Recorrente, Ministério Público.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
Um dos Exmos. Adjuntos do Procurador da República junto do Tribunal da Relação de Lisboa, ao abrigo do disposto no artigo 669.º do Código de Processo Penal, interpôs, oficiosa e extraordinariamente, recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, visando obter a fixação de jurisprudência sobre o ponto de saber se, para efeito da verificação do crime de que tratam os artigos 23.º e 24.º do Decreto 13004, de 12 de Janeiro de 1927, o título sacado com a palavra «cheque», inserta no próprio texto, terá necessariamente de conter a indicação do lugar onde o referido título foi passado ou, pelo menos, a indicação de qualquer lugar ao lado do nome do sacador.
O recorrente fundamenta deste modo o seu pedido:
O Tribunal da Relação de Lisboa, por Acórdão de 23 de Junho de 1971, decidiu que: o conceito de cheque expresso nos artigos 23.º e 24.º do Decreto 13004 é o próprio do direito comercial que nos é dado pelos artigos 1.º e 2.º da Lei Uniforme sobre Cheques e, nos termos destas últimas disposições, para que exista validamente o cheque, importa que este revista os requisitos enumerados no artigo 1.º da referida Lei Uniforme e, entre eles, o do n.º 5.º, «indicação do lugar onde o cheque é passado».
Assim, omitindo-se no título este requisito, ele não pode valer como cheque, não tem existência jurídica como tal e, por isso, quando não tenha cobertura ou provisão, não se verifica o crime previsto e punido nos termos dos artigos 23.º e 24.º do Decreto 13004.
Este acórdão, fotocopiado a fls. 4 e segs. destes autos, transitou em julgado.
Posteriormente, o mesmo Tribunal, por Acórdão de 14 de Abril de 1972, veio a decidir:
«A exigência do n.º 5.º in fine do artigo 1.º da Lei Uniforme relativa ao cheque (indicação do lugar onde o cheque é passado) não constitui requisito essencial para a validade do título e, consequentemente, o cheque, omisso quanto ao lugar onde foi emitido, tem validade como tal, nomeadamente para o efeito de motivar procedimento criminal contra o emitente nos termos do artigo 23.º do Decreto 13004.» Deste último acórdão, transcrito na certidão de fls. 11 e segs., não podia interpor-se recurso ordinário e, por isso, perante a oposição estabelecida entre os dois acórdãos, proferidos no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, era lícita a interposição do presente recurso extraordinário sob a permissão da citada norma do artigo 669.º do Código de Processo Penal.
No acórdão de fls. 28 e segs. julgou-se existir a invocada oposição entre os julgados em questão e existirem, também, as demais condições exigidas para o prosseguimento do recurso.
O Exmo. Ajudante do Procurador-Geral da República junto da secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça, no seu douto parecer de fls. 35 e segs., entende que o conflito de jurisprudência deve ser solucionado no sentido de se fixar, por assento, que não tem validade como cheque, ainda que para o efeito dos artigos 23.º e 24.º do Decreto 13004, de 12 de Janeiro de 1927, o título a que falta a indicação do lugar onde é passado ou qualquer designado ao lado do nome do sacador.
Cumpre decidir:
Em primeiro lugar, é de reconhecer que se verifica todo o condicionalismo legal exigido pelo artigo 669.º do Código de Processo Penal para a admissão do recurso, adoptando-se, neste particular, a decisão tomada pela secção criminal no acórdão de fls. 28 e segs.
Pode, pois, passar-se à apreciação da questão para a qual se busca uma solução que ponha termo à oposição jurisprudencial atrás referida.
O artigo 23.º do Decreto 13004, de 12 de Janeiro de 1927, considera criminosa a omissão de um cheque que, apresentado a pagamento, no competente prazo ... não for integralmente pago por falta de provisão, e o artigo 24.º do mesmo decreto dispõe que o sacador de um cheque, cujo pagamento, por falta de provisão, tiver sido verificado nos termos e no prazo prescritos nos artigos 21.º e 22.º do presente decreto, será aplicada, a pedido do portador do cheque, a pena de seis meses a dois anos de prisão correccional.
Estas disposições destinam-se a tutelar penalmente no nosso direito (outros países o fizeram igualmente) a bem conhecida função económico-jurídica do cheque, título de crédito destinado a uma intensa circulabilidade e estruturado, a partir de um depósito de cobertura, num pressuposto de confiança do tomador e extensível ao público em geral, de modo a todos deverem acreditar que tal título cambiário tem potencialidade para efectuar pagamentos e entrar em compensações várias, com o efeito de, até, contribuir para a redução da própria circulação fiduciária.
Tais disposições, com o indicado escopo, começaram a vigorar antes da aplicação no nosso direito interno da Lei Uniforme relativa ao cheque.
Esta lei começou por regular a emissão e «forma» daquele título de crédito (artigo 1.º) e, relativamente à forma, enumerou os requisitos que deve conter, prescrevendo, no seu n.º 5.º, que um deles é a indicação do «lugar onde o cheque é passado».
Seguidamente, o artigo 2.º prescreve que o título a que faltar qualquer desses requisitos não produz efeito como cheque, salvos os casos determinados nas alíneas seguintes, a última das quais admite que o cheque sem a indicação do lugar da sua emissão se considera passado no lugar designado ao lado do nome do sacador.
Deste modo, e no estrito aspecto formal regulado pela Lei Uniforme, desde que o título não contenha a indicação de qualquer lugar que à face dessa lei possa ser havido como o da emissão, não produzirá efeito como cheque.
Com base nesta consideração e vendo-se aqui traçado, em direito comercial, o conceito normativo de cheque a impor-se, segundo as melhores regras de interpretação, em direito penal, poderá concluir-se sem mais: não havendo cheque, não poderá punir-se a falta de provisão que ele inculcaria ou faria pressupor.
É a posição do Acórdão da Relação de Lisboa de 23 de Junho de 1971, que já anteriormente fora tomada pelos Acórdãos da Relação do Porto de 21 de Janeiro de 1967 e da Relação de Coimbra de 15 de Maio de 1970 (cf. Acórdãos das Relações, 13, p. 131, e 16, p. 576, respectivamente) e à qual aderiu o Exmo. Ajudante do Procurador-Geral da República no seu douto e já referido parecer de fls. 55 e segs.
destes autos.
Todavia, a opinião oposta é aquela que deverá prevalecer, por isso que possibilita manter a conduta que se julgou merecedora de punição dentro do âmbito da lei punitiva sem desrespeitar os princípios próprios do direito comercial reguladores do título de crédito de que se trata.
Este harmónico entendimento da lei justifica-se, fundamentalmente, pelo seguinte:
1. O cheque omisso quanto ao lugar onde foi passado é um cheque incompleto quanto à indicação dos seus requisitos formais, mas não deixa de constituir uma realidade acolhida pelo direito e, designadamente, pelo artigo 13.º da respectiva Lei Uniforme, relativamente ao qual o nosso país não formulou qualquer reserva.
2. Ora, segundo os princípios gerais, um título de crédito incompleto é válido, posto que tenha de ser completado até ao pagamento.
É ferido de ineficácia e a esta especialmente se refere o pressuposto do artigo 2.º da Lei Uniforme.
Apesar de toda esta ineficácia, não lhe é retirada aptidão circulatória.
3. Como já se deixou esboçado, o bem jurídico tutelado quando a lei pune o crime de emissão de cheque sem cobertura é, essencialmente, a circulação do título e a confiança que a aparência do mesmo nas funções económica e jurídica que é chamado a desempenhar deverá inculcar.
4. A lei penal, ao descrever acções diversas merecedoras de sanção, refere-se muitas vezes a diversos nomen juris de outros ramos de direito, sem exigir uma completa verificação dos respectivos conceitos normativos e a plena validade e eficácia dos respectivos negócios jurídicos.
É um dos aspectos afirmativos da proclamada autonomia do direito penal.
Assim, por exemplo, o Código Penal refere-se no artigo 450.º a uma segunda venda que pelo artigo 892.º do Código Civil é considerada nula e toma como «letra de câmbio», para efeito do crime de falsificação, um título assinado em branco que seja preenchido abusivamente, facto que, segundo o entendimento deste Tribunal, cai sob a alçada dos artigos 217.º e 220.º do referido Código Penal.
