Acórdão 100/2002 - Processo 557/2001. - Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - 1 - Nuns autos de processo comum com intervenção do tribunal singular, que haviam prosseguido apenas para apreciação do pedido cível, já que o crime de difamação de que o arguido vinha acusado foi amnistiado, decidiu-se, por sentença de 22 de Fevereiro de 2001 do Tribunal Judicial da Comarca de Vagos, condenar Carlos Fernandes Roseiro Bento a pagar ao ofendido José António Pereira de Moura o montante de 200 000$, a título de danos não patrimoniais (fls. 338 e segs.).
2 - Inconformado com a referida sentença, Carlos Fernandes Roseiro Bento dela interpôs recurso penal para o Tribunal da Relação de Coimbra, tendo na motivação respectiva formulado, para o que aqui releva, as seguintes conclusões (fls. 356 e segs.):
"1 - O presente recurso deve ser admitido porque o recorrente vê, com a sentença recorrida, gravemente violada a sua integridade moral e gravemente ofendidos o seu direito ao bom nome e à sua reputação, consagrados nos artigos 25.º e 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
2 - Não podendo defender-se em via de recurso, com base no artigo 400.º, n.º 2, do CPP, seriam gravemente violadas as garantias constitucionais estatuídas no artigo 20.º, n.os 1 e 4, bem como no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
3 - Por tais motivos a norma do artigo 400.º, n.º 2, do CPP, é inconstitucional, e como tal deve ser declarada, por violação do artigo 20.º, n.os 1 e 4, in fine, artigo 25.º, n.º 1, artigo 26.º, n.º 1, e artigo 32.º, admitindo-se, por conseguinte, o presente recurso."
O demandante civil José António Pereira de Moura respondeu à motivação do recurso, tendo nomeadamente sustentado que este devia ser liminarmente indeferido, por manifesta ilegalidade (fls. 371 e segs.). Interpôs também recurso subordinado (fls. 375 e segs.), tendo Carlos Fernandes Roseiro Bento respondido (fls. 382 e segs.).
Por despacho de fl. 379, foi mantida na íntegra a sentença recorrida.
O Ministério Público emitiu parecer no sentido de que o recurso interposto pelo demandado civil devia ser rejeitado por manifesta improcedência, nos termos da segunda parte do n.º 1 do artigo 420.º do Código de Processo Penal, ficando, por consequência, sem efeito o recurso subordinado interposto pelo demandante (fl. 391).
3 - Por acórdão de 20 de Junho de 2001, o Tribunal da Relação de Coimbra rejeitou o recurso interposto pelo demandado, face ao disposto no artigo 400.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, e nos termos das disposições conjugadas dos artigos 410.º, n.º 2, 414.º, n.os 2 e 3, e 420.º, n.os 1 e 2, do mesmo Código, ficando consequentemente sem efeito o recurso subordinado (fls. 393 e segs.).
Pode ler-se no texto desse acórdão, a propósito da questão de constitucionalidade suscitada pelo recorrente:
"O recurso do demandado suscita a questão prévia da sua admissibilidade. Dispõe o artigo 400.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, que '[...] o recurso da parte da sentença relativa a indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade da alçada'.
Esta redacção tem início de vigência a 1 de Janeiro de 1999. O pedido é de 16 de Março de 1999.
A alçada do tribunal de comarca é de 750 000$ desde 14 de Janeiro de 1999 ( cf. artigo 24.º, n.º 1, da Lei 3/99, de 13 de Janeiro, e artigo 151.º, n.º 4, da mesma lei).
E sendo certo que o pedido do demandante tinha o valor de 6 000 000$, o certo é também que o demandado foi condenado apenas no montante de 200 000$.
Constata-se, pois, que este foi condenado em valor inferior a metade da alçada do respectivo tribunal.
Daí que não seja admissível recurso da sentença recorrida pelo demandado por força do estatuído no artigo 400.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Mas este invoca a inconstitucionalidade da norma transcrita com a argumentação de que a mesma viola os artigos 20.º, n.os 1 e 4, 25.º, n.º 1, 26.º, n.º 1, e 32.º, da Constituição da República Portuguesa.
[...]
