Acórdão doutrinário
Processo 60727. - Autos de recurso para tribunal pleno, em que são recorrente João Manuel d'Orey de Brito e Cunha e recorridos os herdeiros de Francisco de Assis de Almeida Mendia, representados pelo seu tutor, Lourenço Vaz de Almada.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
João Manuel d'Orey de Brito e Cunha recorre para o tribunal pleno do Acórdão de 2 de Dezembro de 1964, publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 142, p. 311, que lhe negou revista na acção por ele proposta contra os herdeiros de Francisco de Assis Nazaré de Almeida Mendia.
Invoca oposição com o Acórdão de 13 de Janeiro de 1960, publicado no mesmo Boletim n.º 93, p. 219, sobre a questão fundamental de saber se a responsabilidade atribuída pelo artigo 56.º, n.º 4, do Código da Estrada, ao proprietário de automóvel causador de acidente de viação, cabe a quem esteja inscrito no registo de automóveis como dono dele ou a quem seja efectivamente proprietário do veículo, embora sem registo da transmissão a seu favor.
O recurso foi mandado seguir pela secção, o que, nos termos do artigo 766.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, não esgota o prévio problema da sua viabilidade.
E este problema volta a ser suscitado pelos recorridos, os quais aceitam terem os dois acórdãos sido proferidos no domínio da mesma lei - o Decreto 40079, de 8 de Março de 1955-, mas negam que tenham assentado sobre a solução da mesma questão fundamental de direito.
Argumentam que os acórdãos se socorreram de disposições legais diversas, embora contidas no mesmo decreto, posto que o de 1960 se baseou nos artigos 15.º e 12.º, n.º 1.º, e § 1.º, enquanto o ora recorrido se baseou nos artigos 16.º, § 2.º, e 46.º, § 2.º (este, por lapso, indicado como pertencendo ao dito Decreto 40079, mas efectivamente do n.º 40080, de igual data).
Não têm razão.
Em ambos os casos estava averiguado que o automóvel causador do acidente já não pertencia a quem estava inscrito no registo como dono dele, estando, portanto, ilidida a presunção do artigo 15.º do Decreto 40079. Simplesmente, o acórdão agora recorrido não fez referência expressa a esse artigo, que, aliás, não era necessário referir para a solução adoptada.
O acórdão de 1960 considerou a ilisão inoperante, porque lhe sobrepôs não só as disposições do artigo 12.º, mas também a do artigo 13.º, expressamente invocada. Entendeu e declarou que «o registo de propriedade automóvel é obrigatório, não produzindo o acto respectivo efeitos contra terceiros sem que o mesmo se efectue», e considerou o lesado «terceiro», para concluir que a transmissão não registada não produziu efeitos quanto a ele.
O acórdão de agora, ao contrário, considerou a ilisão operante e isto por entender ininvocável o dito artigo 13.º, visto que «os lesados em acidentes de viação não são terceiros», para efeitos da responsabilidade em causa. Citou as disposições do artigo 16.º, § 2.º, do Decreto 40079 e do artigo 46.º e § 2.º do regulamento aprovado pelo Decreto 40080, tão-sòmente para justificar que pode haver propriedade automóvel sem registo.
É manifesta a divergência e é fora de dúvida terem os acórdãos sido proferidos quando vigorava a mesma lei.
Existe, pois, um conflito de jurisprudência que pode e deve ser resolvido pelo meio usado.
O recorrente, como é natural, pretende que seja resolvida em sentido contrário ao do acórdão recorrido. Argumenta que, sendo obrigatório o registo de propriedade automóvel, nos termos do artigo 12.º, n.º 1, e § 1.º, do Decreto 40079, só pode considerar-se proprietário do veículo causador do acidente, para os efeitos do artigo 56.º, n.º 4, do Código da Estrada, quem como tal esteja inscrito nesse registo.
Os recorridos defendem a solução do acórdão sob recurso e a seu lado está o Ministério Público, que propõe o seguinte assento:
A presunção estabelecida no artigo 15.º do Decreto-Lei 40079, de 8 de Março de 1955, pode ser ilidida em face dos lesados em acidentes de viação causados por veículos automóveis, dado que estes não são terceiros para o efeito do disposto no artigo 13.º do mesmo diploma.
Tudo visto:
Em nenhum dos acórdãos se pôs em dúvida que a presunção de propriedade resultante do registo é meramente tantum juris. A discrepância jurisprudencial está apenas no alcance a atribuir ao registo, para determinar quem é o proprietário responsabilizado pelo artigo 56.º, n.º 4, do Código da Estrada.
O acórdão de 1960 decidiu que o proprietário responsável é o registado, porque a transmissão sem registo não vale para o lesado, em face do disposto no artigo 13.º do Decreto 40079, e porque o § 1.º do artigo 12.º do mesmo decreto declara obrigatório o registo da propriedade. O acórdão actual decidiu ser responsável o proprietário real, embora sem registo, porque o dito artigo 13.º não é invocável relativamente ao lesado, que não é terceiro, e porque a lei reconhece a propriedade de automóveis não registada.
