Assento
Acordam, em pleno, no Supremo Tribunal de Justiça:
Moisés Lopes e mulher, Laurinda Marques Queirós, recorrem para o tribunal pleno do acórdão deste Supremo Tribunal preferido em 3 de Maio de 1984 (fl. 11), alegando existir oposição sobre a mesma questão fundamental de direito entre tal acórdão e o Acórdão, também deste Supremo Tribunal, de 11 de Junho de 1981, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 308, p. 222, dado este acórdão ter decidido que a notificação para exercer o direito de preferência deve ser feita a ambos os cônjuges, enquanto aquele acórdão se pronunciou no sentido de ser dispensável a comunicação ao cônjuge mulher para exercer o direito de preferência.
O acórdão a fl. 26 reconheceu verificarem-se requisitos ou pressupostos do recurso para o tribunal pleno estabelecidos no artigo 763.º do Código de Processo Civil (CPC), designadamente a invocada oposição entre o acórdão recorrido e o Acórdão de 11 de Junho de 1981, pelo que ordenou o prosseguimento dos termos do recurso.
Pelos recorrentes foi apresentada alegação, na qual, a concluir, dizem dever revogar-se o acórdão recorrido, para se lavrar assento em que se fixe que o princípio da igualdade jurídica dos cônjuges, consagrado no n.º 3 do artigo 36.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), impunha, mesmo antes da modificação introduzida no artigo 1463.º do CPC pelo Decreto-Lei 368/77, de 3 de Setembro, que a notificação para o exercício do direito de preferência fosse feita a ambos os cônjuges, pelos fundamentos seguintes:
À recorrente mulher, como titular do direito de preferência que tem na compra do prédio vendido, por ser sua rendeira, não foi feita a notificação, judicial ou extrajudicial, prevista no n.º 2 do artigo 25.º do Decreto-Lei 201/75, de 15 de Abril, do projecto do negócio.
De facto, sendo tal notificação para preferir uma verdadeira declaração negocial receptícia, a consubstanciar uma verdadeira proposta contratual, correspondente ao projecto da venda, que o obrigado à preferência leva ao conhecimento do preferente, é evidente que não releva tal falta a circunstância de se ter dado como provado ter a recorrente mulher recebido a carta que foi dirigida tão-só ao recorrente marido e conhecido o seu conteúdo.
De igual modo, não têm qualquer valor as declarações que a recorrente mulher fez ao réu comprador de que não queria adquirir o prédio, por a comunicação efectuada por este interessado na aquisição, a menos que tivesse intervindo como mandatário dos vendedores, não passar de pura informação.
É que, enquanto não houver a notificação por parte do vinculado à preferência, feita directamente ou por meio de mandatário, não se desencadeia o dever de agir que o n.º 2 do artigo 416.º do Código Civil, em geral, lança sobre o preferente, nem começa a correr o prazo da caducidade.
Na verdade, tendo a declaração de preferência, como declaração negocial que é, um destinatário, não poderá tornar-se eficaz em relação a quem não é dirigida.
E podendo a declaração de preferência formar, pelo seu encontro com a notificação para preferir, um verdadeiro contrato, definitivo, se a tanto não obviassem questões de forma relativas à manifestação de vontade, mais evidente se torna ainda que jamais a recorrente mulher poderia vir a aceitar, comprando, algo que não lhe foi oferecido, para preferir.
O princípio da igualdade jurídica dos cônjuges, consagrado constitucionalmente, exigia, mesmo antes da modificação introduzida no artigo 1463.º do CPC pelo Decreto-Lei 368/77, de 3 de Setembro, que a notificação para o exercício do direito de preferência fosse feita a ambos os cônjuges.
Deve, pois, julgar-se a acção procedente quanto à A. mulher, reconhecendo-se-lhe o direito de se substituir aos réus compradores na aquisição do prédio, com as consequências legais.
Na respectiva alegação os recorridos, António Inácio Gomes e outros, insistem pela inexistência da oposição entre os acórdãos e dizem que, no caso de assim se não entender, deve ser lavrado assento em que se decida que no domínio da vigência da anterior redacção do artigo 1463.º do CPC era dispensável comunicar directa e expressamente à mulher preferente o projecto da venda, bastando tão-só levar ao conhecimento dela tal projecto, por forma que ficasse a ter perfeito conhecimento dele e, consequentemente, pudesse decidir, com conhecimento de causa, se devia ou não preferir.
