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Acórdão 303/2004/T, de 20 de Julho

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Texto do documento

Acórdão 303/2004/T. Const. - Processo 922/2003. - Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I - 1 - António Manuel Branco Murta, identificado nos autos, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Évora do acórdão do Tribunal Colectivo de Elvas, proferido em 12 de Março de 2003 (acórdão constante de fl. 160 a fl. 343 destes autos), que o condenou na pena de 4 anos de prisão pela prática de um crime de lenocínio, previsto e punido pelo artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal.

Nas alegações que então apresentou, o recorrente suscitou a inconstitucionalidade artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal, tendo, quanto a essa questão, concluído assim (fls. 358 e segs.):

"6.º O bem jurídico tutelado pelo artigo 170.º, n.º 1, não é a autodeterminação sexual.

7.º O Estado não tem legitimidade para criar bens jurídicos transpersonalistas, de carácter místico, recorrente a um direito penal de fachada para reprimir a organização e exploração comercial de condutas sexuais que se integram no chamado 'fenómeno da prostituição'.

8.º O Estado democrático de direito distingue-se dos restantes precisamente por ser alheio a uma qualquer moral nacional ou de Estado ético. Antes sim,

9.º Visa a tutela e o respeito das diversas morais.

10.º A interpretação jurídica da norma inscrita no artigo 170.º, n.º 1, não pode assentar num 'texto legal' isolado do sistema jurídico, da base axiológica do Estado, em suma, da realização do direito.

11.º Com esta incriminação o bem protegido não é, como devia, a liberdade de expressão sexual da pessoa, mas persiste aqui uma certa ideia de 'defesa do sentimento geral de pudor e de moralidade', que não é encarada hoje como função do direito penal.

12.º Parece irrefutável no nível axiológico do Estado democrático de direito que esse crime está descriminalizado.

13.º Mais entende que a sua sustentação assenta em interpretação materialmente inconstitucional por colidir com o artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa."

2 - Pelo Acórdão de 18 de Novembro de 2003 (de fl. 6 a fl. 158), o Tribunal da Relação de Évora negou provimento ao recurso.

A propósito da questão de inconstitucionalidade suscitada pelo recorrente, decidiu-se no acórdão:

"É, na verdade, discutível que o bem jurídico protegido nesta norma seja, pelo menos de modo imediato, a liberdade de determinação sexual (a própria Professora Anabela Miranda Rodrigues, citada pelo recorrente, tem a este propósito uma posição algo dúbia: começando por dizer, Comentário Conimbricense do Código Penal, vol. I, p. 519, que "com esta incriminação o bem protegido não é, como devia, a liberdade de expressão sexual da pessoal mas persiste aqui uma certa ideia de 'defesa do sentimento geral de pudor e de moralidade', que não é encarada hoje como função do direito penal [...]", acaba por afirmar [op. cit., p. 531]: 'o crime só pode ser entendido como um crime de resultado, pretendendo proteger-se - como se pretende, apesar de tudo - o bem jurídico liberdade e autodeterminação sexual da pessoa'.

O Supremo Tribunal de Justiça (STJ), no seu Acórdão de 7 de Novembro de 1990, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 401.º, p. 205, entendeu que 'através do crime de lenocínio não é a prostituta que a lei quer proteger mas o interesse geral da sociedade na preservação da moralidade sexual e do ganho honesto' (no mesmo sentido já havia decidido a Relação de Coimbra, no seu Acórdão de 12 de Junho de 1985, in Colectânea de Jurisprudência, ano X, t. 3.º, p. 118; o mesmo Tribunal, agora no Acórdão de 18 de Junho de 1991, in Colectânea de Jurisprudência, ano XVI, t. 3.º, p. 189, entendeu que 'o interesse jurídico protegido pelos artigos 215.º e 216.º do Código Penal [de 1982, versão original] não é de natureza eminentemente pessoal, mas social, no sentido da protecção dos valores ético-sociais da sexualidade, na comunidade'; contudo, no sentido de que o bem jurídico aqui tutelado é o da liberdade individual, no aspecto sexual, cf. o Acórdão do STJ de 26 de Fevereiro de 1986, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 354.º, p. 350).

