A partir do dia 27 de Agosto de tarde este serviço será suspenso durante um periodo indeterminado que se espera curto. Lamento qualquer inconveniente que isto possa causar.

Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda

Acórdão Doutrinário , de 7 de Janeiro

Partilhar:

Sumário

Proferido no processo n.º 29956

Texto do documento

Acórdão doutrinário

Processo 29956. - Autos de recurso penal vindos da Relação de Coimbra. - Recorrente para o tribunal pleno, Ministério Público. Recorridos, Manuel Gaspar Vieira, Companhia de Seguros Tagus e outros.

I

1. Em 23 de Fevereiro de 1956, cerca das 18 horas, no sítio do Sobreiro Torto, da comarca de Estarreja, estrada nacional n.º 1, chocaram, quando marchavam em sentido oposto, os automóveis RN-13-26 e OT-13-89, respectivamente conduzidos por Jaime de Deus Leite e Manuel Gaspar Vieira. Daí a morte do passageiro do segundo carro Marcolino da Silva, lesões corporais nos dois motoristas e nos passageiros da mesma segunda viatura Abílio Bastos e Vasco Simões, bem como danos no primeiro e no segundo automóvel, nos valores respectivos de 29.000$00 e 27.462$50.

O desastre resultou das duas seguintes condutas:

a) Na lomba de estrada ali existente ter o primeiro réu ultrapassado certa camioneta dianteira, sem prèviamente se certificar da ausência de perigo na execução de tal manobra;

b) Conduzir o segundo réu o automóvel OT-13-89 com velocidade excessiva, atendendo ao estado escorregadio da estrada, cujas obras, chuva e flocos de neve transformaram em lamaçal a zona do acidente. Donde a marcha do carro em ziguezagues e a falta de domínio.

2. Conforme decidiu o acórdão de fl. 561:

Transgrediram: o primeiro réu, o artigo 10.º, n.os 2 e 5; o segundo, o artigo 7.º, n.º 2, alínea g), do Código da Estrada.

Cometeram-se várias violações da lei penal, mas inexiste acumulação, visto aquelas resultarem de conduta uma por parte de cada um dos motoristas. Impõe-se, pois, atender sòmente ao delito mais grave, como base punitiva, tomando-se em conta os restantes eventos como agravantes.

O homicídio vem a ser punido pelo artigo 59.º do Código da Estrada, visto a morte resultar de culpa grave por banda de ambos os condutores.

Em face do aludido aresto ficaram condenados:

a) O Jaime Leite: na pena de dez meses de prisão e multa de 20$00 diários, mais a multa de 200$00; na inibição de conduzir por dois anos, e nas indemnizações: de 55.000$00 a favor da viúva do sinistrado Marcolino; de 20.000$00 ao segundo réu; de 200$00 ao ofendido Abílio, e de 100$00 ao ofendido Vasco;

b) O Manuel Vieira: na pena de seis meses de prisão e multa de 20$00 diários, mais a multa de 200$00; na inibição de conduzir por um ano, e nas indemnizações: de 35.000$00 a favor da referida viúva; de 18.000$00 ao primeiro réu; de 150$00 ao ofendido Abílio, e de 50$00 ao ofendido Vasco.

A responsabilidade dos motoristas a respeito das indemnizações foi transferida, respectivamente, para as companhias seguradoras Portugal Previdente e Tagus.

Por último ficou definido não ser de impor a solidariedade quanto à obrigação do pagamento das indemnizações.

3. O Ministério Público recorreu para o tribunal pleno do aludido veredicto, que se pode ler no Boletim do Ministério da Justiça (82-340), com o fundamento de existir oposição entre ele e o aresto deste Supremo, de 30 de Julho de 1958, inserto no citado Boletim (79-391), sobre as seguintes questões de direito:

a) Alcance e aplicação das alíneas b) e d) do artigo 61.º do Código da Estrada, a propósito da inibição de conduzir;

b) Alcance e aplicação do artigo 2372.º do Código Civil, quanto à solidariedade no pagamento das indemnizações, nos casos de concorrência efectiva de causas ou de causalidade cumulativa.

A secção criminal deu seguimento ao recurso, pois julgou serem opostos os focados acórdãos sobre os referidos pontos de direito.

O ilustre magistrado do Ministério Público recorrente apresentou brilhantes alegações, as quais fecharam como seguinte projecto de doutrina a firmar:

I. A alínea d) do n.º 2 do artigo 61.º do Código da Estrada refere-se também a crimes culposos;

II. O artigo 2372.º do Código Civil abrange os casos de comparticipação e os de concorrência efectiva de causas ou de causalidade cumulativa.

