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Parecer 3/2002, de 21 de Março

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Texto do documento

Parecer 3/2002. - Para combater a indisciplina nas escolas.

Preâmbulo

No uso da competência que lhe é conferida pela sua Lei Orgânica, republicada em anexo ao Decreto-Lei 241/96, de 17 de Dezembro, nos termos regimentais, e a pedido do Governo, após apreciação do projecto de parecer elaborado pelo conselheiro Rui Manuel dos Santos Namorado, o Conselho Nacional de Educação, em sua reunião plenária de 31 de Janeiro de 2002, deliberou aprovar o referido projecto, emitindo, assim, o seu primeiro parecer no decurso do ano 2002.

Parecer

1 - Enquadramento genérico do problema.

1.1 - O objecto deste parecer situa-se numa encruzilhada de saberes e reflecte uma convergência de problemáticas muito diversas. Representa uma abordagem genérica da política educativa centrada numa questão específica, destinando-se a fundamentar um conjunto de recomendações. Procura sintonia com o estádio actual da investigação em ciências da educação, mas, naturalmente, não pretende ser um texto teórico.

Nesta medida, não explora as questões teóricas ou doutrinárias que a partir dele eventualmente se coloquem, fazendo economia de uma verdadeira reflexão sobre os conceitos básicos que utiliza. Isso mesmo acontece, desde logo, a propósito do próprio conceito de indisciplina, ao renunciar a uma exploração completa dos sentidos que ele pode comportar. Pragmaticamente, partirá de uma noção aproximativa que identifique, ainda que sumariamente, aquilo sobre que se está a falar.

Serão assim abrangidos pela noção de indisciplina todos os comportamentos que reflictam o propósito de perturbar os processos de aprendizagem que decorrem na escola, dificultando o exercício da função docente, inibindo uma efectiva cooperação discente, perturbando a convivência da comunidade educativa no seu todo. Ou seja, vai falar-se das incivilidades que perturbem o funcionamento da escola. Valoriza-se assim uma noção de espectro largo, de modo que se diminua o risco de ignorar qualquer aspecto do problema que está em causa.

1.2 - O problema da indisciplina nas escolas relaciona-se frequentemente com o da violência. Sem que isso signifique que se menospreza a violência como um facto social relevante, vamos mover-nos, essencialmente, no âmbito do principal objectivo deste parecer, o combate à indisciplina nas escolas.

A escolha desse objectivo talvez se justifique, principalmente, pelo facto de o problema da violência nas escolas portuguesas estar longe de ser generalizado. Realmente, os níveis de insegurança por ela induzidos não atingem ainda, globalmente, uma cota de alarme. Já a indisciplina está bem mais difundida, constituindo, em si própria, um factor de perturbação do funcionamento das escolas e potenciando os riscos de aumento da insegurança e da violência. No entanto, não se devem menosprezar os fenómenos de violência, em particular quando se manifestam entre os alunos, quer pelo que representam em si próprios, quer pela sua repercussão negativa no clima da escola, quer pelo risco de generalização que sempre implicam.

Vamos, portanto, procurar contribuir para a compreensão e para o combate da indisciplina nas escolas, não só pelo que isso envolve de positivo em si próprio, mas também pelo efeito preventivo que pode ter quanto a uma eventual expansão da violência. De facto, grande parte das medidas e das estratégias dirigidas a combater a indisciplina têm também um efeito terapêutico evidente quanto aos fenómenos de violência.

Isto não significa que a luta contra a violência nas escolas se trave apenas no campo da disciplina escolar, mas apenas que é este um dos aspectos mais importantes dessa luta. Na actual conjuntura, aliás, esse aspecto pode ter em Portugal uma importância estratégica.

Compreender a indisciplina e prevenir a generalização da violência nas escolas envolve uma atenção permanente àquilo que as causa. Não se espere, todavia, chegar com facilidade a uma resposta unívoca, clara e incontroversa. Já seria bom conseguir-se clarificar ideias nesta matéria, sistematizando as dúvidas e as interrogações que persistam, encontrando caminhos para as atenuarmos, dando consistência às recomendações que fizermos.

1.3 - É evidente a contribuição do modo como a sociedade está organizada para os problemas da escola. Essa contribuição não deve ser menosprezada, mas não nos pode inibir de procurar os factores que, no seio do próprio sistema educativo, se juntam a ela e a potenciam.

A escola democratizou-se mais depressa e mais profundamente que a sociedade. Frequentam-na hoje muitos filhos de pais que dela haviam sido excluídos, ou que por ela tinham passado com excessiva rapidez. Tornou-se muito maior o número de alunos cujo meio cultural está muito desfasado do meio cultural implícito nos saberes transmitidos pela escola. O mundo cultural da escola é hoje algo de estranho para muitos dos alunos que a frequentam. Estes problemas são habitualmente apresentados como as consequências da "escola de massas".

Antes, a escola era um caminho relativamente seguro para a integração no processo produtivo e na vida social organizada. Hoje, já não é assim. De facto, em cada ano que passa, torna-se mais evidente que a frequência da escolaridade obrigatória nem evita, por si só, a exclusão social e profissional nem garante a ascensão na hierarquia social. Ou seja, a incerteza quanto às vantagens que os jovens podem ter, por frequentarem a escola com aproveitamento, tem crescido exponencialmente. E essa incerteza contribui para tornar menos evidente essa vantagem para os próprios alunos e para os pais que na escola depositam imensas expectativas.

Esta perda do potencial de inclusão da escola, para além de contribuir para desmotivar os alunos, pode ter sobre eles um efeito de crispação, como se a escola fosse culpada pela perda desse potencial. Talvez isso nos ajude a compreender que por vezes uma parte dos alunos assuma uma atitude de rejeição latente perante a escola. Rejeição essa que se radica menos naquilo que a escola é, em si própria, que no facto de ser encarada como manifestação de uma sociedade que esses alunos sentem já como injusta. Acontecimentos recentes confirmam esta interpretação.

1.4 - Realmente, a partir de uma valorização das aparências mais ostensivas, combinada com uma subtil inculcação mediática, tem vindo a difundir-se a ideia de que é à escola que cabe garantir a utilidade profissional das habilitações que dá, que é à escola que compete garantir a empregabilidade dos seus alunos.

Ora, o desejável protagonismo das escolas quanto a esta matéria, nos casos em que isso seja adequado, não deve fazer esquecer o facto de que é o modo como a sociedade está organizada que, fundamentalmente, alarga ou estreita o leque dos excluídos, que aumenta ou diminui o número de desempregados, que faz com que as habilitações escolares abram ou não as portas da participação no processo produtivo.

