daquela data, por a respectiva aplicação ter sido recusada, com fundamento na sua ilegalidade, em cinco decisões, transitadas em julgado, do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa.
Alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:
1 - O Regulamento do Estágio para Solicitador é um acto normativo do Governo, de natureza regulamentar, contenciosamente impugnável.
2 - Nos recursos e nos termos indicados na petição inicial, o Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa recusou, em cinco decisões transitadas em julgado, a aplicação de normas dos artigos 14.º a 19.º do Regulamento, por violação dos artigos 42.º e 48.º do Decreto-Lei 483/76, de 19 de Junho.
3 - As normas dos artigos 14.º a 19.º do Regulamento do Estágio para Solicitador - regulamento de execução - são claramente inovadoras e contrárias ao disposto nos artigos 42.º e 48.º do Decreto-Lei 483/76, de 19 de Junho.
4 - Pelo que deverá ser declarada a sua ilegalidade, com força obrigatória geral, com efeitos reportados à data da homologação do Regulamento - data do início da sua aplicação -, pelas razões de equidade invocadas no ponto IV da petição inicial, nos termos dos artigos 26.º, n.º 1, alínea i), e 11.º, ambos do ETAF, e dos artigos 66.º e 67.º, ambos da LPTA.
1.1 - Citado o Ministro da justiça, veio o mesmo aos autos sustentar, em síntese, que o regime do Decreto-Lei 483/76, de 19 de Junho, é manifestamente insuficiente para que se possam realizar os estágios para solicitadores.
Daí a necessidade de elaborar, ao abrigo do artigo 110.º do citado Decreto-Lei 483/76, o respectivo Regulamento, cujas normas dos artigos 14.º a 19.º são postas em crise nos presentes autos.
Mas as mesmas não contrariam o regime consagrado em tal decreto-lei, não ultrapassando, assim, os limites da legalidade.
Com efeito, acrescente, a terminar, «o Regulamento em causa não regulou o que estava legislado, repetindo-o ou reformulando-o com desvio do fim respectivo; e se em algum aspecto o referido Regulamento do Estágio se mostra inovador é-o somente em questões de pormenor, onde houve a necessidade de estabelecer uma disciplina, aliás própria e em tudo idêntica à que se exige por regra em situações de selecção e apuramento de conhecimentos de candidatos».
Nas alegações finais reafirmou esta sua tese.
1.2 - Publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 14 de Janeiro de 1991, e rectificado no mesmo Diário em 6 do mês seguinte, o competente anúncio do pedido de declaração de ilegalidade de normas, vieram requerer a sua intervenção, nos termos do artigo 64.º, ex vi artigo 67.º, ambos da LPTA, o que lhes foi admitido por despacho a fl. 198 v.º, Maria Fernanda da Conceição Braga Duarte Vilas, Rui Manuel Duarte Vilas e Anisabel Cristina Branco Roque (todos melhor identificados a fl. 84) e Maria Anália da Silva Costa, idem a fl. 114, tendo todos corroborado a posição do Exmo. Magistrado do Ministério Público.
2 - Colhidos os vistos, cumpre decidir.
Factos provados:
a) Por sentença de 21 de Dezembro de 1989, transitada em julgado em 17 de Janeiro de 1990 (documento a fl. 141), proferida no recurso n.º 8206, em que foram recorrente José Augusto Pires de Almeida e recorrido o 13.º grupo orientador de estágio para solicitador, o Tribunal Administrativo do Círculo (TAC) de Lisboa recusou a aplicação do artigo 18.º, n.º 4, do respectivo Regulamento com fundamento na sua ilegalidade, por violação do artigo 48.º, n.º 4, do Decreto-Lei 483/76, de 19 de Junho (cf. fls. 141 e segs., que aqui se dão por reproduzidas);
b) Por sentença de 16 de Janeiro de 1990, transitada em julgado em 1 de Fevereiro seguinte (documento a fl. 146), proferida no recurso n.º 8211, em que foram recorrente Maria de Assunção Morgado Ferreira e recorrido o 3.º grupo orientador de estágio para solicitador, o TAC de Lisboa recusou a aplicação das normas constantes dos artigos 16.º, n.º 1, e 18.º, n.os 1, 3 e 4, daquele Regulamento com fundamento na respectiva ilegalidade, por violação da norma, de hierarquia superior, do artigo 48.º, n.º 4, do Decreto-Lei 483/76, de 19 de Junho (cf. documento a fls. 147 e segs., que se dá por reproduzido);
c) No recurso n.º 8220, do TAC de Lisboa, em que foram recorrente Jorge Luís Perestrelo de Vasconcelos Blom e recorrido o 3.º grupo orientador de estágio para solicitador, por sentença de 15 de Março de 1990, transitada em julgado em 3 de Abril de 1990 (documento a fl. 151), o mesmo Tribunal recusou também, com fundamento em ilegalidade, a aplicação das normas dos n.os 1 e 4 do artigo 18.º daquele Regulamento, por violação das normas dos artigos 42.º e 48.º do Decreto-Lei 483/76, já citado;
