Assento de 27 de Janeiro de 1971
Assento de 27 de Janeiro de 1971, proferido nos autos de recurso para o tribunal pleno com o n.º 33002, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido Romão Vaz.
Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça, em tribunal pleno:
Em conformidade com o disposto no artigo 669.º do Código do Processo Penal, o Exmo. Procurador da República junto do Tribunal da Relação de Lisboa recorreu extraordinàriamente para o tribunal pleno do acórdão de 21 de Abril de 1969 da mesma Relação, alegando que não admitia recurso ordinário para este Supremo Tribunal de Justiça e que está em oposição com o da Relação de Coimbra, proferido em 21 de Junho de 1966. Admitido o recurso, o Exmo. Procurador da República junto da secção criminal deste Supremo Tribunal de Justiça, em observância do disposto no n.º 3 do artigo 763.º do Código de Processo Civil, aplicável por força do que prescrevem o § único do artigo 669.º e o § único do artigo 668.º do Código do Processo Penal, apresentou a alegação a fl. 19 v.º, em ordem a mostrar que existe a invocada oposição entre os dois acórdãos, juntos, por certidão, a fls. 6 e 16. Por acórdão da secção criminal, decidiu-se que se verificam os pressupostos legais relativos ao prosseguimento do recurso e consequente conhecimento pelo tribunal pleno (acórdão a fl. 25). Seguiu-se a apresentação da alegação de fl. 28 pelo magistrado do Ministério Público junto deste Supremo Tribunal de Justiça, em que doutamente se pronuncia no sentido de que se deve firmar assento que fixe a jurisprudência conformemente o decidido pelo acórdão recorrido, nos termos que formula.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:
A questão preliminar relativa à existência da oposição que serve de fundamento ao recurso não deve considerar-se definitivamente resolvida, conforme nos diz o n.º 3 do artigo 766.º do Código de Processo Civil.
Há que começar por apreciar esta questão, e decidi-la:
A admissibilidade do recurso extraordinário regulado no artigo 669.º citado depende da existência de acórdão de uma relação de que não possa interpor-se recurso ordinário para este Supremo Tribunal de Justiça e que esteja em oposição com outro, transitado em julgado, da mesma ou de outra relação, sobre a mesma matéria de direito, desde que apreciada no domínio da mesma legislação. Ora, o acórdão recorrido foi proferido no dia 21 de Abril de 1969 sobre recurso interposto em processo de polícia correccional, e por isso não admitia recurso ordinário (artigo 646.º, n.º 6, do Código de Processo Penal). O acórdão anterior, da Relação de Coimbra, foi proferido no dia 21 de Junho de 1966 sobre recurso interposto em processo de polícia correccional, também, e que por isso também não admitia recurso ordinário. Há que considerar este acórdão transitado em julgado, uma vez que não houve qualquer oposição (artigo 763.º, n.º 4, do Código de Processo Civil). Em ambos os acórdãos se decidiu a questão de saber se comete a infracção prevista no artigo 1.º, n.º 2, da Lei 2053, de 22 de Março de 1952, o cônjuge divorciado judicialmente condenado a prestar alimentos ao outro deixar de cumprir, podendo fazê-lo, essa obrigação por mais de sessenta dias. E decidiram-na em sentido oposto: o acórdão recorrido decidiu tal questão no sentido de que não há infracção penal em tal hipótese; o acórdão da Relação de Coimbra decidiu que, na mesma hipótese, há infracção penal do indicado preceito. Basta o que fica enunciado em relação às duas decisões, para se verificar que existe oposição entre elas e no domínio da mesma legislação. Sendo assim, temos que apreciar e decidir o conflito de jurisprudência em causa.
Ora, diz a Lei 2053, de 22 de Março de 1952, no n.º 2 do seu artigo 1.º:
Incorrem na pena de prisão correccional, não remível, até seis meses os condenados judicialmente a prestar alimentos ao seu cônjuge que, podendo fazê-lo, deixarem de cumprir essa obrigação por mais de sessenta dias.
Como se vê por este preceito, nada permite que se diga que se exclui do conceito de «cônjuge» o cônjuge divorciado, para o efeito de poder considerar incurso na sanção indicada, aquele que for judicialmente condenado a prestar alimentos ao seu cônjuge e que, podendo fazê-lo, deixar de cumprir essa obrigação por mais de sessenta dias. Só se pode fazer tal afirmação esquecendo que a prestação de alimentos não cessa no caso de divórcio e separação de pessoas e bens, sendo mesmo este - o de os cônjuges estarem divorciados ou separados - o caso em que o dever de alimentos assume mais importância ou relevo prático. E até a lição dos mestres, que é perfilhada, no geral, pelos tribunais, desde sempre, pois, embora só para efeitos de alimentos, se aquiparam entre os cônjuges, os divorciados e os separados de pessoas e bens, pois que, quanto aos divorciados, o artigo 29.º do Decreto de 3 de Novembro de 1910 considera que eles não são casados, mas já o foram, e é esta circunstância, esta particular relação, que, apesar de tudo, ainda liga entre si as pessoas que já foram casadas, que para a lei explica e justifica o dever de alimentos. O mesmo acontece com os separados de pessoas e bens - artigo 43.º da Lei do Divórcio (Decreto de 3 de Novembro de 1910).
