Assento
Acordam, em plenário, no Supremo Tribunal de Justiça:
João Silvino Fernandes e mulher, Maria Daniela Fernandes Loja Fernandes, interpuseram recurso para o tribunal pleno, nos termos do artigo 763.º do Código de Processo Civil, do Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Outubro de 1985, proferido no recurso de revista em que eram recorrentes e recorridos Glória Albertina Cunha da Fonseca Ferreira, Francisco da Fonseca Ferreira e mulher, Maria Adelaide Morão de Paiva Chichorro Ferreira, Maria Helena da Fonseca Ferreira Calheiros Esculca Mendes de Abreu, Glória Cunha da Fonseca Ferreira Tavares Pinto e marido, Rogério Tavares Pinto, e Maria Cândida da Fonseca Ferreira de Oliveira e marido, António Rodrigues Matias de Oliveira Júnior, por ter decidido que é nulo o contrato-promessa de compra e venda de terrenos compreendidos em loteamento celebrado na vigência do Decreto-Lei 46673, de 29 de Novembro de 1965, sem ter sido obtida a licença do loteamento exigida pelo artigo 10.º, n.º 1, desse diploma, o que está em manifesta oposição com o Acórdão deste mesmo Supremo Tribunal de 31 de Março de 1981, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 305, a p. 288, que julgou válido tal contrato.
A secção, consoante o acórdão de fl. 25 a fl. 26, reconheceu a existência da oposição e mandou prosseguir o recurso.
Os recorrentes encerraram a sua alegação com as seguintes conclusões:
1.ª Os recorrentes celebraram um contrato-promessa por escritura particular a 23 de Abril de 1969 sobre dois lotes de terreno a destacar de uma propriedade sita na Lomba do Chão do Bispo, em Coimbra;
2.ª Este contrato-promessa fora outorgado em plena vigência do Decreto-Lei 46673, de 29 de Novembro de 1965, o qual foi revogado pelo Decreto-Lei 289/73, de 6 de Junho;
3.ª Este último decreto-lei veio consagrar a nulidade do contrato-promessa de compra e venda sobre quaisquer fraccionamentos relativos a terrenos compreendidos em loteamento, desde que não se indiquem o número e a data do alvará que aprovar o loteamento;
4.ª Logo, até pelo que se afirma no exórdio do mesmo decreto-lei, se conclui, de suma evidência, que a lei, até entrar em vigor, não era tão severa, por, além do mais, não ferir da nulidade os actos de fraccionamento a que faltarem aqueles pressupostos;
5.ª Assim, a lei anterior aplicava uma multa, vindo a lei nova ferir de nulidade, sem se aplicar aos contratos anteriores;
6.ª Portanto, ao ter-se considerado o referido contrato nulo e de nenhum efeito, violaram-se os comandos ínsitos naquele Decreto-Lei 46673, de 29 de Novembro de 1965.
Os recorridos contra-alegaram, sustentando, em síntese e conclusivamente:
a) Não existir oposição entre os acórdãos em apreço, devendo, por isso, considerar-se findo o recurso;
b) Se assim não se entender, deve lavrar-se assento em que se decida que o contrato-promessa de compra e venda de terrenos compreendidos no processo de loteamento antes de obtida a respectiva licença ou alvará, celebrado na vigência do artigo 10.º do Decreto-Lei 46673, de 29 de Novembro de 1965, é nulo, independentemente da natureza do título que integra o respectivo negócio jurídico.
O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto deste Supremo emitiu douto parecer no sentido da revogação do acórdão recorrido e da prolação de assento nos moldes seguintes:
Na vigência do Decreto-Lei 46673, de 29 de Novembro de 1965, são válidos os negócios jurídicos de compra e venda, bem como a promessa de terrenos compreendidos em loteamento sem alvará, excepto quando no momento da celebração do contrato houvesse impossibilidade de obtenção de alvará, por haver lei, regulamento ou acto administrativo impeditivo da sua missão.
Com os vistos cumpre decidir.
Nos termos do n.º 3 do artigo 766.º do Código de Processo Civil, o tribunal pleno não está impedido de decidir em sentido contrário ao acórdão da secção que reconheceu a existência da oposição que serve de fundamento ao recurso.