Para concluir pela inconstitucionalidade da dita norma do Código de Processo Penal o recorrente refere que a sentença recorrida lhe imputa de um modo mais ou menos directo a prática dos factos que preenchem o tipo de crime por que fora acusado e em que se estriba o pedido cível, pelo que a sua condenação ofende gravemente a sua honra e consideração, vendo-se impedido, pela impossibilidade de recurso, de defender interesses legítimos no processo, mormente a sua integridade moral, a sua honra, o seu bom nome e a sua reputação.
Em suma, sendo-lhe atribuída na sentença recorrida, proferida em processo penal, a prática de factos que preenchem um tipo criminal sem que disso possa defender-se através do único meio possível que é o recurso, não pode o processo ter-se por equitativo.
Temos para nós que não pode concluir-se como o faz o recorrente.
Efectivamente foi-lhe dada a possibilidade de no processo demonstrar por via directa o infundado da acusação, faculdade que o arguido não exerceu. É que o artigo 10.º, n.º 1, da Lei 29/99, de 12 de Maio, dispõe que os arguidos por infracções nela amnistiadas poderiam, em 10 dias a contar da sua entrada em vigor, requerer que a amnistia não lhes fosse aplicada.
Não tendo o arguido exercido tal faculdade, o crime de que vinha acusado foi declarado amnistiado e, a requerimento do ofendido, o processo prosseguiu nos ulteriores termos apenas com vista à apreciação do seu pedido civil.
E neste prosseguimento do processo, perante tribunal independente e imparcial, foi garantido ao demandado o direito de defesa, possibilitando-se-lhe que nele contrariasse os fundamentos de facto e de direito em que se apoiava o pedido indemnizatório.
Não pode, pois, queixar-se de com a sua condenação ver atingido o seu bom nome e a sua reputação ou qualquer outro direito de natureza pessoal.
E se é certo que o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, afirma que 'o processo-crime assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso', tal não significa que o direito ao recurso seja um direito irrestrito.
A questão da inconstitucionalidade do n.º 2 do artigo 400.º do Código de Processo Penal foi objecto de recente apreciação pelo Tribunal Constitucional no Acórdão de 13 de Março de 2001, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 24 de Abril de 2001, num caso em tudo semelhante ao dos autos, tendo-se nele afirmado a constitucionalidade do referido preceito.
Não nos parece, pois, que o recorrente tenha fundamento válido para alegar a inconstitucionalidade do n.º 2 do artigo 400.º do Código de Processo Penal com base na violação dos invocados preceitos da Constituição da República Portuguesa."
4 - De novo inconformado, Carlos Fernandes Roseiro Bento interpôs recurso do mencionado acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo a apreciação da conformidade constitucional da norma do artigo 400.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual "não é admissível recurso de sentença condenatória proferida em processo penal por crime que fora amnistiado após a prolação da acusação a cujo processo prosseguiu para apreciação do pedido de indemnização civil, desde que o montante da condenação não seja superior a metade da alçada do tribunal recorrido, mesmo que a sentença dê como provada a prática dolosa, pelo arguido/demandado, de factos que, sem a amnistia, consubstanciariam o tipo legal de crime por que fora acusado", por violação das normas dos artigos 25.º, n.º 1, 26.º, n.º 1, 20.º, n.os 1 e 4, 32.º, n.º 1, 18.º, n.os 2 e 3, 202.º, n.º 1, 203.º, 204.º e 2.º, todos da Constituição (fls. 405 e seguintes).
O recurso foi admitido por despacho a fl. 409.
Nas alegações que produziu junto do Tribunal Constitucional, Carlos Fernandes Roseiro Bento concluiu, em síntese, do seguinte modo (fls. 411 e seguintes):
"I - O que levou o recorrente a interpor recurso da sentença do Tribunal de Vagos para o Tribunal da Relação de Coimbra foi a ofensa, contida nesse acto jurisdicional, a bens pessoais que integram, de forma incindível e inalienável, o seu património moral.
[...]
XI - A imputação a título doloso de factos que integram um tipo legal de crime constitui sempre um facto infamante, haja ou não punição criminal.
[...]
XVIII - Um tal entendimento [o da decisão recorrida] torna a norma do artigo 400.º, n.º 2, do CPP, inconstitucional por ofensa à dignidade do recorrente, já que lhe imputa na forma mais intensa de dolo (dolo específico) a prática de factos criminosos e impede-o de recorrer dessa imputação devido ao mecanismo estritamente formal das alçadas dos tribunais.
XIX - Um dos corolários da dignidade humana é a imposição aos órgãos do Estado do princípio segundo o qual a pessoa humana é o fundamento e o limite da actividade desses órgãos, pelo que um acto normativo em conformidade com o artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa não poderá dar prevalência a critérios estritamente pecuniários quando estiver em causa ofensas à dignidade de uma pessoa.
XX - Por isso, a norma do artigo 400.º, n.º 2, do CPP, interpretada e aplicada como o foi no acórdão recorrido, viola o artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa e, por isso, deve ser declarada inconstitucional.
XXI - Tal norma, assim interpretada e aplicada, ofende também o princípio do Estado de Direito Democrático, ínsito no artigo 2.º da CRP, e o subprincípio da protecção da confiança (na sua dupla dimensão objectiva e subjectiva) que dele emana.
[...]
XXV - Ora, no caso em apreço, o ora recorrente, ao aceitar a aplicação da amnistia ao crime de que fora acusado, não podia, razoavelmente, prever que viria, ipso facto, a ser impedido de sindicar em via de recurso os factos constantes da acusação, caso os mesmos viessem a ser dados como provados em julgamento para apreciação do pedido de indemnização civil.
[...]
XXVII - Assim, a norma do artigo 400.º, n.º 2, do CPP, ao não permitir que o recorrente, razoavelmente, dela retirasse os efeitos normativos constantes do acórdão recorrido, ofende o princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de Direito e, como tal, deve ser declarada inconstitucional por violação do artigo 2.º da CRP.
XXVIII - Tal norma viola também as normas dos artigos 25.º, n.º 1, e 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, na medida em que permite que uma decisão judicial que imputa a uma pessoa a prática de factos altamente ofensivos da sua honra e consideração não possa ser objecto de impugnação.
[...]
XXVIII - Deve também ser declarada inconstitucional por desconformidade com o artigo 32.º, n.º 1, da CRP, na medida em que não permite que uma pessoa condenada em processo penal (pela prática dolosa de factos que constituem um tipo legal de crime) possa defender-se dessa condenação.
XXXIV - No caso dos autos, a sentença do Tribunal de Vagos tem implícita, por decisão discricionária do próprio julgador, a pior de todas as condenações, que é precisamente a de formalmente não permitir que o condenado a impugne através de recurso.
[...]
XLII - A norma do artigo 20.º, n.º 4, da CRP estabelece uma garantia de que o processo penal será um processo justo, leal, previsível, fiável e equitativo nos termos em que também o estabelece o artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
XLIII - Assim, a norma do artigo 400.º, n.º 2, do CPP, deve ser declarada inconstitucional por violação das normas do artigo 20.º, n.os 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa.
XLIV - A interpretação e aplicação que do artigo 400.º, n.º 2, do CPP faz o acórdão recorrido retira desta norma efeitos normativos que se traduzem numa inadequada e desproporcionada violação do princípio geral da proporcionalidade ou da proibição do excesso ínsito nas normas do artigo 18.º, n.os 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa.
XLV - Viola também os subprincípios da conformidade ou adequação de meios, da exigibilidade ou necessidade e da proporcionalidade ou justa medida, ínsitos naquelas normas constitucionais.
[...]
LVI - No caso sub judice, o tribunal recorrido, ao interpretar o artigo 400.º, n.º 2, do CPP, como o fez, não assegurou como estava constitucionalmente obrigado a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos do recorrente.
LVII - A norma do artigo 400.º, n.º 2, do CPP, deve assim ser declarada inconstitucional por violação das normas do artigo 202.º, n.os 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa.
[...]
LXII - Mais do que uma violação da letra da norma do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, o que nos presentes autos está em causa são princípios estruturantes do Estado de Direito Democrático, nomeadamente a aceitação da possibilidade de um acto jurisdicional decidir ele próprio se poderá ou não ser sindicado em via de recurso.
