Acórdão doutrinário
Processo 59618. - Autos de recurso para tribunal pleno vindos do Tribunal da Relação do Porto. Recorrente, Empresa Carbonífera do Douro, Lda. Recorrida, Câmara Municipal do Porto.
Em tribunal pleno, acordam os do Supremo Tribunal de Justiça.
Empresa Carbonífera do Douro, Lda., concessionária do couto mineiro do Pejão, sito na área do concelho de Castelo de Paiva, e com sede social no Porto, foi tributada pela Exma. Câmara Municipal dessa cidade, como contribuinte do imposto directo de licença de estabelecimento comercial ou industrial, nos termos do artigo 710.º do Código Administrativo.
E isso por duas ordens de razões:
a) Porque, com aquela sede, assim centralizou na circunscrição municipal do concelho do Porto toda a sua actividade comercial;
b) Porque na mesma circunscrição labora a indústria de aglomerados de carvão, fabricando briquetes.
Reclamou contenciosamente da incidência do imposto, mas sem êxito.
Recorrendo para o respectivo magistrado judicial, não foi mais feliz.
E voltando a recorrer para a Relação do distrito, também não alcançou provimento ao recurso.
Um outro interpõe então do acórdão desse tribunal, para este Supremo Tribunal de Justiça, mas a funcionar em pleno, para solucionar o conflito entre essa decisão e a da mesma Relação no seu acórdão de 30 de Novembro de 1960.
Documenta, por certificados de teor, as duas decisões em oposição, e a de 1960 reportada ao seu trânsito em julgado.
Confina então a divergência no seguinte:
O exercício daquela sua lavra mineira, com cujos carvões fabrica briquetes em estabelecimento fora da área da respectiva concessão, sujeita-a apenas à incidência do imposto de minas, nos termos do Decreto 18713, de 11 de Julho de 1930, e do Decreto-Lei 31884, de 14 de Fevereiro de 1942, ou ainda à daquele outro imposto municipal?
O acórdão recorrido adoptou a segunda orientação, enquanto o de Novembro de 1960 seguiu a primeira.
Em seu acórdão preliminar de fls. 33 e 34, veio a respectiva secção deste Supremo Tribunal a decidir em conferência que, por verificação, afinal, dos pressupostos exigidos pelo artigo 763.º do Código de Processo Civil, havia que prosseguir nos ulteriores termos do recurso.
Tal decisão até foi atingida sem qualquer prévia contrariedade da recorrida.
As partes ofereceram as suas alegações:
A recorrente pugnando pela revogação do acórdão recorrido, pois que:
a) O fabrico de briquetes fora da área da sua concessão constitui, mesmo assim, acessório da exploração mineira respectiva, pelo que todo o regime fiscal extensivo simultâneamente a uma e outra dessas actividades tem o condicionalismo marcadamente especial dos mencionados decretos; e
b) Tão especial que, sobre as concessões mineiras, minérios e produtos do seu tratamento acessório não incidirá nenhum imposto além dos consignados na lei.
Ora o imposto de licença de estabelecimento comercial ou industrial não figura nessa consignação. A aceitar-se um seu respectivo lançamento, surge verdadeira duplicação de imposto, o que a ordem jurídico-fiscal não sanciona.
Por sua banda, sustenta a recorrida:
O imposto em causa tem a amplitude que o artigo 710.º do Código Administrativo lhe marca. E só não é devido perante isenção expressamente marcada na lei.
Ora as empresas concessionárias mineiras só beneficiam da isenção do referido imposto nos concelhos da área da sua exploração (artigo 4.º do Decreto 31884).
De resto, a centralização pela recorrente, e na cidade do Porto, de toda a sua actividade - pois tem aí a sua sede social -, legitima até, e só por si, a exigência do imposto em discussão.
No seu douto parecer de fls. 54 e seguinte, desenvolve o Exmo. Magistrado do Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça conceituação fundadamente contrária ao ponto de vista da recorrida.
Com os respectivos vistos legais, chega agora o recurso à fase do seu julgamento.
E desse modo se passa então a conhecer do seu mérito:
Como se disse, foi liminarmente acordada por este Supremo Tribunal a sequência da tramitação do presente recurso para o pleno, porque a tanto o impunha a decidida ou julgada existência de um conflito jurisprudencial na mesma Relação e acerca do mesmo ponto de direito.
Mas porque tal conceituação até obedeceu, e obedece legalmente, a sistema de natureza preliminar, é que nada agora impede uma mais ampla ou segura incidência apreciativa da sua verdadeira realidade, e designadamente quanto à decretada oposição de julgados (Código de Processo Civil, artigo 766.º, n.º 3).
A verdade, porém, é que nada legitima qualquer alteração ao julgado preliminar.
E o que dele sobressai a todas as luzes é esta inconfundível realidade:
Com o acórdão recorrido, a Relação do Porto situa-se em posição salientemente oposta, e sobre a mesma questão fundamental de direito, à que assumiu no seu acórdão de 30 de Novembro de 1960 (fls. 4 e 25):
Aqui, decidindo que a recorrente, tributada pelo imposto de minas, não tem que satisfazer à recorrida o pagamento do imposto municipal de licença de estabelecimento comercial ou industrial.