Ninguém mais alegou.

II

4. Ratifica-se plenamente o decidido sobre a oposição de julgados, por satisfazer o condicionalismo prescrito nos artigos 668.º do Código de Processo Penal e 763.º do Código de Processo Civil.

Passemos ao conflito de jurisprudência pela ordem dos problemas em debate.

A) 1.º problema:

5. O exposto no anterior parágrafo 2 mostra à saciedade terem os dois condutores sofrido pena correccional por crime praticado no exercício da condução.

Este caso enquadra-se a rigor na alínea d) do n.º 2 do artigo 61.º do Código da Estrada. Com efeito, aí se consigna que serão inibidos temporàriamente da faculdade de conduzir e privados das respectivas licenças:

Por tempo não superior a cinco anos, variável conforme a gravidade da infracção, os condutores condenados em pena correccional por qualquer crime cometido no exercício da condução ou que tenham utilizado o veículo ou licença de condução para o prepararem ou executarem.

O grifado é do punho do relatante.

O transcrito preceito fala ipsis verbis de «qualquer crime». Tal genérica expressão engloba, só por si, os dois tipos de delito: voluntários e involuntários.

Mas a leitura ad verbum - à parte o indefinido «qualquer» - mostra terem-se abrangido as duas referidas espécies.

Precisando. O crime praticado pura e simplesmente no exercício da condução é o involuntário. O crime que o agente preparou ou executou, utilizando para esse fim certo veículo ou licença de condução, já é voluntário.

Repugna admitir o emprego da latitudinária fórmula verbal «qualquer crime», se houvesse o propósito de apenas abranger os crimes dolosos e, consequentemente, exceptuar os inúmeros crimes por negligência, que clamorosamente provêm do puro exercício da condução.

Reforça o entendimento aqui adoptado a sintomática particularidade de o mesmo diploma falar, em vários passos, ora de crimes voluntários, ora de crimes involuntários, nos casos em que só estes ou aqueles quis abranger. Vejam-se: artigo 46.º, n.º 2, alínea a), n.os 1.º, 2.º e 3.º, alínea c), n.º 2.º, e artigo 58.º, n.º 4.

6. Argumenta-se ex adverso:

Aplicando a focada norma aos crimes involuntários adviriam iniquidades. Assim, e v. g., um motorista seria privado de conduzir, embora punido com leve pena de multa, por cometer um dano culposo de insignificante valor.

Retorquindo:

1.º A dita alínea absteve-se por completo de impor limite mínimo sobre a inibição de conduzir. Deste modo, o período temporal da medida de segurança pode fixar-se «conforme a gravidade da infracção», como aliás recomenda até a própria alínea d).

2.º Mesmo que contivesse um limite mínimo elevado. Quando se cumpre a lei não se ofende ninguém.

7. Analisemos a alínea b) do n.º 2 do artigo 61.º

Conforme ela dispõe, serão inibidos temporàriamente da faculdade de conduzir e privados das respectivas licenças:

Até três meses, seis meses e um ano, pela primeira, segunda e sucessivas infracções, os condutores:

1.º Que no cruzamento com outros veículos não diminuam a intensidade das luzes de modo a evitar o encandeamento:

2.º Que usem de velocidade excessiva ou pratiquem manobras perigosas.

As manobras perigosas vêm definidas no anterior n.º 1, segunda parte, do mesmo artigo 61.º

Portanto, a versada alínea b) só compreende contravenções, e, destas, as respeitantes aos seguintes assuntos:

Cruzamento de veículos sem diminuição de luzes a impedir o encandeamento (artigo 30.º, n.º 2, segunda parte). Velocidade excessiva (artigo 7.º, n.º 1, segunda parte). Sentido do trânsito; início de manobra; prioridade de passagem; cruzamento de veículos; ultrapassagem; mudança de direcção; inversão do sentido da marcha; marcha atrás (artigos 5.º, n.os 2 e 5, última parte, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 12.º e 13.º, respectivamente).

Assim, quando no exercício da condução se cometer - além das enumeradas contravenções - ainda um crime voluntário ou involuntário, pelo qual o condutor vier a ser condenado em pena correccional, só é aplicável a discutida alínea d).

