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Acórdão 685/2004/T, de 14 de Abril

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Texto do documento

Acórdão 685/2004/T. Const. - Processo 817/2002. - Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I - Relatório. - 1 - Alberto Francisco Bento instaurou, na sequência do corte do fornecimento de água a um prédio em Lisboa, contra a EPAL - Empresa Pública das Águas de Lisboa acção com processo sumário, pedindo a condenação da ré a restabelecer a ligação da água, bem como a pagar uma indemnização devida pela suspensão.

Tendo a ré, na contestação, invocado a aplicação do artigo 69.º do Regulamento para o Serviço de Abastecimento de Água, publicado pela Portaria 10 716, de 24 de Julho de 1944, o autor invocou a inconstitucionalidade de tal preceito, na réplica apresentada.

A acção foi julgada improcedente, por sentença de 11 de Julho de 2001 (fls. 82 e 83).

Requerida a reforma da sentença, foi a mesma indeferida por sentença de 9 de Outubro de 2001 (fl. 95).

Arguida a nulidade da sentença, foi esta também indeferida por sentença de 12 de Novembro de 2001 (fl. 100).

2 - Alberto Francisco Bento interpôs recursos de agravo e de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa. Nas alegações da apelação disse o recorrente, no que à questão de constitucionalidade se refere, o seguinte:

"Mas aquele privilégio criado por um simples regulamento não vai só contra o disposto no artigo 334.º do CC, vai também contra o estatuído no artigo 13.º, n.º 1, da Constituição, já que coloca a EPAL num plano superior a todas as demais pessoas e empresas que são obrigadas a discutir contrato por contrato, e não podem interromper um contrato pelo simples motivo de, em seu entender, haver outro que não foi cumprido. Além disso, atribuindo um privilégio desta importância em que praticamente a companhia EPAL elimina os Tribunais aquele regulamento derroga diversos princípios constitucionais. Tal privilégio vai contra o disposto no artigo 20.º, n.os 1, 4 e 5, da Constituição. Vai contra o princípio de que todos somos iguais perante a lei. Ora a lei diz 'quem alega prova'. Fica em pé de desigualdade o cidadão quando se inverte este princípio: 'Prove lá que nada deve', por ser um facto negativo e haver uma imensidade quasi infinita de causa.

Viola igualmente o artigo 18.º, n.os 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, já que os direitos, liberdades e garantias previstos naquele artigo vinculam as entidades públicas e privadas. Por outro lado as leis restritivas dos direitos, liberdades e garantias têm de revestir um carácter geral e abstracto e não podem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais:

a) O cidadão é colocado perante um facto consumado, o que se não pode admitir num Estado que se diz de direito;

b) Retirando o acesso à água 'mesmo quando o mesmo esteja feito em domicílio ou local diferente' como diz o regulamento, está a atentar contra a vida e saúde do cidadão, a integridade física e moral do cidadão - artigo 25.º da Constituição."

O Tribunal da Relação de Lisboa, por Acórdão de 25 de Junho de 2002, negou provimento ao agravo, dizendo, entre o mais, o seguinte:

"Seja como for, agora o que importa é saber se deve ser atendida a pretensão do autor no sentido de ver decidida na sentença a prescrição que diz que invocou.

Como é consabido, o Código de Processo Civil impõe regras que têm de ser acatadas pelas partes e pelo juiz, devendo os actos processuais ser praticados em conformidade com essas mesmas regras e não ao jeito de cada um.

A prescrição não é de conhecimento oficioso. Necessita, para ser eficaz, de ser invocada por aquele a quem aproveita, conforme o impõe o artigo 303.º do Código Civil.

Alega o agravante que invocou a prescrição. Em que articulado?

Se é certo que, na contestação, a ré se defende por excepção e por impugnação, não é menos certo que ao autor apenas era permitido, na réplica, responder à matéria da excepção, conforme dispõe o artigo 502.º, n.º 1.

A ré defendeu-se por excepção quando invocou a ilegitimidade nos artigos 1.º a 5.º da contestação.

Estava vedado ao autor ir além da resposta à excepção dilatória invocada pela ré. Por isso, toda a matéria que vai para além da resposta à excepção, tem de ser julgada nula, nos termos do disposto no artigo 502.º e 201.º, e considerada como não escrita.

Isso mesmo foi requerido pela ré no seu requerimento de fls. 34 e 35 sobre o qual o M.mº Juiz se não pronunciou, como devia ter feito.

Não podia o autor vir invocar a prescrição e a inconstitucionalidade nesse articulado.

Aliás, se o pedido de prescrição fosse de considerar, estaríamos perante uma contradição de pedidos, pois, por um lado, o autor alega que não reconhece o débito, mas, por outro lado, invoca a sua prescrição. Encontrando-se os pedidos formulados ao mesmo nível, isto é, não sendo o pedido de prescrição formulado como subsidiário do outro, nos termos do artigo 469.º, parece haver contradição entre eles.

A sentença, apesar do seu grande laconismo, refere, quanto à prescrição, que nenhum elemento existe que permita detectá-la.

Verifica-se, assim, que se pronunciou sobre a prescrição, embora não seja certa a afirmação da falta de elementos. Não podia, porém, conhecer da prescrição pelas razões já expendidas.

Pelo exposto, sem necessidade de mais desenvolvidas considerações, nega-se provimento ao agravo."

E quanto à apelação, a Relação, no mesmo aresto, considerou o seguinte:

"Começaremos por referir que o recorrente não estabelece uma nítida fronteira entre o agravo e a apelação. Chega mesmo a repetir as questões que num e noutro recurso pretende ver decididas.

Assim, alega o apelante que a sentença violou o disposto no artigo 10.º da Lei 23/96, ao não considerar prescrito o débito que fundamentou o corte do fornecimento de água ao andar dos autos.

Como já se disse no agravo, a prescrição não é de conhecimento oficioso.

Necessita, para ser eficaz, de ser invocada por aquele a quem aproveita, conforme dispõe o artigo 303.º do Código Civil. E tem de ser invocada no momento processual próprio, com pleno respeito pelas regras impostas pelo Código de Processo Civil. Por isso, não podia ter sido invocada - como o foi na réplica. Nesta, o autor só pode responder à matéria da excepção deduzida na contestação, nos termos do disposto no artigo 502.º, n.º 1.

Toda a matéria que vai para além da resposta à excepção deduzida na contestação, tem de ser julgada nula, nos termos do disposto nos artigos 502.º e 201.º, devendo ser considerada como não escrita.

Em suma, fica-nos vedado o conhecimento da prescrição por não ter sido validamente invocada pelo autor.

Seguidamente o apelante invoca outras questões cuja decisão também não requereu na petição inicial, mas que refere agora pela primeira vez.

Como é sabido, os recursos visam modificar as decisões recorridas e não criar decisões sobre matéria nova, não sendo lícito invocar nos mesmos questões que não tenham sido objecto das decisões recorridas nem devendo neles conhecer-se de questões que as partes não tenham suscitado perante o tribunal recorrido - v., entre outros, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Fevereiro de 1987, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 364, p. 714.

O autor limitou-se a invocar um contrato de fornecimento de água que foi celebrado com a ré e que esta, sem fundamento cortou o abastecimento de água, como meio de forçar a cobrança de 6322$.

Acrescenta que o débito não diz respeito ao contrato ora em causa nem ao respectivo andar, e será impugnado em devido tempo e lugar próprio.

Entende que a atitude da ré deve ser classificada como abuso de direito já que pretende obrigar pela força, pela criação de um estado de necessidade, ao pagamento de uma prestação que não lhe é devida pelo autor.

Com o fundamento de que a atitude da ré lhe está a causar prejuízos no valor de 150 000$ mensais, pede que a ré seja condenada a fazer a ligação da água conforme o contrato vigente e a indemnizar o autor em 150 000$ mensais enquanto se mantiver suspenso o fornecimento.

Alega o apelante que o suposto débito diz respeito a outro local e a outro contrato de prestação de fornecimento de água, pelo que tal corte sempre seria ilegal.

Não é ilegal, porque o artigo 65.º, alínea d), da Portaria 10 716, de 2 de Julho de 1944, permite a interrupção do fornecimento de água no caso de falta de pagamento das contas de consumo [...] e de outras que sejam devidas à Companhia pela prestação e execução de quaisquer serviços.

Sendo assim, a EPAL não se excedeu no exercício dos seus direitos, como afirma o apelante.

O apelante entende que a atitude da ré deve ser classificada como de abuso de direito porquanto pretende obrigar pela força, pela criação de um estado de necessidade, ao pagamento de uma prestação.

A suspensão do fornecimento de água só constituiria abuso de direito se tivesse sido feita sem qualquer advertência. Doutro modo, tem de compreender-se que a falta de pagamento será motivo justificativo da referida suspensão.

Mesmo a Lei 23/96, de 26 de Julho, tendo em vista criar os mecanismos destinados a proteger o utente dos serviços públicos essenciais, permite, em caso de mora do utente, a suspensão do serviço, embora só possa ocorrer depois do utente ter sido advertido, por escrito, com uma antecedência mínima de oito dias.

O apelante não alega que a suspensão teve lugar sem qualquer aviso prévio, sendo certo que a apelada diz que procedeu a esse aviso. Por isso, não se pode dizer que a EPAL excedeu manifestamente o exercício dos seus direitos.

Não se verifica, pois, o invocado abuso de direito previsto no artigo 334.º do Código Civil.

Embora não tenhamos que nos pronunciar sobre a constitucionalidade pelas razões já expostas, sempre se dirá que a suspensão, depois desta advertência, não poderá classificar-se de inconstitucional. Não fere os direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição, o facto de se suspender o fornecimento de água no caso de falta de pagamento, desde que o utente tenha sido previamente advertido. E o autor não provou que não foi devidamente advertido.

Também não se trata de um privilégio exclusivo da EPAL, pois qualquer fornecedor tem o direito de interromper o fornecimento por falta de pagamento. É claro que a inexistência do débito é outra questão, mas tal pagamento poderá ser impugnado 'em devido tempo e no lugar próprio', como o autor se propôs fazer, de acordo com o que alegou na petição inicial.

Alega ainda o apelante que a sentença é nula, porque violou o artigo 668.º, n.º 1, por não ter especificado os fundamentos de facto e de direito que justificam as decisões.

A este respeito há que distinguir entre a falta absoluta de motivação e a motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera causa de nulidade é a falta absoluta de motivação.

No caso dos autos a fundamentação existe, embora possa considerar-se muito deficiente. Porém, essa deficiência não constitui vício que determine a nulidade da sentença.

Invoca ainda o vício a que se refere a alínea d) do n.º 1 do mesmo preceito, por não se ter pronunciado sobre o pedido da autora no sentido de obrigar a ré a repor o fornecimento de água.

A sentença foca esse pedido e termina por julgar a acção improcedente, o que equivale a dizer que absolve a ré dos pedidos formulados pelo autor. Enfim, embora tratado de forma deficiente, como já se disse, o pedido não foi olvidado.

Seguidamente o apelante alega que ao não considerar que o autor é o cabeça de casal da herança deixada por óbito de D. Dolores não considerou a prova produzida, nomeadamente o testamento e a habilitação de herdeiros.

Como o apelante muito bem sabe, só é possível impugnar a decisão sobre a matéria de facto nos termos do disposto no artigo 690.º-A. A falta da observância deste preceito implica a rejeição.

Consta da motivação da decisão sobre a matéria de facto de fl. 79 a justificação dessa mesma decisão, sendo os documentos aí referidos. Não vamos, porém, debruçar-nos sobre a decisão proferida pela 1.ª instância acerca da matéria de facto por não termos elementos para tal.

O mesmo se poderá dizer quanto à prova sobre os prejuízos invocados pelo autor.

Em suma, improcedem as conclusões da alegação.

Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação e confirma-se a sentença recorrida."

Em consequência, foi também negado provimento ao recurso de apelação.

3 - Foi interposto recurso de constitucionalidade, através do seguinte requerimento:

"Construções Cinquenta, Lda., não concordando com o douto Acórdão de VV. Exmas. vem dele interpor recurso de Apelação para o Venerando Tribunal Constitucional, a subir imediatamente e nos próprios Autos.

O presente recurso é interposto nos termos da alínea b) do artigo 70.º e tem por objectivo a apreciação do artigo 69.º do Regulamento para Serviços de Abastecimento de Água - Portaria 10 716, de 24 de Julho de 1944 que dispõe o seguinte: 'A Companhia (hoje EPAL) terá o direito de negar ou interromper o fornecimento de água quando pedido por entidade que deva ser considerada interposta pessoa em relação ao devedor, abrangido pela alínea d) do artigo 65.º, mesmo quando o fornecimento seja solicitado ou este sendo feito em domicílio ou local diferente daquele a que se referir a dívida'.

Tal Regulamento foi invocado na contestação da empresa EPAL, S. A., e logo o A. em resposta a tal excepção alegou - artigo 7.º - '[...] que tal conduta era ilegal e inconstitucional'.

Não obstante quer o M.mº Juiz, quer a sentença da 3.ª Sec. da 6.ª Vara Cível, quer o acórdão do qual ora se recorre não atenderam à força de tais argumentos e julgaram, como se válido fosse, o citado Regulamento.

Do douto acórdão não cabe recurso ordinário."

Foi proferido o seguinte despacho:

"A acção foi proposta por António Francisco Bento contra a EPAL - Empresa Pública das Águas Livres, S. A.

Vem agora 'Construções Cinquenta, Lda.' interpor recurso para o Tribunal Constitucional.

A recorrente não é parte no processo nem mostra que tenha sido directa e efectivamente prejudicada pela decisão. Por isso, indefiro o requerimento.

Além disso, diz que junta duplicados e comprovativo da notificação feita ao Ilustre Mandatário da parte contrária, mas não se vê que o tenha feito.

Notifique."

Na sequência de tal despacho, procedeu-se à seguinte rectificação:

"Alberto Francisco Bento - e não António Francisco Bento, como por lapso consta de fl. 190 - notificado do douto despacho de V. Ex.ª vem aos autos dizer que só por - erro informático - consequência da utilização de forms (formulários), surgiu na impressão a expressão Construções Cinquenta, Lda., quando se queria dizer e escreveu Alberto Francisco Bento. Tal erro de escrita não foi apercebido pelo signatário no momento em que subscreveu o recurso. Tal erro involuntário não deve afastar a aplicação substancial da Justiça.

O processo foi devidamente identificado e ao subscrever o requerimento de interposição de recurso, o advogado signatário invocou a procuração que tem do A. nos autos, sendo certo que nos mesmos não há qualquer procuração passada pela sociedade, Construções Cinquenta, Lda.

O mesmo se infere da carta de 11 de Julho de 2002 enviada ao Exmo. Colega, notificação nos termos do artigo 229.º e 260.º do CPC, dirigida ao Exmo. Colega Sr. Dr. Luís Durão, documento que se junta.

O relatório de transmissão de 11 de Julho de 2002 emitido às 12 horas e 29 minutos encontra-se junto com o nosso requerimento da mesma data a fl. 189 dos autos.

Todavia, dado o reparo feito e para evitar quaisquer dúvidas, junta-se fotocópia do mesmo relatório.

Termos em que, havendo por bem aceitar a nossa justificação, se requer que seja recebido o recurso."

O recurso de constitucionalidade foi admitido por despacho de 14 de Novembro de 2002, a fl. 196.

O Relator no Tribunal Constitucional proferiu o seguinte despacho:

"Nos termos do artigo 75.º-A, n.º 5, e sob a cominação do seu n.º 7 convido o recorrente a vir aos autos indicar o sentido da interpretação do artigo 69.º do Reg. para Serviços de Abastecimento de Água (Portaria 10 716, de 24 de Julho de 1944) que considera violado constitucionalmente, bem como a norma ou princípio constitucional que considera violados por tal sentido interpretativo."

O recorrente respondeu do seguinte modo:

"O artigo 69.º da Portaria 10 716, de 24 de Julho de 1944 - Regulamento para o serviço de abastecimento de água pela Companhia de Águas de Lisboa - prevê a que a Companhia terá o direito de negar ou interromper o fornecimento de água, quando pedido por entidade que deva ser considerada interposta pessoa em relação ao devedor abrangido pela alínea d) do artigo 65.º, mesmo quando o fornecimento seja solicitado ou esteja sendo feito em domicílio ou lugar diferente daquele a que se referir a dívida.

Por sua vez o artigo 65.º do mesmo diploma determinava na referida alínea d) que: A Companhia pode interromper o fornecimento de água nos seguintes casos: por falta de pagamento de contas de consumo e de aluguer de contador e de outras que sejam devidas à Companhia, pela prestação ou execução de quaisquer serviços ou obras que tenham sido requisitadas pelo respectivo consumidor ou cujos encargos a este pertençam, e ainda por falta de pagamento da importância correspondente à taxa de fiança.

2.º

Quer a douta sentença proferida na 1.ª instância, quer o douto Acórdão proferido pela Relação de Lisboa interpretaram tais normativos no sentido que os mesmos permitiam à EPAL o corte de abastecimento de água a um andar do qual o A. dispunha à data apesar de não existir qualquer dívida ou falta de pagamento relativamente ao mesmo.

E isto porque a primitiva titular desse contrato - a quem o ora A. sucedeu como se alcança do testamento e da habilitação de herdeiros juntos aos autos - tinha outro contrato com a EPAL, em domicílio e lugar diferente do que atrás se refere, e uma suposta dívida (prescrita, porque com muito mais de seis meses, à data do corte do abastecimento) no outro local.

3.º

Apesar de citar apenas expressamente o artigo 65.º, alínea d), da referida Portaria 10 716, de 2 de Julho de 1944, contrariamente ao que se verifica na contestação oferecida pela EPAL que prefere invocar o referido artigo 69.º do mesmo diploma, o douto Acórdão da Relação de Lisboa interpreta-o no sentido de o mesmo permitir a interrupção do fornecimento de água noutro local e relativamente a outro contrato, e mesmo se o contrato do local onde o fornecimento é interrompido vem sendo escrupulosamente cumprido por ambas as partes.

4.º

Ora a aplicação de tais normas com tal interpretação não pode deixar de nos parecer ilegal e inconstitucional.

5.º

Por um lado é sabido que a água é um bem essencial à vida, saúde e bem-estar de qualquer pessoa. O seu fornecimento é por isso um serviço público essencial e a EPAL detém em Lisboa o monopólio da sua distribuição.

6.º

A interpretação das citadas normas aplicada nos presente autos possibilita que a EPAL interrompa o fornecimento da água num local onde o seu pagamento é pontualmente cumprido.

7.º

Tal interpretação das citadas normas, que julgamos inconstitucional, possibilita que a EPAL, valendo-se da sua situação de monopólio e da necessidade do bem que fornece, não tenha que discutir judicialmente a existência de um crédito num local diferente daquele onde interrompe o fornecimento, e que na prática nenhum cidadão lhe possa opôr que o mesmo não existe, e que a existir, nos termos da lei, estaria prescrito.

Caso contrário arrisca-se a morrer em sua casa ... de sede.

8.º

A actuação da EPAL é de uma violência e de uma prepotência inaudita. A nosso ver, a interpretação que o Tribunal fez das normas em causa cauciona as mesmas, em desrespeito dos direitos consagrados constitucionalmente e das normas europeias e nacionais que protegem o cidadão e o consumidor.

9.º

A interpretação dos normativos em causa, no sentido que os mesmos possibilitam o corte do fornecimento de água num local diferente daquele onde se verifica a falta de pagamento e relativamente a um contrato que é pontualmente cumprido, viola o princípio da igualdade, previsto no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, já que não é um princípio válido para todas as sociedades, pessoas colectivas ou indivíduos que se movem no mundo comercial; é um privilégio dado pelo Regulamento invocado à EPAL, que a coloca no plano superior a todas as demais sociedades ou indivíduos. Por outro lado viola também o princípio da igualdade na medida em que discrimina - e vulnerabiliza além do razoável - os consumidores com diferentes locais de consumo, relativamente aos restantes.

10.º

Viola ainda os direitos à saúde e à qualidade de vida, bem como à sua liberdade de iniciativa previstos nos artigos 64.º e 66.º da Constituição da República Portuguesa, na medida em que apesar de o A. pagar pontualmente o fornecimento de água no local em causa, foi na prática impedido de o utilizar, dado que sem água, o local é inutilizável para qualquer actividade económica.

11.º

De forma muito mais clara, a referida interpretação viola ainda diversas normas do direito internacional e comunitário aplicáveis.

Ora é sabido que as normas de direito internacional se apresentam com uma eficácia supralegal detendo primazia na escala hierárquica sobre o direito interno anterior e posterior, conforme decorre do n.º 2 do artigo 8.º da Constituição. Por isso, sempre que uma norma produzida pelo direito interno contrarie uma norma de direito internacional vigente na ordem interna há violação do princípio da primazia do direito internacional, coexistindo os vícios da ilegalidade e da inconstitucionalidade.

12.º

Na verdade, foram designadamente violados quer os artigos 81.º e 82.º do Tratado que institui a Comunidade Europeia e o Regulamento (CE) n.º 1/2003, do Conselho, de 16 de Dezembro de 2002, relativo à execução das regras de concorrência estabelecidas naqueles artigos, na medida em que tal interpretação daqueles normativos permite a exploração abusiva de uma posição dominante por parte da EPAL, contrariamente ao consentido no n.º 3 do artigo 1.º daquele diploma.

Termos em que deve ser considerada inconstitucional a interpretação dos artigos 65.º e 69.º do citado Regulamento que possibilita à EPAL o corte do fornecimento de água num local diverso daquele onde se verifique falta de pagamento do mesmo, por violar os artigos 13.º, 64.º e 66.º da Constituição da República Portuguesa, bem como o artigo 8.º, n.º 2, da mesma, na medida em que viola os artigos 81.º e 82.º do Tratado de Roma e o n.º 3 do artigo 1.º do Regulamento (CE) n.º 1/2003 do Conselho."

O recurso de constitucionalidade foi admitido.

Junto do Tribunal Constitucional o recorrente apresentou alegações que concluiu nestes termos:

"A) O Acórdão da Relação de Lisboa julgou ser legal o corte de abastecimento de água pela R. EPAL num local onde o contrato vinha a ser pontualmente cumprido, por existir um suposto débito do mesmo consumidor noutro local e relativamente a outro contrato de abastecimento de água.

B) O Acórdão da Relação de Lisboa considerou legal tal corte do abastecimento de água 'porque o artigo 65.º, alínea d), da Portaria 10 716, de 2 de Julho 1946, permite a interrupção do fornecimento de água no caso de falta de pagamento das contas de consumo ... e de outras que sejam devidas à Companhia pela prestação e execução de quaisquer serviços'.

C) Ora, tal preceito não determina que a EPAL possa fazer o corte de abastecimento de água relativamente a um local e a um contrato diferente daquele onde se verifique a falta de pagamento, pelo que tal interpretação é ilegal e inconstitucional, e viola o disposto nos artigos 26.º, 62.º, 65.º e 66.º da Constituição da República Portuguesa.

D) Ao prever a que 'a Companhia terá o direito de negar ou interromper o fornecimento de água, quando pedido por entidade que deva ser considerada interposta pessoa em relação ao devedor abrangido pela alínea d) do artigo 65.º, mesmo quando o fornecimento seja solicitado ou esteja sendo feito em domicílio ou lugar diferente daquele a que se referir a dívida' o artigo 69.º da Portaria 10 716, de 2 de Julho de 1946, não permite que seja considerado legal o corte de abastecimento de água noutro local e relativamente a outro contrato do mesmo consumidor, quando o corte não foi pedido por qualquer entidade que deva ser considerada interposta pessoa em relação ao devedor, mas sim (abusivamente) pela própria EPAL.

E) A interpretação extensiva desse preceito em sentido contrário ao acima referido é contrária à letra e ao espírito do disposto pelo artigo 65.º, alínea d), do mesmo diploma, e é inconstitucional.

F) Se assim não se entender, é o próprio artigo 69.º da Portaria 10 716, de 2 de Julho de 1946, que é inconstitucional, por ser discriminatório e violar o direito à dignidade e à vida privada, à habitação e à qualidade de vida, e violar os citados artigos 26.º, 62.º, 65.º e 66.º da Constituição da República Portuguesa.

G) Não se encontra provado que o ora recorrente ou a sua antecessora Dolores devam qualquer importância à EPAL, quer no local onde foi efectuado o corte no abastecimento de água, quer noutro local, conforme se alcança do próprio Acórdão recorrido. Encontra-se tão só provado que a EPAL efectuou o corte de abastecimento como meio de forçar o pagamento de uma importância que não dizia respeito ao local onde posteriormente efectuou o corte do abastecimento. É também por isso ilegal e inconstitucional a interpretação da lei que considera o corte do abastecimento efectuado legal, tendo-se assim violado os atrás citados artigos 26.º, 62.º, 65.º e 66.º da Constituição da República Portuguesa.

H) Nos autos em causa, não foi considerada relevante a prova da existência do débito relativamente a outro local e contrato, para a composição e resolução do litígio. Porém, na petição tinha sido impugnado preventivamente o crédito que a EPAL invocava para com o A. relativamente a outro local e contrato (que não aquele onde efectuou o corte do abastecimento de água), e o mesmo veio a ser invocado pela EPAL na sua contestação.

I) Viola por isso o disposto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa a interpretação que considera não poder ser considerada a prescrição daquele débito, invocada pelo A. na réplica e, em consequência, julga legal o corte do abastecimento efectuado e aplicável os citados artigos 65.º, alínea d), e 69.º da Portaria 10 716.

J) A água é um bem essencial à vida, saúde e bem-estar de qualquer pessoa. A garantia ao seu acesso decorre por isso directamente, se bem que não explicitamente, das normas constitucionais que protegem o direito à vida, à saúde, à habitação, à qualidade de vida.

L) A interpretação das normas em causa, no sentido em que é feita pelo douto Acórdão da Relação, possibilita que a EPAL interrompa o fornecimento da água num local onde o seu pagamento é pontualmente cumprido e que, valendo-se da sua situação de monopólio e da necessidade do bem que fornece, não tenha que discutir judicialmente a existência de um crédito num local diferente daquele onde interrompe o fornecimento. Possibilita que na prática nenhum cidadão lhe possa opôr que o mesmo não existe, e que a existir, nos termos da lei, estaria prescrito.

M) Tal interpretação das citadas normas é discriminatória, injusta, ilegal e inconstitucional, por violar o disposto v. g. nos artigos 13.º, 26.º e todos os demais preceitos constitucionais acima citados.

N) Mas, se se considerar que a interpretação dos citados preceitos feita pelo Acórdão em causa é conforme com a letra e o espírito dos preceitos em causa, são os próprios preceitos que devem ser julgados inconstitucionais, por violarem - como já se alegou nos recursos interpostos da sentença proferida pela 1.ª instância - as normas constitucionais atrás citadas.

O) Os preceitos em causa e ou a interpretação que dos mesmos foi feita pelo Tribunal da Relação no Acórdão recorrido, violam quer os artigos 81.º e 82.º do Tratado que institui a Comunidade Europeia e o Regulamento (CE) n.º 1/2003, do Conselho, de 16 de Dezembro de 2002, relativo à execução das regras de concorrência estabelecidas naqueles artigos, na medida em que tal interpretação daqueles normativos permite a exploração abusiva de uma posição dominante por parte da EPAL, contrariamente ao consentido no n.º 3 do artigo 1.º daquele diploma.

Termos em que deve ser considerada inconstitucional a interpretação dos artigos 65.º e 69.º do Regulamento, aprovado pela Portaria 10 716, de 2 de Julho de 1946, que possibilita à EPAL o corte do fornecimento de água num local diverso daquele onde se verifique falta de pagamento, e ou os próprios preceitos em causa, por violarem os artigos 13.º, 26.º, 620, 65.º e 66.º da Constituição da República Portuguesa, bem como o n.º 2 do artigo 8.º da mesma, na medida em que infringe o disposto nos artigos 81.º e 82.º do Tratado de Roma e no n.º 3 do artigo 1.º do Regulamento (CE) n.º 1/2003, do Conselho."

Por seu turno, a entidade recorrida contra-alegou, concluindo o seguinte:

"1.º O presente recurso não é admissível, uma vez que a questão da eventual inconstitucionalidade não foi levantada durante os articulados;

2.º O recurso está estruturado em moldes de recurso de sentença e não de normas, donde resulta extravasar das competências do Tribunal Constitucional;

3.º Com o presente recurso, o recorrente pretende ter acesso a uma terceira instância de jurisdição, que inverta o juízo acerca da sua pretensão emitido pelo Tribunal de 1.ª Instância e confirmado pelo Tribunal da Relação;

4.º Nas conclusões, o recorrente 'adita' os artigos 26.º (outros direitos pessoais), 62.º (direito de propriedade privada) e 65.º (habitação e urbanismo), deixando 'cair' os artigos 20.º e 64.º, o que é elucidativo do carácter aleatório e da falta de procedência da argumentação aduzida;

5.º Não é violado o princípio da igualdade (artigo 13.º);

6.º Não se verifica a violação do princípio de acesso ao direito e aos tribunais e uma tutela jurisdicional efectiva;

7.º Não se verifica a violação do artigo 64.º (direito à protecção da saúde) nem do artigo 65.º (habitação e urbanismo), nem tão pouco do artigo 66.º (direito ao ambiente e qualidade de vida);

8.º Não se verifica a violação do artigo 26.º (outros direitos pessoais), nem do artigo 62.º (direito de propriedade privada);

9.º A reacção da EPAL não torna desproporcionada a norma regulamentar;

10.º A actuação da recorrida não causou qualquer prejuízo, muito menos prejuízo excessivamente gravoso ao recorrente, o qual não habitava no local, local que não se provou que estivesse habitado por quem quer que fosse;

11.º O recorrente foi advertido previamente e estava em causa uma quantia irrisória, cujo pagamento lhe era fácil efectuar sem esforço económico significativo;

12.º O recorrente serve-se dum meio processual, para conseguir um enriquecimento indevido."

Em resposta à questão prévia suscitada pela entidade recorrida, veio o recorrente dizer o seguinte:

"A recorrida EPAL, S. A., veio alegar a inadmissibilidade do presente recurso.

Segundo entendemos e para fundamentar tal pretensão, a recorrida defende que 'o recorrente só levantou a questão da inconstitucionalidade num articulado, apresentado em 5 de Março de 1998, e que denominou resposta às excepções invocadas pela ré.'

Tendo sido considerada improcedente a excepção e feito 'tábua rasa de quanto o autor alegou para além dela, não pode vir agora suscitar a questão da inconstitucionalidade, não devendo, assim, conhecer-se do presente recurso. Aliás no Acórdão da Relação - objecto do presente recurso - diz-se expressamente que toda a matéria que vai para além da resposta à excepção tem de ser julgada nula, nos termos do disposto nos artigos 502.º e 201.º do CPC'.

A argumentação da recorrida, além de caricata, não pode proceder.

Com efeito, é a própria recorrida que reconhece que o recorrente vinha suscitando a questão da inconstitucionalidade das normas em causa, desde a resposta à contestação. Dificilmente poderia fazê-lo mais cedo, isto é, antes de a ré EPAL ter invocado tais preceitos na sua defesa.

Como resulta dos autos, o recorrente voltou a colocar a questão da inconstitucionalidade quer no recurso que interpôs da sentença proferida pela 1.ª instância, quer agora no recurso apresentado do douto acórdão da Relação de Lisboa.

Dizer-se agora (escudando-se no facto de ter sido considerado improcedente a excepção ou que não havia lugar à apresentação da resposta à contestação) que só tardiamente foi colocada a questão da inconstitucionalidade, é assim manifestamente risível. O corolário de tal tese seria que só a arguição da inconstitucionalidade das normas, ou de uma dada interpretação das mesmas, na própria petição inicial permitiria o recurso a este Tribunal. Isto é, seria necessário que o recorrente se antecipasse à parte contrária na sua invocação e que, como diz o povo fizesse a festa e apanhasse as canas: antes que tais normas fossem invocadas ou a sua aplicação fosse considerada pela parte contrária ou pelo julgador, o recorrente deveria ter logo suscitado a questão da sua inconstitucionalidade.

Afigura-se-nos que tal entendimento viola claramente a lei, designadamente o artigo 280.º da Constituição que a recorrida bem conhece e cita.

Deve por tudo isto ser considerado admissível o presente recurso."

O relator originário apresentou projecto de Acórdão que não obteve vencimento.

Procedeu-se, consequentemente, à mudança de relator.

Cumpre apreciar e decidir.

II - Questão prévia. - 4 - O recorrente suscita, no recurso de constitucionalidade, a questão de constitucionalidade do artigo 69.º do Regulamento para o Serviço de Abastecimento de Água publicado pela Portaria 10 716, de 24 de Julho de 1944 [preceito que se articula com o artigo 65.º, alínea d), do mesmo Regulamento], na medida em que esta norma violaria os artigos 13.º, 64.º, 65.º e 66.º da Constituição.

Porém, o recorrido suscitou a questão prévia de não conhecimento do recurso com os fundamentos de que a referida questão de constitucionalidade não teria sido suscitada nos articulados e de que o recorrente não teria suscitado uma questão de inconstitucionalidade normativa, mas de constitucionalidade da decisão e, finalmente, de que o recorrente teria aditado nas conclusões das alegações a violação de novas normas constitucionais.

Respondendo aos problemas suscitados, o Tribunal entende que o recorrente suscitou perante o tribunal a quo uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa.

Assim, não há dúvida de que o acórdão recorrido considerou nula e não escrita a resposta à contestação apresentada pelo autor no que se refere à invocação da prescrição da dívida e à alegação de inconstitucionalidade do artigo 65.º do referido Regulamento, ao abrigo do disposto nos artigos 502.º e 201.º, do Código de Processo Civil. O autor não recorreu de tal decisão, não tendo questionado, no seu requerimento de interposição de recurso (incluindo no requerimento complementar) a constitucionalidade destes artigos do Código de Processo Civil no sentido aplicado de ter por nula e não escrita a alegação de inconstitucionalidade feita na resposta à contestação. Assim, o acórdão recorrido ao ter conhecido da questão de inconstitucionalidade fê-lo, na verdade, a título de simples obiter dictum. Porém, o ora recorrente suscitou a referida questão de inconstitucionalidade nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação. Por seu lado, o acórdão recorrido não considerou não tempestiva a suscitação da mesma questão. Ao entender que não estava obrigado a conhecer da questão de constitucionalidade, o acórdão recorrido apenas assumiu como único pressuposto dessa posição a decisão antes tomada relativamente à alegação feita na resposta à contestação. Sendo assim, não pode deixar de considerar-se como suscitada em momento adequado do processo, como se exige nos artigos 280.º, n.º 1, alínea b), da CRP e do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, a questão de constitucionalidade do artigo 65.º do referido Regulamento, na acepção referida. A questão foi colocada ao Tribunal da Relação em momento processual próprio do recurso ordinário, em termos de este a poder tomar em conta e de poder proferir o seu juízo sobre ela.

Deste modo, há que considerar como suscitada em momento adequado do processo a questão de constitucionalidade.

Por outro lado, quanto ao outro argumento, nos termos do qual "o recurso está estruturado em moldes de recurso de sentença e não de normas, donde resulta extravasar das competências do Tribunal Constitucional", entende o Tribunal Constitucional que é discernível, nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação, a invocação pelo recorrente da invalidade constitucional da norma invocada como parâmetro normativo de decisão, tendo sido colocada ao tribunal recorrido uma questão de constitucionalidade normativa. Com efeito, o recorrente controverte directamente a correcção do critério normativo utilizado na decisão do caso, defendendo que o mesmo deve ser antes o indicado por si e que aquela interpretação "é ilegal e inconstitucional". Por outro lado, se é verdade que o recorrente apela, nas alegações de recurso de constitucionalidade, para a consideração de aspectos factuais relativos ao conteúdo e âmbito do juízo feito pelo acórdão recorrido, tecendo considerações sobre o que entende estar provado e não provado [conclusões G) e H)] e o respectivo reflexo na decisão, também se torna evidente que as consequências de uma tal argumentação não se projectam sobre a admissibilidade do recurso de constitucionalidade, mas antes sobre a amplitude do seu objecto.

Nestes termos, improcede a questão prévia suscitada.

5 - Delimitando o objecto do recurso, verifica-se que de acordo com a jurisprudência constitucional uniforme o objecto do recurso de constitucionalidade é definido no requerimento da sua interposição. Tal não impede, porém, que o recorrente não venha depois a restringi-lo, expressa ou tacitamente, como, aliás, se prevê expressamente no artigo 684.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (aplicável ao processo constitucional por força do disposto no artigo 69.º da Lei do Tribunal Constitucional). O que não pode é ser ampliado, modificado ou substituído por outro (cf., entre outros, os Acórdãos n.os 634/94, 20/97 e 243/97, publicados, respectivamente, no Diário da República, 2.ª série, de 31 de Janeiro de 1995 e de 1 de Março de 1997, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 36.º vol., pp. 309 e segs.).

Ora o recorrente veio nas suas alegações do recurso de constitucionalidade [conclusão I)] alegar, também, a inconstitucionalidade, por violação do artigo 20.º da Constituição, da "interpretação que considera não poder ser considerada a prescrição daquele débito, invocada pelo A. na réplica". Deste modo, veio invocar a inconstitucionalidade dos artigos 502.º e 201.º do Código de Processo Civil, na medida em que foi em aplicação de tais preceitos que a alegação da prescrição nem sequer foi considerada.

Esta extensão do objecto do recurso não poderá, como se referiu, ser admitida pelo Tribunal, com fundamento nos critérios da jurisprudência citada.

Por outro lado, o recorrente suscita, ainda, nas suas alegações, a questão da ilegalidade da interpretação levada a cabo pelo acórdão recorrido das disposições conjugadas dos artigos 69.º e 65.º do referido Regulamento, assacando essa ilegalidade, por um lado, a um erro de interpretação e, por outro, a violação do disposto nos artigos 81.º e 82.º do Tratado que institui a Comunidade Europeia e o Regulamento (CE) n.º 1-2003 do Conselho, de 16 de Dezembro de 2002, relativo à execução das regras de concorrência.

Ora ao Tribunal Constitucional não cabe, no âmbito das competências que lhe são constitucionalmente conferidas, conhecer directamente da correcção jurídica do sentido interpretativo ínsito nas decisões recorridas.

Finalmente, a competência do Tribunal Constitucional está limitada aos recursos previstos na alínea i) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC (de "decisões que recusem a aplicação de norma constante de acto legislativo, com fundamento na sua contrariedade com uma convenção internacional, ou a apliquem em desconformidade com o anteriormente decidido sobre a questão pelo Tribunal Constitucional") e a situação sub judice não se enquadra em tal hipótese.

III - Fundamentação. - 6 - O problema suscitado perante o Tribunal Constitucional é o de saber se a norma em crise, a contida articuladamente nos artigos 65.º, alínea d), e 69.º da Portaria 10 716, de 24 de Julho de 1944, violará os princípios da igualdade (artigo 13.º da Constituição), o direito à saúde e qualidade de vida, bem como a liberdade de iniciativa (artigos 64.º e 65.º da Constituição). Assim, dispõem aqueles preceitos o seguinte:

Artigo 65.º

[...]

d) Por falta de pagamento das contas de consumo e de aluguer do contador e de outras que sejam devidas à Companhia, pela prestação ou execução de quaisquer serviços ou obras que tenham sido requisitados pelo respectivo consumidor ou cujos encargos a este pertençam, nos termos deste regulamento, e ainda por falta de pagamento da importância correspondente à taxa de fiança (portaria de 3 de Fevereiro de 1944);

[...]

Artigo 69.º

A Companhia terá o direito de negar ou interromper o fornecimento de água, quando pedido por entidade que deva ser considerada interposta pessoa em relação do devedor abrangido pela alínea d) do artigo 65.º, mesmo quando o fornecimento seja solicitado ou esteja sendo feito em domicílio ou local diferente daquele a que se referir a dívida."

A questão suscitada é substancialmente a de saber se a empresa que fornece a água a um consumidor que cumpre regularmente o seu contrato num local de consumo pode legitimamente privar desse fornecimento o consumidor pelo simples facto de este faltar ao pagamento de contas de consumo e de aluguer de contador ou outras contas devidas à mesma empresa noutro local de consumo. Dois aspectos intrinsecamente associados são determinantes para a solução da questão suscitada: o facto de o recorrente ser afectado relativamente a prestações a que tem direito perante certa entidade, no âmbito de um contrato, por força do incumprimento de um outro contrato com a mesma entidade e o facto de estar aqui em causa o fornecimento de água pela única entidade que, monopolisticamente, o pode fazer numa certa área geográfica.

Na verdade, se o primeiro aspecto poderia enfraquecer, de algum modo, a pretensão a que não fossem afectados os direitos contratuais do consumidor, devido a uma remota semelhança com uma excepção de cumprimento de um contrato (artigo 428.º do Código Civil) e por poder configurar um modo atípico de realização de um interesse em relações contratuais múltiplas e complexas, já a conexão com o segundo aspecto impede uma tal colocação do problema.

Na verdade, o fornecimento (aliás monopolístico) de um bem essencial à vida como a água não é legitimamente passível de uma afectação apenas por causa da repercussão de uma relação contratual sobre uma outra, em termos coercivos ou sancionatórios, independentemente de tal poder ser justificado noutras situações, o que aqui não cabe analisar. A Constituição assegura um conjunto de direitos que visam a protecção de uma vida com as necessárias condições humanas, de saúde e de qualidade ambiental (artigos 64.º, 65.º e 66.º), para a efectivação dos quais o acesso ao fornecimento de água é essencial. Não pode, assim, o acesso ao consumo da água e às condições ambientais e de qualidade de vida por ela proporcionadas estar sujeita a uma pura lógica de protecção empresarial, orientada por meios de pressão sobre os consumidores que ultrapassem a exigibilidade do estrito cumprimento dos seus contratos.

Entende, assim, este Tribunal que os valores associados ao acesso ao consumo de água prevalecem de tal modo sobre a importância económica dos meios de pressão sobre os consumidores em falta que acarretam a desproporcionalidade de utilização de meios desse tipo no âmbito de contratos regularmente cumpridos por esses mesmos consumidores. Estando, assim, em causa bens e direitos de uma natureza muito especial relativamente à vida, saúde, qualidade de vida e do ambiente, colide com os critérios de proporcionalidade na afectação de direitos e adequação, ínsitos no artigo 18.º da Constituição, a utilização de medidas coactivas ou de uma estratégia sancionatória dos consumidores de água que cumprem regularmente um contrato, exclusivamente por força do não cumprimento de um outro contrato do mesmo tipo noutro local, relativamente ao qual são naturalmente accionáveis todas as respostas que o incumprimento contratual justifica.

IV - Decisão. - 7 - Consequentemente, o Tribunal Constitucional decide considerar inconstitucional a norma contida articuladamente nos artigos 65.º, alínea d), e 69.º da Portaria 10 716, de 24 de Julho de 1944, por violação, articuladamente, dos artigos 64.º, 65.º, 66.º e 18.º da Constituição.

Lisboa, 30 de Novembro de 2004. - Maria Fernanda Palma - Mário José de Araújo Torres - Paulo Mota Pinto (vencido, nos termos de declaração de voto junta) - Benjamim Rodrigues (vencido nos termos da declaração de voto junta) - Rui Manuel Moura Ramos.

Declaração de voto

Votei vencido por não considerar inconstitucional a norma segundo a qual o não cumprimento do contrato de fornecimento de água (seja ou não para habitação) pode ter como consequência a suspensão do abastecimento ao contraente faltoso, não apenas no local a que se refere o contrato não cumprido, mas igualmente noutros locais. Esta solução normativa não viola as normas constitucionais invocadas no presente acórdão - os artigos 64.º, 65.º e 66.º, respectivamente sobre o direito à protecção da saúde, o direito à habitação e o direito ao ambiente e qualidade de vida, que são invocados no acórdão 'articuladamente' com o artigo 18.º da Constituição (que, porém, se refere a 'direitos, liberdades e garantias'). Pois é claro que a previsão desses 'direitos sociais' não obsta a que o fornecimento de água seja objecto de um contrato oneroso, cujo não cumprimento pelo cliente tem como consequência, nos termos gerais, a interrupção do abastecimento. É evidente, além disso, que nem o invocado carácter 'monopolístico', numa certa área geográfica, do fornecimento do bem em causa, nem a natureza de bem essencial à vida - como é a da água - impedem que o seu fornecimento seja oneroso e que o não cumprimento do contrato de fornecimento tenha como consequência a interrupção do abastecimento pela empresa em causa (o dever de contratar com a generalidade das pessoas, sem poder seleccionar os clientes, que deve entender-se impender sobre as entidades que prestam, em exclusividade, serviços essenciais à vida, como é o caso do serviço de fornecimento de água, não depõe, aliás, seguramente, no sentido de um afrouxamento dos mecanismos de tutela contratual da empresa obrigada a contratar). Ora, independentemente da questão de saber se é ou não conforme à lei (às normas sobre serviços públicos essenciais, previstas na Lei 23/96, de 26 de Julho, cujo artigo 5.º, n.º 4, dispõe que "[a] prestação do serviço público não pode ser suspensa em consequência de falta de pagamento de qualquer outro serviço, ainda que incluído na mesma factura, salvo se forem funcionalmente indissociáveis") a suspensão do fornecimento de água num local, e nos termos de um contrato, em consequência do cumprimento de outro contrato de fornecimento de água noutro local, celebrado com o mesmo cliente, entendo que tal conexão, resultante da norma (ou pela interpretação da norma) em apreço, entre o fornecimento do mesmo tipo de bem ao mesmo cliente nos termos de dois contratos distintos (e para dois locais diversos), não viola qualquer norma ou princípio constitucional.

Com estes fundamentos, não teria julgado inconstitucional a norma em causa e, consequentemente, teria negado provimento ao presente recurso. - Paulo Mota Pinto.

Declaração de voto

1 - Votei vencido apenas quanto à questão de constitucionalidade em relação à qual defendi como relator uma solução de sentido oposto à resposta que lhe foi dada no acórdão.

2 - A fundamentação do acórdão é demasiado fluida para poder ser apreendida com precisão. O que dele se colhe é que o mesmo considerou como suficiente parâmetro constitucional de invalidade da solução normativa o sentido geral que resulta dos preceitos constitucionais que contemplam os direitos sociais previstos nos artigos 64.º, 65.º e 66.º da Constituição.

Ora, tendo em conta que o "conteúdo" desses preceitos e das prestações correspondentes é determinado pela Constituição, em regra, apenas num mínimo, e não pode ser-lhe imputado um conteúdo normativo mais vasto pela via de uma interpretação judicial "actualista" (cf. José Carlos Vieira de Andrade, Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 2.ª edição, pp. 378), porquanto "esse conteúdo" depende de opções próprias do legislador ordinário, ao qual se deve entender que foi delegado, por razões técnicas ou políticas, um poder de conformação autónoma, nessa medida sujeito a um controlo atenuado pelos tribunais (A. e op. cit.), só pode entender-se a decisão do acórdão como sustentando que a solução normativa adoptada pelo legislador ordinário afronta, de modo desproporcionado, esse mínimo de conteúdo de tais direitos determinado directamente apenas perante aqueles preceitos constitucionais, sendo que, no caso, esse mínimo é feito equivaler ao sentido geral dos preceitos constitucionais, com todo o grau de indeterminação possível que este sentido importa, e que muito dificilmente se poderá ver como correspondendo a uma determinação de sentido constitucional preceptivo susceptível de ser utilizado como parâmetro suficiente de constitucionalidade.

De qualquer modo, não se repudia que o sentido geral de preceitos constitucionais que prevêem direitos sociais não possa "inconstitucionalizar" determinadas soluções legislativas. Só o admitimos, porém, quando essas opções normativas do legislador ordinário sejam de tal modo intensamente desadequadas e desproporcionadas que sempre teriam de ser rejeitadas com base nos princípios materiais da dignidade humana e do Estado de direito democrático, este mormente na sua dimensão de justiça material. Serão situações que ajustarão a um controlo de constitucionalidade pelos tribunais de simples evidência (cf. A. e op. cit., pp. 384). E é claro que esse sentido geral não poderá deixar de ter relevância maior ou menor consoante a natureza do direito constitucional que se veja afrontado: ela não poderá deixar de ser diferente consoante o direito social implique apenas ou prevalentemente prestações jurídicas, ou, ao invés, prestações materiais, em qualquer caso sujeitas a "reserva do possível" (Vorbehalt des Möglichen), em termos políticos, económicos e sociais (cf. J. J. Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, Coimbra Editora, 1982, p. 365, e Tomemos a Sério os Direitos Eco nómicos, Sociais e Culturais, Separata do Número Especial do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - "Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António de Arruda Ferrer Correia" - 1984, Coimbra, 1989, p. 26; J. C. Vieira de Andrade, op. cit., pp. 188 e segs. e 343 e segs.).

No mínimo, o acórdão acabou por conferir a tais preceitos constitucionais uma natureza conteudística em tudo correspondente à das normas que prevêem verdadeiros direitos, liberdades e garantias fundamentais cuja restrição apenas é autorizada nos termos do n.º 2 do artigo 18.º da CRP - aliás expressamente convocado -, ao conduzir a uma solução de vinculação jurídica directa dos particulares a tais direitos sociais e às prestações jurídicas e materiais com que eles são satisfeitos, como adiante melhor se precisará.

Ora a situação sob análise está muito, mas mesmo muito, longe de uma e da outra hipótese.

O acórdão assenta, em síntese, no entendimento de que a conformação de uma solução normativa nos termos da qual o incumprimento, por falta do pagamento do preço, de um contrato relativo ao fornecimento de água a certo local, possibilite ao fornecedor o corte do fornecimento feito a local diferente nos termos de um outro contrato firmado entre as partes e cujo consumo está pago, se apresenta como constitucionalmente censurável, por corresponder à utilização jurídica de medida coerciva que restringe de modo desproporcionado o conteúdo geral (?) dos referidos direitos sociais.

Desde logo, importa avançar que de modo algum se pode concordar com esta concepção do acórdão relativa à natureza do referido instrumento jurídico conformado pelo legislador ordinário. Ao contrário do que este parece pressupor, não se está perante um efeito jurídico que não possa até ser conformado pelas partes, aquando da celebração de qualquer dos contratos (primeiro ou segundo). Embora a sua natureza de efeito jurídico advenha, no caso, do facto de ter fonte legal, o que é certo é que esse efeito cumpre uma função de natureza estritamente convencional na medida em que a sua previsão pode resultar de um acordo negocial, ainda que sob a forma de contrato de adesão, firmado entre as partes, pois tende a levar a parte contratante a cumprir todos os contratos de fornecimento ajustados com o mesmo fornecedor (cf. António Pinto Monteiro, Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade, Coimbra, 1985, nota 561 a p. 243). No fundo, o efeito é o mesmo que as partes poderiam prever num contrato em que acertassem que os preços advindos de vários contratos de fornecimento dos mesmos bens ou até de outros seriam pagos em regime de conta corrente cujo saldo se vencesse mensalmente ou em outro período ou datas acertadas.

De resto, a circunstância de os efeitos de um contrato se repercutirem em outro contrato não tem em si nada de anómalo. Tal é o que acontecerá, em regra, em muitas situações que subjazem à possibilidade legal de invocação da compensação de créditos.

Sendo assim, situando esse efeito no âmbito da autonomia e da liberdade contratual será nesse campo que se deve questionar a sua conformidade constitucional. O que importará então saber é se a previsão legal de um tal efeito ao qual o consumidor da água adere por força do contrato de fornecimento de água ofende de modo intolerável o princípio da dignidade humana e o princípio da autonomia e da liberdade de contratar, pelo cariz de preponderância que manifestam de uma parte sobre a outra.

Ora, não vemos que essa pergunta mereça uma resposta positiva.

Desde logo, porque não tem o mínimo sentido útil a convocação do regime dito (no acórdão) monopolístico em que é realizada a prestação material de fornecimento de água. É um argumento manifestamente imprestável. Constitui facto evidente que o fornecimento de água corresponde a um serviço de utilidade pública ou de interesse económico geral na medida em que visa a satisfação de uma necessidade pública, quer porque atinge todos os membros da comunidade social e política em todos os momentos históricos, quer porque a prestação por ele realizada se revela imprescindível para a manutenção da vida humana e para a saúde e determinante para a qualidade de vida e a qualidade do ambiente e do urbanismo.

Mas se é assim, torna-se necessário que o legislador, cumprindo o dever de legislar decorrente da delegação conferida pelos preceitos constitucionais que prevêem os referidos direitos sociais, preveja mecanismos que assegurem o cumprimento do princípio da universalidade do acesso a esses bens, neste se incluindo a inadmissibilidade legal da possibilidade de escolha do contraente e de recusa de contratar, possível relativamente a outros bens, e do princípio de qualidade elevada, normativamente definida (cf. artigo 7.º da Lei 23/96, de 26 de Julho), afastando critérios de padrões mínimos ou até de critérios médios (cf. Carlos Ferreira de Almeida, "Serviços públicos, contrato privados", in Estudos de Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Colaço, p. 132). Tais princípios opõem-se do ponto de vista económico-financeiro. Enquanto a satisfação do primeiro demanda que o legislador opte pelo estabelecimento de mecanismos de definição de preços ou de regimes de compensação que possibilitem o acesso de toda a gente a esta espécie de bens essenciais - logo, sem exigência de qualquer preço ou com fixação de preços acessíveis ou preços baixos - já o segundo implica que tenham de ser efectuados avultados investimentos financeiros pois só com base neles será possível manter um padrão elevado de qualidade.

Ora, o tempo histórico ensinou que a forma económico-jurídica mais adequada à que esses princípios sejam cumpridos seja a da prestação de tais serviços pela Administração Pública, sob qualquer das formas de agir desta (administração directa, indirecta, autónoma ou empresas públicas) ou por privados em regime de concessão exclusiva de serviço público. A prestação do serviço público de fornecimento de água em regime de economia de mercado concorrencial, mas ao mesmo tempo cumpridor daqueles princípios sociais, seria meramente utópica. O regime "monopolista" de prestação aqui seguido fundamenta-se em razões estritas de melhor protecção para os consumidores.

São ainda tais princípios de universalidade do regime prestação do bem em causa, de inadmissibilidade legal da possibilidade de escolha do contraente, da recusa de contratar e do padrão normativo de elevada qualidade, conjugados com a obrigação definida legalmente de, antes do corte do fornecimento da água, o consumidor ter de ser notificado por escrito, com a antecedência mínima de oito dias relativamente à data do corte de fornecimento (artigo 5.º da referida Lei 23/96), para proceder ao pagamento da dívida existente, conquanto relativa a outro local de fornecimento, que justificam que a solução legislativa não possa ser havida como afectando desproporcionadamente os direitos sociais em causa e os demais princípios constitucionais que se referiram.

Por último, há que referir que a solução a que chegou o acórdão não resiste ao teste do princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP) no acesso aos direitos sociais em causa, a menos que esteja implícito nele - o que nos custa a admitir, pois em ultima ratio pressuporia que o fornecedor fosse constitucionalmente obrigado a garantir gratuitamente o fornecimento da água e estar o sujeito privado obrigado a cumprir ele, em vez do Estado, os direitos sociais - que o corte de fornecimento também seria uma solução normativa constitucionalmente censurável naqueles casos em que o consumidor tenha apenas um contrato de fornecimento de água relativo a um único local de fornecimento, cumpridas que sejam, igualmente, as exigências de prévia e atempada notificação para proceder ao pagamento dos consumos efectuados.

Ora, com verdade, não vemos que a maior capacidade económica de acesso aos bens satisfazentes de direitos sociais, indiciada nos casos de existência de dois contratos de fornecimento a dois locais diferentes de consumo, se possa mostrar como fundamento material bastante para justificar a diferença de tratamento dentro das exigências constitucionais postuladas pelo princípio da igualdade.

Teremos, então, na lógica do acórdão, que a solução de constitucionalidade do regime legal de acesso aos bens materiais satisfazentes dos direitos sociais em causa será diferente consoante se seja consumidor contraente para prestação do mesmo bem material em apenas um ou em mais do que um contrato de fornecimento. É juízo a que não conseguimos aderir. - Benjamim Rodrigues.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2300210.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1944-07-24 - Portaria 10716 - Ministério das Obras Públicas e Comunicações - Gabinete do Ministro

    APROVA O REGULAMENTO PARA O SERVIÇO DE ABASTECIMENTO DE ÁGUA PELA COMPANHIA DAS ÁGUAS DE LISBOA.

  • Tem documento Em vigor 1996-07-26 - Lei 23/96 - Assembleia da República

    Cria no ordenamento jurídico alguns mecanismos destinados a proteger o utente de serviços públicos essenciais, designadamente: serviço de fornecimento de água, serviço de fornecimento de energia eléctrica, serviço de fornecimento de gás e serviço de telefone (Lei dos serviços públicos).

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