Acórdão 456/2003/T. Const. - Processo 193/2003. - Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório. - 1 - Na acção comum de investigação de paternidade que Paulo Jorge da Silva Barreiro propõe contra José Joaquim Teixeira Viana, a correr termos no Tribunal Judicial de Viana do Castelo, foi proferido o seguinte despacho saneador:
"Caducidade do direito do A.?
O R. excepciona a caducidade do direito do A. com fundamento no disposto no artigo 1817.º-1 do CC (ex-vi artigo 1873.º).
O A. replicou, pugnando pela improcedência da excepção.
Apreciando.
O artigo 1817.º-1 do CC (aplicável às acções de investigação de paternidade por força do artigo 1873.º) dispõe que 'A acção de investigação de maternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dois primeiros anos posteriores à sua maioridade ou emancipação'.
Trata-se de disposição que tem em vista, além do mais, razões de certeza, segurança e estímulo à real função ético-social da paternidade (P. Lima e A. Varela, CC Anotado, vol. V, p. 315).
Do próprio texto constitucional, em particular dos artigos 25.º-1 e 26.º-1 da CRP, extrai-se um verdadeiro direito fundamental ao conhecimento e ao reconhecimento da paternidade, a qual representa, sem dúvida, uma referência essencial de cada indivíduo (parâmetro extrínseco) e um elemento determinante da própria capacidade de auto-identificação de cada um como pessoa (parâmetro intrínseco). O conhecimento da ascendência verdadeira ('direito à historicidade pessoal' para usar as palavras de G. Canotilho e V. Moreira, CRP Anotada, 3.ª ed., p. 179) é, de facto, um aspecto ímpar da personalidade individual e uma condição de gozo pleno desses direitos fundamentais (G. Oliveira, Impugnação da Paternidade, BFDUC, Suplemento XX, p. 193).
Daí que a constitucionalidade do artigo 1817.º-1 tenha já sido questionada com o pretexto de que a investigação da filiação, por respeitar a interesses inalienáveis do cidadão, não devia ser limitada no tempo. O Tribunal Constitucional, contudo, sempre que chamado a pronunciar-se, decidiu invariavelmente pela respectiva conformidade da norma à lei fundamental (Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 413/89, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 387, p. 262, 451/89, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 388, p. 561, 311/95, inédito, e 506/99, Diário da República, 2.ª série, de 17 de Março de 2000).
Este abundante quadro jurisprudencial - quer com ele se concorde quer dele se discorde (como o fez o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Junho de 1998, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 478, p. 293, na sequência do qual, aliás, foi proferido o último dos citados arestos) -, leva a que não se questione agora, uma vez mais, a harmonia constitucional da norma em causa (para uma apreciação global da limitação no tempo do direito de investigar, v. G. Oliveira, Critério Jurídico da Paternidade, pp. 460 e segs., P. Lima e A. Varela, ob. cit., pp. 81-83, e A. Pereira, 'A preclusão do direito de accionar nas acções de investigação de paternidade - alguns problemas', ROA, ano 48.º, p. 121).
Assim, no caso concreto, é manifesto que, em face do n.º 1 do artigo 1817.º, o direito do A. caducou (artigo 298.º-2, excepção que, aliás, é de conhecimento oficioso, segundo o artigo 333.º-1 do CC).
A verdade é que o citado artigo 1817.º estabelece no seu n.º 2 (de igual forma válido para as acções de investigação de paternidade, artigo 1873.º do CC) que 'Se não for possível estabelecer a maternidade em consequência do disposto no artigo 1815.º, a acção pode ser proposta no ano seguinte à rectificação, declaração de nulidade ou cancelamento do registo inibitório, contanto que a remoção do obstáculo tenha sido requerida até ao termo do prazo estabelecido no número anterior, se para tal o investigante tiver legitimidade'. Aquele artigo 1815.º prescreve, por seu turno, que 'Não é admissível o reconhecimento de maternidade em contrário da que conste do registo do nascimento'.
Ou seja, a inscrição ou registo constitui impedimento à propositura da acção de investigação, que deve ser removido pelo investigante enquanto for menor ou nos dois anos seguintes à maioridade.