Um parêntesis. O Supremo Tribunal Administrativo chegou já a decidir que a medida de segurança pelos factos vistos na focada alínea b) é da competência da Direcção-Geral de Transportes Terrestres (Acórdão de 24 de Abril do corrente ano, tirado pelo Exmo. Conselheiro Teixeira Martins, recurso n.º 5401).

8. Se vingasse a tese adversa surgiriam impressionantes situações. Atente-se no exemplo que se vai expor.

Um motorista pode causar pela primeira e segunda vez vários homicídios involuntários apenas devido a imperícia ou a descuido com o perfeito funcionamento dos aparelhos de travagem e manobra. Nesta hipótese, e dada a inaplicabilidade da alínea d), não haveria lugar a medida de segurança, por se inverificar qualquer dos restantes casos de inibição enumerados no predito artigo 61.º

O Código da Estrada francês (Decreto 54724, de 10 de Julho de 1954), impõe a inibição de conduzir, de um mês a dois anos, ao condutor condenado por homicídio ou ofensas corporais involuntárias cometidas no exercício da condução.

Se ao delito se seguir a fuga ou tiver lugar em estado de embriaguez, aqueles limites sobem, respectivamente, para um e quatro anos (artigo 131).

B) 2.º problema:

9. No exemplo dos autos os dois réus não colaboraram conscientemente num plano ou objectivo comum. O processo apenas patenteia um nexo espacial e temporal de duas actividades completamente distintas. Não há, assim, a figura jurídica da comparticipação criminosa.

No douto aresto oposto a hipótese é idêntica, mas o problema da solidariedade não chegou a ser agitado pelas partes, pelo que nem sequer foi discutido pelo Supremo.

10. A solução do segundo conflito jurisprudencial depende do entendimento a dar ao artigo 2372.º do Código Civil.

O seu teor é o seguinte:

Se a ofensa dos direitos for cometida por mais de um indivíduo, serão todos solidàriamente responsáveis, salvo o direito do que pagar pelos outros a haver deles as quotas respectivas.

§ 1.º Estas quotas serão proporcionadas à responsabilidade criminal de cada um dos delinquentes, se essa responsabilidade for diferentemente graduada.

§ 2.º Esta proporção será regulada pelos tribunais, no mesmo acto em que a responsabilidade criminal for graduada, se o lesado tiver requerido a devida indemnização.

O proémio do transcrito artigo encontra-se redigido de forma latitudinária. Deste modo, compreende tanto os autores, cúmplices e encobridores do crime como ainda os agentes que, embora dissociados, contribuam com os seus actos ilícitos para a produção do mesmo dano. Por outras palavras, fica dentro do âmbito do preceito quer a figura da comparticipação delituosa, quer a da actuação paralela ou concurso de causas efectivas objectivamente ligadas entre si.

Isto representa um corolário da sentença latina: ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus.

11. Conforme a teoria da conditio sine qua non ou de equivalência das condições, de von Buri: cada coactividade determina toda a consequência - apud Demogue, Traité des Obligations en Général, 4-11, in fine, e 12.

Também pelo princípio causa causae est causa causati cada condição produz o resultado total, por tornar causais as outras condições.

Consequentemente: o co-autor é responsável pela reparação integral do dano, visto cada um provocar todo o prejuízo.

É a hipótese, verbi gratia, da morte do transeunte pelo embate entre dois automóveis em que um rodava fora de mão e outro com velocidade excessiva - Henri Mazeaud e Léon Mazeaud, Traité Théorique et Pratique de la Responsabilité Civile, 2.ª ed., 2-748 e 749.

No sentido de o artigo 2372.º abranger tanto os danos causados conjuntamente como os danos causados independentemente por várias criaturas: Prof. Adriano Vaz Serra, Responsabilidade Contratual e Responsabilidade Extracontratual, in Boletim do Ministério da Justiça, 85-132 a 135; Doutor F. M. Pereira Coelho, O Problema da Causa Virtual na Responsabilidade Civil, pp. 8 (nota 5) e 9.

III

Proferem-se, portanto, os seguintes dois assentos:

1.º O disposto na alínea d) do n.º 2 do artigo 61.º do Código da Estrada abrange o crime doloso e o crime culposo.

2.º O artigo 2372.º do Código Civil abrange o caso de comparticipação no facto ilícito e o de vários factos produzirem conjuntamente a ofensa.

Por conseguinte, o processo volta à secção criminal para ser alterado o recorrido aresto de conformidade com aquele segundo assento.

Sem imposto.