Deste modo, não se deve valorizar excessivamente um alegado desfasamento entre o que se ensina nas escolas e o que se julga serem as necessidades objectivas do processo produtivo. De facto, isso está longe de ser uma das razões centrais da eventual não empregabilidade dos diplomados. Na verdade, sem querer aqui discutir a questão, basta lembrar que, hoje em dia, o ritmo acelerado da evolução das socie dades torna impossível que a educação e a formação se subordinem à conjuntura económica e ao mercado de trabalho. De facto, a importância de modelar a evolução do sistema educativo por uma fidelidade imediatista à conjuntura é ilusória. A própria viabilidade prática dessa modelação está, aliás, por demonstrar e é posta em causa em termos internacionais pelo novo paradigma da "aprendizagem ao longo da vida" (v. posição assumida pelo Conselho Nacional de Educação no parecer "Aprendizagem ao longo da vida" de 2001).

Pelo contrário, é a qualidade de uma formação geral, a criação de capacidades e de competências e a multiplicação de oportunidades de formação profissional que, verdadeiramente, são decisivas - muito mais que as matérias que concretamente se ensinem. É claro que se dá como adquirido que não deixam de ser ensinadas as matérias que correspondem a um limite mínimo de conhecimentos, abaixo do qual se perde a possibilidade de compreender o mundo em que vivemos e de continuar a aprender. Ao sistema educativo não deve ser atribuída a missão impossível de criar enciclopédias vivas, mas não deve também deixar de se lhe exigir que generalize os conhecimentos necessários para que se possa ser cidadão reflexivo, trabalhador e criador, no mundo actual.

1.5 - Antes, a escola, para uma grande parte dos alunos, era a única janela para um mundo relativamente ao qual dispunham de muito pouca informação. Hoje, os meios de comunicação de massa fornecem aos jovens um manancial de informações de tal amplitude que fica radicalmente prejudicada uma parte da novidade que antes havia na aprendizagem escolar.

A novidade do que se aprende na escola tem assim de ser reinventada, o que exige uma renovação tecnológica dos instrumentos de ensino, uma renovação mais rápida da pedagogia e da didáctica. Mas essa novidade de nada valerá, se não for suscitada a eclosão de um pensamento crítico mais apurado, que descortine melhor as novas conexões e interacções entre a escola e a vida, que incorpore a evolução das diversas disciplinas, aproveitando as suas sinergias no combate aos novos problemas que a sociedade enfrenta e à persistência dos velhos problemas.

Não se confunda a necessidade de permanente renovação pedagógica com uma economia do esforço de aprender que faça correr o risco de se banalizar a educação, reduzindo-a a uma encenação espectacular, dirigida a um aliciamento do interesse e da atenção dos jovens, que os vá privar implicitamente do indispensável treino intelectual que qualquer esforço real de aprendizagem sempre implica.

A escola não pode ser aborrecida, mas é ilusório transformá-la num simples divertimento. Ou seja, para combater com êxito o risco de a escola ser um insuportável aborrecimento, não é necessário reduzi-la a uma espécie de recreio permanente.

1.6 - É também muito importante nunca deixarmos que se esqueça que a escola nunca poderá ser um "paraíso", enquanto a sociedade for um "inferno"; nunca poderá ser uma ilha de felicidade num mundo infeliz; um oásis de paz num deserto de violência.

Estas constatações não podem conduzir-nos a desvalorizar a importância dos progressos no funcionamento dos sistemas de ensino. A luta pela qualificação da escola é um dos terrenos onde se joga o desenvolvimento social. Não o podemos abandonar, mas também não podemos atribuir-lhe virtualidades que claramente a excedem, não podemos rodeá-la de esperanças irrealistas e mistificatórias.

Aliás, numa época em que a aprendizagem ao longo da vida tende a assumir-se como um dos vectores essenciais da evolução da sociedade e da qualidade de vida dos cidadãos é muito importante que se compreendam com lucidez e rigor os laços e as relações que existem entre a escola e a sociedade, entre a educação e o desenvolvimento social.

A escola é, como muitas outras instituições, um espaço contraditório: reproduz desigualdade, ao inculcar um paradigma que reflecte uma lógica de reprodução, tal como ela é, da sociedade que gera essa desigualdade. Mas a escola não deixa de fornecer a muitos sujeitos dessa desigualdade os conhecimentos e os meios de autonomia e auto-estima que lhes permitem uma maior pujança e uma maior eficácia na resistência à subalternidade que os atinge e lhes desenvolvem as capacidades pessoais de afirmação de identidade e de participação como cidadãos.

Por isso, a destruição ou o bloqueamento do sistema escolar talvez fosse um factor de crise da sociedade, mas não a destruiria só por si. Em contrapartida, seria especialmente prejudicial para os sectores sociais menos favorecidos, para os mais subalternizados, que assim se veriam desprovidos de um importante instrumento de emancipação. Nesta mesma perspectiva se compreende que mesmo uma crise meramente larvar que se arraste sem dramatismo, para além de prejudicar o desenvolvimento da sociedade como um todo, é especialmente penalizadora para os grupos sociais que se acabam de referir.

Também por tudo isto é necessário compreender as raízes da indisciplina nas escolas para a combater com humanidade e determinação. Com humanidade, para nos distanciarmos de qualquer deriva autoritária. Com determinação, mas sem primarismo, não ignorando a complexidade do que está em causa, valorizando equilibradamente aquilo que no plano da escola pode ser feito. Equilibradamente, para se não correr o risco de abdicar de qualquer vontade de reforma da instituição escolar, sem contudo deixar de se avaliar com realismo o que dela se pode esperar.

Sabemos que muitas das propostas que serão apresentadas não disporão, em grande parte dos casos, de condições ideais. Admitir que se terá de esperar por essas condições, para se realizar seja o que for de positivo, é abrir a porta a uma inércia paralisante. Na prática, pode significar uma involuntária cumplicidade para com uma atitude extremamente negativa, que tende a inquinar muitos debates sobre política educativa: exacerbam-se os defeitos do sistema educativo, ao mesmo tempo que se menorizam todas as tentativas para os combater.

Devemos procurar propostas qualificantes do sistema educacional, mas isso não quer dizer que se possa dispensar o poder político de levar seriamente em conta as recomendações que lhe forem feitas, garantindo os meios e as condições para que se tornem realmente fecundas.