Assim, há que reexaminar a questão preliminar, tanto mais que os recorridos, na sua contra-alegação, defendem não existir oposição entre os julgados em confronto, dado que no acórdão recorrido se está perante um contrato-promessa de compra e venda de terrenos em loteamento clandestino, ao passo que no acórdão-fundamento se tratava de idêntico contrato relativo, porém, a uma moradia num conjunto turístico legamente aprovado.
Não assiste razão aos recorridos.
Efectivamente, preceituando o n.º 1 do artigo 10.º do Decreto-Lei 46673, de 29 de Novembro de 1965, que «qualquer forma de anúncio de venda e a venda ou promessa de venda de terrenos, com ou sem construção, compreendidos em loteamento só poderão efectuar-se depois de obtida a licença a que se referem os artigos antecedentes e de terem sido observados os condicionamentos nela estabelecidos», a questão fundamental de direito que se debate nestes autos é a de saber se são válidos os contratos-promessa de compra e venda de terrenos que, no domínio do citado decreto-lei, hajam sido celebrados antes de obtida a respectiva licença de loteamento.
Ora, quer no caso do acórdão recorrido, quer no Acórdão de 31 de Março de 1981, ambos proferidos sob a égide do mencionado Decreto-Lei 46673, não existia em qualquer das situações concretas neles tratadas licença de loteamento. A única diferença que se verifica entre os dois acórdãos é que, no caso do acórdão-fundamento, estava aprovado pela câmara municipal respectiva e pela Direcção-Geral dos Serviços de Urbanização o conjunto turístico onde se situava a moradia em causa e que, além disso, fora requerida a licença de loteamento. Estas circunstâncias não descaracterizam, porém, a oposição que, na verdade, existe entre esses acórdãos e que é bem patente.
Com efeito, faltando a licença de loteamento nos contratos-promessa de compra e venda, que nesses acórdãos estavam em apreciação, o acórdão recorrido entendeu que essa falta determinava a nulidade do contrato e assim julgou, enquanto o acórdão-fundamento entendeu que a referida falta não afectava o contra-promessa, julgando-o, por isso, válido.
Nesta conformidade, existe a invocada oposição dos acórdãos em análise, proferidos no domínio da mesma legislação, no tocante à questão fundamental de direito atrás enunciada, motivo por que se passa a conhecer do objecto do recurso.
E, assim:
Na pendência dos presentes autos este Supremo Tribunal proferiu o assento de 21 de Julho de 1987, que está publicado no Diário da República, 1.ª série, de 30 de Outubro de 1987, e que é do seguinte teor:
No domínio da vigência do Decreto-Lei 46673, de 29 de Novembro de 1965, a falta de licença de loteamento não determina a nulidade dos contratos de compra e venda de terrenos, com ou sem construção, compreendida em loteamento.
Com a força obrigatória geral que lhe advém do artigo 2.º do Código Civil, reporta-se esse assento, na sua letra, apenas aos contratos de compra e venda nele referidos, mas, apesar disso, poderá pensar-se que o mesmo abrange também os respectivos contratos-promessa e que, consequentemente, o caso sub judice deverá subsumir-se, pura e simplesmente, à doutrina do dito assento, como aliás já se decidiu, em caso igual, no Acórdão deste Supremo de 22 de Outubro de 1987, proferido nos autos de revista n.º 74994 da 2.ª Secção (v. Boletim do Ministério da Justiça, n.º 370, p. 536), ficando, desta sorte, prejudicada a prolação do assento a que visa o presente recurso para o tribunal pleno.
Só que esta solução, perfeitamente aceitável em sede de revista, não é, só por si, de subscrever no específico contexto deste processo, cujo fim último - reconhecida a oposição dos acórdãos em confronto - é, como impõe o n.º 3 do artigo 768.º do Código de Processo Civil, a formulação de assento que resolva o conflito jurisprudencial existente.
Com efeito, a adopção da referida solução, sem que se tirasse assento, levaria à revogação do acórdão recorrido, mas tal decisão, por carecida da força obrigatória geral dos assentos e vinculativa apenas entre as partes, não evitaria que, no futuro, pudessem surgir novos recursos para o tribunal pleno com o mesmo objecto do presente, pois nada impediria que, a propósito dos contratos-promessa como o dos autos, continuem a ser proferidas decisões contraditórias: umas, considerando válidos esses contratos, como a do supracitado acórdão e a que viesse aqui a ser proferida no mesmo sentido, mas sem assento; outras, decretando a nulidade de tais contratos, como a do acórdão recorrido.