Ao que se saiba, a adequação deste n.º 2 do artigo 1817.º à Constituição nunca foi apreciada pelo Tribunal Constitucional. E, sem negar que as razões que estão na origem do julgamento de constitucionalidade dos n.os 1, 3 e 4 (além da já mencionada apreciação constitucional do n.º 1, o TC analisou já também a destes n.os 3 e 4 nos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 99/88, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 376, p. 308, 413/89, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 387, p. 262, e 370/91, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 409, p. 314) possam também servir, em parte e em casos contados, para o n.º 2, já nos parece que elas não são válidas para as situações em que a rectificação, declaração de nulidade ou cancelamento do registo inibitório tenham sido promovidos, e conseguidos, não pelo investigante mas por terceiros.
E é essa justamente uma dessas que temos agora em mãos!
Em tais casos parece óbvio que a condição imposta pela norma (remoção da inscrição ou registo pelo investigante até aos seus 20 anos) agrava inexplicavelmente a posição do filho-investigante e pode levar a situações de profunda injustiça.
Não se discute que é constitucionalmente legítima a fixação pela lei de prazos de caducidade do direito de acção de investigação da paternidade. Mas, em situações como as que agora apreciamos, não se vê por que razão não deva ser concedido ao filho um prazo (que será de um ano depois do trânsito em julgado da sentença que julgue haver lugar à rectificação, declaração de nulidade ou cancelamento do registo inibitório) para que ele diligencie pela procura do seu pai biológico e que, na sua busca, beneficie de cobertura legal.
Só assim nos parece estar assegurado o direito do filho que, de boa fé, confiando na inscrição registral e, por isso, nada fazendo para a atacar, vê depois (a qualquer momento!) negada essa conformidade em resultado de um acto a que é alheio. Negar-lhe a possibilidade de, a partir de então, pugnar pelo conhecimento e reconhecimento da sua paternidade é frustrar as expectativas de quem sempre acreditou - até o Tribunal lhe vir impor o contrário, em acção judicial que ele até contestou! - que o seu pai era aquele que figurava no registo civil. O sacrifício que daí resultaria, limitando-lhe injustificadamente o direito de aceder à sua paternidade, é manifestamente excessivo, tendo em conta que - repete-se - o filho não tinha, antes da decisão judicial, qualquer interesse em agir para remover o obstáculo registral. E mais: não foi ele quem promoveu os mecanismos tendentes à destruição do registo inibitório!
Pense-se até em termos comparativos: permite-se que o pai registado possa intentar acção de impugnação da paternidade potencialmente até à sua morte (bastando que demonstre que soube de circunstâncias de onde se deduza, razoável e objectivamente, a sua não paternidade: artigo 1842.º-1, alínea a), do CC), mas já se coarcta ao filho o direito de, na sequência da procedência daquela acção, ver preenchida a sua paternidade. Tal disparidade representa, estamos certos, um sacrifício extraordinário deste último, que em nada honra o equilíbrio que deve existir os vários interesses em jogo, todos eles incontestavelmente merecedores de tutela jurídica e com ressonância constitucional. Pois se quem figura como pai pode afastar essa sua 'condição', porque não há-de depois o filho 'órfão', que nada fez para o ser, poder procurar, a partir dessa sua nova 'condição-surpresa', a sua verdadeira filiação paterna?
Se é justo assegurar o interesse do progenitor em não ver protelar-se, excessiva ou indefinidamente, uma situação insegura de incerteza quanto à paternidade - estará aí, entre outras, a justificação constitucional da imposição de limites temporais à procura da filiação paterna (além dos arestos do TC já citados, cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 Novembro de 1995, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 451, p. 419, e, na doutrina, G. Oliveira, 'O estabelecimento da filiação - mudança recente e perspectivas', Temas de Direito da Família, p. 98) -, também não é razoável que, perante uma situação despontada por terceiros e com a qual o filho não contava, se imponha para sempre um silêncio sobre a sua ascendência paterna. Consentir a revelação da verdade biológica (pela negativa) no primeiro caso e comprimi-la no segundo redundaria numa protecção desproporcionada daquele quando comparada com um excessivo sacrifício deste.
Estes os fundamentos que nos levam a concluir pela inconstitucionalidade dos artigos 1817.º-2 e 1873.º do CC quando, ainda que a rectificação, declaração de nulidade ou cancelamento do registo da paternidade sejam consequência da procedência de acção de impugnação de paternidade intentada por terceiro, impõem que a remoção do obstáculo registral tenha sido pedida até aos 20 anos do investigante.
Decisão.
Pelo exposto, e com fundamento em inconstitucionalidade decorrente da violação do disposto nos artigos 25.º-1 e 26.º-1 da CRP, recuso a aplicação da norma constante do artigo 1817.º-2 do CC, ex-vi artigo 1873.º do CC, quando interpretada no sentido de que a acção de investigação de paternidade só pode ser proposta (no ano seguinte à rectificação, declaração de nulidade ou cancelamento do registo inibitório), contanto que, mesmo nos casos em que a rectificação, declaração de nulidade ou cancelamento daquele registo tenham sido decorrentes da procedência de acção judicial de impugnação de paternidade intentada por terceiro que não o filho-investigante, a remoção do obstáculo tenha sido requerida até ao termo do prazo estabelecido no n.º 1 do mesmo preceito.
Em consequência, julgo improcedente a excepção de caducidade."
2 - O Ministério Público interpôs recurso de constitucionalidade, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea d), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição do artigo 1817.º, n.º 2, do Código Civil, "quando interpretada no sentido de que a acção de investigação de paternidade só pode ser proposta (no ano seguinte à rectificação, declaração de nulidade ou cancelamento do registo inibitório), contanto que mesmo nos casos em que a rectificação, declaração de nulidade ou cancelamento daquele registo tenham sido decorrentes da procedência de acção de impugnação de paternidade intentado por terceiro que não o filho-investigante, a remoção do obstáculo tenha sido requerida até ao termo do prazo estabelecido no n.º 1 do mesmo preceito".
Junto do Tribunal Constitucional, o Ministério Público apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
"1.º Mesmo admitindo que o direito fundamental ao conhecimento e ao reconhecimento da paternidade não obsta ao estabelecimento de prazos-regra de caducidade da acção de investigação da paternidade, importa verificar se o limite temporal estabelecido obedece a critérios de adequação e proporcionalidade.
2.º A articulação legal do regime dos prazos para intentar as acções que visam impugnar ou eliminar uma paternidade que consta do registo e das que visam estabelecer a verdadeira paternidade (eliminado que seja o registo inibitório à proposição destas últimas) mostra que é possível, sem qualquer limite temporal predefinido, propor acções - de estado ou de registo - que conduzam à anulação ou cancelamento da paternidade registral - vigorando, porém, um limite objectivo absoluto à tempestividade e admissibilidade das acções de reconhecimento judicial.
3.º O regime estabelecido pelo n.º 2 do artigo 1817.º do Código Civil - aplicável ex-vi do artigo 1873.º - ao impedir a propositura da acção de reconhecimento judicial pelo filho que viu a paternidade presumida do marido da mãe cancelada, em consequência de sentença proferida em acção proposta por este, em momento muito ulterior ao limite temporal do n.º 1 do artigo 1817.º, implica o estabelecimento de uma restrição excessiva e desproporcionada ao direito à identidade pessoal do filho.
4.º Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado na decisão recorrida."
O recorrido não contra-alegou.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação. - 3 - O artigo 1817.º do Código Civil tem a seguinte redacção:
"Artigo 1817.º
Prazo para a proposição da acção
1 - A acção de investigação de maternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dois primeiros anos posteriores à sua maioridade ou emancipação.
2 - Se não for possível estabelecer a maternidade em consequência do disposto no artigo 1815.º, a acção pode ser proposta no ano seguinte à rectificação, declaração de nulidade ou cancelamento do registo inibitório, contanto que a remoção do obstáculo tenha sido requerida até ao termo do prazo estabelecido no número anterior, se para tal o investigante tiver legitimidade.
3 - Se a acção se fundar em escrito no qual a pretensa mãe declare inequivocamente a maternidade, pode ser intentada nos seis meses posteriores à data em que o autor conheceu ou devia ter conhecido o conteúdo do escrito.
4 - Se o investigante for tratado como filho pela pretensa mãe, a acção pode ser proposta dentro do prazo de um ano a contar da data em que cessar aquele tratamento."
A decisão recorrida recusou a aplicação do n.º 2 do artigo transcrito, aplicável às acções de investigação de paternidade por força do artigo 1873.º do Código Civil, "quando interpretada no sentido de que a acção de investigação de paternidade só pode ser proposta (no ano seguinte à rectificação, declaração de nulidade ou cancelamento do registo inibitório), contanto que, mesmo nos casos em que a rectificação, declaração de nulidade ou cancelamento daquele registo tenham sido decorrentes da procedência de acção judicial de impugnação de paternidade intentada por terceiro que não o filho-investigante, a remoção do obstáculo tenha sido requerida até ao termo do prazo estabelecido n.º 1 do mesmo preceito", com fundamento em violação do disposto nos artigos 25.º, n.º 1, e 26.º, n.º 1, da Constituição.
O recorrente considera igualmente que a norma cuja aplicação foi recusada enferma de inconstitucionalidade.
4 - O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a conformidade à Constituição de normas do artigo 1817.º do Código Civil, enquanto estabelecem um prazo para a investigação de paternidade, tendo sempre concluído pela não inconstitucionalidade da limitação temporal ao exercício do direito a ver judicialmente estabelecida a paternidade (cf. Acórdãos n.os 99/88, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 22 de Agosto de 1988, 413/89, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 15 de Setembro de 1989, 451/89, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 21 de Setembro de 1989, 311/95, inédito, e 506/99, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 17 de Março de 2000).
O caso sub judicio apresenta, contudo, uma configuração particular que o diferencia substancialmente dos casos anteriormente tratados. Com efeito, nos presentes autos, o recorrido teve até aos 31 anos de idade o vínculo de filiação juridicamente estabelecido, muito para lá, portanto, do termo do prazo a que se refere o n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, não tendo, naturalmente, durante esse período, qualquer fundamento para impugnar o respectivo registo (o que é indiciado pela circunstância de o recorrido ter contestado a acção de impugnação da paternidade instaurada pelo seu pretenso pai). Com a idade referida, o recorrido viu julgada procedente uma acção de impugnação da paternidade, instaurada por quem constava do registo como seu pai, sendo consequentemente cancelada a menção de paternidade (presumida) que constava do registo de nascimento.
A consagração de um prazo para a instauração da acção de investigação de paternidade e a fixação do respectivo termo a quo de acordo com um critério objectivo e inflexível foi considerada nas decisões anteriores do Tribunal Constitucional como legítima por razões de certeza e segurança que visam evitar a manutenção de uma situação de pendência ou dúvida acerca da filiação por períodos desmedidamente longos.
Independentemente da questão de saber se é de reafirmar essa jurisprudência, nomeadamente por este Tribunal estar atento a desenvolvimentos relevantes e recentes sobre esta matéria de que a questão tem sido objecto, o certo é que o presente processo suscita uma específica questão normativa: trata-se de saber se será conforme à Constituição uma norma que impede a instauração da acção de investigação de paternidade, por esgotamento do prazo de caducidade, num caso em que o autor, no período em que decorreu esse prazo, não tinha qualquer razão ou fundamento para colocar sob suspeita ou em dúvida a filiação que se encontrava juridicamente estabelecida e devidamente registada. Será, pois, admissível, na perspectiva da constitucionalidade, que uma norma impeça a investigação de paternidade a quem, depois dos 20 anos (no caso, 31 anos, como se mencionou), for surpreendido pela procedência de uma acção de impugnação da sua paternidade instaurada por um terceiro (aqui, pela pessoa que era tida como seu pai)?
A resposta é negativa pelas razões que se exporão de seguida.
5 - O artigo 26.º da Constituição consagra o direito à identidade pessoal. Tal direito inclui no seu conteúdo essencial a possibilidade de qualquer pessoa tomar conhecimento da sua ascendência, nomeadamente da sua filiação natural. Nessa medida, a lei consagra os mecanismos judiciais que visam efectivar o exercício de tal direito, permitindo a investigação da filiação (maternidade, paternidade), de modo que todos os indivíduos tenham a possibilidade de identificar os seus progenitores para, entre outros fins, ser estabelecido o vínculo de filiação jurídica com base no vínculo biológico.
A consagração de limites ao exercício do direito a ver reconhecida a filiação natural não poderá inutilizar esse direito, isto é, independentemente de ser constitucionalmente criticável a possibilidade de consagração de limites, nomeadamente temporais, ao exercício do direito de instaurar a acção de investigação de paternidade, não é já, seguramente, admissível a criação de um limite que, na prática, vede, em absoluto, a possibilidade de o sujeito averiguar o vínculo de filiação natural.
Nos presentes autos, o autor da acção de investigação da paternidade, no período em que, de acordo com o teor literal da lei, podia instaurar a acção de investigação de paternidade, encontrava-se numa situação em que tinha o vínculo de filiação estabelecido, não tendo qualquer fundamento (pelo menos não tinha dele conhecimento, nem podia ter - o que é claramente indiciado pela circunstância de o recorrido ter contestado a acção de impugnação de paternidade instaurada pelo seu pretenso pai, como se referiu) para interpor uma acção de investigação de paternidade. É óbvio que não é exigível a uma pessoa que não tem razões para pôr em causa os vínculos de filiação juridicamente estabelecidos que proceda a averiguações sobre a veracidade desses vínculos, sob pena de ser precludida a possibilidade de ver estabelecida a sua filiação uma vez passados os 20 anos de idade, caso o problema se venha a colocar nessa altura.
Cabe, ainda, neste contexto, sublinhar que a acção de impugnação de paternidade pode ser instaurada em qualquer altura, em função do critério de conhecimento, por parte do impugnante (marido ou filho), das circunstâncias que fundamentam a impugnação, nos termos do artigo 1842.º, n.º 1, alíneas a) e c), do Código Civil.
Ora, em face de anteriores considerações, só pode concluir-se que é desproporcionada e violadora do direito à identidade pessoal a norma que impede a investigação de paternidade em função de um critério de prazos objectivos, nos casos em que os fundamentos e as razões para instaurar a acção de investigação surgem pela primeira vez em momento ulterior ao termo daqueles prazos. Tal norma consagra, neste tipo de situações, uma efectiva negação da possibilidade do conhecimento da paternidade, apesar de tal possibilidade ter sido concedida num momento em que, verdadeiramente, a acção "não podia" - porque não havia razões para tal - ser instaurada.
No Acórdão 370/91, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 2 de Abril de 1992, o Tribunal Constitucional proferiu decisão interpretativa acerca da norma constante do n.º 4 do artigo 1817.º do Código Civil (tendo decidido "não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 1873.º, com referência ao n.º 4 do artigo 1817.º, ambos do Código Civil, desde que interpretada no sentido de que a cessação do tratamento como filho só ocorre quando, continuando a ser possível esse mesmo tratamento, o pretenso pai lhe ponha voluntariamente termo"), utilizando critérios de adequação e proporcionalidade, articulados com o direito fundamental ao conhecimento e reconhecimento da paternidade.
Nos presentes autos, está em causa, também, o mesmo parâmetro de constitucionalidade. Com efeito, tais critérios de adequação e proporcionalidade seriam violados caso se interpretasse o artigo 1817.º, n.º 2, como sendo aplicável literalmente aos casos em que o investigante vê julgada procedente uma acção de impugnação de paternidade em momento posterior ao termo dos prazos a que se refere o n.º 1 do mesmo preceito.
Há pois que concluir pela inconstitucionalidade da norma desaplicada. Não é, na verdade, constitucionalmente admissível (nos termos dos artigos 18.º, n.º 3, e 26.º, n.º 1, da Constituição) que uma pessoa fique privada de qualquer possibilidade de estabelecer por via judicial a sua filiação biológica, na sequência de uma acção de impugnação de paternidade, tanto mais que essa acção foi julgada procedente com base na imputação (e respectiva demonstração) a sujeito determinado da provável paternidade biológica (o que sempre enfraquece in casu a pertinência do argumento segundo o qual os prazos para a instauração da acção de investigação da paternidade também se fundamentam na dificuldade de prova da paternidade que se avoluma com o decorrer do tempo).
6 - Confirmar-se-á, portanto, o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.
III - Decisão. - 7 - Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide confirmar o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.
Lisboa, 14 de Outubro de 2003. - Maria Fernanda Palma - Mário José de Araújo Torres - Paulo Mota Pinto - Benjamim Rodrigues - Rui Manuel Moura Ramos.