Concluamos esta introdução, sublinhando que o problema da indisciplina só pode ser verdadeiramente resolvido quando se conquistar uma sociedade justa, radicada na liberdade, na criatividade e na solidariedade. Daí que, sem nunca atirar para cima da escola responsabilidades que lhe não cabem, não se deva concluir que o seu papel, no caminho para esse futuro, é negligenciável. A escola não é, decerto, o motor desse processo social, nem a sua instância decisiva, mas está longe de ser um território irrelevante na geografia de um necessário futuro.

2 - A centralidade do papel dos professores.

2.1 - Se há hoje uma tempestade na escola, os professores estão no centro dela. Isso não significa que sejam eles os únicos protagonistas do processo educativo, mas lembra que não é possível levar por diante qualquer mudança relevante do sistema educativo, sem o seu envolvimento profundo.

Estão cercados por uma complexidade crescente, que representa a vivência, muitas vezes dramática, de um desfasamento entre uma preparação concebida para um tempo que tende a desaparecer e a irrupção de problemas novos e inesperados.

A própria democratização da escola, como factor e expressão da democratização da sociedade, tornou mais transparente a complexidade das relações entre professores e alunos. No âmbito dessa complexidade, merece destaque o esbatimento da supremacia hierárquica dos professores perante os alunos, pelo menos na medida em que a estes passou a ser reconhecido, em tese geral, um conjunto de direitos. Direitos esses que configuram aquilo a que podemos chamar uma cidadania escolar ou, talvez melhor, uma vertente escolar da cidadania. A afirmação da escola como um espaço de convergência de direitos é um inestimável progresso, mas não deixa de suscitar problemas que se não podem ignorar. Ou pelo menos não deixa de obrigar a reequacionar o potencial de alguns dos meios clássicos que protegiam a disciplina.

No fundo, talvez se possa dizer que passou o tempo de uma disciplina, principalmente imposta, sendo necessário descobrir-se como se constrói o tempo de um disciplina, principalmente assumida, decorrente de uma ética democrática de autoridade.

2.2 - A ideia de defender os direitos de todos os participantes na comunidade escolar implica a valorização e o combate a todas as incivilidades que ocorram no respectivo espaço. E isto implica, não só gerar boas relações entre professores e alunos mas também relações de fraternidade e respeito mútuo entre os próprios alunos, bem como entre os professores, e entre os outros membros da comunidade escolar - psicólogos, pessoal administrativo e auxiliares de educação.

Isto não significa que o cerne da questão em análise se situe fora das relações entre professores e alunos, que constituem o essencial da actividade escolar. Significa apenas que ela se não limita a isso.

De facto, o modo como os alunos vêem os professores é um elemento decisivo para que sejam induzidos a assumir nas aulas uma atitude de cooperação no processo de aprendizagem. A imagem do professor tem, por isso, de ser protegida, nomeadamente, pela dignificação e valorização da função docente que é essencialmente uma função educativa e não meramente de ensino.

A relativização do poder dos professores, para além do que em si própria representou, traduziu-se numa espécie de desamparo ou desprotecção da sua autoridade. Antes, o poder dos professores, hierarquicamente instituído, era um sucedâneo sempre disponível, para suprir qualquer quebra da autoridade, mas não deixava de contribuir permanentemente para a tornar mais robusta. Hoje, a forte relativização do poder dos professores na escola, sem a contrapartida da revalorização da comunidade escolar, desprotegeu a sua autoridade, fazendo com que esta passasse a depender cada vez mais de uma legitimação endógena, radicada na função docente em si própria, na sua utilidade social e no reconhecimento público dessa utilidade.

Os riscos de autoritarismo, por parte dos docentes, diminuíram assim drasticamente, mas complicaram-se muito os mecanismos gera dores da sua autoridade. Passou a ter uma importância relativa muito maior a legitimação dessa autoridade pela evidência do saber dos professores, pela sua capacidade de persuasão e de sedução, pelo apuro ostensivo dos seus recursos pedagógicos e pela inculcação simbólica. Passámos assim a estar confrontados com um processo de sedimentação menos célere do que a ligação da autoridade a um poder hierárquico robusto, socialmente aceite e juridicamente protegido. Passaram a ser mais difíceis e mais arrastadas as estratégias de restauração da autoridade dos professores, perante episódios circunstanciais que o ponham em causa.

2.3 - A autoridade dos professores, como educadores orientados por uma ética de garantia dos direitos e deveres e do estímulo do desenvolvimento de cada aluno no respeito pela diversidade, pela tolerância e pela equidade, deve ser, quanto possível, protegida e restaurada. Mas, principalmente, deve encontrar novos espaços de afirmação, novos meios para se impor. Efectivamente, enfraquecido o domínio dos professores na escola, há que compensar isso, conseguindo colocá-los numa posição de exercício consistente das suas funções, de modo que possam surgir perante os alunos com uma legitimidade natural espontaneamente reconhecida.

A conquista dessa posição, dependendo de factores exógenos que se situam nas estruturas sociais, no campo ideológico e no ambiente cultural, dependerá também muito da capacidade e da competência que os professores revelem para a conseguir. Por isso, na sua formação, sem desvalorizar a componente especificamente pedagógica, tem também de ser suscitada uma especial qualificação para lidarem com situações de indisciplina e de violência, o que implica, seguramente, conhecimentos especializados de psicologia dos grupos, capacidade de liderança e aquisição de competências negociais e de mediação. Aliás, neste sentido é em todos os momentos escolares indispensável que o professor actue no sentido de formar para a cidadania.

Neste campo, permitimo-nos destacar, por um lado, a necessidade de uma profunda sensibilização para os problemas sociais e culturais emergentes; por outro, um apuramento das técnicas de trabalho em grupo, susceptíveis de estimularem uma cidadania colectiva dos alunos, assente na sua participação sistemática quer como reais protagonistas dos próprios processos de aprendizagem, quer como titulares efectivos de direitos no quotidiano da escola.

Na verdade, se os professores forem preparados para serem mestres de cidadania, mais naturalmente poderão fazer com que os alunos se comportem na escola como cidadãos. Se os professores forem motivados, de modo a gostarem de exercer a função docente, mais facilmente transmitirão aos alunos o entusiasmo pela aprendizagem.

2.4 - No mesmo sentido, será importante inculcar nos alunos um maior apreço pelo saber, de modo que o encarem como um factor dignificante, como um enriquecimento irreversível da sua personalidade, e não apenas como simples instrumento para conseguir um emprego. Também isso poderá contribuir para os levar a assumir uma atitude de cidadania e um comportamento cooperante dentro da escola.

