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Acórdão , de 17 de Janeiro

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Sumário

Respeitante ao recurso n.º 34141 para o tribunal pleno, no qual é recorrente o Ministério Público

Texto do documento

Acórdão

Processo 34141

Autos de recurso para tribunal pleno, Relação de Lisboa, em que são recorrente Ministério Público e recorrido António Edgar Alonso Gonzalez da Cunha.

O representante do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa interpôs recurso, nos termos do disposto no artigo 669.º do Código de Processo Penal, do Acórdão da mesma Relação de 24 de Outubro de 1973, invocando oposição entre ele e o Acórdão de 20 de Julho de 1962.

Na sua alegação diz que enquanto o acórdão recorrido decidiu que o crime do § 1.º do artigo 330.º do Código Penal (retenção, como preso, de qualquer pessoa por menos de vinte e quatro horas, sem quaisquer consequências médico-legais) é um crime particular, no sentido de que o respectivo procedimento depende de acusação do ofendido, o Acórdão de 20 de Julho de 1962 decidiu que esse mesmo crime é público, livremente persecutível pelo Ministério Público.

Acrescenta que ambas as decisões foram proferidas no domínio da mesma legislação, dado que, desde 20 de Julho de 1962 até ao presente, quer o artigo 330.º, quer o artigo 359.º do Código Penal, permaneceram inalteráveis, e que o acórdão recorrido, dada a pena aplicável ao crime do artigo 359.º, § 1.º, não era susceptível de recurso ordinário para o Supremo Tribunal de Justiça, ex vi do artigo 646.º, n.º 6, do Código de Processo Penal.

Verificados pela secção os pressupostos da admissibilidade do recurso para o tribunal pleno, foi mandado seguir o recurso, tendo o Ministério Público produzido a sua alegação, na qual termina por concluir que deve ser proferido assento em que se decida que é aplicável ao crime previsto no artigo 330.º, § 1.º, do Código Penal o regime estabelecido no artigo 359.º do mesmo diploma sobre legitimidade para o procedimento criminal.

Como a decisão proferida sobre a existência da oposição não é definitiva, é essa a primeira questão a conhecer.

Do enunciado já feito, não podem, no entanto, restar dúvidas sobre a oposição, que é patente, razão por que o tribunal pleno deve conhecer de fundo e proferir assento.

Pelo enunciado feito, vê-se claramente qual é a questão posta e a decidir. Vejamos então como a encararam e a resolveram os dois acórdãos em oposição.

No acórdão de 1962 racicionou-se assim:

Este preceito (artigo 330.º) está integrado na secção respeitante ao crime de cárcere privado, que é caracterizado como retenção de alguém como preso em alguma casa ou outro lugar onde seja retirado e guardado de tal maneira que não seja com toda a liberdade. Assim, desde que haja a indevida retenção por certo tempo de alguém como preso nas circunstâncias referidas no corpo do artigo 330.º e seus parágrafos do Código Penal, verifica-se este crime, que se reveste de gravidade porque a pessoa retida sofre do seu direito originário, garantido pelo artigo 8.º, n.º 8, da Constituição Política, de não ser privado de liberdade pessoal, nem ser preso sem culpa formada, a não ser nos casos especiais que essa lei e outras previnem. A circunstância de a retenção por período inferior a vinte e quatro horas ser considerada como ofensa corporal não retira ao acto o carácter específico integrador do crime de cárcere privado, pois o tempo de retenção é unicamente factor que influi na pena a aplicar. Este crime existe desde que seja afectada a liberdade, o pleno e livre gozo dos direitos do indivíduo, quer se trate de retenção simples, quer de encerramento em casa ou noutro lugar; e, ainda que a ofensa corporal referida no § 1.º do artigo 330.º do Código Penal seja das previstas no artigo 359.º do mesmo Código, ela não deixa de revestir a natureza de crime público e pode conhecer-se dele, independentemente de o ofendido se constituir, ou não, assistente.

Por seu lado, o Acórdão de 24 de Outubro de 1973, na esteira, aliás, do Acórdão da Relação de Lisboa de 26 de Fevereiro de 1964 (Boletim 134-370), considera como simples retenção, para efeitos do § 1.º do artigo 330.º, a detenção por menos de vinte e quatro horas. É que o qualificativo «simples» do dito parágrafo diz, não se refere a ser ou não a retenção com encarceramento do ofendido em casa fechada ou em outro lugar, mas sim a ser essa retenção acompanhada, ou não, das ameaças ou ofensas corporais a que se refere o n.º 2 do artigo 331.º do mesmo Código. E, assim, só existirá crime de cárcere privado se a retenção durar vinte e quatro horas, ou, a durar menos, se tiver sido acompanhado das referidas ameaças ou ofensas corporais.

