O representante do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa, invocando o disposto no artigo 669.º do Código de Processo Penal, recorre para o tribunal pleno, visando a fixação da jurisprudência, do Acórdão da mesma Relação de 10 de Março de 1978 que diz estar em oposição com o de 22 de Julho de 1977, pois, afirma, enquanto o primeiro decidiu que se o depositário de bens penhorados, embora notificado para tanto, os não entrega, comete, conforme os casos, o crime do artigo 453.º ou o do artigo 422.º do Código Penal, o segundo decidiu que tal acção do depositário integra o crime do artigo 188.º do mesmo Código Penal.
A secção já decidiu - acórdão de fls. ... - que, estando verificados, para a admissibilidade do recurso, todos os pressupostos legais, se verificava a alegada oposição, razão por que mandou seguir o recurso para que o tribunal pleno se pronunciasse sobre a alegada oposição.
Este tribunal, porém, não deve obediência a tal julgado - artigo 766.º, n.º 3, do Código de Processo Civil -, devendo, portanto, e em primeiro lugar, pronunciar-se sobre a oposição.
Esta é, no entanto, evidente, bastando para tal concluir atentar na enunciação do problema em causa.
Decide-se, portanto, pela existência da invocada oposição e passa-se, consequentemente, a conhecer do fundo da questão, nos termos da lei.
O artigo 854.º do Código de Processo Civil de 1939 dispunha:
O depositário é obrigado a apresentar, quando lhe for ordenado, os bens que recebeu, salvo o disposto nos artigos anteriores.
Se os não apresentar dentro de cinco dias, será preso pelo tempo correspondente ao valor do depósito, calculado a 10$00 por dia, não podendo, porém, a prisão exceder a dois anos; ao mesmo tempo será executado, no próprio processo, para o pagamento do valor do depósito.
A prisão cessará logo que este pagamento esteja feito ou o depositário comece a cumprir a pena que, pelo mesmo facto, lhe foi imposta no processo criminal.
Esta disposição veio a ser reproduzida, salvo quanto ao montante da taxa, que passou a ser de 20$00, no Código de Processo Civil de 1961 (artigo 854.º).
A fonte do artigo 854.º do Código de 1939 foi o artigo 825.º do Código de Processo Civil de 1876, que dispunha:
Se o depositário, sendo intimado, deixar de apresentar os bens no prazo de cinco dias, será preso pelo tempo correspondente ao valor do depósito, calculado a 1000 réis por dia § 1.º Esta pena nunca poderá exceder a dois anos e cessará quando o depositário pagar, ou quando começar a executar-se a pena que, pelo mesmo facto, lhe tiver sido imposta em processo criminal.
§ 2.º No processo de execução será o depositário executado pelo valor do depósito e, realizada a cobrança, cessará a pena.
O Decreto-Lei 368/77, de 3 de Setembro, deu nova redacção ao n.º 2 do artigo 854.º do Código de Processo Civil, que passou a ser a seguinte:
Se os não apresentar dentro de cinco dias e não justificar a falta, é logo ordenado o arresto em bens do depositário suficientes para garantir o valor do depósito e das custas e despesas acrescidas, sem prejuízo de procedimento criminal; ao mesmo tempo é executado, no próprio processo, para pagamento daquele valor e acréscimos.
Como se vê, também nas leis anteriores, além da prisão imposta imediatamente, a acção do depositário era passível de procedimento criminal, podendo, portanto, já em face dessas leis, discutir-se qual seria a incriminação correcta.
Acrescente-se que o Decreto-Lei 368/77 não fez mais do que seguir os princípios consignados na Constituição da República, pois, em face do disposto no n.º 2 do artigo 27.º, a prisão, nos termos do n.º 2 do artigo 854.º do Código de Processo Civil, era inconstitucional.
Consequentemente, aquele decreto-lei só poderia impor, como impôs, o procedimento criminal.
Mas procedimento criminal por que crime? É essa a questão e era, como vimos, a que já anteriormente se podia pôr.
Já Dias Ferreira (Código de Processo Civil Anotado de 1888, tomo II, p. 320) entendia que a disposição do artigo 825.º, já citado, do Código de 1876 «era consequência do preceito de lei geral, Código Penal, artigo 453.º, que presume réu de furto o depositário que não entrega o depósito no prazo legal».
Em face dos Códigos de 1939 e 1961, cremos, o entendimento não podia ser outro.
Efectivamente, o depositário que, recebendo a coisa com obrigação de a entregar, não cumprir, quando lhe era exigida, tal obrigação, praticava, sem sombra de dúvida, o crime de abuso de confiança do artigo 453.º do Código Penal.
Presentemente, a solução é precisamente a mesma, e nem podia ser outra, pois os termos da questão são exactamente os mesmos.
Com efeito, a não entrega da coisa já significa, por si mesmo, descaminho, dado que ela é entregue voluntariamente para um determinado fim - guarda -, que não foi cumprido.
Por outro lado, também a acção pode, como se julgou no acórdão recorrido, preencher, em certos casos, o tipo de crime do artigo 422.º do Código Penal.
E que esta posição é a correcta parece até resultar das anteriores disposições dos códigos de processo que faziam cessar a prisão logo que estivesse efectuado o pagamento do valor do depósito ou que o depositário tivesse começado a cumprir a pena que, pelo mesmo facto, lhe tivesse sido imposta no processo criminal, o que revela que a lei entendia a acção como uma infracção cometida contra a propriedade, e esta só podia ser o abuso de confiança, dado o meio pelo qual o depositário havia recebido a coisa e as próprias características do depósito.
Também o actual artigo 854.º dá a entender o mesmo, pois ordena no n.º 3 o levantamento do arresto dos bens do depositário, ordenado no n.º 2, logo que o pagamento esteja feito ou os bens apresentados.
Estas medidas não se costumariam com a qualificação como crime de desobediência, que, de qualquer forma, seria sempre alheio ao acto do desvio de bens, considerado este, como é, uma ofensa ao direito da propriedade.
Por outro lado, se a lei entendesse tratar-se de desobediência, decerto se preocuparia menos com o problema da entrega dos bens ou do pagamento, sendo certo que na desobediência a protecção penal se dirige, ou diz respeito, a outros valores.
Chegamos, assim, à conclusão que improcedem quer os fundamentos do acórdão invocado em oposição, quer os da alegação do representante do Ministério Público.
E, em face disso e do mais que vem de expor-se, acordam, em conferência, os juízes que compõem o Supremo Tribunal de Justiça em decidir:
O depositário que, nos termos do n.º 2 do artigo 854.º do Código de Processo Civil, deixar de apresentar os bens, comete, segundo os casos, o crime do artigo 453.º do Código Penal ou o crime do artigo 422.º do mesmo Código.
Não é devido imposto de justiça.
Lisboa, 28 de Junho de 1979. - Adriano Vera Jardim - João Moura - Rodrigues Bastos - Daniel Ferreira - Eduardo Botelho de Sousa - António Miguel Caeiro - Avelino da Costa Ferreira Júnior - Artur Moreira da Fonseca - Hernâni de Lencastre - Aníbal Aquilino Ribeiro - Alberto Alves Pinto - António Furtado Santos - João Vale - Henrique Justino da Rocha Ferreira - António Correia de Melo Bandeira - Augusto de Azevedo Ferreira F.
Bruto da Costa (vencido. Entendo que a atitude do depositário tem de ser apreciada conforme cada caso concreto, podendo ou não tratar-se dos crimes dos artigos 453.º, 422.º ou 188.º do Código Penal) - Abel de Campos (vencido, por entender que, consoante os casos, ou seja, conforme a intenção do agente - de dispor da coisa animo domini, ou simplesmente faltar à obediência devida à autoridade, poderá existir crime dos artigos 453.º ou 422.º do Código Penal, ou do artigo 188.º do mesmo Código) - Santos Victor (vencido, pelas mesmas razões do voto precedente) - Ferreira da Costa (vencido, pelos fundamentos do voto do conselheiro Dr. Abel de Campos) - Costa Soares (vencido, por estar inteiramente de acordo com as razões de discordância do Exmo. Conselheiro Abel de Campos) - Octávio Dias Garcia (vencido, nos termos da declaração do ilustre colega Abel de Campos) - Ruy Corte Real (vencido, pelas razões do Exmo. Colega Conselheiro Abel de Campos) - Oliveira Carvalho (vencido, pelas razões do colega Abel de Campos).
Está conforme.
Supremo Tribunal de Justiça, 5 de Julho de 1979. - O Escrivão de Direito, José António dos Reis Palma.