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Acórdão 91/2009, de 16 de Março

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Sumário

Não julga inconstitucional a norma do artigo 203.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, quando interpretada no sentido de impedir que a entidade administrativa recorrida argua, em determinadas condições, a falta de patrocínio obrigatório a que tenha dado causa, na fase de alegações do recurso contencioso.

Texto do documento

Acórdão 91/2009

Processo 276/08

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional

I - Relatório

1 - Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal Administrativo, em que é recorrente o Presidente do Conselho Directivo da Escola Superior de Teatro e Cinema e recorrida Regina Paula da Silva Teixeira, foi interposto recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), para apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 203.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (CPC), quando interpretado no sentido de impedir que o recorrente arguisse a falta de patrocínio obrigatório na fase de alegações do recurso contencioso e que, em qualquer caso, o tribunal a quo estava impedido de conhecer oficiosamente da questão mesmo face a tal arguição, por violação do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva (artigo 20.º da Constituição).

2 - O presente recurso emerge de recurso contencioso, ao abrigo da então vigente Lei de Processo nos Tribunais Administrativos (LPTA), que Regina Paula da Silva Teixeira intentou contra o Presidente do Conselho Directivo da Escola Superior de Teatro e Cinema e o Estado Português, na pessoa do Secretário de Estado do Ensino Superior, pedindo a anulação de actos praticados por aquela Escola (relativos a procedimento de equivalência de disciplina e realização de exames), bem como a condenação do Estado

no pagamento de uma indemnização.

Por sentença do 1.º Juízo Liquidatário do Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa, foi decidido rejeitar o recurso na parte relativa ao pedido de indemnização e, quanto ao pedido de anulação, foi declarado juridicamente inexistente o acto de homologação da

entidade recorrida.

Notificado da sentença, o Presidente do Conselho Directivo da Escola Superior de Teatro e Cinema veio, em requerimento subscrito por advogado, arguir a nulidade das alegações apresentadas, por terem sido subscritas pela própria autoridade recorrida, em desrespeito do disposto no artigo 26.º, n.º 1, da LPTA.

À cautela, interpôs também recurso da sentença.

Por despacho do TAF de Lisboa foi indeferida a nulidade arguida.

Inconformado, o Presidente do Conselho Directivo da Escola Superior de Teatro e

Cinema, interpôs recurso deste despacho.

Por acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, ora recorrido, foi decidido negar provimento ao recurso do despacho que indeferiu a arguição de nulidade e negar provimento ao recurso da sentença, confirmando-a.

É deste acórdão, na parte em que indeferiu a arguição de nulidade, que vem interposto

o presente recurso de constitucionalidade.

3 - O acórdão recorrido tem o seguinte teor, na parte relevante:

«1. A situação que se nos apresenta pode ser assim desenhada: logo que notificada da sentença que declarou inexistente o acto impugnado, a Autoridade Recorrida apresentou-se em juízo a arguir a nulidade do processado a partir da apresentação das suas alegações alegando que estas tinham sido subscritas por ela própria e não, como deviam, por advogado ou licenciado em direito, arguição que foi indeferida por ter sido entendido que - por força do disposto no art. 203.º, n.º 2, do CPC - a nulidade não podia ser arguida pela parte que lhe deu causa.

A Recorrente, porém, não aceita esta decisão não só porque considera que nada a impedia de arguir a referida nulidade como também porque entende que, independentemente da sua arguição, cumpria ao Tribunal conhecer dela oficiosamente.

Mas, diga-se desde já, que não tem razão.