Também o Tribunal da Relação do Porto, no seu Acórdão de 29 de Maio de 2002, www.dgsi.pt, entendeu que 'na previsão normativa do n.º 1 do artigo 170.º do Código Penal, epigrafado de lenocínio, o que está em causa, mais do que tudo, é a exploração de uma pessoa por outra, uma espécie de usura ou extorsão em que a ameaça ou tráfico de protecção se pode confundir com a exploração afectiva'.

No Acórdão do STJ de 19 de Março de 1991, processo 41 428, 3.ª Secção, entendeu-se que no crime de lenocínio se visa 'a punição dos actos que põem em causa, de forma relevante, os valores da comunidade e de concepções ético-sociais dominantes, devendo abranger sobretudo os actos que visam facilitar, explorar ou comercializar a entrega de mulheres'. É este o entendimento que se nos afigura mais correcto e ao qual aderimos.

Na realidade, exceptuadas as situações previstas no n.º 2 do artigo 170.º do Código Penal e no artigo 176.º do mesmo diploma (em que o bem jurídico tutelado é, indiscutivelmente, a liberdade de autodeterminação sexual das pessoas), o crime de lenocínio protege, essencialmente, valores de natureza ético-social, essenciais à vivência em sociedade.

Porém, o facto de não ser a liberdade de determinação sexual o - bem jurídico directamente tutelado na norma em apreço não significa - não pode significar - que a actividade descrita no n.º 1 do artigo 170.º do Código Penal se encontra descriminalizada.

Que é crime resulta da vontade inequívoca do legislador que assim o considerou, tipificando tal conduta.

Poder-se-á, porventura, defender (como o faz a Professora Anabela Miranda Rodrigues, op. cit., pp. 518-520) que, de iure condendo, a solução mais adequada passaria pela descriminalização da conduta [o que, aliás, nem temos por seguro: a solução poderia passar, como propõe o relator deste acórdão 'Crimes Sexuais', p. 68, nota 3, em "transferir as disposições referentes ao lenocínio (artigos 170.º e 176.º) para o título IV ('Dos crimes contra a vida em sociedade'), onde constituiriam capítulo próprio, ao lado do crime de tráfico de pessoas (artigo 169.º) e do crime de exibicionismo previsto no artigo 171.º"]; de iure condito, porém, é inquestionável que a conduta em questão constitui crime, posto que 'descrito e declarado passível de pena por lei anterior ao momento da sua prática' - artigo 1.º, n.º 1, do Código Penal.

E nem se vê que esta interpretação conflitue com o artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa, como refere o recorrente.

Na realidade, não se vê de que forma a definição de Portugal como uma República soberana 'baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária' se vê questionada com a criminalização do lenocínio; ou, vistas as coisas pelo ângulo inverso, não se vê em que é que a sociedade portuguesa ganharia em dignidade, em liberdade, em justiça e em solidariedade com a descriminalização da conduta daquele que, de forma profissional ou com intenção lucrativa, fomenta, favorece ou facilita o exercício por outra pessoa de prostituição ou a prática de actos sexuais de relevo.

Em suma: no mero plano do direito a constituir é, sem dúvida, legítimo questionar a necessidade de dar dignidade penal ao lenocínio (entendido como a actividade descrita no n.º 1 do artigo 170.º do Código Penal); como, aliás, é sem dúvida discutível a necessidade de manter a punição do estupro (agora denominado de 'actos sexuais com adolescentes').

Porém, no plano do direito constituído, é indiscutível que o lenocínio é crime previsto e punido no artigo 170.º do Código Penal, como nos parece claro que, assim entendendo, não se viola qualquer preceito constitucional, máxime o artigo 1.º da CRP, invocado pelo recorrente."

3 - Inconformado, o recorrente veio interpor o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo ver apreciada a inconstitucionalidade da norma contida no n.º 1 do artigo 170.º do Código Penal, por violação do artigo 1.º da Constituição (requerimento a fls. 1 e 2).

O recurso foi admitido pelo despacho que consta a fl. 159 (e 376).

4 - Nas alegações que apresentou neste Tribunal, o recorrente concluiu:

"1.º O artigo 170.º do CP tutela sentimento geral de pudor e moralidade.

2.º Tal significa proteger bens jurídicos transpersonalistas de étimo moralista, por via do direito penal, o que contraria directamente o artigo 1.º da CRP.

3.º O Estado democrático visa o respeito das diversas morais, entendendo numa perspectiva de direito penal mínimo que apenas se deve dotar de dignidade penal bens jurídicos funcionais à realização normativa do Estado. O que não passa pelo sentimento geral de pudor e de moralidade.

Termos em que deve ser declarada a inconstitucionalidade do artigo 170.º do CP, por violação do artigo 1.º da CRP."

Nas suas contra-alegações, o representante do Ministério Público junto deste Tribunal formulou as seguintes conclusões:

"1 - O crime de lenocínio do artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal abarca a protecção de um bem jurídico complexo, não se limitando à tutela de um sentimento geral relativo à sexualidade, englobando também a personalidade de quem seja visado pela conduta do agente.

2 - O seu sancionamento penal em nada colide com o estatuído no artigo 1.º da Constituição, nem representa qualquer violação do princípio da proporcionalidade consagrado no seu artigo 18.º, n.º 2, gozando nesta matéria o legislador ordinário de uma ampla discricionariedade.

3 - Na incriminação do lenocínio não é posto em causa o carácter subsidiário do direito penal, nem se configura como excessiva a restrição imposta a quaisquer direitos, liberdades ou garantias, com protecção constitucional do agente da infracção penal.

4 - Não deve, assim, proceder o presente recurso."

Cumpre apreciar e decidir.

II - 5 - O presente recurso tem como objecto a apreciação da conformidade constitucional da norma constante do artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal, que, na versão resultante da Lei 65/98, de 2 de Setembro, dispõe como segue:

"Artigo 170.º

Lenocínio

1 - Quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição ou a prática de actos sexuais de relevo é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos.

2 - ..."

6 - A questão da conformidade com a Constituição da República Portuguesa da norma contida no artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal, que pune o crime de lenocínio, foi primeiramente apreciada no Acórdão 144/2004, da 2.ª Secção, em que o Tribunal se pronunciou no sentido da não inconstitucionalidade da norma impugnada (publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 92, de 19 de Abril de 2004, a p. 6082).

Nesse acórdão, foram tratadas alegadas violações, pela norma em causa, não só do princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 18.º, n.º 2, mas também dos artigos 41.º ("Liberdade de consciência") e 47.º, n.º 1 ("Liberdade de profissão"), da Constituição da República. Distinguiram-se então as questões de constitucionalidade de quaisquer apreciações, no plano político-criminal, sobre a mesma norma, e concluiu-se, depois de identificar o bem jurídico protegido por esta, que o legislador não está constitucionalmente proibido de adoptar um tipo criminal como o que tal norma prevê.

Mais recentemente, em processo em que era invocada a violação, pela mesma norma, dos artigos 18.º, n.º 2, 26.º, n.º 1, 27.º, n.º 1, 47.º e 58.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, o Tribunal concluiu novamente no sentido da sua não inconstitucionalidade (Acórdão 196/2004, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).