Além, responsabilizando-a por tal pagamento. E tudo no domínio da mesma legislação e não passível de recurso ordinário. Flagrante, assim, o antagonismo de julgados, importa realmente uniformizar jurisprudência sobre a questão.
E então, proferindo-se assento doutrinal.
Vejamos, pois:
Com as decisões referenciadas equacionou-se matéria de impostos.
Ora, sobre ela, é de verdadeira directriz, e não só ao legislador como até mesmo ao intérprete, a regra fundamental consignada no artigo 70.º da Constituição Política:
A lei fixa os princípios gerais relativos a impostos, e determinará a respectiva incidência, taxa e isenção.
Quererá dessa maneira significar-se ou impor-se constitucionalmente o critério de que, em tal matéria, nem lícito é invocar-se, sequer, o princípio de legalidade à base de uma interpretação ampliativa.
De resto, é bem sabido que, em direito fiscal, impera o comando do princípio restritivo da influência da norma respectiva.
Ora a recorrente, concessionária mineira - e até de um couto mineiro (artigo 44.º do Decreto 18713) - na área do concelho de Castelo de Paiva, encontra-se submetida, para efeitos fiscais, ao regime especial da incidência de um imposto denominado «imposto de minas» (citados decretos).
Não se trata, assim, de qualquer imposto.
É um imposto de natureza especial.
E tão especial que, consoante o relatório do Decreto 18713, só há que responsabilizar as concessões mineiras por duas classes de impostos:
Um fixo, e outro proporcional:
Aquele, puramente estadual. Este, em misto de estadual, municipal e paroquial (artigos 101.º e 104.º).
Mas, afinal, sempre imposto de minas, incompatível com a incidência de qualquer outro.
Dita-o expressamente aquele Decreto 18713, no seu artigo 105.º, e proclama-o a matéria do artigo 4.º, §§ 2.º e 5.º, do Decreto-Lei 31884 já referido - e ao diante se verá em que regime de subordinação este último diploma o terá feito.
O certo é que tal imposto não alcançe tão-sòmente a lavra pròpriamente dita e respeitante à concessionária.
Alcança - e se assim poderá afirmar-se - para um seu englobamento, as actividades que, por expressa fixação ou determinação legal, se consideram acessórios da lavra.
Reza então o artigo 6.º daquele primeiro decreto (com a redacção dada pelo Decreto-Lei 42205, de 7 de Abril de 1959, e assim posterior ao Decreto-Lei 31884):
São considerados como acessórios dos trabalhos de mineração ou mineiros as seguintes instalações ou oficinas estabelecidas pelos concessionários para serviço das minas e sua coordenação, bem como para tratamento, transformação, manutenção e transporte das substâncias delas extraídas, quer estejam situadas dentro, quer fora, das áreas concedidas:
a) ...
b) ...
c) As instalações de lavagem e de aglomeração de carvões;
d) ...
...
j) Edifícios destinados a escritórios.
É certo que pelo § 1.º do preceito tais escritórios estão sujeitos à prescrição de uma determinada localização.
Mas a inobservância desta em nada tem de influir, como realmente não influi, na questão da incidência fiscal respectiva.
Servirá a um outro procedimento.
Há, assim, um alargamento da proibição de cobrança de imposto diferente do de minas, a acessório em funcionamento para além da área da concessão.
Ora, como já se acentuou, os escritórios também integram ou configuram aquele acessório.
Daí que a sua existência, ainda mesmo que fora da área da concessão, os não desligue, para os efeitos fiscais em causa, da respectiva actividade mineira.
E ao problema não interessa que, com eles, se ostente a mais perfeita centralização da total desenvoltura económica e jurídica dos concessionários.
Ao fisco só então interessa aquela actividade, quer seja desenvolvida na sua respectiva forma específica, quer o seja de maneira acessória.
E, de igual forma, dela não pode desligar-se qualquer instalação de aglomeração de carvões, pois até a completam.
No caso vertente, é o fabrico de briquetes que enquadra tal aglomeração.
Quer porém a recorrida que tais escritórios e estabelecimento da recorrente, precisamente porque se situam fora daquela área, não sejam, em última análise, considerados acessórios, e, por isso mesmo, sem força legal a tolherem-lhe a cobrança do imposto municipal amplamente definido em todas as suas bases naquele artigo 710.º
E entende-o assim porque o regime do mencionado Decreto-Lei 31884 é expressivo na limitação dessa cobrança, que então proíbe, para os concelhos onde as concessões mineiras se encontram situadas.
Para os demais, não há proibição alguma.
É o que resulta da matéria contida pelo seu artigo 4.º
Quer dizer:
Com tal entendimento, o sistema legal do artigo 105.º do Decreto 18713 deixou de ter qualquer relevância:
Caducou, pura e simplesmente.
Há-de porém afirmar-se, para já, que o critério estará moldado em bases nada profundas.