Em primeiro lugar porque é indiscutivelmente verdade que «não pode arguir a nulidade a parte que deu causa» (n.º 2 do art. 203.º do CPC) do que resultava a impossibilidade de arguição, por parte da Autoridade Recorrida, da nulidade das suas alegações por ter sido ela quem lhe deu causa. Com efeito, como ensina o Prof. J. A. dos Reis não seria "decoroso admitir que invoque a nulidade a parte a quem a infracção é imputável, a parte que contribuiu para que a lei deixasse de ser observada e cumprida, O contrário equivaleria a consentir que a parte tirasse proveito da sua própria malícia ou, em linguagem popular, fizesse o mal e a caramunha." - Comentário ao CPC, vol. 2.º, p.

495.

Depois, porque, ainda que de conhecimento oficioso (atenta a sua possibilidade de influir no exame e decisão da causa), essa nulidade não podia ser sanada por iniciativa do Tribunal já que, proferida a sentença, a sua sanação se traduziria na violação de uma disposição destinada a promover um correcto e justo relacionamento entre as partes e destas com o Tribunal. Com efeito, se, por ignorância ou má fé, a parte subscrevesse as suas peças processuais e, tendo perdido a causa, viesse suscitar essa irregularidade com vista a alcançar um novo julgamento e o Tribunal acedesse a esse pedido promovendo a regularização processual com a anulação dos termos do processo posteriores à sua prática isso significaria dar cobertura ao uso abusivo da lei processual.

É certo que se o Tribunal se tivesse apercebido dessa irregularidade logo que a mesma foi cometida poderia, e deveria, ter promovido o seu remédio mas o certo é que se não apercebeu e proferiu sentença. Se assim foi não é aceitável que a Recorrente, tendo visto ser declarado inexistente o seu acto, venha agora, por caminhos ínvios, tentar uma

nova oportunidade de obter ganho de causa.

E esta leitura do mencionado art. 203.º, n.º 2, do CPC não atenta contra o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva consagrada no art. 20.º da CRP, uma vez que a mesma em nada contribuiu para impedir ou dificultar o exercício dos direitos de defesa

da Recorrente.

Termos em que se nega provimento a este recurso.» 4 - O recorrente apresentou alegações, onde conclui o seguinte:

«1. O direito de acesso ao direito encontra-se consagrado no art. 20.º da Constituição

da República Portuguesa.

2 - Ali se consagra, nomeadamente, o direito à informação e consulta jurídica e o direito à assistência por advogado (n.º 2 do referido artigo).

3 - O direito a ser acompanhado em juízo por um advogado constitui um corolário da tutela jurisdicional efectiva, não se cingindo a uma mera formalidade. De facto, as partes dificilmente conseguem ali efectuar uma defesa cabal e objectiva dos respectivos

direitos sem apoio especializado.

4 - Neste sentido abona a importância relevada pelo Código de Processo Civil à intervenção do advogado no processo (veja-se a questão da suspensão da instância), a obrigatoriedade da notificação da parte para constituir advogado - quando obrigatório - e a natureza das sanções aplicadas para a falta de cumprimento desta notificação.

5 - A Constituição remete para a lei as situações em que o patrocínio judicial é obrigatório, pelo que não poderemos deixar de surpreender nessas situações, uma verdadeira emanação ao direito fundamental ao patrocínio forense.

6 - No caso sub judice o patrocínio era obrigatório (art. 26.º, n.º 1, da LPTA) mas o recorrente assinou ele próprio as alegações, sem que oficiosamente tivesse sido ordenada a sua notificação para constituir advogado como o impunha o art. 33.º do

CPC.

7 - A omissão desse despacho constitui nulidade.

8 - O douto acórdão recorrido entendeu que o n.º 2 do art. 203.º do Código de Processo Civil não permite a invocação pelo recorrente de tal questão, por -

alegadamente - lhe ter dado azo.