Neste último acórdão, depois de invocar a decisão proferida no já citado Acórdão 144/2004, disse o Tribunal:

"Ora, pode desde logo observar-se - embora tal não seja decisivo - que, se o Tribunal Constitucional entendesse que existia desconformidade da norma em causa com outros parâmetros constitucionais, para além dos então analisados - como, por exemplo, os artigos 26.º, n.º 1, e 27.º, n.º 1, conjugados com o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição -, lhe teria sido possível pronunciar-se pela inconstitucionalidade, nos termos do artigo 79.º-C da Lei de Organização, Funcionamento e Processo no Tribunal Constitucional.

Verifica-se, porém, além disso, que a fundamentação expendida nesse Acórdão 144/2004 é inteiramente transponível para o presente processo, e, designadamente, para o confronto da norma em causa com os outros parâmetros invocados pelo agora recorrente: os artigos 58.º ("Direito ao trabalho"), 26.º, n.º 1 (Direitos à livre expressão da sexualidade, à vida privada e à identidade pessoal"), e 27.º, n.º 1 ("Direito à liberdade"), da Constituição da República.

Não se vê que, pelo confronto com estes direitos, constitucionalmente consagrados, haja de chegar-se a solução diversa daquela por que se concluiu nesse aresto, no qual se confrontou já a norma em questão, designadamente, com o artigo 18.º da Constituição [...], concluindo pela inexistência de inconstitucionalidade."

Assim, remetendo para os fundamentos do Acórdão 144/2004, o Tribunal reafirmou o juízo de não inconstitucionalidade do artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal.

7 - O Tribunal entende uma vez mais que a argumentação que fundamentou a decisão proferida no Acórdão 144/2004 é transponível para o presente processo e, concretamente, para o confronto da norma questionada com o artigo 1.º da Constituição.

Não deixará, a este propósito, de se recordar um trecho desse acórdão, que em especial releva para o caso dos autos:

"[...] subjacente à norma do artigo 170.º, n.º 1, está inevitavelmente uma perspectiva fundamentada na história, na cultura e nas análises sobre a sociedade segundo a qual as situações de prostituição relativamente às quais existe um aproveitamento económico por terceiros são situações cujo significado é o da exploração da pessoa prostituída [...] Tal perspectiva não resulta de preconceitos morais mas do reconhecimento de que uma ordem jurídica orientada por valores de justiça e assente na dignidade da pessoa humana não deve ser mobilizada para garantir, enquanto expressão de liberdade de acção, situações e actividades cujo 'princípio' seja o de que uma pessoa, numa qualquer dimensão (seja a intelectual, seja a física, seja a sexual), possa ser utilizada como puro instrumento ou meio ao serviço de outrem. A isto nos impele, desde logo, o artigo 1.º da Constituição, ao fundamentar o Estado Português na igual dignidade da pessoa humana. E é nesta linha de orientação que Portugal ratificou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Lei 23/80, em Diário da República, 1.ª série, de 26 de Julho de 1980), bem como, em 1991, a Convenção para a Supressão do Tráfico de Pessoas e de Exploração da Prostituição de Outrem (Diário da República, 1.ª série, de 10 de Outubro de 1991)."

Reitera-se, assim, uma vez mais que a norma do artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal, na versão resultante da Lei 65/98, de 2 de Setembro, não viola a Constituição da República Portuguesa e, designadamente, não ofende os princípios enunciados no artigo 1.º

III - 8 - Nestes termos, e pelos fundamentos, mais amplos, constantes dos acórdãos mencionados, o Tribunal Constitucional decide:

a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal;

b) Consequentemente, negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida no que se refere à questão de constitucionalidade.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.

Lisboa, 5 de Maio de 2004. - Maria Helena Brito - Artur Maurício - Rui Moura Ramos - Pamplona de Oliveira - Luís Nunes de Almeida.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2230579.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1980-07-26 - Lei 23/80 - Assembleia da República

    Ratifica a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres.

  • Tem documento Em vigor 1998-09-02 - Lei 65/98 - Assembleia da República

    Altera o Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, revisto e republicado pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março.

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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