LXIII - Mais do que uma violação da letra da norma do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, o que está em causa é a aceitação ou não da possibilidade de o direito de recurso ser baseado unicamente em critérios estritamente pecuniários mesmo quando estiver em causa bens pessoais de conteúdo estritamente ético jurídico, como no caso dos autos.
LXIV - Não há, pois, na óptica do recorrente, semelhanças materiais entre o caso ora em apreço e o dos autos do recurso n.º 589/2000, de onde foi tirado o Acórdão 94/2001, que o Tribunal da Relação de Coimbra concitou em defesa do seu juízo negativo de inconstitucionalidade da norma do artigo 400.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa."
O Ministério Público, nas suas contra-alegações, concluiu do seguinte modo (fls. 427 e segs.):
"1.º Não envolve violação do direito de acesso aos tribunais a vigência quanto ao processo de adesão, que prosseguiu os seus termos, após extinção do procedimento criminal por amnistia, exclusivamente para o efeito de apreciação da pretensão indemnizatória devida das regras gerais que condicionam o direito ao recurso em função do valor da causa ou da condenação, conexionado com o da alçada do tribunal.
2.º Termos em que deverá manifestamente improceder o presente recurso."
O recorrido José António Pereira de Moura produziu as alegações a fls. 430 e segs., nas quais sustentou que deve negar-se provimento ao recurso.
Cumpre apreciar.
II - 5 - Determina o artigo 400.º, n.º 2, do Código de Processo Penal que, "sem prejuízo do disposto nos artigos 427.º e 432.º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada."
O recorrente pretende ver apreciada a conformidade constitucional desta norma, na interpretação segundo a qual "não é admissível recurso de sentença condenatória proferida em processo penal por crime que fora amnistiado após a prolação da acusação a cujo processo prosseguiu para apreciação do pedido de indemnização civil, desde que o montante da condenação não seja superior a metade da alçada do tribunal recorrido, mesmo que a sentença dê como provada a prática dolosa, pelo arguido/demandado, de factor que, sem a amnistia, consubstanciariam o tipo legal de crime por que fora acusado."
6 - No Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 94/2001, de 13 de Março (Diário da República, 2.ª série, n.º 96, de 24 de Abril de 2001, a p. 7246), citado na decisão recorrida, entendeu-se, em síntese, e para o que aqui releva, o seguinte:
"8 - A questão de constitucionalidade que agora vem colocada à consideração deste Tribunal pode enunciar-se da seguinte forma: é inconstitucional, designadamente por violação do disposto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, a norma constante do artigo 400.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando interpretada em termos de não admitir o recurso da decisão na parte relativa ao pedido de indemnização civil, exclusivamente para efeitos de arguição de nulidades da sentença, quando o valor do pedido não seja superior ao valor da alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada não seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade dessa alçada?
A resposta a esta questão não pode, na perspectiva do Tribunal, deixar de ser negativa.
Desde logo porque a norma constitucional que o recorrente invoca como sendo a alegadamente violada por aquela interpretação normativa - o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição - não tem aqui aplicação, na medida em que este preceito constitucional apenas trata das garantias de defesa do arguido em processo criminal - ou contra-ordenacional, ex vi do n.º 10 do mesmo preceito -, não sendo consequentemente invocável para efeitos de determinar as garantias de defesa do réu em processo civil ou, como é aqui o caso, em relação à parte da decisão que julgou acerca do pedido de indemnização civil que, por força do princípio da adesão, foi deduzido no processo penal respectivo."
Na perspectiva do recorrente, a doutrina do citado acórdão do Tribunal Constitucional não teria aplicação no caso sub judice, dado que neste não se coloca o problema da impossibilidade de arguição de nulidades da sentença em via de recurso, mas o problema da impossibilidade de recorrer de uma sentença que dá como provados factos que integram o tipo legal de um crime que fora amnistiado, cuja resolução exigiria ter fundamentalmente em consideração os seguintes aspectos:
a) A imputação, ao recorrente, de factos que integram um tipo legal de crime constitui uma ofensa a bens pessoais que integram o seu património moral;
b) A acção civil enxertada no processo penal apresenta características que a diferenciam da acção civil autónoma;
c) Ao aceitar a aplicação da amnistia ao crime de que fora acusado, o recorrente não podia prever a impossibilidade de controlo, em via de recurso, dos factos constantes da acusação que viessem a ser julgados provados;
d) O recorrente não teve a oportunidade de se defender, em via de recurso penal, da imputação contida na sentença.
Como de seguida se verificará, a consideração destes aspectos mostra-se irrelevante para a resolução do problema sub judice, não havendo razões para alterar o juízo de não inconstitucionalidade que, a propósito da norma do n.º 2 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, se emitiu no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 94/2001, de 13 de Março.
7 - A tese do recorrente parte, em primeiro lugar, da consideração de que qualquer sentença que se fundamente em factos susceptíveis, em abstracto, de integrar um tipo legal de crime constitui uma ofensa à pessoa que praticou tais factos [supra n.º 6, alínea a)]. Este postulado não pode, obviamente, ser aceite.
Por um lado, porque não se alcança o motivo pelo qual só constituiria tal ofensa um facto susceptível de integrar um tipo de crime: assim, o facto do não pagamento, numa acção de condenação na restituição de quantia mutuada, ou o facto do adultério, numa acção de divórcio litigioso, podem, numa certa perspectiva, representar carácter vexatório para o réu e, nessa medida, constituir uma ofensa para esse réu a decisão que julgou provados aqueles factos. Considerações puramente subjectivas interfeririam, em última análise, em tal avaliação. Em última análise também, qualquer sentença representaria uma ofensa para a parte vencida, já que se alicerçaria em factos desfavoráveis para esta parte, não se verificando pois qualquer especificidade na acção cível em processo penal.
Por outro lado, porque a consideração de uma sentença que se alicerçou em factos desfavoráveis para uma das partes como uma ofensa, ou como um mal, não se compagina obviamente com a visão que o legislador constitucional tem da actividade dos tribunais. Essa ofensa ou esse mal traduzem-se afinal no puro exercício da função jurisdicional pelos tribunais (artigo 202.º da Constituição), que necessariamente pressupõe a aplicação do direito a factos. Por outras palavras, a qualificação que o recorrente faz da sentença que o condenou mais não traduz do que uma opinião acerca do seu conteúdo, não tendo qualquer suporte na Constituição.
Questão diversa desta é, bem entendido, a da decisão judicial desconforme com a Constituição, que em alguns ordenamentos legitima o recurso de amparo. Mas nem o recorrente coloca tal questão nem o nosso ordenamento permite tal recurso, pelo que se trata de questão que aqui não releva.
Improcede, assim, o argumento segundo o qual, no caso sub judice, se justificaria o recurso para a Relação em atenção à ofensa contida na sentença. Por arrastamento, não faz sentido invocar a inconstitucionalidade da interpretação normativa em causa face aos artigos 1.º, 2.º ou 202.º da Constituição.
8 - A tese do recorrente parte, em segundo lugar, da consideração de que a acção civil enxertada no processo penal apresenta características que a diferenciam da acção civil autónoma [supra n.º 6, alínea b)], justificando tais características que, no caso sub judice, se admitisse o recurso para a Relação.
A primeira característica consistiria em que, na acção enxertada, a causa de pedir seria a própria acusação pública. Trata-se de observação manifestamente sem cabimento, desde logo pela possibilidade de o pedido de indemnização civil poder ser deduzido contra pessoas com responsabilidade meramente civil (artigo 73.º do Código de Processo Penal).
A segunda característica seria a de que, na acção enxertada, o juiz não estaria limitado aos factos alegados pelo demandante. O recorrente não explica qual o fundamento legal de tal asserção nem quais os factos que o juiz poderia considerar oficiosamente. De qualquer modo, o próprio Código de Processo Civil permite, no seu artigo 264.º, a consideração de factos não alegados pelas partes, pelo que se não alcança a especificidade da apontada característica.
A terceira característica seria a de que, na acção enxertada, o demandado vê a sua posição processual enfraquecida, "na medida em que tem de se opor a uma pretensão estruturada a partir de factos obtidos e processualmente organizados pelo Ministério Público no uso das suas prerrogativas legais e estatutárias". Essa característica é, porém, contrariada pela circunstância de, no âmbito do processo penal, o demandado dispor de acrescidas garantias de defesa e de, designadamente, nos termos do artigo 78.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, a falta de contestação não implicar confissão dos factos.
Concluindo, das especificidades assinaladas pelo recorrente não pode, na medida em que a sua verificação não é minimamente demonstrada, retirar-se qualquer argumento para a resolução da questão em análise.
9 - A tese do recorrente parte, em terceiro lugar, da consideração de que, ao aceitar a aplicação da amnistia ao crime de que fora acusado, o recorrente não podia prever a impossibilidade de controlo, em via de recurso, dos factos constantes da acusação que viessem a ser julgados provados [supra n.º 6, alínea c)].
Como se refere no acórdão recorrido, ao recorrente foi dada a possibilidade de, no processo, demonstrar por via directa o infundado da acusação, sendo que o recorrente não exerceu tal faculdade.
E, se não exerceu tal faculdade, não pode agora vir invocar um erro de direito acerca da recorribilidade da decisão cível para vir exercê-la mais tarde. É que nem tais erros de direito podem ser invocados para fundar o exercício extemporâneo de direitos processuais - sob pena de completa inutilidade dos prazos existentes e de intolerável morosidade da justiça -, nem se compreende em que medida um erro de direito acerca da recorribilidade de uma decisão cível pode reflectir-se numa desvantagem para aquele que foi acusado da prática de um crime e depois amnistiado, já que a decisão cível o não vem a condenar penalmente.
Não tem, pois, qualquer sentido a alegada violação, pela interpretação normativa em causa, dos princípios do artigo 2.º da Constituição, nomeadamente o da confiança.
10 - Finalmente, a tese do recorrente parte da consideração de que não teve a oportunidade de se defender, em via de recurso penal, da imputação contida na sentença [supra n.º 6, alínea d)].
Como já se disse, a decisão recorrida não contém qualquer condenação penal do recorrente. Se o recorrente sente a condenação no pagamento de uma indemnização como uma condenação penal, tal releva apenas no plano subjectivo. O mesmo sentimento podia experimentar, por exemplo, o réu que fosse condenado a restituir um bem, já que, em teoria, os factos provados na acção podiam consubstanciar a prática de um crime de furto. E, também nesse caso, seria evidente não se estar perante uma condenação penal. Nenhuma especialidade de relevo há, pois, a apontar à acção cível enxertada, quanto a este aspecto.
Assim sendo, não tem o recorrente razão quando se arroga o direito de se defender, em via de recurso penal, da imputação contida na sentença, pelo singelo motivo de que se não está perante qualquer decisão penal susceptível de recurso penal.
E, assim sendo, também, não faz sentido atribuir à interpretação normativa em causa qualquer violação das normas dos artigos 25.º, n.º 1, 26.º, n.º 1, 32.º, n.º 1, 20.º, n.os 1 e 4, 18.º, n.os 2 e 3, ou 202.º, n.os 1 e 2, todos da Constituição.
11 - Dado que a argumentação do recorrente improcede e nenhum motivo existe para alterar a doutrina estabelecida no já referido Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 94/2001, de 13 de Março, no qual se concluiu pela não inconstitucionalidade da norma do n.º 2 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, há que negar provimento ao recurso.
Recorde-se, finalmente, que o Tribunal Constitucional tem constantemente afirmado, a propósito da paralela norma do n.º 1 do artigo 678.º do Código de Processo Civil, que a limitação do recurso, em matéria cível, por força da relação entre o valor da acção ou da sucumbência e o valor das alçadas não é inconstitucional (v., a título meramente exemplificativo, o Acórdão 116/95, de 23 de Fevereiro, proferido no processo 393/93).
III - 12 - Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 400.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual "não é admissível recurso de sentença condenatória proferida em processo penal por crime que fora amnistiado após a prolação da acusação e cujo processo prosseguiu para apreciação do pedido de indemnização civil, desde que o montante da condenação não seja superior a metade da alçada do tribunal recorrido, mesmo que a sentença dê como provada a prática dolosa, pelo arguido/demandado, de factos que, sem a amnistia, consubstanciariam o tipo legal de crime por que fora acusado";
b) Em consequência, negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 UC.
Lisboa, 27 de Fevereiro de 2002. - Maria Helena Brito - Luís Nunes de Almeida - Artur Maurício - José Manuel Cardoso da Costa.