9 - Esta interpretação do art. 203.º, n.º 2, é inconstitucional, por violação do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, nos termos do art. 20.º da Constituição.» 5 - A recorrida contra-alegou, concluindo da forma seguinte:

«a) O recurso contencioso de anulação não foi concebido com um verdadeiro processo de "partes", pois, enquanto que para o recorrente o patrocínio judiciário por advogado é obrigatório (cf. artigo 5.º do LPTA), já a autoridade recorrida poderá praticar os actos referenciados no n.º 1 do artigo 26.º da LPTA não só através de advogado, como através de licenciado em Direito com funções de apoio jurídico designado para aquele efeito, sendo certo que o n.º 2 do referido artigo impõe, até, que a resposta ao recurso só possa ser assinada pelo próprio autor do acto recorrido ou por quem haja

sucedido na respectiva competência;

b) É por virtude da especificidade das disposições contidas nos artigos 5.º, 26.º e 104.º, n.º 2, da LPTA - preceitos que têm subjacente que o recurso contencioso de anulação não é um verdadeiro processo de "partes", como é o processo civil - que a norma constante do artigo 33.º do CPC não é aplicável ao recurso contencioso de

anulação;

c) Ainda que a irregularidade em causa pudesse ser qualificada como nulidade, sempre estaria vedada ao recorrente a sua arguição, face à norma constante do n.º 2 do artigo

203.º do CPC;

d) A norma do n.º 2 do artigo 203.º do CPC e a interpretação que lhe foi dada pelo STA no acórdão recorrido não cria qualquer impedimento substancial à intervenção de advogado em processo administrativo, em nada contribuindo para impedir ou dificultar o exercício dos direitos de defesa do recorrente, pelo que não viola o disposto no

artigo 20.º da CRP.»

Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.

II - Fundamentação

6 - O artigo 203.º, n.º 2, do CPC reza assim:

«2 - Não pode arguir a nulidade a parte que lhe deu causa ou que, expressa ou

tacitamente, renunciou à arguição.»

No presente recurso, questiona-se esta norma quando interpretada no sentido de impedir que o recorrente arguísse a falta de patrocínio obrigatório, a que tenha dado causa, na fase de alegações do recurso contencioso e que, em qualquer caso, o tribunal a quo ficasse impedido de conhecer oficiosamente da questão mesmo face a tal

arguição.

Com vista a melhor delimitar o objecto do recurso, cumpre fazer duas advertências.

A primeira é a de que a interpretação questionada, na exacta fórmula utilizada pelo recorrente, é susceptível de abranger outras situações, diversas daquela efectivamente em causa nos autos, pelo que se impõe a sua demarcação rigorosa, atento o âmbito específico do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade.

Assim, considerando a questão de constitucionalidade suscitada pelo recorrente e a interpretação adoptada pelo acórdão recorrido, deve entender-se que o presente recurso tem por objecto a norma do artigo 203.º, n.º 2, do CPC, quando interpretada no sentido de impedir que a entidade administrativa recorrida argua a falta de patrocínio obrigatório na fase de alegações do recurso contencioso (tramitado nos termos da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos) e que, uma vez proferida a sentença, o tribunal está impedido de conhecer oficiosamente da questão mesmo face a tal

arguição.

A segunda advertência é a de que não cabe nas competências do Tribunal Constitucional sindicar a correcção ou justeza de entendimentos interpretativos, feitos nas decisões recorridas, no plano do direito infraconstitucional.

No recurso de constitucionalidade apenas cabe apreciar se a interpretação normativa adoptada - que aqui se apresenta como um dado adquirido - é ou não desconforme com a Constituição. Neste caso, concretamente, o que importa é confrontar a base normativa da decisão recorrida com as garantias constitucionais de acesso ao direito e de tutela jurisdicional efectiva, consagradas no artigo 20.º da CRP.

7 - Comecemos por atentar nos contornos do regime processual de onde emerge a questionada interpretação do artigo 203.º, n.º 2, do CPC.

No âmbito do recurso contencioso, regulado pela Lei de Processo nos Tribunais Administrativos (adiante designada LPTA, aprovada pelo Decreto-Lei 267/85, de 16 de Julho, com as alterações posteriores, e revogada com a entrada em vigor do actual Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aprovado pela Lei 15/2002, de 22 de Fevereiro, com as alterações posteriores), prescreve-se, como regra, que os actos processuais da autoridade administrativa recorrida sejam subscritos por advogado constituído ou por licenciado em Direito com funções de apoio jurídico, designado para o efeito (artigo 26.º, n.º 1, da LPTA).

No n.º 2 do artigo 26.º da LPTA prevê-se, no entanto, um regime especial para a resposta da autoridade recorrida (que era aplicável aos recursos processados nos termos da Lei Orgânica do Supremo Tribunal Administrativo e do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo, mas já não aos recursos tramitados nos termos do Código Administrativo e da legislação complementar deste), exigindo-se que aquela resposta seja assinada pelo próprio autor do acto recorrido ou por quem haja sucedido

na respectiva competência.

No caso vertente, o autor do acto recorrido, Presidente do Conselho Directivo da Escola Superior de Teatro e Cinema assinou, por si, não apenas a resposta ao recurso, mas também as alegações apresentadas posteriormente, infringindo a regra de patrocínio judiciário obrigatório constante do citado artigo 26.º, n.º 1, da LPTA.

Tal situação não foi detectada pelo tribunal de primeira instância, nem suscitada pela própria entidade recorrida, antes de proferida a sentença.

A interpretação normativa sub judicio obstou à arguição e ao conhecimento oficioso, pelo tribunal, após a prolação da sentença, da omissão de patrocínio judiciário da entidade administrativa recorrida na fase das alegações do recurso contencioso.

8 - O recorrente alega que a interpretação questionada viola o direito de acesso aos tribunais e a tutela jurisdicional efectiva, na sua dimensão de "direito à assistência de advogado" (artigo 20.º, n.º 2, da CRP), defendendo, em síntese, que tal interpretação limita ilegitimamente o direito do recorrente ao patrocínio judiciário, impedindo o exercício de um direito fundamental - o direito a assistência judiciária, nos casos em que

a lei a considera obrigatória.

Nos termos do n.º 2 do artigo 20.º da Constituição, todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar

por advogado perante qualquer autoridade.

Estes são componentes, entre outros, de um direito geral à protecção jurídica, e inserem-se na própria noção de Estado de Direito (cf. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed., Coimbra, 2007, 409).

Como se referiu no Acórdão 380/96, citado no Acórdão 245/97 (disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt) «o direito ao patrocínio judiciário é (...) uma dimensão da garantia de protecção jurídica. Quando tenham que recorrer a juízo para defender os seus direitos ou interesses juridicamente protegidos, têm pois, as partes o direito de se fazer assistir por profissionais do foro por si escolhidos e mandatados, que aí pratiquem, com a necessária competência e serenidade, os actos processuais devidos; que os pratiquem de molde a que haja uma boa administração da justiça».

Saliente-se, porém, que desse direito não decorre um dever de as partes constituírem mandatário forense em todo e qualquer processo judicial (cf. o citado Acórdão n.º

245/97 e o Acórdão 262/2002).

A Constituição deixa ao legislador uma ampla faculdade de conformação do universo de processos em que é obrigatória a constituição de mandatário (cf. artigo 32.º, n.º 3, segunda parte, da CRP; e, em sua concretização, o artigo 32.º do CPC, os artigos 5.º e 26.º da antiga LPTA e o actual artigo 11.º do CPTA).

9 - No caso em apreço está em causa o patrocínio judiciário de uma pessoa colectiva pública, entendendo-se aquele como a representação processual dessa pessoa, ou seja o modo como (o através de quem) são praticados os actos postulativos.

A representação processual do Estado e demais pessoas colectivas públicas em contencioso administrativo tinha - e tem, ainda hoje - especificidades que importa

salientar.