O legislador penal serviu-se de um conceito que foi buscar ao direito civil e de cônjuge. Logo, tem de ser recebido com a amplitude que possui no direito civil. E, de qualquer modo, era lícito recorrer à interpretação extensiva no domínio da tipicidade legal, neste caso em que a lei penal utilizou um conceito que foi buscar ao direito civil.
O Prof. Doutor Eduardo Correia, em Direito Criminal, vol. I, p. 144, diz haver uma «limitação ao princípio de exclusão da interpretação extensiva», que se refere «à utilização de conceitos normativos na descrição dos tipos legais de crimes». É que, diz o mesmo professor, ob. cit., p. 145, «com efeito, empregando estes conceitos, renuncia à sua precisão, determinação fixa, puramente descritiva do seu sentido, renuncia a fixar, ela própria, o seu exacto e rigoroso significado. A lei criminal, quando utiliza conceitos de outros ramos de direito, quer naturalmente aceitá-los e recebê-los com o sentido que eles possuem no ramo de direito a que pertencem. E, por conseguinte, tem de aceitar os resultados a que se chegue pelos métodos de interpretação permitidos nesse ramo de direito.» É de citar, com o devido relevo, também, o notável Curso de Direito de Família - I Direito Matrimonial, do Prof. Doutor Pereira Coelho, sobretudo a pp. 240 e 532, onde fomos colher a doutrina, que ficou referida, sobre a prestação de alimentos e obrigação de alimentos (artigos 29.º do Decreto de 3 de Novembro de 1910 e 38.º, n.º 3, do Decreto 1 de 25 de Dezembro de 1910). E quanto à infracção grave do dever de socorrer e ajudar o outro cônjuge, diz o Prof. Doutor Pereira Coelho, no mesmo lugar, a p. 241: «E, nos termos dos n.os 2 e 3 do artigo 1.º da mesma Lei 2053, também constitui crime o facto de um dos cônjuges, condenado judicialmente a prestar alimentos ao outro, não cumprir essa obrigação, podendo fazê-lo, por mais de sessenta dias (n.º 2) [...]». E isto vem logo a seguir ao dizer-se que «o caso de os cônjuges estarem divorciados ou separados», é aquele em que o dever de alimentos assume mais importância ou relevo prático. Assim, a doutrina sustentada no Acórdão da Relação de Lisboa de 21 de Abril de 1969 é de rejeitar, e, por isso, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em decidir o conflito de jurisprudência formulando o seguinte assento:
O cônjuge a que alude o n.º 2 do artigo 1.º da Lei 2053, de 22 de Março de 1952, é, também, o cônjuge divorciado.
Sem imposto de justiça.
Lisboa, 27 de Janeiro de 1971. - Alberto Nogueira - Albuquerque Rocha - Ludovico da Costa - Fernando Bernardes de Miranda - Adriano Vera Jardim - J. Santos Carvalho Júnior - Eduardo Correia Guedes - Adriano Campos de Carvalho - António Pedro Sameiro - José António Fernandes - Manuel Falcão Nunes Garcia - João Moura (vencido. Não tenho por certo que o conceito civilista de «cônjuge» abranja o ex-cônjuge; apenas em casos particulares a coincidência se verifica. De todo o modo, não pode, a meu ver, reconhecer-se que a disposição legal interpretanda adoptou o conceito civilista de cônjuge, tal como o acórdão o enuncia, desde que pelo elemento histórico se verifica ser intencional em sentido restrito ou literal da expressão «cônjuge». A discussão havida na Câmara Corporativa e na Assembleia Nacional evidencia que houve o propósito de excluir os ex-cônjuges da protecção penal do n.º 2 do artigo 1.º da Lei 2053, e isto é primordial segundo o artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil. Nestes termos, penso que a doutrina proposta ofende o artigo 18.º do Código de Processo Penal» - Arala Chaves (vencido pelas razões do voto precedente).
Está conforme.
Secretaria do Supremo Tribunal de Justiça, 4 de Fevereiro de 1971. - O Secretário, Joaquim Múrias de Freitas.