d) Nos exactos termos e sentido da sentença mencionada na alínea anterior decidiu também o TAC de Lisboa no recurso n.º 8223, em que foram recorrente Ana Cristina Carvalho Vieira da Silva e recorrido o 11.º grupo orientador de estágio para solicitador, por sentença de 21 de Março de 1990 (cf. fls. 165 e segs., que aqui se dão por reproduzidas), transitada em julgado em 5 de Abril do mesmo ano (documento a fl. 164);
e) Nos mesmos termos e sentido mencionados na alínea c) decidiu ainda aquele Tribunal no recurso n.º 8224, em que foram recorrente Joaquim Luís Oliva de Mata Artur e recorrido o 19.º grupo orientador de estágio para solicitador, por sentença de 22 de Março de 1990 (documento a fls. 177 e segs., que aqui se dá por reproduzido), transitada em julgado em 18 de Abril seguinte;
f) Em todos os recursos mencionados nas alíneas anteriores os recorrentes eram candidatos a solicitador, tendo frequentado o estágio para solicitador no ano de 1987-1988 (documentos n.os 2 a 6);
g) O acto impugnado em cada um dos recursos foi o acórdão proferido, no final do estágio, pelo competente grupo orientador de estágio, que não considerou apto o respectivo recorrente (documentos n.os 2 a 6);
h) Tais acórdãos tiveram por fundamento de direito as normas do Regulamento do Estágio para Solicitador, as quais, por ilegalidade, foram recusadas pelo TAC de Lisboa, que, por isso, os anulou (documentos n.os 2 a 6);
i) Candidatos houve que não impugnaram contenciosamente os acórdãos dos competentes grupos de estágio, que os excluíram também do mesmo estágio, como resultado da aplicação das mesmas normas (documento n.º 7).
3 - Infere-se da análise da matéria de facto exposta que o TAC de Lisboa recusou, pelo menos em três sentenças, todas transitadas em julgado, a aplicação das normas constantes dos n.os 1 e 4 do artigo 18.º do Regulamento do Estágio para Solicitador, homologado por despacho do Ministro da Justiça de 15 de Março de 1988, por contrariarem normas de hierarquia superior constantes dos artigos 42.º e 48.º do Decreto-Lei 483/76, de 19 de Junho.
Como, essencialmente, se saliente nas três sentenças do TAC de Lisboa, referidas nas alíneas c), d) e e) da matéria de facto, o Regulamento do Estágio para Solicitador, que é, assim, um acto normativo do Governo, de natureza regulamentar, proferido no exercício da função administrativa, reconhece, no n.º 1 do seu artigo 18.º, a um júri, que criou, competência para proceder à classificação da prova escrita dos candidatos a solicitador e atribui a esta prova, no n.º 4 do mesmo preceito, efeitos eliminatórios, desde que a respectiva classificação seja inferior a 10 valores, o que contraria frontalmente o disposto nos artigos 42.º e 48.º do Estatuto dos Solicitadores, em que a formação complementar do estágio é estritamente confiada ao grupo orientador de estágio, que, nos termos do último normativo citado, tem competência exclusiva para se pronunciar sobre a aptidão de cada candidato.
Daí que nas referidas três sentenças, face ao princípio constitucional da hierarquia das fontes das normas, foi recusada a aplicação das normas dos n.os 1 e 4 do artigo 18.º do Regulamento do Estágio para Solicitador, por ilegalidade, já que contrariam as normas dos artigos 42.º e 48.º do Estatuto dos Solicitadores, aprovado pelo Decreto-Lei 483/76, de 19 de Junho, que são normas superiores.
Assim sendo, e dado o disposto na alínea i) do n.º 1 do artigo 26.º e no n.º 1 do artigo 11.º, ambos do Decreto-Lei 129/84, de 27 de Abril (ETAF), com referência ao n.º 1 do artigo 66.º do Decreto-Lei 267/85, de 16 de Julho (LPTA), acordam em declarar, com força obrigatória geral, a ilegalidade das normas constantes dos n.os 1 e 4 do artigo 18.º do Regulamento do Estágio para Solicitador, homologado por despacho do Ministro da Justiça de 15 de Março de 1988, por contrariarem as normas de hierarquia superior dos artigos 42.º e 48.º do Estatuto dos Solicitadores, aprovado pelo Decreto-Lei 483/76, de 19 de Junho.
E porque candidatos houve que não impugnaram contenciosamente os acórdãos dos grupos orientadores do estágio que os excluíram do respectivo estágio com fundamento nas mesmas normas regulamentares, acordam, ainda, nos termos do n.º 3 do artigo 11.º do ETAF, sem prejuízo do disposto no n.º 4 do mesmo preceito, tendo em vista a repercussão equitativa dos efeitos da ilegalidade de tais normas relativamente aos candidatos impugnantes e não impugnantes, em reportar os efeitos da declaração desta ilegalidade a 15 de Março de 1988.
Sem custas, por não serem devidas.
Lisboa, 25 de Fevereiro de 1992. - António Fernando Samagaio - Artur Joaquim Maurício - Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida.