Acordam neste Supremo Tribunal de Justiça em pleno:
Nos termos do artigo 669.º do Código de Processo Penal, o Exmo. Procurador da República junto da Relação de Lisboa, interpôs recurso para o pleno deste Tribunal do Acórdão daquela Relação datado de 24 de Julho de 1974, por estar em oposição com o Acórdão da mesma Relação datado de 4 de Julho de 1973, transitado em julgado, no tocante à interpretação do conceito «crime» constante do n.º 2 do artigo 4.º do Decreto-Lei 44939, de 27 de Março de 1963.
Pelo acórdão de fls. 21 e 26 da Secção Criminal deste Supremo, decidiu-se verificarem-se as condições para que o presente processo prosseguisse.
Na verdade, segundo o disposto no artigo 669.º referido, em matéria crime, e artigo 764.º do Código de Processo Civil, em matéria não criminal, se qualquer relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, dessa ou de outra relação, sobre a mesma matéria de direito, e dele não puder interpor-se recurso ordinário para este Supremo, é admissível recurso, a fim de se fixar jurisprudência.
Os processos que originaram os dois acórdãos eram correccionais e não foram condenatórios, pelo que deles não era admissível recurso ordinário, segundo o disposto no n.º 4.º do artigo 446.º do Código de Processo Penal, tendo, aliás, o de 4 de Julho de 1973 transitado em julgado.
Ambos foram proferidos no domínio da mesma legislação (artigo 4.º do Decreto-Lei 44939, de 27 de Março de 1963), então e ainda em vigor.
Enquanto o Acórdão de 1973 decidiu ser a tentativa de furto abrangida por tal decreto um crime autónomo, «com a sua previsão e estatuição diferenciada do correspondente ao crime consumado», não sendo, assim, compreendido na remissão feita nos n.os 1 e 2 desse artigo 4.º para o seu artigo 1.º, o acórdão agora recorrido decidiu o contrário, declarando que o artigo 3.º de tal diploma dispôs ser tal tentativa sempre punível, e por isso não lhe ser aplicável o princípio do artigo 430.º do Código Penal, devido àquele n.º 2 do artigo 4.º Bem se decidiu, pois, no acórdão da secção, que existe a legal oposição em matéria de direito, no domínio da mesma legislação, e que se verificam as demais condições para que se conheça de recurso, fixando-se a jurisprudência a seguir, tarefa que se segue.
O Exmo. Ajudante do Procurador-Geral da República apresentou as suas doutas alegações de fl. 30 a fl. 35, propondo a seguinte redacção para o assento a proferir:
A locução «Aos crimes previstos no número anterior [...]» do n.º 2 do artigo 4.º do Decreto-Lei 44939, de 27 de Março de 1963, abrange não só os crimes consumados de furto de uso de veículos e furto de quaiqsuer veículos, peças ou acessórios a ele pertencentes e de objectos ou valores neles deixados, mas também a tentativa desses crimes.
Tendo corrido os vistos legais, nada impede que se conheça do objecto do recurso.
Quando começaram a aumentar os furtos de veículos e coisas neles contidas surgiu o Decreto-Lei 44939, de 27 de Março de 1963.
As penas que dele constam e os seus princípios legais são todos no sentido do agravamento do regime total penal, relativamente aos demais furtos simples.
Do respectivo relatório consta que, além do mais, «há necessidade de rever as sanções previstas na lei, sem quebra do respeito devido aos critérios gerais de punição assentes na legislação penal em vigor».
Em todo o aliás curto relatório não se refere o legislador senão à expressão «furto».
No entanto, como veremos, o artigo 3.º desse decreto refere-se «à tentativa» desses furtos e estabelece o regime da sua punição.
É, pois, lícito ao intérprete entender que nesse decreto se considera tal forma de ilicitude - tentativa - como que compreendida no conjunto de actos do agente, que, precedidos pelo mero pensamento de ofender a lei penal, prossegue com a prática de um ou mais actos de execução até se atingir a lesão da pessoa ou objecto protegido pela regra jurídica - o iter criminis.
Mas deixemos este comentário e passemos à transcrição dos preceitos que interessam para a decisão deste recurso:
Decreto 49939, artigo 1.º, n.º 1:
O crime de furto de quaisquer veículos, peças ou acessórios a eles pertencentes e objectos ou valores nele deixados é punido: [...] Mesmo decreto, artigo 3.º:
A tentativa é sempre punida e, quando ao furto corresponder pena de prisão, é aplicável a pena que caberia ao crime consumado, com circunstâncias atenuantes.
Ainda tal decreto, artigo 4.º, n.º 1:
No crime de furto de uso de veículos e no previsto no artigo 1.º a pena de prisão não pode ser substituída por multa.
N.º 2:
Aos crimes previstos no número anterior não é aplicável o disposto no artigo 430.º do Código Penal.
Artigo 430.º do Código Penal:
Em todos os casos declarados nesta secção, não excedendo o furto a quantia de 200$00, nem sendo habiutal, só terá lugar a pena queixando-se o ofendido.
No Acórdão de 4 de Julho de 1973 aplicou-se tal artigo 430.º à tentativa de furto da gasolina de um automóvel, no valor de 57$00, tendo o ofendido declarado não pretender procedimento criminal.
Entendeu-se que o princípio do n.º 2 daquele artigo 4.º só tinha aplicação aos crimes de furto de veículos, do seu uso, ou de peças, acessórios ou valores, consumados, por serem os que constam do n.º 1 dos artigos 1.º e 4.º, e nestes não estar incluída a tentativa, que é crime autónomo daquele.
Quer dizer: desse acórdão resultou um princípio de interpretação das expressões do n.º 1 dos artigos 1.º e 4.º, no sentido de não abranger a tentativa de tais crimes aí expressos.
Mas o aresto aplicou os princípios do artigo 430.º à tentativa constante dos respectivos autos. Ao fazê-lo, porém, seguiu critério oposto ao agora citado, como passamos a demonstrar.
Tal artigo 430.º refere-se aos «casos declarados nesta secção». São eles: os furtos previstos nos artigos 421.º, 422.º e 424.º a 428.º, inclusive; o acto de se achar coisa alheia sem, fradulentamente, a entregar ao dono ou realizar as diligências legais (artigo 423.º, e a ordem de aplicação das regras gerais em tais casos se concorrerem agravantes (artigo 429.º).
Em nenhum destes artigos se faz referência à tentativa de tais crimes, nem o artigo 430.º a ela se refere, e, no entanto, nesse acórdão usou-se deste preceito, em tal forma desse ilícito penal.
A orientação do acórdão atrás descrita, aplicada também às expressões do artigo 430.º e dos artigos antecedentes (até ao artigo 421.º, inclusive), não permitia o uso dos princípios desse artigo 430.º à mera tentativa de furto.
Mas deixemos, por agora, a crítica a tal acórdão e continuemos a nossa tarefa.
O ilícito penal é o acto, facto ou omissão cometido pelo agente e que contenha em si todos os elementos típicos fixados por aquela lei que os pune (artigos 1.º e 8.º do Código Penal).
A acção do delinquente que pensou e quis desobedecer à lei penal, atingindo e lesando certo interesse que aquela lei quis especialmente proteger, pode ser completa ou incompleta.
Naquele caso, temos o crime consumado.
Na incompleta, podemos ter uma tentativa ou frustração, desde que se pratiquem factos típicos de tais formas de delinquência.
E embora qualquer destas formas tenha os seus elementos típicos e a respectiva pena, sendo assim igual àquele crime consumado, em relação a este tem de ser considerado como uma forma imperfeita ou incompleta de criminalidade.
Na verdade, nestes casos não se verificaram todos os «actos do percurso» tendentes a atingir e lesionar o interesse que o agente teve em vista, e daí a qualificação de crime incompleto ou imperfeito.
Daqui estar a tentativa ligada sempre ao crime consumado. Como diz Bettiol (Direito Penal, t. III, p. 186), «qualquer norma sobre a tentativa não tem carácter autónomo, dado que só pode funcionar conjugada com a norma incriminadora principal. Ela é uma norma secundária, que serve para alargar a esfera da incriminabilidade da norma principal a factos que, só por si, não poderiam incluir-se no seu âmbito e deveriam, portanto, ficar impunes, por serem atípicos».
Nesse sentido, Prof. Baltaglini (Teoria de Infracção Criminal, p. 417): «A tentativa pressupõe, na verdade, o inacabamento do facto típico», e «bem pode denominar-se imperfeita em referência à consumação, sendo para ela suficiente uma parte da materialidade criminosa».
Na mesma orientação, Prof. Cavaleiro Ferreira (Lições de Direito Penal, de Carmindo Rodrigues e Vaz Lacerda, pp. 518 e 519): «Num e noutro caso» - tentativa e crime frustrado -, «na sua materialidade objectiva, o agente não realiza todos os elementos essenciais do facto incriminado». Em ambas essas formas incompletas de ilicitude penal «há a intenção de praticar um crime consumado; a realização é que não corresponde à intenção do agente».
Também o Prof. Eduardo Correia, a fl. 232 do Direito Criminal, 1971, vol. II, depois de produzir considerações idênticas e dizer não faltarem «doutrinas e sistemas que autonomizam as duas figuras» - tentativa e frustração -, aponta tal autonomia dizendo:
«por existirem códigos e autores que admitem como circunstância que exclui a punibilidade da própria frustração o afastamento voluntário e activo do resultado, e em que, por outro lado, a generalidade das doutrinas e legislações modernas defendem a punibilidade da tentativa na moldura penal correspondente ao crime consumado, a legitimidade da autonomização do conceito de frustração torna-se mais do que problemática.» É de notar que tais passagens vêm a seguir a um conceito dado anteriormente da tentativa que já abrange, em si, a frustração.
Somente se poderá dizer que certos factos intencionais, tendentes a um resultado não obtido e incompletamente praticados, representam um crime autónomo do que se pretendia consumar, quando contenham em si uma tipicidade especial diferente do ilícito que se desejava praticar.
Na verdade, «ainda que a tentativa não seja punível, os actos que entram na sua constituição são puníveis se forem classificados como crimes pela lei ou como contravenções por lei ou regulamento» (artigo 12.º do Código Penal).
Também «nos casos especiais, em que a lei qualifica como crime consumado a tentativa de um crime, a suspensão da execução deste crime pela vontade do criminoso não é causa justificativa» (artigo 13.º do mesmo Código).
Nestes casos, a materialidade cometida tem autonomia em relação ao crime que o agente pretendia cometer, deixando de ser tentativa como tal considerada.
Nos outros casos, como o dos autos, mantém-se a dependência da situação relativamente à consumação querida.
Na verdade, nos termos do artigo 11.º do Código referido, são requisitos da tentativa: a intenção do agente; a execução começada e incompleta dos actos que deviam produzir o crime consumado; a suspensão dessa execução por circunstâncias independentes da vontade do agente, excepto nos casos previstos no artigo 13.º, a punição do crime consumado com pena maior, excepto os casos especiais em que a lei a declarar punível nos crimes castigados com penas diversas daquela.
Daqui resulta com total nitidez o carácter dependente da tentativa quando ela é punível como tal.
Com efeito, a intenção foi a de praticar uma ofensa contra o bem jurídico protegido pela lei penal. Na hipótese, a defesa do direito de propriedade do veículo e da gasolina nele contida.
Os actos praticados iniciaram execução idónea tendente à subtracção projectada e querida.
Essa execução ficou incompleta por ter surgido um agente de autoridade que impediu o delinquente, contra sua vontade, de praticar os demais actos, até à apropriação fraudulenta da gasolina que se pretendia subtrair.
Também pelo disposto no artigo 3.º do atrás citado decreto, nestes casos a tentativa é sempre punida com a pena de crime consumado, com circunstâncias atenuantes.
A hipótese concreta dos autos contém em si toda essa tipicidade.
Quanto à circunstância de o n.º 2 do artigo 4.º desse decreto remeter para os «crimes previstos no número anterior», isso não impede que tal preceito abranja também a tentativa de tais crimes.
Como já se demonstrou, esta é uma forma incompleta da prática de tais furtos ou crimes referidos nesse n.º 1 do dito artigo 4.º Assim, não se justificariam regimes diversos relativamente à tentativa em relação ao mesmo crime consumado.
Tais formas criminais são idênticas, existindo apenas a diferença de que numa existiu somente perigo de lesão material e na outra o interesse protegido foi lesionado ou atingido na totalidade.
Além disso, o próprio decreto, alterando o sistema do n.º 4.º do artigo 11.º do Código Penal, declarou sempre punível a tentativa.
Sempre se tem interpretado o artigo 430.º do Código Penal, embora só fale em «furto», não se referindo à tentativa e frustração expressamente, como abrangendo estas formas incompletas de tal crime, e, como já se disse, nesse sentido, embora com falta de harmonia com os argumentos expostos para a resolução da outra questão, assim decidiu o Acórdão de 4 de Julho de 1973.
O nosso sistema legislativo penal não prevê, especialmente para cada moldura penal ou facto típico, como faz para os crimes consumados (fattisfecie) a tentativa de cada crime. Ao contrário, prescreve a tipicidade, de um modo geral, para todos os crimes consumados.
Consta isso dos artigos 11.º, 12.º e 13.º do Código Penal.
O mesmo sucede nos demais diplomas que se seguem: artigo 8.º do Código de Justiça Militar («A tentativa do crime essencialmente militar é sempre punível, qualquer que seja a pena aplicável ao crime consumado»); o § 1.º do artigo 6.º do Decreto-Lei 21730, de 14 de Outubro de 1932, declara punível a tentativa do crime por ele criado; a tentativa do furto é sempre punida, mesmo que a pena do crime consumado não seja maior (Lei de 3 de Abril de 1896, § único, artigo 3.º, e assento de 29 de Maio de 1934), além de outros casos.
Do exposto resulta que bem se decidiu no acórdão recorrido não ser de aplicar o princípio do artigo 430.º do Código Penal à tentativa verificada, mas, sim, o n.º 2 do artigo 4.º do Decreto 44939, pelo que se verifica a legitimidade para o Ministério Público exercer livremente a correspondente acção penal.
Termos em que se nega provimento ao recurso, mantendo-se o decidido, e se tira o seguinte assento:
A disposição do n.º 2 do artigo 4.º do Decreto-Lei 44939, de 27 de Março de 1963, abrange a tentativa dos crimes a que se reporta.
Sem imposto de justiça.
Lisboa, 25 de Fevereiro de 1976. - Eduardo Botelho de Sousa - Miguel Caeiro - Avelino da Costa Ferreira Júnior - Oliveira Carvalho - Adriano Vera Jardim - Eduardo Correia Guedes - José António Fernandes - João Moura - Eduardo Arala Chaves - Francisco Bruto da Costa - Rodrigues Bastos - Daniel Ferreira - José Garcia da Fonseca - José Amadeu de Carvalho.
Está conforme.
Secretaria do Supremo Tribunal de Justiça, 5 de Março de 1975. - O Escrivão de Direito, (Assinatura ilegível.)