A única solução aceitável é a do acórdão recorrido, pelas razões que vão apontar-se.
Resulta do n.º 4 do artigo 56.º do Código da Estrada que a responsabilidade por ele estabelecida para o proprietário do automóvel causador de um acidente de viação tem por principal fundamento o risco criado pela circulação do veículo.
A responsabilidade não dimana da simples propriedade, mas do consentimento ou interesse na referida circulação. O preceito principia por isentar de responsabilidade o proprietário quando o automóvel transita «contra sua vontade».
O risco é criado por quem, como proprietário, dispõe do veículo e, dentro desse poder de disposição, o usa ou consente no seu uso.
Ora a transmissão da propriedade de um automóvel, mesmo sem registo, demite o transmitente da fruição e disposição dele, transferindo-a para o adquirente.
É certo que o § 1.º do artigo 12.º do citado Decreto 40079 declara obrigatório o registo da propriedade automóvel e suas transmissões, mas logo a disposição imediata - § 2.º do mesmo artigo - comina a sanção específica para a falta desse registo: intervenção oficiosa das autoridades fiscalizadoras do trânsito para apreensão dos documentos do veículo e registo forçado.
Em seguida, o artigo 13.º estabelece, mediante outra sanção agora genérica, um meio de compelir ao registo, seja este obrigatório ou não: os actos a ele sujeitos, todos os que o corpo do artigo 12.º enumera, «só produzem efeitos para com terceiros a contar da data do respectivo registo».
Esta fórmula também não quis significar que dependa do registo a existência e validade de qualquer dos actos a ele sujeitos; não quis determinar que o registo é constitutivo; não quis dizer coisa diferente daquilo que em palavras mais claras afirma o artigo 7.º, n.º 1, do Código do Registo Predial, ou seja: que os actos sujeitos a registo só depois dele produzem efeitos «contra» terceiros.
O que o artigo 13.º estabelece é a chamada inoponibilidade dos actos não registados.
Mesmo os registos que o § 1.º do artigo 12.º do Decreto declara obrigatórios só o são na medida em que a sua falta dá lugar à sanção do registo forçado. Que nem esses registos são constitutivos resulta até de poderem e deverem ser feitos forçadamente.
A inoponibilidade, estabelecida não só para eles, mas também para os que a lei não declara obrigatórios, é, repete-se, uma outra sanção. Como tal, só pode ser imposta a quem tinha o ónus de promover o registo e não o promoveu.
Esse ónus, no caso de transmissão de propriedade, é atribuído ao adquirente pelo artigo 46.º do Regulamento do Registo de Automóveis.
Não há dúvida, pois, de que o adquirente está proibido de opor a transmissão a terceiros, antes de a fazer registar, como lhe cumpre, ou de o registo ser forçosamente feito por intervenção das autoridades.
Os terceiros é que a podem invocar contra o adquirente em falta, pois, como atrás se disse, o falado artigo 13.º determina ùnicamemte a ineficácia do acto contra eles.
Nas hipóteses a que respeita o conflito jurisprudencial em causa, o problema era a oponibilidade da transmissão por parte do transmitente.
Este não é terceiro, mas tratava-se de oponibilidade contra quem não interveio na transmissão.
Já se viu, porém, que ao transmitente não pertence o ónus de promover o registo. Assim, não se lhe pode impor nenhuma sanção pela falta de cumprimento de tal ónus.
Daí ser-lhe lícito opor a transmissão, independentemente de registo, tanto ao adquirente que a não registou, como a terceiros.
Reconhece-se que esta solução pode levar a consequências pouco justas, mas é a única que se considera harmónica com a apresente regulamentação legal.
Na verdade, o registo exerce uma função de publicidade e informação em que é natural que os terceiros confiem. O lesado, sem meio de se informar por outra via de quem é o proprietário do automóvel que o atingiu, confiará nessa informação oficial para muitas vezes ser iludido por um registo desactualizado e vir a decair e pagar as custas de demanda.
Isso, porém, é um grave defeito da referida regulamentação, que só o legislador pode corrigir.
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e assenta-se em que:
O proprietário responsável, nos termos do artigo 56.º, n.º 4, do Código da Estrada, é quem efectivamente o seja no momento do acidente, ainda que não esteja registada a sua propriedade.
Custas pelo recorrente.
Lisboa, 31 de Maio de 1966. - Lopes Cardoso - Torres Paulo - Ludovico da Costa - H. Dias Freire - Fernando Bernardes de Miranda - Oliveira Carvalho - Gonçalves Pereira - Alberto Toscano - Albuquerque Rocha - Francisco Soares - Adriano Vera Jardim - J. S. Carvalho Júnior - Eduardo Correia Guedes - António dos Santos Rocha.
Está conforme.
Secretaria do Supremo Tribunal de Justiça, 14 de Junho de 1966. - O Secretário, Joaquim Múrias de Freitas.