Este último caso não deixa de ser aproximável da hipótese em debate.
5. Partindo de tal realidade, tem-se considerado em França que a emissão de cheque sem provisão tem lugar não só quando o cheque seja válido por motivo de fundo, como, por exemplo, no caso de incapacidade do sacador, como, ainda, quando o cheque seja formalmente irregular, desde que, como diz o Tribunal de Cassação, o título tenha a aparência de um cheque e tenha sido entregue e aceite como tal (cf.
Joseph Hamel, tomo II, Le Cheque, por M. Vasseur et X. Marin, Sirey, 1969, p. 79).
6. É que a circulação do cheque faz-se sob a pressuposta admissibilidade de completa cobertura que é assegurada pelo sacador a partir do acto da emissão. A possibilitação desta, mediante a assinatura daquele em tal qualidade, e a implícita possibilitação da correspondente cobertura, são actos dependentes da vontade daquele sacador e a falta desta cobertura consuma o delito que nos ocupa.
Logo, esta consumação verifica-se independentemente da apresentação do título a pagamento e tal apresentação e a recusa daquele pagamento são meras condições de possibilidade, como geralmente se tem entendido.
Assim, quando o estabelecimento bancário recusa o pagamento do cheque, quer seja por falta ou por irregularidade de requisitos formais, quer seja por falta de provisão, o crime de que se trata consuma-se em momento anterior à verificação de qualquer razão invalidativa do título no tocante a aspectos de fundo ou de forma, relevantes em direito comercial.
7. A admissão da doutrina do Acórdão de 23 de Junho de 1971 colocaria nas mãos do sacador meio fácil para, na sequência do seu plano fraudativo, maxime tratando-se de requisitos pouco aperceptíveis e de menor repercussão, como é o usado nos autos, eliminar, por acto seu, a sanção penal que sobre ele impendia, deixando, como reservada má fé, de mencionar esse requisito (cf. Cabrillac, Le Cheque et le Virement, p. 59; Dr. J. C. Moitinho de Almeida, Scientia Iuridica, XVIII p. 142).
8. E não se diga que, sendo permitido no nosso direito a figura jurídica do cheque em branco, o tomador poderia completar a parte omissa, significando a sua abstenção em completar tal parte a renúncia ao exercício de procedimento criminal. O que está em causa é a conduta relativa ao sacador que não assegura provisão, seja o cheque completo ou incompleto, pois todos estão aptos a entrar em circulação e é esta que se procura proteger nos termos já afirmados.
Por tudo o que fica exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça, reunido em tribunal pleno, em decidir o conflito de jurisprudência, objecto do presente recurso, com a formulação do seguinte assento:
Vale como cheque, para o efeito dos artigos 23.º e 24.º do Decreto-Lei 13004, de 12 de Janeiro de 1927, o título a que falta a indicação do lugar onde é passado.
Lisboa, 5 de Dezembro de 1973. - Daniel Ferreira - Ludovico da Costa - Oliveira Carvalho - Adriano Vera Jardim - Eduardo Correia Guedes - Adriano de Campos de Carvalho - Manuel José Fernandes Costa - João Moura - Falcão Garcia - Eduardo Arala Chaves - Bruto da Costa - Manuel Arelo Ferreira Manso - Alfredo Azevedo Soares - José António Fernandes (vencido. Desde que a lei comercial exige como requisito da validade do cheque a indicação do lugar onde é passado ou qualquer designado ao lado do nome do sacador, não pode haver - na sua falta - o crime previsto pelos artigos 23.º e 24.º do Decreto 13004, de 12 de Janeiro de 1927, que pressupõe aquele requisito.
O artigo 18.º do Código Penal proíbe a interpretação extensiva das normas incriminadoras.) - Jacinto Fernandes Rodrigues Bastos (vencido, por idênticas razões).
Está conforme.
Supremo Tribunal de Justiça, 18 de Dezembro de 1973. - O Secretário, Joaquim Múrias de Freitas.