Informá-lo-á, mesmo, conceituação niveladora, afinal, do sistema de uma inadmissível ampliação em matéria de direito fiscal, quando, como vimos, ele não tem a protecção da nossa lei fundamental.
Não há dúvidas - e o seu sucinto relatório o informa expressamente - de que com aquele Decreto-Lei 31884 se visou modificar a legislação reguladora do imposto de minas.
Tal modificação, porém, não alcançou - e nem o poderia fazer - a estrutura fundamental desse imposto:
A de que na sua especialidade reside o expresso princípio legal (citado Decreto 18713) de que na concretização da sua respectiva base de incidência não podem entrar encargos fiscais diferentes daquelas duas classes de imposto fixo e proporcional.
E tanto o não alcançou que o § 2.º do referido artigo 4.º lá mantém em vigor a legislação de minas. Subsistindo assim, como realmente subsiste, tão fundamental princípio, importa não o esquecer, para então nele moldar também a melhor esfera de influência daquele diploma de 1942 (Decreto-Lei 31884).
Demais a mais quando, pela reforma de 1959 (Decreto-Lei 42205), se equaciona em máximo relevo a existência do acessório fora da área concedida à lavra mineira.
E equaciona-se também para efeitos fiscais.
Ora se tal acessório integra assim base de incidência do imposto de minas desdobrado naquelas suas duas únicas classes, manifestamente que, não podendo, como não pode, desligar-se dela, não há que procurar-lhe vida jurídica autónoma causal então de outra idealizada incidência fiscal inteiramente diferente da essencialidade daquela outra.
O acessório concorre no imposto de minas à formação da base de incidência desse especial imposto. Não pode ver-se destacado dela.
Vive a sua respectiva inerência.
É, afinal, imposto de minas. Ora se este não tem outras medidas quantitativa e qualitativa para além da onerosidade daquela dupla classe de impostos, operar-se-lhe qualquer desvio ou afastamento dos seus elementos constitutivos ou integradores, ou mesmo qualquer deles - e no caso vertente, o acessório - para desse modo surgir nova base de incidência, é, sem dúvida, suscitar ampliação que a lei fiscal não cobre.
Proíbe-o mesmo a lei fundamental portuguesa.
Ora a recorrida, tão-só porque o normativo daquele artigo 4.º restringe, em medida territorial, um efeito fiscal lá prevenido, utiliza-se da restrição para, no isolamento daquele princípio estrutural da incidência do imposto de minas, criar à recorrente, mas em seu benefício, um encargo fiscal que se não contém em tal estrutura.
Mas essa criação não pode consistir na sua própria vontade.
Tem de filiar-se sempre na vontade expressa da lei respectiva.
E esta não existe com tal projecção de efeito ou finalidade.
Quer dizer:
Da restrição faz-se nascer, e sem base alguma, aquela ampliação.
Repete-se:
Não há base de direito que o legitime.
E a ideia será tão desconforme quanto é certo poder alimentar situações bem mais que díspares:
Ao imposto de minas na área da concessão não é possível juntar-se qualquer encargo de imposto diferente.
Mas se dele se destacar o elemento estrutural seu acessório, e então fora dessa área, já seria de aceitar essa mesma onerabilidade.
Melhor:
O todo não tem que suportá-la.
Mas a parte já tem que aceitá-la.
Ora, há-de afirmar-se que, adentro até de um melhor princípio de genérica acessoriedade, o conceito não tem bases de aceitação.
Não pode ser.
A recorrida porém, porque através de um seu critério de interpretação literal daquele artigo 4.º anteviu não poder comungar na distribuição de qualquer quantum da classe do imposto proporcional (artigo 104.º e § 2.º do Decreto 18713 e artigo 5.º do Decreto-Lei 31884) idealizou talvez ressarcir-se.
Só que à efectivação do ressarcimento através do sistema fiscal se exigirá lei expressa.
E o citado decreto não a pode servir.
E então, bem menos a possibilita o genérico princípio contido no artigo 710.º do citado Código Administrativo, que, por isso mesmo, não alcança aquela especialidade da legislação mineira.
Para a atingir faltam-lhe, como lei geral, conhecidos pressupostos de direito.
É assim menos rigoroso o critério levado à decisão recorrida.
Por tudo se acorda na sua revogação, formulando-se o assento seguinte:
Os concessionários mineiros não estão sujeitos a licença de estabelecimento comercial ou industrial por actividades específicas ou acessórias do trabalho mineiro.
Sem custas.
Lisboa, 7 de Abril de 1964. - Fragoso de Almeida - Albuquerque Rocha - Lopes Cardoso - Fernando Toscano Pessoa - Barbosa Viana - Gonçalves Pereira - Cura Mariano - Alberto Toscano - José Meneses - Simões de Carvalho - Lucena e Vasconcelos - João Caldeira - Torres Paulo - Tovar de Lemos.
Está conforme.
Supremo Tribunal de Justiça, 21 de Abril de 1964. - O Secretário, Joaquim Múrias de Freitas.