Lisboa, 9 de Dezembro de 1959. - Silva e Sousa [o relator lavrou o acórdão só por a tese acerca do primeiro problema se harmonizar com o projecto que apresentou em mesa. Razões da sua discordância quanto à solução dada ao segundo conflito jurisprudencial.

1. Um dos meios de perscrutar a mens legis é constituído pelo confronto entre o texto interpretando e o texto anterior donde emana.

O artigo 2372.º teve a sua origem no artigo 106.º do Código Penal de 1852 - ver Prof. Jaime Gouveia, Da Responsabilidade Civil, 1933, p. 145. Esta norma apenas impunha a solidariedade aos comparticipantes, de que só faziam parte os autores e os cúmplices, segundo o sistema do respectivo diploma - artigos 24.º, 197.º, 198.º e 431.º, § único.

Sem dúvida o prefulgente visconde de Seabra e a esclarecida comissão revisora ter-se-iam expressado de maneira diferente da contida no artigo 2372.º se quisessem estender o ónus da solidariedade aos co-agentes sem a categoria jurídico-penal de comparticipastes, por falta de colaboração, quer dolosa, quer culposa.

Também se não vê transparecer das Actas, p. 364, a mínima ideia no sentido de impor aquele gravame aos actos autónomos mais objectivamente comprometidos no evento. Isto é, sem intenção única, para que o acto de cada um esteja presente na actividade de todos, no dizer de Chironi - La Culpa en el Derecho Civil Moderno, traduzido da segunda edição italiana de Bernardo de Quirós, II, 307.

2. Já Birkmeyer observou representar um sofisma o princípio causa causae est causa causati. Confrontem-se: Demogue, ibidem, p. 15, e Prof. Eduardo Correia, Direito Criminal (lições), p. 229.

A qualidade de cada falta faz parte essencial da causalidade do dano. Uma balança encontra-se em repouso e com um peso de 10 kg num dos pratos. Colocados no prato oposto três pesos, respectivamente de 7 kg, 2 kg e 1 kg, aquela movimenta-se e fica equilibrada. Contudo, ninguém dirá que foi 1 kg a causa total do movimento, embora sem este peso a balança permanecesse queda. Para o pleno equilíbrio contribuíram os três últimos pesos na proporção de sete décimos, dois décimos e um décimo.

Também cada falta contribui proporcionalmente na consumação do dano. Por isso, cada um deve indemnizar na medida do seu desmando - Joatton, Essai Critique sur la Théorie Génerale de la Responsabilité Civile, 1933, pp. 104 a 107.

3. Solidariedade passiva. Em face dela pode ser exigido o pagamento integral da indemnização apenas a um dos co-devedores. Se este pagar, terá o direito de haver dos outros as quotas proporcionadas à responsabilidade de cada um - Código Civil, artigos 752.º, 754.º e 2372.º, § 1.º

Tal regime, no domínio das realidades e sob a focada matéria, pode afectar sèriamente a justiça.

Um exemplo. O prejuízo computou-se em várias centenas de milhares de escudos. Conforme o grau das correlativas culpas, coube pagar: ao Primus, meia dúzia de contos; ao Secundus, o restante. Este, no entanto, encontra-se econòmicamente em apuros, ao passo que o outro é pessoa de largos haveres.

Resultado. O Primus, cuja culpa é diminuta, vem a pagar tudo. Daí, quiçá, a sua ruína; a desgraça dele e dos seus. Vide Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, 12-948 (com citação de Pirson e de Villé).

Creio que o artigo 2372.º só comporta semelhante desfecho no caso de comparticipação. Como seria se o Primus tivesse colaborado com o Secundus, dolosa ou culposamente, no ilícito penal] - Lopes Cardoso - Alves Monteiro - Carlos de Miranda - F. Toscano Pessoa - Campos de Carvalho - Thomaz Pereira - S. Figueirinhas - Sousa Monteiro - Anselmo Taborda - Barbosa Viana - Agostinho Fontes (vencido quanto ao segundo assento pelas razões expostas pelo ilustre relator) - Eduardo Coimbra (vencido nos mesmos termos) - Mário Cardoso (vencido nos mesmos termos e pelas mesmas razões do voto de vencido do douto relator) - (Tem igual voto de vencido do Exmo. Sr. Conselheiro Morais Cabral, que não assina por não estar presente - Silva e Sousa).

Está conforme.

Secretaria do Supremo Tribunal de Justiça, 16 de Dezembro de 1959. - O Secretário, Joaquim Múrias de Freitas.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2466059.dre.pdf .

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

O URL desta página é:

Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda