Processo 2859/2005 - 5.ª Secção
Acordam no pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça:
I Relatório
Marília Dulce Pires Coelho Morgado Raimundo e João Bento Raimundo, devidamente identificados no processo, vieram interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do Acórdão da Relação de Coimbra (processo 629/2005), proferido em 27 de Abril de 2005, que, confirmando a decisão recorrida, decidiu que o particular alegadamente caluniado pode constituir-se assistente em procedimento criminal instaurado contra o indiciado como seu caluniador.Os recorrentes alegaram, em síntese, que, quanto àquela constituição de assistente, no domínio da mesma legislação, o Acórdão da Relação do Porto de 24 de Março de 1999 sufragou entendimento oposto: naquele indicado contexto, o particular alegadamente caluniado não pode constituir-se assistente.
Nestes termos, os recorrentes entenderam que deve ser fixada jurisprudência no sentido de que «o crime de denúncia caluniosa, previsto e punido no artigo 365.º do Código Penal, é um crime em que está em causa um bem jurídico de natureza pública, cuja perseguição compete ao Ministério Público. O bem jurídico protegido é a boa administração da justiça, pelo que este tipo legal assume um interesse predominantemente público, não sendo compatível com os interesses de um ofendido particular, pelo que não é admissível a constituição do alegado ofendido como assistente e, consequentemente, o seu requerimento de abertura de instrução não pode ser admitido, pelo que se ordena a revogação do acórdão proferido pela Relação de Coimbra e se revoga o despacho recorrido, ordenando-se que não seja admitida a constituição como assistente do alegado ofendido» (ver nota 1).
Remetido o processo a este Supremo Tribunal, após diversas vicissitudes, foi aposto visto pelo Ministério Público (ver nota 2).
Colhidos os vistos, o processo foi a conferência, e, por Acórdão de 6 de Abril de 2006, este Supremo Tribunal reconheceu a existência de oposição de julgados e determinou «o prosseguimento do presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência» (ver nota 3).
Cumprindo o disposto no n.º 1 do artigo 442.º do Código de Processo Penal, foram notificados os recorrentes e o Ministério Público junto deste Supremo Tribunal para apresentarem as respectivas alegações escritas, as quais, entretanto, foram juntas aos autos.
Nelas, o Ministério Público considerou que o acórdão recorrido deve ser mantido, propondo que a jurisprudência seja fixada nos seguintes termos:
«Em processo por crime de denúncia caluniosa, previsto e punido no artigo 365.º do Código Penal, o particular ofendido tem legitimidade para se constituir assistente(ver nota 4).» Por sua vez, os recorrentes terminaram as suas alegações com a formulação das seguintes conclusões:
«A) No acórdão fundamento decidiu-se que, quando está em causa uma queixa pelo crime de denúncia caluniosa, o participado pela eventual prática do crime não pode constituir-se assistente, por o bem jurídico que o tipo criminal protege ser um bem jurídico de ordem pública, de interesse público, e não um bem jurídico de natureza particular ou privada. Logo, não podendo constituir-se assistente, também não pode requerer a instrução;
B) No acórdão recorrido decidiu-se que 'a incriminação de denúncia caluniosa protege directa, imediata e simultaneamente o interesse da administração da justiça e a consideração e honra da pessoa denunciada, a qual a lei quis especialmente, também, proteger. A lei, no caso, tutela tanto a boa administração da justiça, quanto o indivíduo';
C) O acórdão recorrido negou provimento ao recurso intentado pelos ora recorrentes, por ter chegado a uma conclusão diametralmente oposta à constante do acórdão fundamento;
D) Por força do exposto, é legítimo pedir a revogação do acórdão proferido pela Relação de Coimbra, ordenando-se a revogação desse acórdão e do despacho proferido em 1.ª instância, primeiro fundamento do recurso, ordenando-se que não seja admitida a constituição como assistente do alegado ofendido;
E) Os dois acórdãos em referência (fundamento e recorrido) foram proferidos no domínio da mesma legislação, estando em contradição;
F) É, assim, legítimo pedir a presente harmonização de jurisprudência, a qual deve ser fixada nos termos seguintes:
No crime de denúncia caluniosa, previsto e punido no artigo 365.º do Código Penal, está em causa um bem jurídico de natureza pública, cuja perseguição compete ao Ministério Público;
O bem jurídico protegido é a boa administração da justiça, pelo que o tipo legal assume um interesse predominantemente público, que excluiu os interesses do ofendido particular;
Não é admissível a constituição do ofendido como assistente, nem a apresentação de requerimento de abertura de instrução pelo ofendido (ver nota 5).» Colhidos os vistos, teve lugar a conferência do pleno das secções criminais, a que alude o artigo 443.º do Código de Processo Penal, cumprindo, ora, conhecer a decidir.
II - Reafirmação do reconhecimento da oposição de julgados e saneamento dos
autos
Da exposição precedente, é manifesto que os dois acórdãos em conflito, o acórdão recorrido, da Relação de Coimbra, e o acórdão fundamento, da Relação do Porto, ambos transitados em julgado, pronunciaram-se em sentido contrário relativamente a uma mesma questão de direito, no domínio da mesma legislação e no que respeita a factos idênticos: quanto à admissibilidade da constituição de assistente em procedimento por crime por denúncia caluniosa, o acórdão recorrido concluiu pela sua admissibilidade, ao passo que o acórdão fundamento entendeu o contrário.Nestes termos, confirma-se, ora em pleno, a existência da oposição de julgados a que se refere o artigo 437.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal.
Inexistem quaisquer questões processuais ou incidentais que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
III - Delimitação do objecto da fixação de jurisprudência em causa
Atentos os pedidos deduzidos nos presentes autos e as respectivas motivações, o objecto deste recurso extraordinário para fixação de jurisprudência cinge-se a saber se em procedimento por crime de denúncia caluniosa é ou não admissível a constituição de assistente por parte do alegadamente caluniado.
IV - A fundamentação dos acórdãos recorrido e fundamento
Partindo do estatuto legal de assistente e do(s) bem(ns) jurídico(s) protegido(s) pelo crime de denúncia caluniosa, os acórdãos recorrido e fundamento concluem de forma antagónica quanto ao indicado objecto da presente fixação de jurisprudência.
Em sede de fundamentação da decisão, no acórdão recorrido consignou-se, no essencial, que:
«O conceito de assistente não é definido em concreto, limitando-se a lei a indicar genericamente casos em que a posição de assistente pode ser assumida, entre outrem, por particulares, estruturando a sua posição processual e atribuições.
Assim que, entre outros, se possam constituir assistentes 'os ofendidos maiores de 16 anos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação - artigo 68.º, n.º 1, alínea a), do CPP'.
O vocábulo especialmente utilizado pela lei exprime [...] o significado de directa e particularmente mas não o sentido de exclusivo.
A incriminação da denúncia caluniosa protege directa, imediata e simultaneamente o interesse da administração da justiça e a consideração e honra da pessoa denunciada, a qual a lei quis especialmente, também, proteger.
A lei, no caso, tutela tanto a boa administração da justiça, quanto o indivíduo.» Por sua vez, o acórdão fundamento exprimiu-se, basicamente, no sentido de que:
«'Diz-se ofendido em processo penal unicamente a pessoa que, segundo o critério que se retira do tipo preenchido pela conduta criminosa, detém a titularidade do interesse jurídico-penal por aquela violado ou posto em perigo', v. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, vol. I, pp. 505 e seguintes.
O crime de denúncia caluniosa imputado ao arguido [...] previsto e punível no artigo 365.º do CP, acha-se integrado no título V, 'Dos crimes contra o Estado', capítulo III, 'Dos crimes contra a realização da justiça'.
Trata-se de um crime de natureza pública, cuja perseguição compete ao Ministério Público.
O bem jurídico protegido, o interesse imediato que a lei penal quis proteger com a incriminação, é a boa administração da justiça, que mais não é que o bem jurídico especialmente protegido com a incriminação.
Assume-se um interesse predominantemente público [...] pelo que se não pode conceber um ofendido particular, no sentido estrito que vigora em matéria especificamente penal.
Os interesses meramente pessoais são aqui protegidos, reflexa ou indirectamente.
Com as condutas que preenchem o tipo legal do artigo 365.º, é violado o interesse do Estado em que o procedimento seja desencadeado e instaurado com base em denúncia ou suspeita séria e fundada, o interesse do Estado em que a máquina da administração da justiça seja abusivamente posta em marcha; em suma, repete-se o interesse público da boa administração e realização da justiça.
Não se duvida que os falsamente denunciados possam sofrer prejuízos e, assim, ser vítimas de tais condutas, 'ofendidos' por elas.
Certo é que neste tipo legal não se protege 'principalmente o interesse dos acusados contra o prejuízo resultante de imputações maliciosas' [...] conformando-se, antes, os particulares 'ofendidos' num sentido amplo - o que, aliás, é reconhecido, implicitamente, nos n.os 4 e 5 da mencionada disposição legal.
Aqui, quando a lei utiliza o termo ofendido fá-lo numa acepção ampla, de vítima, prejudicado, lesado, já não no sentido restrito do citado artigo 68.º, n.º 1, do CPP.
(Na revisão do CP chegou a ser utilizado o termo 'vítima' no n.º 4 e o termo 'ofendido' no n.º 5, decidindo-se, por uma questão de uniformização, a única utilização do termo 'ofendido' - 'Acta 51', Notas e Projectos da Comissão de Revisão).»
V - A jurisprudência portuguesa e a fixação em apreço
Após 1 de Outubro de 1995, data da entrada em vigor do Código Penal de 1995, com referência a este, nos tribunais superiores, no mesmo sentido do acórdão recorrido, sufragando, no essencial, a mesma indicada fundamentação daquele acórdão, pronunciaram-se, entre outros, igualmente os Acórdãos deste Supremo Tribunal de 29 de Março de 2000, processo 628/99, 3.ª Secção, in Colectânea de Jurisprudência, vol. I, pp. 234 a p. 239, e de 23 de Maio de 2002, processo 976/2002, 5.ª Secção, in www.stj.pt/jurisprudencia, Boletim Interno, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 19 de Outubro de 2000, in Colectânea de Jurisprudência, vol. IV, pp. 151 e 152, de 30 de Outubro de 2002, processo 6549/2002, 3.ª Secção, in www.pgdlisboa.pt/pgdl/jurisprudencia, da Relação de Lisboa, de 6 de Novembro de 2002, processo 4676/2002, 3.ª Secção, in www.pgdlisboa.pt/pgdl/jurisprudencia, da Relação de Lisboa, de 17 de Dezembro de 2002, processo 5997/2002, 5.ª Secção, in www.pgdlisboa.pt/pgdl/jurisprudencia, da Relação de Lisboa, de 15 de Janeiro de 2003, processo 93503, in www.dgsi.pt/jtrl, de 17 de Janeiro de 2003, processo 59975, in www.dgsi.pt/jtrl, de 22 de Janeiro de 2003, processo 81173, in www.dgsi.pt/jtrl, de 25 de Março de 2003, processo 1499/2003, in Colectânea de Jurisprudência, vol. II, pp. 132 e 133, de 10 de Abril de 2003, processo 1504/2003, 9.ª Secção, in www.pgdlisboa.pt/pgdl/jurisprudencia, da Relação de Lisboa, de 21 de Abril de 2005, processo 4880/2004, 9.ª Secção, in www.pgdlisboa.pt/pgdl/jurisprudencia, da Relação de Lisboa, e de 18 de Maio de 2005, processo 1967/2005, 3.ª Secção, in www.pgdlisboa.pt/pgdl/jurisprudencia, da Relação de Lisboa, os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 7 de Abril de 1999, processo 856/98, in Colectânea de Jurisprudência, vol. II, p. 229 a p. 231, de 29 de Janeiro de 2003, processo 240632, in www.dgsi.pt/jtrp, e de 25 de Fevereiro de 2004, processo 36751, in www.dgsi.pt/jtrp, e o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 6 de Novembro de 2002, processo 1974/2002, in Colectânea de Jurisprudência, vol. V, p. 42.
Em sentido idêntico ao acórdão fundamento, com, basicamente, os mesmos referidos argumentos deste, foram publicados, entre outros, os Acórdãos deste Supremo Tribunal de 2 de Outubro de 1997, processo 508/97, in www.stj.pt/jurisprudencia, Boletim Interno, e de 16 de Abril de 1998, processo 147/98, in www.stj.pt/jurisprudencia, Boletim Interno, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 28 de Abril de 1998, in Colectânea de Jurisprudência, vol. II, pp. 164 e 165, de 31 de Maio de 2000, processo 25086, in www.dgsi.pt/jtrl, e de 21 de Abril de 2005, processo 4880/2004, 9.ª Secção, in Colectânea de Jurisprudência, vol. II, pp.
143 a 145, e os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 18 de Junho de 1997, in Colectânea de Jurisprudência, vol. II, pp. 237 e 238, de 20 de Janeiro de 2000, processo 10393, in www.dgsi.pt/jtrp, de 9 de Fevereiro de 2000, processo 25770, in www.dgsi.pt/jtrp, e de 18 de Outubro de 2000, processo 28656, in www.dgsi.pt/jtrp.
VI Fundamentação
Enunciada a questão cuja jurisprudência importa aqui fixar, indicados os fundamentos essenciais sufragados por cada uma das posições em confronto e referenciada jurisprudência sobre a matéria, cumpre ora tomar posição na apontada dicotomia, o que pressupõe uma prévia ponderação, no nosso quadro jurídico-penal, quer do estatuto do assistente, quer da incriminação da denúncia caluniosa numa perspectiva valorativa da norma, dos bens por ela tutelados ou dos interesses por ela salvaguardados (ver nota 6).Assim.
1 - O assistente
Na revisão constitucional de 1997 (ver nota 7), a nossa lei fundamental passou a consagrar a tutela do ofendido, estipulando que este «tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei» (ver nota 8).Reconhece-se, pois, ao ofendido o direito de participar no processo, relegando ao legislador ordinário a indicação do conteúdo de uma tal intervenção.
«A norma constitucional não especifica o conteúdo do direito de intervenção do ofendido, remetendo para a lei ordinária a sua densificação. O que a lei não pode é retirar ao ofendido, directa ou indirectamente, o direito de participar no processo que tenha por objecto a ofensa de que foi vítima (ver nota 9).» Ora, em sede processual penal, no domínio da nossa lei ordinária, a intervenção do ofendido pode assumir as formas de assistente e ou demandante cível.
Postergando, desde já, aquela última vertente, por manifestamente impertinente à discussão em causa, no cotejo legal infraconstitucional, o ofendido/assistente assume-se como um dos sujeitos processuais, com papel principal enquanto acusador nos crimes particulares e com intervenção activa, embora, em regra, subordinada, nas fases de instrução, julgamento e recursos, em crimes semipúblicos e públicos (ver nota 10).
Tal posição insere-se, aliás, na nossa tradição jurídico-processual penal (ver nota 11), sendo que também como esta o regime legal actual não explicita uma noção de ofendido/assistente.
O artigo 68.º do Código de Processo Penal indica tão-só os que podem constituir-se assistentes, estipulando, na alínea a) do respectivo n.º 1, que essa qualidade, além do mais, pode ser atribuída aos «ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos».
Neste contexto, assistente só pode, pois, ser o directamente ofendido com a violação da norma, sendo que havendo uma pluralidade de pessoas que o sejam, qualquer delas pode constituir-se assistente (ver nota 12).
Dito de outro modo, face àquela indicada norma, o ofendido pode constituir-se assistente sempre que a ofensa àquele esteja compreendida na esfera de protecção da incriminação.
Ofendido/assistente é «a pessoa que, segundo o critério que se retira do tipo preenchido pela conduta criminosa, detém a titularidade do interesse jurídico-penal por aquela violado ou posto em perigo» (ver nota 13).
«Não é ofendido qualquer pessoa prejudicada com o crime; ofendido é somente o titular do interesse que constitui objecto da tutela imediata pela incriminação do comportamento que o afecta. O interesse jurídico mediato é sempre o interesse público, o imediato é que pode ter por titular um particular (ver nota 14).» Caso a incriminação proteja uma pluralidade de bens jurídicos de nada releva na matéria equacionar a importância relativa de cada um desses bens, pois condição necessária e suficiente à constituição do ofendido como assistente é que a ofensa daquele ponha em causa um dos bens jurídicos que a incriminação pretende salvaguardar.
Quanto «a tipos de ilícitos que protegem não apenas um interesse supra-individual, mas também interesses pessoais, deve admitir-se como ofendidos [embora com cuidados e o espírito restritivo necessários] os titulares individuais» (ver nota 15).
Chegados aqui, importa ora saber se a pessoa concreta indicada como injustamente denunciada encontra tutela jurídico-penal no crime de denúncia caluniosa, que o mesmo é dizer que está agora em causa apurar se a personalidade moral do caluniado é um bem jurídico tutelado pela incriminação da denúncia caluniosa.
Vejamos.
2 - O crime de denúncia caluniosa
Tal tipo de ilícito encontra-se previsto no artigo 365.º do Código Penal (ver nota 16).Com referência àquele Código, o citado preceito legal está inserido no respectivo capítulo III, «Dos crimes contra a realização da justiça», do título V, «Dos crimes contra o Estado», do livro II, «Parte especial».
Aquela inserção denota que o bem jurídico protegido com a incriminação da denúncia caluniosa é, desde logo, a realização da justiça.
E, substancialmente, assim se deve entender.
Naquele quadro normativo, sendo caluniador e caluniado pessoas diversas, com a apontada incriminação pretende-se necessariamente salvaguardar a eficácia da justiça e, por isso, a realização desta.
Visa-se que os meios da justiça penal sejam justamente direccionados para a protecção de bens jurídicos constitucionalmente relevantes e só nessa direcção, o que não sucede sempre que a denúncia, participação ou suspeita constitui uma calúnia.
O direito de participação próprio de um Estado de direito material (ver nota 17) pressupõe, além do mais, uma cidadania responsável, o que não sucede com o caluniador, que, desde logo, afronta a realização da justiça, um dos desideratos daquele Estado e, por isso, bem supra-individual que importa salvaguardar, constituindo a incriminação da denúncia caluniosa uma forma de tutela desse bem.
Entender o contrário seria como que considerar a denúncia caluniosa como uma difamação agravada, o que não parece ter sido propósito legislativo, atenta a inserção sistemática referenciada.
Na realização da justiça não se esgota, contudo, a esfera de protecção da incriminação da denúncia caluniosa.
Com ela protege-se igualmente o bom nome, a honra e consideração do caluniado.
Salvaguarda-se, pois, a personalidade moral, dignificando-se a pessoa, valor essencial, com expressa consagração constitucional.
Com efeito, o direito à integridade moral, e em particular ao bom nome e à reputação, encontra expressão nos artigos 25.º (ver nota 18) e 26.º (ver nota 19) da nossa lei fundamental, o que lhe confere uma dimensão axiológica.
«Na sua expressão mais simples a protecção da integridade [...] moral consiste no direito a não agressão ou ofensa ao [...] espírito, por quaisquer meios [...] Consagra-se, assim, uma tutela constitucional firme [...] contra violações do direito à integridade moral consubstanciadas, designadamente, em quaisquer formas de denegrir a imagem ou o nome de uma pessoa», sendo que «o direito ao bom nome e à reputação tem um alcance jurídico amplíssimo, situando-se no cerne da ideia de dignidade da pessoa. A relevância constitucional da tutela do bom nome e da reputação legitima a criminalização de comportamentos como a calúnia» (ver nota 20).
Do ponto de vista da tutela normativa, enquanto tipo de ilícito no nosso quadro jurídico-penal, a denúncia caluniosa assume, pois, uma natureza pluridimensional.
A incriminação em presença protege quer a realização da justiça quer o bom nome, a honra e consideração do caluniado (ver nota 21).
3 - A constituição de assistente no crime de denúncia caluniosa
Do exposto, resulta que podem constituir-se assistentes os que forem titulares do interesse especialmente protegido pela incriminação. Decorre, ainda, que o caluniado é titular de um dos interesses que a lei especialmente protege com o crime de denúncia caluniosa.
Em consequência, o alegadamente caluniado pode constituir-se assistente em procedimento criminal relativo ao crime de denúncia caluniosa instaurado contra o indiciado como seu caluniador.
Se este ao mesmo tempo que afronta a realização da justiça ofende a integridade moral do caluniado, o qual é pessoa diversa daquele, num Estado de direito material importa que se confira ao caluniado o direito de intervenção processual penal na salvaguarda da sua integridade moral, direito que se há-de concretizar, desde logo, na possibilidade da sua constituição como assistente, termos em que cumpre fixar jurisprudência (ver nota 22) (ver nota 23).
VII Decisão
Pelo exposto, confirma-se o acórdão recorrido, fixando-se a seguinte jurisprudência:«No crime de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo artigo 365.º do Código Penal, o caluniado tem legitimidade para se constituir assistente no procedimento criminal instaurado contra o caluniador.» Dê-se observância ao disposto no artigo 444.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Custas pelos recorrentes, fixando-se em 5 UC a respectiva taxa de justiça.
(nota 1) Cf. fls. 1, 7 e 9 a 15 dos autos.
(nota 2) Cf. fl. 18 do processo.
(nota 3) Cf. fls. 69 a 73 dos autos.
(nota 4) Cf. fls. 80 a 99 do processo.
(nota 5) Cf. fls. 100 a 106 dos autos.
(nota 6) Na dogmática jurídico-penal, o crime é visto quer como uma lesão de um bem jurídico constitucionalmente protegido, quer como uma lesão da vigência da norma.
Relativamente à problemática, v., entre outros, Rafael Alcácer Guirao, com tradução de Augusto Silva Dias, «Protecção de bens jurídicos ou protecção da vigência do ordenamento jurídico?» in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 15.º, n.º 4 (Outubro-Dezembro de 2005), pp. 511 a 555, e a vasta bibliografia aí referida.
(nota 7) Lei Constitucional 1/97, de 20 de Setembro.
(nota 8) O artigo 32.º, n.º 7, da Constituição da República Portuguesa estipula que «o ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei».
(nota 9) Cf. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, t. I, p.
361.
(nota 10) Cf., designadamente, o artigo 69.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, segundo o qual «os assistentes têm a posição de colaboradores do Ministério Público, a cuja actividade subordinam a sua intervenção no processo, salvo as excepções da lei».
(nota 11) Cf., nomeadamente, artigos 254.º, § único, 266.º, § único, 399.º, 401.º, § 3.º, 404.º, § 1.º, 416.º, 417.º, 430.º, 452.º, 472.º, § 1.º, e 481.º, § único, do Código Penal de 1886, bem como o artigo 11.º do Código de Processo Penal de 1929, e o artigo 4.º, n.º 2, do Decreto-Lei 35007, de 13 de Outubro de 1945.
(nota 12) No domínio da legislação anterior, já Beleza dos Santos, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 54.º, p. 2, consignava que por «partes particularmente ofendidas [...] devem [...] considerar-se os titulares dos interesses que a lei quis especialmente proteger quando formulou a norma penal. Quando prevê e pune os crimes, o legislador quis defender certos interesses. Praticada a infracção, ofenderam-se [os] interesses que especialmente se tiveram em vista na protecção penal, podendo prejudicar-se secundariamente, acessoriamente, outros interesses.
Os titulares dos interesses que a lei penal tem especialmente por fim proteger, quando previu e puniu a infracção e que esta ofendeu ou pôs em perigo, são as partes particularmente ofendidas, ou directamente ofendidas, e que, por isso, se podem constituir acusadores».
(nota 13) Cf. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, edição de 1984, p. 505.
(nota 14) Cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. I, Editorial Verbo, 2000, p. 264.
(nota 15) Cf. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Notícias Editorial, pp. 668 e 669.
(nota 16) Como incriminação «irrequieta», na expressão de Herdegen, referida por Costa Andrade no Comentário Conimbricense do Código Penal, parte especial, t. III, p.
519 - qualificativo que pretende dar a ideia da sua mutação, quer no tempo, quer no espaço geopolítico, o que revela a sua íntima conexão com concepções filosófico-políticas -, o mencionado tipo de ilícito encontrava-se previsto nos artigos 245.º do Código Penal de 1852 e do Código Penal de 1888, assim como 408.º do Código Penal de 1982. A sua actual redacção decorre do Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março.
Sob a epígrafe «Denúncia caluniosa», estipula-se no indicado artigo 365.º do Código Penal que:
«1 - Quem, por qualquer meio, perante autoridade ou publicamente, com a consciência da falsidade da imputação, denunciar ou lançar sobre determinada pessoa a suspeita da prática de crime, com intenção de que contra ela se instaure procedimento, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2 - Se a conduta consistir na falsa imputação de contra-ordenação ou falta disciplinar, o agente é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
3 - Se o meio utilizado pelo agente se traduzir em apresentar, alterar ou desvirtuar meio de prova, o agente é punido:
a) No caso do n.º 1, com pena de prisão até 5 anos;
b) No caso do n.º 2, com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
4 - Se do facto resultar privação da liberdade do ofendido, o agente é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
5 - A requerimento do ofendido o tribunal ordena o conhecimento público da sentença condenatória, nos termos do artigo 189.º» (nota 17) Para usar aqui a expressão de Figueiredo Dias, por exemplo in Direito Penal, parte geral, t. I, Questões fundamentais. A Doutrina Geral do Crime, p. 25:
«Sob esta designação quer-se compreender todo o Estado democrático e social que mantém intocada a sua ligação ao direito e mesmo a um esquema rígido de legalidade e se preocupa, por isso, antes de tudo, com a consistência efectiva dos direitos, das liberdades e das garantias da pessoa, mas que, por essa razão mesma, se deixa mover dentro daquele esquema, por considerações de justiça na promoção e na realização de todas as condições - políticas, sociais, culturais, económicas - do desenvolvimento mais livre possível da personalidade ética de cada um.» (nota 18) Nos termos do qual:
«1 - A integridade moral e física das pessoas é inviolável.
2 - Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas cruéis, degradantes ou desumanos.» (nota 19) Que preceitua que:
«1 - A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação.
2 - A lei estabelecerá garantias efectivas contra a obtenção e utilização abusivas, ou contrárias à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias.
3 - A lei garantirá a dignidade pessoal e a identidade genética do ser humano, nomeadamente na criação, desenvolvimento e utilização das tecnologias e na experimentação científica.
4 - A privação da cidadania e as restrições à capacidade civil só podem efectuar-se nos casos e termos previstos na lei, não podendo ter como fundamento motivos políticos.» (nota 20) Cf. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição da República Portuguesa Anotada, t. I, pp. 268, 269 e 289.
(nota 21) Tal como já se deixou dito, dado o objecto desta fixação de jurisprudência, é irrelevante aqui saber se os indicados bens salvaguardados pela incriminação em apreço têm ou não igual dignidade e, nesta última situação, qual deles é o prevalecente. Tomando posição nessa matéria, afirma Costa Andrade, Comentário Conimbricense do Código Penal, parte especial, t. III, p. 527:
«No direito português vigente tudo concorre a favor da interpretação que erige os interesses individuais em bem jurídico típico, reservando aos valores da realização da justiça (eficácia, autoridade, legitimação) uma tutela reflexa ou complementar.
Resumidamente, uma teoria monista: um só bem jurídico típico e um bem jurídico individual e disponível. Pelo menos depois da Reforma de 1995 [...] não se justificaria qualquer propensão para acordar o primado aos valores supra-individuais da realização da justiça.» (nota 22) No dizer de Costa Andrade, Comentário Conimbricense do Código Penal, parte especial, t. III, 558, «a solução que é a única compatível com o direito positivo português».
(nota 23) O aqui relator foi-o igualmente no acórdão fundamento. A posição aí sufragada foi, contudo, logo abandonada em 7 de Abril de 1999, no processo 856/98, do Tribunal da Relação do Porto, publicado na Colectânea de Jurisprudência, t.
II, pp. 229 a 231, no qual o ora relator foi adjunto. Decorridos mais de seis anos sobre os dois indicados acórdãos, o aqui relator, após reflexão e discussão quanto à questão em causa na presente fixação de jurisprudência, pelas razões nela indicadas, continua a sufragar o entendimento adoptado no referido Acórdão de 7 de Abril de 1999.
Lisboa, 12 de Outubro de 2006. - António Joaquim da Costa Mortágua (relator) - António Silva Henriques Gaspar - Políbio Rosa da Silva Flor - António Artur Rodrigues da Costa - José Vítor Soreto de Barros - João Manuel de Sousa Fonte - Arménio Augusto Malheiro de Castro Sottomayor - António José Henriques dos Santos Cabral António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes - Arlindo de Oliveira Rocha - Alfredo Rui Francisco Gonçalves Pereira - Luís Flores Ribeiro - José Antínio Carmona da Mota - António Pereira Madeira - José Vaz dos Santos Carvalho.