Desejável alfobre de inteligência, de saberes e de competências, a escola não pode ser um permanente bocejo, mas tem de ser uma instituição indutora de esforço intelectual. Por isso, tem de ser vivida pelos alunos como um local de trabalho e não como um espaço de puro divertimento.

Essas características não contendem com a utilidade de se mostrar aos alunos que, mesmo actualmente, o trabalho na escola reflecte uma das poucas oportunidades sociais, em que mais facilmente se pode compatibilizar o esforço com um ambiente relativamente lúdico. Simetricamente, a escola deve tornar-se capaz de converter uma parte maior dos tempos livres dos alunos num verdadeiro ócio criativo.

Por isso, tem sentido generalizar-se a criação de clubes temáticos, ou radicados em disciplinas particulares, a partir das escolhas ou preferências dos alunos, com apoio dos professores. De facto, este pode ser um caminho para reforçar a estima mútua entre professores e alunos, levando-os a sentir a escola como um espaço que verdadeiramente a todos eles pertence.

Com o mesmo objectivo, podem suscitar-se projectos de inserção da escola nas comunidades locais, através de grupos de trabalho em que os alunos tenham o apoio dos professores.

Como factor de coesão entre os alunos, de treino para o trabalho de grupo, de aprendizagem da cidadania e de vivência de práticas solidárias, poder-se-á valorizar o desenvolvimento de cooperativas escolares. A sua escassa tradição entre nós não deve fazer esquecer que noutros países há décadas que existem, com resultados reconhecidamente positivos.

Numa lógica paralela, deve ser acarinhado o trabalho das associações de estudantes e ser incentivadas as experiências de mediação de alunos que se destinem a atenuar e prevenir surtos de indisciplina e princípios de violência.

A importância do desporto escolar no processo educativo é uma realidade. No entanto, quase nunca o reconhecimento dessa importância tem os reflexos práticos que seria de esperar. Uma aposta mais forte no desporto, com o envolvimento das comunidades locais, através de parcerias com os seus clubes e as autarquias, quando tal for viável, enquadra-se harmoniosamente neste conjunto de vectores de participação dos alunos no quadro da escola, que não podem deixar de contribuir para que eles a sintam não só como algo de verdadeiramente seu mas também como um lugar de afirmação do seu protagonismo social.

2.5 - Deve salientar-se que a posição dos professores nesta problemática depende da compreensão plena do complexo campo de forças em presença, da renovação dos saberes e das competências que integram a sua formação, mas também de uma grande diversidade de iniciativas parcelares, numa teia de abordagens complementares geradoras de sinergia.

Nenhum pormenor deve, por isso, ser menosprezado, como é, por exemplo, o caso da necessidade de haver um cuidado especial na distribuição de turmas, de modo a evitar que os professores menos experientes fiquem com as turmas mais difíceis.

A criação de um clima de concórdia na escola é favorecida por uma maior personalização das relações entre professores e alunos, pelo que é vantajoso dar uma maior estabilidade ao corpo docente, o que conseguirá, nomeadamente, diminuindo o número de alunos por turma e por professor, promovendo a sequencialidade do professor ao nível de cada ciclo.

Deve ser organizado com eficácia o apoio aos professores traumatizados pelo clima de indisciplina de que tenham sido vítimas; e, por maioria de razão, aos que tenham sido vítimas de violência directa.

A tentação de atirar para cima dos professores as culpas pelas deficiências do sistema escolar deve ser combatida. E é imprescindível que não se gere um clima de crispação entre professores e alunos, ou entre professores e pais, de modo que todos possam naturalmente assumir eventuais erros, dentro de um espírito que aponte com naturalidade para a sua superação.

2.6 - Procurando sintetizar algumas ideias-força quanto ao que haverá a fazer no que concerne aos professores, sublinhando também tópicos já referidos, é importante insistir na renovação da sua formação, encarando-a como um elemento central de uma política de combate à indisciplina nas escolas. Uma renovação que deverá passar pela valorização da profissão docente, como vector de animação cultural, de qualificação social, de indução de cidadania, robustecendo-a com mais amplos saberes e mais diversificadas competências. Uma renovação que deverá implicar uma responsabilização maior do Estado e um carácter recorrente ao longo de toda a vida dos professores.

Só assim se evitará que o agravamento dos problemas actuais suscite respostas imediatistas e precipitadas, eventualmente impregnadas por lógicas securitárias, que facilmente podem descambar em atitudes de xenofobia e de crispação contra a juventude, acabando por não surtir os efeitos desejados.

Mas se é certo que a resposta ao acréscimo objectivo das exigências da profissão docente implica uma mais completa e exigente formação, não é menos certo que as vantagens daí esperadas se poderão frustrar se não agirmos também noutros campos. E o que se apresenta como mais relevante é o que envolve a necessidade de reforçar social e simbolicamente a posição dos professores.

Para isso há uma medida, de evidente força simbólica, que pode ser tomada sem pôr em causa quaisquer interesses que devam ser protegidos: passar a tratar de um ponto de vista jurídico-penal as agressões e ofensas de natureza pessoal de que os professores forem vítimas, no exercício (ou por causa do exercício) das suas funções, como se fossem dirigidas contra autoridades públicas. O Estado daria assim um passo, ostensivo e simbólico, na valorização da utilidade pública da profissão docente, dando solenidade e força a todas as outras medidas que apontariam no mesmo sentido.

3 - Gostar de aprender numa escola acolhedora.

3.1 - Na procura de uma estratégia abrangente de prevenção da violência na escola, devem ser valorizados todos os factores que possam levar os alunos a gostar da escola.

Por isso, ela deve ser, no seu todo, um espaço acolhedor, esteticamente agradável, funcionalmente adequado, o mesmo se devendo poder dizer de cada sala de aula, isoladamente considerada. Será bom que os locais de recreio sejam amplos e arborizados, espaços de convívio e de lazer, onde todos possam relacionar-se sem constrangimentos.

Nesta medida, na construção das escolas devem ser cuidadosamente evitados todos os factores arquitectónicos que possam potenciar a insegurança, nomeadamente, fazendo com que a manutenção dos locais e dos equipamentos seja assegurada permanentemente dentro dos padrões de segurança legalmente consagrados.

Os edifícios escolares e a organização dos espaços no seu interior devem assim ser avaliados também, à luz do seu potencial, como geradores de indisciplina ou como indutores de harmonia. Nomeadamente, devem ser concebidos de modo que seja fácil dotá-los de meios de vigilância eficazes. No seu interior, devem estruturar-se de modo que os espaços usados por professores e alunos se conjuguem harmoniosamente.

Numa escola é muito útil verificar se há zonas que, pela sua localização, sejam zonas de risco, para que possam ser tomadas medidas compensatórias ou preventivas. E é também com base numa lógica de limitação dos riscos que a sobrelotação das escolas deve ser evitada, a todo o custo, dado ser um claro factor de encorajamento da indisciplina e até mesmo uma causa autónoma do acréscimo da insegurança.

3.2 - Sob pena de ineficácia, as medidas que pretendem responder directamente aos problemas disciplinares surgidos nas escolas têm de ser acompanhadas por uma pedagogia criativa, que sistematicamente as envolva e suporte.

Na verdade, sem escamotear que a aprendizagem implica esforço e que ser aluno implica trabalho, é legítimo e necessário estimular o interesse dos alunos pelos conteúdos do que lhes cabe aprender, através de uma pedagogia estimulante. Uma pedagogia que saiba entusiasmar, mas incorpore as questões estruturantes de cada uma das áreas do saber.

De facto, a importância da motivação genérica dos alunos, quer a partir de actividades circum-escolares quer a partir da responsabilização por outras tarefas implicadas pela vida escolar, não deve fazer esquecer a necessidade de lhes suscitar o interesse pelas matérias que a escola tem o encargo de lhes transmitir.

Uma pedagogia estimulante exige um cuidado acrescido na preparação dos professores, bem como na sua permanente actualização; exige a efectiva disponibilidade dos meios necessários e uma atenção muito especial quanto ao que mais profundamente liga a escola e a vida.

Uma pedagogia estimulante pode ter de ser diversificada para corresponder à heterogeneidade dos alunos e tem de ser enriquecida através de uma adequada formação interdisciplinar, que permita identificar e enfrentar a complexidade dos problemas que se colocam a um professor.

E tenha-se sempre presente que uma pedagogia, para ser verdadeiramente estimulante, implica um conhecimento profundo e actualizado das matérias cuja aprendizagem pretende encorajar.

As questões que envolvem os aspectos pedagógicos do combate à indisciplina são das mais complexas, implicando estratégias de médio e longo prazo, bem como uma esclarecida persistência, mas são das mais fecundas na transformação positiva do ambiente escolar e as que contêm, em si próprias, um maior potencial de desenvolvimento educativo.

4 - Valorizar a comunidade educativa.

4.1 - A valorização da comunidade educativa é um elemento estruturante de qualquer política de combate à indisciplina na escola. Para isso, esta deve transformar-se num espaço de cidadania, no âmbito do qual os professores se sintam dignificados pelo revigoramento da sua autoridade, os pais encorajados a assumirem uma responsabilidade mais consistente pelos apoios recebidos e os alunos estimulados a uma participação criativa na vida da escola pela garantia de que os seus direitos são reconhecidos e respeitados.

A comunidade educativa, para seguir com fecundidade essa via, não pode fechar-se sobre si própria. Pelo contrário, tem de se abrir à respectiva comunidade local, tornando-se num dos seus recursos mais importantes, num factor de animação cultural, num verdadeiro foco de educação permanente. Neste plano devem ser suscitadas todas as sinergias possíveis com as autarquias locais em consonância com a tendência para o crescente alargamento das responsabilidades dos municípios no domínio da educação.

4.2 - O papel das famílias na escola tem vindo a aumentar, contribuindo muito para o êxito da tentativa de se instituir um clima de disciplina, bem como a possibilidade de se dar corpo a uma segurança convivial. Esse papel, em grande medida, reflecte a importância que os pais atribuem à escolaridade dos filhos.

Mas ele justifica-se, também, pelo facto de muitos dos problemas dos jovens apagarem brutalmente a diferença entre a escola e a vida. Recorde-se, como exemplo, a toxicodependência, sem esquecer a marginalidade que quase sempre lhe está associada, especialmente dramática para a vida familiar, mas que não deixa de ter o seu reflexo nas escolas. Eis um problema que muito dificilmente será enfrentado com êxito, se não o combatermos conjugadamente nesses dois contextos.

E se, pela própria natureza das coisas, dificilmente esse problema não constitui para cada família atingida uma prioridade, as escolas não podem também deixar de considerar que enfrentá-lo é também uma das suas prioridades, sob pena de uma rápida degradação da atmosfera escolar.

Na verdade, a toxicodependência e a marginalidade são das fontes mais perigosas de insegurança nas escolas. Estão longe de contribuir para a existência de uma atmosfera de disciplina. Muitas vezes, com estas ou outras raízes, criam-se nas escolas verdadeiros problemas de saúde pública, que, quando surgem, e muito especialmente neste caso, não podem ser resolvidos sem a colaboração entre as escolas e as famílias.

É neste contexto que se compreende que a formação dos pais e de outros actores socioeducativos possa ser um bom contributo para um aumento da capacidade de resposta das comunidades educativas. Uma formação que ponha à sua disposição os conhecimentos, que os ajudem a construir uma atitude de cooperação fecunda e que se alargue a parcerias múltiplas.

No quadro, aliás, desta necessidade de envolver crescentemente os pais no trabalho da escola, os educadores de infância podem ter um papel importante, entre muitos aspectos, por contribuírem para ir preparando, desde cedo, os pais para as tarefas sucessivamente mais complexas que os esperam, quando os filhos estiverem mais adiantados. Mas essa crescente complexidade não deve fazer esquecer o carácter decisivo do primeiro ciclo na construção das aprendizagens.

Dando relevância prática à ideia de que na comunidade educativa todos os elementos são relevantes, os agentes de acção educativa devem ser destinatários de uma formação específica adequada às suas funções.

4.3 - Nos casos onde a diversidade étnica seja significativa, a complexidade das relações entre a escola e as famílias não deve ser subvalorizada. Merece aqui uma especial atenção o multiculturalismo, sendo certo que dificilmente se conseguirá um clima escolar saudável se as famílias dos alunos não estabelecerem entre si laços de reconhecimento mútuo e não partilharem uma vontade de resolverem em conjunto problemas que, por serem da escola, são, necessariamente, comuns aos diversos grupos étnicos nela existentes.

Tudo isto nos ajuda a compreender que as autarquias locais sejam um interlocutor natural muito importante das comunidades educativas, devendo ser incentivado e potenciado o seu protagonismo na realização dos diversos projectos das escolas. É que as autarquias são o Estado próximo, cujo papel é, por isso, decisivo nas estratégias de combate e de profilaxia de um conjunto de problemas juvenis que se repercutem nas escolas, nas famílias e no espaço público, em geral. Tem aliás todo o sentido o reforço da participação das autarquias locais na resposta aos problemas em causa, já que ele converge com um aumento das suas competências no campo da educação.