E acrescenta:

Deste modo, cremos ter conciliado e mostrado a necessidade do corpo do artigo e do seu § 1.º, pois pode haver crime de cárcere privado por menos de vinte e quatro horas, desde que se verifiquem, cumulativamente, os requisitos dos artigos 330.º e 331.º, n.º 2, do Código Penal. Se se verificarem apenas os do artigo 330.º e essa situação durar menos de vinte e quatro horas, então não estamos perante um crime de cárcere privado, mas tão-somente de ofensas corporais. De facto, atentos os termos do § 1.º do artigo 330.º, conjugados com as nossas Ordenações (1. V, vol. 1, p. 95), base deste artigo e seu § 1.º, temos que houve um propósito de considerar a retenção por menos de vinte e quatro horas apenas como ofensa corporal, punida conforme as regras da lei em tais casos, aqui as do artigo 359.º do Código Penal.

E, na verdade, os termos desse § 1.º levam-nos assim, pois são no sentido não de apenas remeter para a punição do crime de ofensas corporais, mas de considerar essa retenção como crime desta natureza, ou seja, de ofensas corporais. Mas, mesmo aceitando que na hipótese do § 1.º se mantém a natureza do crime de cárcere privado, a solução seria a mesma, dados os termos dessa remissão, uma vez que aí se diz «é punida conforme as regras da lei em tais casos», e essas regras seriam as do artigo 359.º do Código Penal, que exige, para a punição de tal crime, a acusação do ofendido, a menos que seja menor de 16 anos, ou incapaz, bastando, então, participação sua ou do seu representante legal. É que, como nos parece cristalino, o § 1.º não se limita a mandar aplicar a pena do crime de ofensas corporais, mas a punir a hipótese nela ventilada, conforme as regras da lei em tais casos, isto é, como se se tratasse de um crime de ofensas corporais do artigo 359.º do Código Penal e nas condições aí estipuladas.

Conhecidos, pelo que vem de ser transcrito, os fundamentos das oposições dos dois acórdãos em oposição, vamos agora ver como deve ser decidida a questão.

A classificação dos crimes em públicos, semipúblicos e particulares deriva da natureza dos bens ou direitos ofendidos. Efectivamente, a lei exige, relativamente a algumas infracções, a denúncia ou a participação do ofendido e, quanto a outras, a acusação deste, deixando, assim, ao mesmo ofendido a decisão sobre se o facto que integra a infracção deve ser, ou não, perseguido.

A lei toma esta posição por razões de vária ordem que, por conhecidas, não vale a pena referir.

Como, porém, a lei (artigo 3.º do Decreto-Lei 35007) não faz uma enumeração das infracções conforme aquela classificação, antes fazendo depender o exercício da acção penal conforme a exigência em cada caso concreto (denúncia ou acusação particular, expressões que englobam terminologia vária usada na lei penal), torna-se necessário saber se o Ministério Público pode livremente promover a acção penal ou se a sua acção está limitada pela existência de algum pressuposto, sem a verificação do qual tal acção não pode ser exercida.

No caso que nos ocupa (artigo 330.º, § 1.º, do Código Penal) a lei não refere expressamente a existência do pressuposto da acusação particular; limita-se a dizer que a simples retenção por menos tempo (vinte e quatro horas) é considerada como ofensa corporal, e punida conforme as regras da lei em tais casos.

Esta disposição está incluída na secção 2.ª do capítulo I do título IV, que trata de cárcere privado, mas, em princípio, parece fazer-se uma distinção entre este (cárcere privado) e simples retenção.

Na verdade, enquanto o corpo do artigo define cárcere privado como a retenção, por indivíduo particular, até vinte e quatro horas, de alguém, retendo-o como preso em alguma casa ou em outro lugar onde seja retido e guardado de tal maneira que não seja com toda a sua liberdade, posto que não tenha nenhuma prisão, o § 1.º diz que a simples retenção por menos tempo é considerada como ofensa corporal, e punida conforme as regras da lei em tais casos.

Tanto no corpo do artigo como no parágrafo citado, pune-se o atentado contra a liberdade das pessoas, fazendo-se, no entanto, uma distinção, mencionadamente quanto ao tempo da retenção: se esta se dá pelo espaço de vinte e quatro horas, a gravidade da infracção é maior do que se a mesma se verificar por um espaço de tempo inferior. Neste último caso, e faltando os outros elementos a que se refere o corpo do artigo, define-a o § 1.º como simples retenção, considerando-a como ofensa corporal, a punir conforme as regras da lei em tais casos.

Parece, assim, estarmos em face de dois tipos diferentes de infracções, embora ambas prevejam e punam o atentado contra a liberdade das pessoas.