O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto, no seu parecer, diz que não há oposição entre os acórdãos do Supremo justificativa da formulação de «assento» e que, caso se entenda diferentemente, o Supremo deve resolver o conflito por assento, para o qual propõe a seguinte formulação:
O princípio da igualdade jurídica dos cônjuges, consagrado no artigo 36.º, n.º 3, da CRP, impunha, mesmo antes da modificação introduzida no artigo 1463.º do CPC pelo Decreto-Lei 368/77, de 3 de Setembro, que a notificação para o exercício do direito de preferência fosse feita a ambos os cônjuges.
Tudo visto, cumpre decidir.
O reconhecimento da existência de oposição entre os acórdãos não vincula o tribunal pleno (n.º 3 do artigo 766.º do CPC), mas, pelas razões constantes do acórdão da secção preferida a fl. 26, entende-se que se verifica esse pressuposto do recurso para o tribunal pleno.
Está em causa neste recurso saber se, pertencendo o direito de preferência a marido e mulher, como arrendatários do prédio rústico, a comunicação do projecto de venda de tal prédio e das cláusulas do respectivo contrato deve ser feita a ambos, marido e mulher, ou é dispensada em relação à mulher.
No acórdão recorrido entende-se ser perfeitamente dispensável a comunicação à mulher preferente, visto assim o dispor o n.º 1 do artigo 1463.º do CPC, na redacção em vigor ao tempo dos factos referidos nos autos, e no acórdão em oposição decidiu-se que a comunicação a fazer ao titular do direito de preferência, tanto através da notificação judicial indicada no citado artigo 1463.º como de notificação extrajudicial, deve ser feita a ambos os cônjuges.
Estabelecia-se no artigo 1463.º, n.º 1, do CPC que, se o direito de preferência pertencer em comum aos cônjuges, é pedida a notificação do marido; mas, não querendo este preferir ou tendo perdido o direito, pode também exercê-lo a mulher, se estiver pendente acção de divórcio, de declaração de nulidade ou anulação de casamento, de separação de pessoas e bens ou de simples separação de bens, devendo, nestes casos, pedir-se que ela seja notificada.
Posteriormente, por virtude do Decreto-Lei 368/77, de 3 de Setembro, tal artigo 1463.º do CPC passou a estar assim redigido:
Se o direito de preferência pertencer em comum aos cônjuges, é pedida a notificação de ambos, podendo qualquer deles exercê-lo.
Como à data em que ocorreram as comunicações do projecto de venda, referidas em ambos os acórdãos - 7 de Setembro de 1976, no acórdão em oposição, e 25 de Janeiro de 1977, no acórdão recorrido -, ainda não estava em vigor o citado Decreto-Lei 368/77, que alterou a redacção do artigo 1463.º, n.º 1, do CPC, é a primitiva redacção deste preceito legal que é de aplicar.
Determina-se aí, como se disse, que, quando o direito de preferência pertencer em comum aos cônjuges, apenas há que pedir a notificação do marido, coadunando-se com tal disposição legal a orientação do acórdão recorrido no sentido de ser dispensável a comunicação à mulher.
Contudo, a CRP, que entrou em vigor em 25 de Abril de 1976, no seu artigo 36.º, n.º 3, veio estabelecer o princípio da igualdade jurídica dos cônjuges e, por força do disposto no artigo 18.º, n.º 1, da mesma CRP, este princípio teve aplicação imediata.
Com efeito, diz-se nesse artigo 18.º, n.º 1, da CRP que os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.
Temos, assim, que, por força do referido princípio da igualdade jurídica dos cônjuges, o artigo 1463.º, n.º 1, do CPC, ao dispensar a comunicação da venda à mulher preferente, está afectado de inconstitucionalidade e, por aplicação de tal princípio, deve-se considerar revogado nessa parte, sendo de exigir a comunicação a ambos os cônjuges.
Na verdade, o direito anterior à entrada em vigor da CRP apenas se mantém desde que não seja contrário à mesma CRP ou aos princípios nela consignados (artigo 293.º, n.º 1, da CRP).
Sendo a norma do artigo 1463.º, n.º 1, do CPC, na parte referida, contrária a princípio constitucional, esta norma não pode manter-se após a entrada em vigor da CRP.
Tal inconstitucionalidade foi reconhecida pelo legislador, que, pelo Decreto-Lei 368/77, de 3 de Setembro, veio alterar o artigo 1463.º do CPC, estabelecendo a necessidade de a comunicação para o exercício do direito de preferência ser feita a ambos os cônjuges.
É, assim, de consagrar, por assento, a orientação constante do Acórdão de 11 de Junho de 1981, revogando-se o acórdão recorrido, na parte em que decidiu ser dispensável a comunicação da venda à mulher preferente.
Procede, assim, o recurso, mas daí não resulta a revogação da decisão final do acórdão recorrido de negar a revista do acórdão da relação que confirmara a sentença da absolvição dos réus do pedido.
É que a decisão do acórdão recorrido fundamentou-se também na circunstância de ser de rejeitar a alegada falta da comunicação relativamente à mulher, dado esta ter tomado conhecimento dos elementos essenciais do contrato e ter-lhe sido proporcionado o exercício do direito de preferência.
Verifica-se a hipótese prevista no n.º 3 do artigo 768.º do CPC, onde se dispõe que deve ser lavrado assento, embora a resolução do litígio não tenha utilidade alguma para o caso concreto em litígio, por ter de subsistir a decisão do acórdão recorrido, qualquer que seja a doutrina do assento.
Por todo o exposto, concede-se provimento ao recurso, embora não se altere a decisão final do acórdão recorrido, e formula-se o seguinte assento:
Com a entrada em vigor da CRP de 1976, e mesmo antes da modificação introduzida no artigo 1463.º do CPC pelo Decreto-Lei 368/77, de 3 de Setembro, a notificação para o exercício do direito de preferência deve ser feita a ambos os cônjuges, por aplicação do princípio da igualdade jurídica estabelecido no artigo 36.º, n.º 3, da CRP.
Custas pelos recorridos.
Lisboa, 25 de Junho de 1987. - João Solano Viana - Manuel Alves Peixoto - António Júdice de Magalhães Barros Baião - Licínio Adalberto Vieira de Castro Caseiro - Aurélio Pires Fernandes Vieira - Júlio Carlos Gomes dos Santos - José Alfredo Soares Manso Preto - Fernando Pinto Gomes - Manuel Augusto Gama Prazeres - Cláudio César Veiga da Gama Vieira - António de Almeida Simões - João Alcides de Almeida - Joaquim José Rodrigues Gonçalves - José Fernando Quesada Pastor - Orlando de Paiva Vasconcelos de Carvalho - Silvino Alberto Villa Nova - Cesário Dias Alves - Jorge de Araújo Fernandes Fugas - Pedro Augusto Lisboa de Lima Cluny [vencido, por entender não haver oposição entre os dois acórdãos, visto serem diferentes as situações de facto.
Efectivamente, no acórdão-fundamento de 11 de Junho de 1981, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 308, p. 222, não se deu como provado que a mulher do A. tivesse tido conhecimento, com este, da comunicação que ao marido foi feita sobre o projecto de venda.
Ao contrário, no acórdão recorrido provou-se que, embora a comunicação tivesse sido dirigida apenas ao marido, a mulher tomou dela conhecimento simultaneamente com ele. Daí que se tenha entendido ser dispensável a existência de duas comunicações.
Aliás, isto mesmo veio a ser «sentido» no presente acórdão, quando, no final, se veio a reconhecer a impossibilidade de alterar a decisão do acórdão recorrido, por este haver tido como fundamento - também (?)- o facto de a mulher ter tido conhecimento dos elementos essenciais do contrato e de lhe ter sido proporcionado o exercício do direito de preferência] - António Carlos Vidal de Almeida Ribeiro (votei o assento, mantendo, contudo, não haver oposição entre os acórdãos indicados como tendo decidido diferentemente) - Augusto Tinoco de Almeida (vencido quanto à existência da oposição exigida pelo artigo 763.º do CPC, uma vez que não existe a precisa identidade das situações de facto) - Frederico Carvalho de Almeida Batista (vencido, em conformidade com o voto de vencidos dos meus ilustres antecessores) - Joaquim Roseira de Figueiredo (vencido quanto à questão da existência da oposição que serve de fundamento ao recurso, votei, no entanto, o assento) - António Pereira de Miranda (vencido, conforme voto anterior) - José Manuel Menéres Sampaio Pimentel (vencido quanto à oposição dos acórdãos e pelas razões referidas pelo Exmo. Conselheiro Pedro Cluny, votei, no entanto, o assento) - Mário Sereno Cura Mariano (vencido quanto à oposição dos acórdãos, votei, porém, o assento)