4.4 - Os pais e encarregados de educação não podem deixar de ser bem acolhidos nas escolas, cabendo-lhes corresponder a esse acolhimento, desejavelmente cordial, com uma atitude de cooperação com os professores, que os torne verdadeiros parceiros educativos, para que o seu papel se não reduza a uma difusa fiscalização, mais ou menos informal, e no geral pouco fecunda.

A sociedade tende a lançar à escola desafios novos, de uma maneira implícita, tornando comum que se tenda a confiar à escola a resolução de problemas para os quais ela não foi pensada, nem preparada; para os quais não lhe foram dados meios. Hoje, espera-se da escola o desempenho de um papel que antes era em parte desempenhado pelas famílias. A diversidade da paisagem social suscita uma grande heterogeneidade dos tipos de problemas enfrentados pelas diversas escolas, porventura apontando para a conveniência numa multiplicidade do tipo de respostas, para uma flexibilidade maior quanto aos próprios modelos organizativos das escolas e quanto ao modo como se relacionam com as comunidades que as envolvem e às quais pertencem os alunos que as frequentam.

A valorização da comunidade educativa, outorgando um papel activo aos pais, articulada com a escolaridade obrigatória, para poder exercer toda a sua energia propulsora sem desregular o sistema, tem de implicar o seu protagonismo efectivo na melhoria do relacionamento dos filhos com a escola. Os mecanismos dessa cooperação têm, no entanto, de ser bem calibrados, imaginativos e flexíveis, de modo que não se transformem num factor de agravamento das desigualdades sociais, funcionando bem com as famílias de extractos sociais privilegiados e sendo ineficazes relativamente às famílias dos grupos sociais mais desfavorecidos.

Paralelamente, embora seja certo que as transformações da sociedade implicam e exigem modificações na escola, temos também de ter uma apurada vigilância crítica para não sobrecarregar a escola com tarefas e obrigações que não lhe podem caber. É que uma das maneiras de bloquear a eficácia do sistema educacional é canalizar exclusivamente para ele problemas que cabem, total ou parcialmente, a outras instâncias.

4.5 - Um daqueles pormenores que podem induzir efeitos relevantes no quadro geral do problema que estamos a equacionar é a simplificação do modo como são conduzidos os processos disciplinares instaurados aos alunos. De facto, parece ser um elemento estruturante da sua eficácia torná-los mais céleres, dar aos órgãos da escola a possibilidade de agir com rapidez. É claro que essa celeridade não poderá pôr em causa a efectividade das garantias de defesa dos alunos e a protecção suficiente de todos os interesses envolvidos. Mas desconsiderar a sua necessidade pode traduzir-se numa crescente descredibilização da sua utilidade. Dentro deste espírito, nomeadamente, tem de ser dada ao professor, dentro da sala de aula, uma autoridade disciplinar própria, que lhe permita reagir em tempo útil às infracções disciplinares de pequena gravidade.

Do mesmo modo, parece aconselhável que a obrigação de realizar pequenas tarefas úteis à escola que recaia nos alunos que cometam pequenas infracções não devem ficar absolutamente dependentes da vontade dos pais. Importa sublinhar que a obrigação de realizar essas pequenas tarefas deve integrar as componentes cívica e educativa, impedindo que estas se resumam ao aspecto punitivo.

No ensino obrigatório, no quadro de uma maior co-responsabilização dos pais na vida da escola, devem ser encontrados mecanismos eficazes de resposta às infracções mais graves. Esses mecanismos devem ser contratualizados com as associações de pais, com eventual audição dos próprios alunos nos casos em que isso justifique, de modo que se institua um quadro sancionatório consensualmente aceite por todos. Esses mecanismos não podem também deixar de reflectir os valores universalmente reconhecidos como indispensáveis a uma convivência cívica, baseada no respeito pelos direitos de todos os membros da comunidade educativa.

4.6 - A resposta aos problemas da indisciplina e da insegurança na escola tem de ser múltipla e preventiva.

Múltipla, por se jogar no plano de uma melhoria pedagógica da função docente, da valorização objectiva e subjectiva dos saberes adquiridos na escola, da medida em que a escola possa ser um foco de cidadania activa e um verdadeiro alfobre de práticas democráticas. Múltipla, por implicar uma co-responsabilização dos professores, alunos, funcionários e pais, bem como o envolvimento dos poderes públicos, sejam eles autárquicos ou não, e da comunidade social em que se situa a escola.

Preventiva, por se destinar a evitar a eclosão de actos de indisciplina e de comportamentos geradores de insegurança, no quadro de um processo de persuasão indirecta, cujos eixos se acabam de referir.

No centro destes vectores como coroamento do que representam deve estar o reforço da autoridade dos professores, sendo natural que esta potencie a eficácia daqueles. Em contrapartida, da eficácia desses vectores resultará com naturalidade um acréscimo da autoridade dos professores.

Há uma interacção convergente entre a autoridade do professor na sala de aula e autoridade dos professores na escola, embora esteja longe de existir sempre uma correspondência directa entre ambas. O conselho de turma pode ser a instância mais adequada para articular virtuosamente esses dois níveis.

A conflitualidade social não pode deixar de se repercutir na escola, embora não seja prudente estabelecer um nexo linear entre ambas. De facto, uma sociedade, com alguma conflitualidade social explícita, pode suscitar uma prática de cidadania mais viva do que aquela que resulta de uma sociedade em que a conflitualidade social é abafada ou latente. Embora se admita que, se a conflitualidade social exceder certos limites, podem ser suscitadas pulsões dissipativas, que seguramente se repercutirão dramaticamente na escola.

4.7 - Como resulta do que temos vindo a dizer, a resposta aos problemas que aqui estão em causa só terá verdadeira consistência se assentar numa efectiva valorização da comunidade educativa. Mas esta valorização só será fecunda se estiver radicada num mútuo reconhecimento dos papéis e dos direitos dos seus diversos componentes.

Professores, alunos e pais têm de ser dignificados na sua posição específica, mas têm também que reconhecer, por completo, os direitos e o papel dos outros componentes da comunidade, bem como o facto de os direitos colectivos de cada uma das partes da comunidade educativa serem limitados pelos direitos das outras partes.

Concomitantemente, há que instituir uma lógica paralela nas relações entre as escolas e as respectivas autarquias locais. As conexões crescentes que ligam grande parte das escolas ao poder local têm de ser aproveitadas para uma modificação qualitativa das relações em causa. Há muitas virtualidades desaproveitadas, há deveres cujo cumprimento não atingiu ainda níveis de concretização aceitáveis. Será pois saudável envolver mais o poder local nos problemas vividos pelas comunidades educativas, evitando que as rotinas o reduzam a um mero destinatário de reivindicações materiais dispersas.

5 - Conclusão e recomendações.

5.1 - O problema da indisciplina nas escolas bem como o risco acrescido de eclosão da violência que daí resulta são consequência de um conjunto complexo de factores. De uma certa maneira, eles representam a dramatização dos resultados de um amplo leque de processos causais que se conjugam.

Reflectem, em primeiro lugar, os conflitos, as incongruências, as frustrações e as incomodidades que impregnam as sociedades actuais. São a zona de chegada de grande parte das imperfeições do sistema educativo, das desilusões que provoca, dos bloqueios a que não têm conseguido escapar. Mas são também reflexos de disfunções mais particulares, de mutações perversas na posição dos vários protagonistas envolvidos, de incongruências entre a escolha de certos caminhos e as condições para que sejam percorridos.

Por isso, esses problemas nunca serão resolvidos enquanto certos aspectos das sociedades actuais não forem superados. O que não deve levar a que se menosprezem os progressos do sistema educativo que apontem para um maior protagonismo dos alunos, para um maior potencial de sedução da actividade na escola, para um reforço da qualidade na formação dos professores. Na verdade, tudo isso tem uma influência positiva no desenvolvimento educacional, que se não deve menosprezar.

5.2 - Para além disso, há orientações político-pedagógicas indispensáveis para o enquadramento de outras medidas mais específicas de combate à indisciplina escolar. Destaca-se um conjunto de orientações que, em parte, têm já vindo a ser desenvolvidas e recomenda-se um apoio mais sustentado ao seu desenvolvimento e uma melhor articulação. Citam-se, nomeadamente:

A educação para a cidadania, encarada como um processo cultural de amadurecimento cívico, enraizando o valor da sociedade contratualizada, na sua dimensão nacional, europeia e global;

A educação multicultural, encarada como um aspecto decisivo da educação para a paz, assumindo a evolução em curso da comunidade nacional para comunidade cosmopolita;

A valorização do projecto escola como expressão de criatividade geradora de competências relacionais e culturais muito importantes no mundo de hoje;

A cooperação mais sistemática com as autarquias locais, com relevo para a necessidade de serem reformulados e revitalizados os conselhos locais de educação, reconhecendo-se assim, na prática, a sua grande importância;

A valorização da estabilidade do corpo docente, de uma equilibrada diminuição dos alunos por turma, bem como de uma formação dos professores que reflicta a importância de lhes facultar novos saberes;

O desenvolvimento da autonomia na gestão das escolas, embora sem deixar de a tornar adequadamente responsabilizante e de apostar mais fortemente no envolvimento da comunidade;

A crescente inclusão da problemática da indisciplina escolar nas acções de formação contínua de professores, designadamente por iniciativa dos centros de formação das associações de escolas;

A valorização do papel do conselho de turma, em harmonia com o desenvolvimento dos clubes temáticos, das cooperativas escolares e das associações de estudantes, no quadro de um reforço estratégico do desporto escolar;

A construção das escolas de modo a evitar todos os factores arquitectónicos que potenciem a insegurança, sem esquecer a necessidade de assegurar a sua manutenção, dentro dos padrões de segurança legalmente consagrados, evitando sempre a sua sobrelotação;

A orientação das alterações curriculares e pedagógicas no sentido de uma escola estimulante e qualificante;

A revisão do regime disciplinar dos alunos, tornando-o mais ágil e mais efectivo, embora sem qualquer quebra das garantias de defesa;

A adopção de um projecto educativo que afaste o trabalho na escola de uma estratégia de ensino exclusivamente virada para os exames.

5.3 - Recomenda-se ainda um conjunto de orientações mais específicas que envolvem medidas visando:

A criação de condições que favoreçam o reforço da autoridade dos professores, nomeadamente restaurando a sua autoridade no seio da sociedade civil e da comunidade educativa, em especial no quadro da estabilidade e dignificação do seu estatuto e de uma mais efectiva aplicação do regime jurídico, designadamente disciplinar, que regula as relações entre os actores do processo educativo;

A co-responsabilização mais efectiva dos pais na implantação de um clima civilizado de convivência entre todos os membros da comunidade educativa, nomeadamente contratualizando com eles os mecanismos de resposta às situações mais gravemente lesivas do funcionamento da escola, e apoiando-os através da criação de condições mais favoráveis à sua participação regular na vida das escolas;

No quadro de um maior envolvimento dos alunos em toda actividade da escola, co-responsabilizá-los pela fixação dos parâmetros do comportamento que lhes for exigido, nomeadamente participando no contexto do processo da sua formação para a cidadania, na elaboração dos regulamentos internos das escolas e garantindo às suas estruturas representativas o direito à informação no decurso de eventuais processos disciplinares.

5.4 - Por último, duas sugestões estratégicas de grande importância:

1) Estender os projectos especiais de combate à exclusão ou orientados para zonas de risco escolar, articulando-os com as escolas de modo a valorizá-las como interlocutores;

2) Criar uma rede de observatórios sobre a indisciplina e a violência nas escolas, com o apoio de centros de investigação que promovam a compreensão dos contextos.

5.5 - Estas directivas genéricas traduzem um assumir de responsabilidades no campo da política educativa para enfrentar os problemas em causa. Mas isso não pode fazer esquecer que é irrealista alcançar um ambiente civilizado e acolhedor nas escolas de uma sociedade que continue a gerar exclusão e marginalidades sociais.

Do mesmo modo, não se podem obter resultados decisivos nos combates parcelares que se travem, enquanto proliferarem ambientes mediáticos de violência, onde se incentiva a ignorância, a brutalidade e a tacanhez.

Ou seja, o problema da indisciplina nas escolas, bem como o risco de violência que induz com força crescente, tem de ser enfrentado no campo das políticas educativas, mas implica também que se persista em lutar por uma sociedade mais justa e por um ambiente mediático mais saudável, mais impregnado pela nossa cultura, mais sensível aos valores éticos que marcam a nossa civilização.

Por tudo isto, o Conselho Nacional de Educação, em harmonia com a grande importância que atribui a esta problemática, vai constituir um grupo de acompanhamento dos problemas da indisciplina e da violência nas escolas que ajude a que, permanentemente, se possa avaliar com objectividade o que ocorre nesta matéria.

31 de Janeiro de 2002. - A Presidente, Teresa Ambrósio.

Declaração de voto. - Votei favoravelmente o parecer relativo ao tema "Para combater a indisciplina nas escolas" por julgar oportuna, necessária e urgente a reflexão que nele é feita sobre a complexa problemática da indisciplina e da violência em meio escolar; concordando com as suas recomendações gerais, não posso, contudo, deixar de aduzir algumas considerações sobre orientações e lacunas que o documento contém:

1) Compete ao Conselho Nacional de Educação apresentar à sociedade portuguesa, no que à educação diz respeito, itinerários prospectivos, ainda que naturalmente delineados a partir de situações concretas; julgo, por isso, que, seguindo outra perspectiva e outra linha de intenções, o parecer se deveria orientar a "prevenir a indisciplina nas escolas" e não, directamente, a "combatê-la", isto é, o combate seria feito através de uma prevenção;

2) O documento, mostrando-se incisivo na indicação de propostas, ilude a realidade das escolas portuguesas, no respeitante à violência, ao referir que o problema está "longe de ser generalizado", embora assinale que "a indisciplina está bem mais difundida"; a verdade é que, naquele domínio, a situação das escolas portuguesas é "grave moderada";

3) A análise da problemática em causa situa-se numa concepção ultrapassada de escola, meramente dirigida à conjuntura social e à resolução dos problemas da cidadania através do estabelecimento dos necessários consensos. O conceito de educação (embora esta constitua um processo central na sociedade e no caminho do futuro) não se pode reduzir ao simples apoio ao desenvolvimento e ao objectivo da pura socialização, uma vez que o homem não é somente um ser da natureza, nem um ser meramente social; a educação é um "instrumento que conduz à razão aquele que opta pela razão";

4) O parecer ganharia, se, para além das referências sociológicas, fundamentasse a problemática em questão nas vertentes psicológica e filosófica do homem como ser relacional que, ao fazer a experiência de si, faz necessariamente a experiência de outrem;

5) O documento é omisso quanto à etiologia e à contextualização do problema, não se referindo à questão da globalização e ao "eclipse" da família nas sociedades actuais; são unânimes os analistas de sociologia da educação ao colocarem a génese do problema da indisciplina e da violência nestes vectores;

6) Por isso, a resolução do problema da indisciplina e da violência, no contexto escolar, passa necessariamente pela aposta na construção de um novo modelo de escola, diferente da do século XX, que valorize a cultura, o esforço, a exigência e a autoridade, numa sociedade marcada pela globalização e pela competição, operando rupturas com determinadas situações vigentes e construindo estratégias inovadoras através do envolvimento e da participação efectiva das famílias, como primeiras responsáveis pela educação dos filhos; só numa escola como comunidade, em que se construam os saberes, se pratique a amizade, se vivam e desenvolvam os valores, a partir do respeito mútuo que a dignidade da pessoa exige, será viável a resolução do problema da indisciplina e da violência; só uma escola eminentemente formativa e não competitiva evitará o flagelo da indisciplina e a catástrofe da violência, recusando a objectivação do outro nas respostas às tensões do desejo e aos antagonismos miméticos instalados nas relações intersubjectivas;

7) Numa escola unida à vida (em que os projectos educativos não sejam meras "ilusões participativas"), a autoridade deixará de ser um fantasma. Exige-se, naturalmente, uma nova cultura de escola, no entendimento de que o acto educativo é um acto de personalização destinado a oferecer e a transmitir um modo de viver e de entender a vida; a educação é um compromisso humano, o mais humano e o mais humanizado de todos;

8) A escola encontra-se, assim, directamente confrontada com preocupações éticas que atravessam as sociedades e os indivíduos. A relação pedagógica é uma relação assimétrica e, consequentemente, uma relação ética. A construção da autonomia dos alunos passa pela autonomia dos professores e esta impõe que se distinga (e se manifeste a distinção) entre aquilo que se sabe e os valores em que se acredita. A ética vive-se na relação com os outros e, através desta, na relação consigo mesmo como ser, não redutível a competências instrumentais, partilhando, a título igual, o universal com todas as outras pessoas. Se o ser humano perder as referências dos seus compromissos éticos, o homem deixará de se sentir responsável por aquilo que faz, ficando em risco a sua existência e a sua história. - Cassiano Maria Reimão.

Declaração de voto. - O voto favorável a este parecer radica-se na verificação de que ele constitui um significativo contributo para a compreensão do fenómeno da indisciplina que se vai manifestando nas nossas escolas e para a determinação de medidas preventivas que o possam evitar.

Entretanto, crê-se que, para além dos aspectos que constam deste parecer, se deveria ter em conta os seguintes:

Os trabalhadores não docentes das escolas - tantas vezes os primeiros agentes de contacto com actos de indisciplina e violência - deveriam ser alvo de um investimento significativo em termos de melhoria das suas qualificações iniciais e de garantia de acesso a formação contínua;

O investimento na dotação das escolas de outros intervenientes, como sejam os psicólogos, os assistentes sociais, os mediadores escolares e os assistentes de acção educativa;

As lideranças pedagógicas das escolas, as quais assumem relevância particular na condução dos processos relativos à respectiva organização pedagógica, cujas estruturas podem ser elas próprias influenciadoras de um clima de serenidade e de respeito, pelo que devem ser alvo de atenção adequada. - Joaquim João Martins Dias da Silva.

Declaração de voto. - De uma forma geral o documento foi claramente melhorado com as discussões realizadas no Conselho Nacional de Educação e reconheço a arte da comissão de incluir as ideias dominantes provenientes desse debate. Não posso deixar de registar como menos positiva a repetição, no último parágrafo do n.º 2.6, de uma questão largamente discutida e até alvo de uma votação parcelar, relativa à equiparação dos docentes às autoridades públicas. Considero mesmo que neste aspecto se regista uma insistência despropositada numa redacção que, ao ter sido substituída por outra, deveria ter merecido a sua automática exclusão do texto. Apesar deste facto insólito, congratulo-me pela redacção final, na sincera expectativa de que sirva de referência para as medidas que os futuros governantes venham a assumir. - Vítor Sarmento.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1995536.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga ao seguinte documento (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1996-12-17 - Decreto-Lei 241/96 - Ministério da Educação

    Altera o regime que regula a composição, competências e funcionamento do Conselho Nacional de Educação. Republicado integralmente em anexo.

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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