Disposição semelhante à do referido § 1.º não se encontra em outras legislações, que não exigem lapso de tempo para a verificação do crime de cárcere privado, ou sequestro, embora, em geral, se faça derivar a gravidade do crime do período do sequestro (Código Penal belga, artigos 434.º e 435.º, Código Penal alemão, artigo 229.º, Código Penal francês, artigos 341.º e 342.º, Código Penal brasileiro, artigo 148.º), como, de resto, sucede com o Código Penal português, artigo 330.º, § 2.º

Mas será que a simples retenção, conforme é definida no 1.º, deixa de integrar o crime de cárcere privado, ou tratar-se-á apenas de um crime daquela natureza, mas menos grave?

O facto de a lei fazer a distinção indicada parece, na verdade, conduzir à conclusão de que se trata, efectivamente, de dois tipos diferentes, e isto, a nosso ver, deriva da consideração de que o § 1.º, ao considerar a simples retenção como ofensa corporal, quis fazer uma distinção (que, como vimos, não se encontra em leis estrangeiras) entre a retenção nos moldes escritos no corpo do artigo e a simples retenção, criando para esta um tipo de infracção diferente. Se assim não fosse, bastaria prescrever para a retenção por menos de vinte e quatro horas uma pena inferior à que vem indicada no corpo do artigo.

E isto é tanto mais certo que, como se viu, para o que considerou cárcere privado estabeleceu penalidades diferentes, conforme a duração dele.

Quer isto dizer que a lei, ao prever a simples retenção por menos de vinte e quatro horas como constituindo uma infracção contra a liberdade das pessoas, não a considera como cárcere privado, que, para existir, deve integrar todos os elementos do artigo 330.º

Desta forma, e sabendo-se que se trata de ofensa corporal simples (artigo 359.º do Código Penal), põe-se agora a questão de saber se se trata de crime particular, ou seja, se o exercício da acção penal depende da acusação do ofendido.

A resposta, como, aliás, se deduz do que foi dito anteriormente, tem de ser no sentido afirmativo.

Efectivamente, se a lei considera a simples retenção como ofensa corporal, e esta tem a natureza de ofensa corporal simples (artigo 359.º), é à disposição legal que descreve esta que deve fazer-se apelo para a solução.

Ora, aquela disposição exige, como pressuposto do exercício da acção penal, a acusação do ofendido ou, se este for menor de 16 anos ou incapaz, a participação, ou denúncia, do mesmo ofendido ou do seu representante legal. Consequentemente, é de concluir não ter o Ministério Público legitimidade para o exercício da acção penal quando não esteja verificado o pressuposto indicado no artigo 359.º do Código Penal.

Nestes termos, acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça em decidir o conflito de jurisprudência existente pela forma seguinte:

É aplicável ao crime previsto no artigo 330.º, § 1.º, do Código Penal o regime estabelecido no artigo 359.º do mesmo Código sobre legitimidade para o procedimento criminal.

Lisboa, 11 de Dezembro de 1974. - Adriano Vera Jardim - Eduardo Correia Guedes - José António Fernandes - João Moura - Rodrigues Bastos - Daniel Ferreira - Manuel Arelo Ferreira Manso - José Garcia da Fonseca - José Montenegro - Arala Chaves (vencido. Tenho por melhor entendimento que o § 1.º do artigo 330.º do Código Penal remete para a pena, e não para as condições de procedibilidade do crime de ofensas corporais. Fundamento-me em que, permitindo a lei o entendimento que preconizo, é esse o mais ajustado com a gravidade da infracção, que constitui violação da garantia do artigo 8.º, n.º 8, da Constituição Política, e o que resulta imposto pelo elemento sistemático de interpretação, pois que constitui crime público a detenção ou custódia praticada por empregado público sem que tenha poderes para prender ou fora dos casos em que tenha esse poder, nos termos do artigo 291.º do Código Penal. Assim, não faz sentido que seja de diversa natureza, tratado como crime menos grave, a detenção praticada por particular, e o caso concreto bem o revela. A doutrina e alguma jurisprudência, aliás dominante, repelem a tese aceite no acórdão de que a infracção prevista no § 1.º do artigo 330.º não constitui cárcere privado) - Bruto da Costa (vencido pelos mesmos fundamentos) - Abel de Campos (vencido pelas razões invocadas atrás, salientando ainda que a doutrina das Ordenações, liv. V, tít. XCV, não parece ter sido modificada pelo actual Código Penal, que, na sua primeira redacção, considerava sempre crime público o crime de ofensas corporais simples) - Albuquerque Bettencourt (vencido pelas mesmas razões doutamente enunciadas nos precedentes votos) - José Joaquim de Almeida Borges (vencido pelas mesmas razões justificativas do voto do Exmo. Conselheiro Arala Chaves) - Oliveira Carvalho (vencido pelas razões constantes do voto do Exmo. Conselheiro Arala Chaves).

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2474981.dre.pdf .

Ligações deste documento

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