Seria, em suma, o renascer da mesmíssima questão fundamental de direito que agora é posta à consideração do tribunal pleno, e daí que, não contemplando o assento de 21 de Julho de 1987, directa e frontalmente, o caso do contrato-promessa e existindo, como ficou dito, a oposição entre o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento, seja necessário proferir assento para resolver o conflito em causa.
Vejamos pois:
O artigo 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei 46673, de 29 de Novembro de 1965, prescreve, em pé de igualdade, as exigências nele expressas, quer para a venda, quer para a promessa de venda de terrenos compreendidos em loteamento.
Por seu turno, as razões justificativas do assento de 21 de Julho de 1987, em cuja formulação se alude somente aos contratos de compra e venda dos terrenos nele mencionados - razões essas que são, em síntese, a de a nulidade se mostrar pouco adequada e até repelida por aquele decreto-lei -, colhem inteiramente para o simples contrato-promessa e, portanto, injusto seria que o caso dos autos, em que se discute um contrato-promessa, não tivesse o mesmo tratamento que o dito assento preconiza para o contrato prometido.
Reforça este entendimento, de resto, esse próprio assento, que, no seu discorrer e fundamentação, trata, para o efeito sem preocupações de distinção e antes da mesma forma, o contrato de compra e venda e o contrato-promessa, ao aludir indiferentemente a um e a outro, sendo curiosamente de notar que os acórdãos em oposição que levaram à prolação do referido assento versavam justamente casos de contratos de compra e venda (acórdão recorrido) e de simples promessa de venda (acórdão-fundamento), o que mais acentua o espírito do mesmo assento no sentido de abranger as suas modalidades contratuais.
Assim, dado relevarem no caso vertente as mesmas razões justificativas do assento de 21 de Julho de 1987, na medida em que se ajustam perfeitamente aos contratos-promessa de compra e venda dos terrenos a que se refere o artigo 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei 46673, conclui-se não ser nulo o contrato-promessa de compra e venda em causa, celebrado entre recorrentes e recorridos no dia 23 de Abril de 1969.
Nestes termos, concede-se provimento ao recurso e, em consequência, revoga-se o acórdão recorrido, bem como as decisões das instâncias, na parte em que julgaram nulo o referido contrato-promessa, determinando-se que a 1.ª instância conheça e decida as restantes questões que estão suscitadas pelas partes no respectivo processo.
E, em conformidade com o disposto no n.º 3 do artigo 768.º do Código de Processo Civil, formula-se o seguinte assento:
No domínio da vigência do Decreto-Lei 46673, de 29 de Novembro de 1965, a falta de licença de loteamento não determina a nulidade dos contratos-promessa de compra e venda de terrenos, com ou sem construção, compreendidos no loteamento.
Custas pelos recorridos.
Lisboa, 3 de Outubro de 1989. - José Domingues - Manso Preto - Gama Prazeres - Gama Vieira - Alcides de Almeida - Salviano de Sousa - Rodrigues Gonçalves - Cesário Dias Alves - José Saraiva - José Calejo - Eliseu Figueira - Barbosa de Almeida - Mendes Pinto - Mário Afonso - Vasco Tinoco - Villa Nova - Almeida Ribeiro - Licínio Caseiro - Pinto Ferreira - Barros de Sequeiros - Jorge Vasconcelos - Lopes de Melo - Ferreira da Silva - Baltazar Coelho - Sousa Macedo - Ferreira Vidigal - Brochado Brandão - Maia Gonçalves - Ferreira Dias - Castro Mendes - Meneres Pimentel (vencido, porque o assento de 21 de Julho de 1987 retirou a possibilidade legal de nova interpretação; com efeito, aquele assento já resolvia a presente situação jurídica) - Soares Tomé (votei nos termos do voto do Exmo. Sr. Conselheiro Dr. Meneres Pimentel) - Cura Mariano (vencido, nos termos do voto do Exmo. Conselheiro Meneres Pimentel) - Fernandes Fugas (vencido, pelas mesmas razões por que votei vencido no Acórdão deste Supremo Tribunal de 21 de Julho de 1987, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 369, a pp. 199 e segs., de que emergiu o assento da referida data, razões essas para que aqui se remete) - Solano Viana (vencido, por idênticas razões às aduzidas no voto dado no assento de 21 de Julho de 1987, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 369, a p. 199).