Em primeiro lugar, a lei (quer a LPTA quer o actual CPTA) atribui às pessoas colectivas públicas a possibilidade de, em alternativa à constituição de advogado, designarem licenciado em direito com funções de apoio jurídico, expressamente designado para o efeito - artigo 26.º, n.º 1 da LPTA, que corresponde ao actual artigo 11.º, n.º 2, do CPTA. (Esta regra só é afastada nos casos, que não interessam à presente questão, em que a representação processual do Estado é assegurada

obrigatoriamente pelo Ministério Público).

Em segundo lugar, no recurso contencioso tramitado nos termos da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, o mandatário forense não pode praticar um dos actos processuais principais: o articulado de resposta (à petição de recurso contencioso) tem de ser subscrito, pessoalmente, pela entidade pública recorrida (artigo 26.º, n.º 2, da

LPTA).

A norma do artigo 26.º, n.º 2, da LPTA, foi já apreciada pelo Tribunal Constitucional, que se pronunciou no sentido da sua não inconstitucionalidade. Nos Acórdãos n.º s 199/94 e 117/95 considerou-se, designadamente, que esta regra não cria um impedimento substancial nem coarcta arbitrariamente a intervenção de advogado em processo administrativo, pelo que não viola o direito de acesso aos tribunais.

De todo o modo, a especialidade do artigo 26.º, n.º 2, da LPTA - que «pretendia imprimir um carácter pessoal à resposta da autoridade recorrida, não sendo alheia a intenção legislativa de assegurar que a mesma entidade reponderasse a legalidade e mérito da decisão em causa, operando, se fosse caso disso, a revogação total ou parcial do acto, nos termos do artigo 47.º da mesma Lei» (Mário Aroso de Almeida/Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2.ª ed., Coimbra, 2007, 105), e que foi eliminada no actual contencioso administrativo - não elimina, como regra, no recurso contencioso tramitado nos termos da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, a obrigatoriedade de a entidade pública recorrida se encontrar representada processualmente.

Na verdade, ressalvadas aquelas duas especialidades, não se vislumbra diferença substancial, no plano do direito ordinário, entre o regime de patrocínio judiciário dos entes públicos, resultante do artigo 26.º (n.º 1) e o previsto para os recorrentes

particulares no artigo 5.º da mesma LPTA.

10 - No plano constitucional, pode questionar-se se o direito ao patrocínio judiciário, como componente e dimensão do direito de acesso à justiça e aos tribunais, não deverá considerar-se um direito exclusivo dos sujeitos privados, que o próprio Estado (e por extensão, as demais pessoas colectivas públicas) não pode invocar.

As dúvidas a tal respeito não são suscitadas pela morfologia dos entes públicos, enquanto sujeitos que assumem a natureza de pessoas colectivas.

Na verdade, como salientam Rui Medeiros (in Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, T. I, Coimbra, 2005, 185) o direito à protecção jurídica é compatível com a natureza das pessoas colectivas e, nessa medida, também lhes é aplicável (por força do disposto no artigo 12.º, n.º 2, da Constituição).

É antes a sua natureza pública que levanta interrogações quanto à sua inclusão na esfera de protecção do artigo 20.º, n.º 2 (sobre esta problemática vd. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 3.ª ed., Coimbra, 130 e s.) A respeito do genérico direito de acesso aos tribunais, o Tribunal Constitucional considerou, com votos de vencido, que «o exercício da acção penal pelo Estado (através do Ministério Público) não é protegido pelo direito fundamental de acesso aos tribunais, previsto no artigo 20.º da Constituição» - Acórdãos n.º s 530/2001 e

120/2002.

Desta decisão não pode, contudo, inferir-se que, em qualquer caso, as pessoas colectivas públicas estão excluídas do âmbito de protecção do direito de acesso aos tribunais e, especificamente, do direito ao patrocínio judiciário.

Como salienta Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed., 422-423) «[a] negação da capacidade de direitos fundamentais às pessoas colectivas de direito público não pode acolher-se em todas as suas dimensões.» No caso, está em causa admitir a titularidade, por parte de um órgão de um instituto público (estabelecimento de ensino superior público) de um direito ao patrocínio

judiciário.

O argumento, esgrimido pelo recorrente, de que esse direito adquire natureza de direito fundamental no âmbito de um regime processual, como o que está aqui em causa, em que o legislador ordinário impõe o patrocínio judiciário obrigatório, não se afigura definitivo. Na verdade, a obrigatoriedade de patrocínio judiciário, no âmbito de um processo judicial que, reconhecidamente, se caracteriza pela especialidade e complexidade técnica, visa também a protecção de valores fundamentais objectivos, relacionados com a boa administração da justiça. para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, a que se reporta o n.º 1 do mesmo preceito O direito ao patrocínio judiciário é, nos termos do n.º 2 do artigo 20.º da Constituição, um dos componentes do direito de acesso ao direito e aos tribunais. Esta fórmula (introduzida na revisão constitucional de 1997, em consonância com a expressão já utilizada no artigo 268.º, n.º s 3 e 4, da Constituição) é susceptível de abranger, não apenas os direitos subjectivos privados e individuais, mas também, outros interesses juridicamente protegidos, designadamente, os interesses prosseguidos pelos entes públicos (em sentido próximo, v. Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., 410).

No caso em apreço, deve, por isso, admitir-se a titularidade, pela autoridade pública recorrida, enquanto Presidente de um instituto público, de um direito processual fundamental ao patrocínio judiciário, em sentido amplo (precisamente pela especialidade acima referida, não se trata aqui do patrocínio forense enquanto direito ao advogado, expressamente aflorado na Constituição, nos artigos 20.º, n.º 2, e no artigo 208.º), ou seja, do direito a estar representado em juízo através de um intermediário, técnica e profissionalmente, qualificado.

11 - Cumpre agora apreciar se a interpretação do artigo 203.º, n.º 2, do CPC, na medida em que impediu a arguição e o conhecimento oficioso, após a prolação da sentença, da nulidade resultante da falta de patrocínio judiciário obrigatório (na fase das alegações do recurso contencioso), contende com o direito ao patrocínio judiciário da entidade pública recorrida, na dimensão constitucional acima explicitada.

A propósito de uma questão respeitante ao regime de apoio judiciário, o Tribunal Constitucional salientou, no Acórdão 316/95, que «muito embora o exercício e as formas do "direito ao patrocínio judiciário" seja, pelo n.º 2 do artigo 20.º da Constituição, relegado para a lei, o certo é que (...) a lei ordinária não poderá estabelecer condicionantes ou requisitos tais que dificultem ou tornem por demais difícil o exercício daquele direito» (sublinhado nosso).

E no Acórdão 870/96 julgou-se inconstitucional, com força obrigatória geral, a norma do artigo 41.º da Organização Tutelar de Menores, que não admitia a intervenção de mandatário judicial fora da fase de recurso, por se ter considerado que, mesmo que essa intervenção não se mostrasse absolutamente necessária, atentas as especificidades próprias do processo tutelar, aquela restrição ao patrocínio atingia o núcleo essencial do direito de acesso aos tribunais consagrado no artigo 20.º, na vertente de direito a nomeação no processo de "intermediário técnico".

O mesmo não se pode dizer da interpretação normativa em apreço que, aliás, emerge de um regime processual, no qual o legislador fixou, como regra, o patrocínio

obrigatório.

Saliente-se que não está em causa uma interpretação normativa que proíba ou impeça.

à partida, que a entidade administrativa se faça representar em juízo através de advogado ou licenciado em direito; mas sim uma interpretação que impossibilita a emenda, a posteriori, do vício de falta de representação. Ou, mais rigorosamente, que impõe limites à possibilidade de corrigir essa falta.

O primeiro limite que emerge da interpretação questionada é o de que não pode ser a própria entidade pública que, objectivamente, deu causa à falta de representação, a

invocar a nulidade daí resultante.

O segundo limite é essencialmente temporal, no sentido de que, sendo de conhecimento oficioso, a nulidade decorrente da falta de patrocínio obrigatório não pode ser conhecida pelo tribunal (que antes a não detectou), depois de proferida a sentença.

É certo que da interpretação questionada, que imediatamente apenas incide sobre o regime de arguição e conhecimento da nulidade, decorre a consequência mediata de impedir (fazer precludir) o exercício retroactivo do direito ao patrocínio judiciário.

Mas a limitação a posteriori do exercício de um direito que, a seu tempo não foi exercido por conduta imputável exclusivamente (a titulo objectivo) ao seu titular, não constitui uma restrição intolerável desse mesmo direito, não afecta o seu núcleo essencial, nem constitui uma limitação que dificulte o exercício (no momento processual

próprio) daquele direito.

Durante o processo de que emerge o presente recurso - incluindo na fase das alegações, aqui em causa - a autoridade recorrida não esteve impedida de se fazer representar por mandatário forense. Simplesmente não o fez, por razões que não se conhecem e não estão apuradas nos autos, pelo que daí não se pode concluir, sem outros elementos que demonstrem o contrário, que a entidade pública prescindiu intencionalmente do patrocínio exigido na fase das alegações.

No entanto, independentemente das razões que levaram à falta de representação processual na fase das alegações, não pode concluir-se pela violação, no plano constitucional, do direito ao patrocínio judiciário, quando a parte não exerceu o direito - que, objectivamente, estava na sua disponibilidade e cujo exercício se lhe impunha, por ser obrigatório - e posteriormente não lhe é permitido, após a prolação da sentença, corrigir retroactivamente essa falta.

Por tudo isto, conclui-se que a interpretação normativa sub judicio, na medida em que impede a arguição pela parte que lhe deu causa e conhecimento ex officio, após a prolação da sentença, de uma nulidade consubstanciada na falta de patrocínio obrigatório da autoridade pública recorrida, num recurso tramitado ao abrigo da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, não afronta o disposto no artigo 20.º da

Constituição.

III - Decisão

Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se:

a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 203.º, n.º 2, do CPC, quando interpretada no sentido de impedir que a entidade administrativa recorrida argua a falta de patrocínio obrigatório a que tenha dado causa, na fase de alegações do recurso contencioso (tramitado nos termos da anterior Lei de Processo nos Tribunais Administrativos) e que, uma vez proferida a sentença, o tribunal fique impedido de conhecer oficiosamente da questão, mesmo face a tal arguição;

b) E, em consequência, julgar o recurso improcedente.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta.

Lisboa, 11 de Fevereiro de 2009. - Joaquim de Sousa Ribeiro - João Cura Mariano - Benjamim Rodrigues - Mário José de Araújo Torres - Rui Manuel Moura Ramos.

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/2009/03/16/plain-247967.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/247967.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1985-07-16 - Decreto-Lei 267/85 - Ministério da Justiça

    Aprova a lei de processo nos tribunais administrativos.

  • Tem documento Em vigor 1996-09-03 - Acórdão 870/96 - Tribunal Constitucional

    Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 41º da Organização Tutelar de Menores, aprovada pelo Decreto Lei 314/78, de 27 de Outubro, na parte em que não admite a intervenção de mandatário judicial fora da fase de recurso, por violação do artigo 20º, nº 2, conjugado com o artigo 18º, nºs. 2 e 3 da Constituição (proc. 327/96).

  • Tem documento Em vigor 2002-02-22 - Lei 15/2002 - Assembleia da República

    Aprova o Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPPTA) e procede a algumas alterações sobre o regime jurídico da urbanização e edificação estabelecido no Decreto-Lei nº 555/99 de 16 de Dezembro.

Ligações para este documento

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Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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