Acórdão 363/2000/T. Const. - Processo 838/98. - Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório. - 1 - Inconformados com a decisão do Tribunal da Relação de Coimbra, de fl. 915 a fl. 932 dos autos, que lhes indeferiu os recursos por si interpostos (o primeiro de fl. 765 a fl. 770; o segundo de fl. 842 a fl. 857; o terceiro de fl. 875 a fl. 878), os arguidos Agostinho da Costa Santos e Jorge Miguel de Sousa Ramos (ora recorrentes) recorreram para o Tribunal Constitucional a fim de que fosse apreciada a inconstitucionalidade:
a) Do artigo 116.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, na douta interpretação que lhe é dada por esse venerando Tribunal, no acórdão proferido no processo à margem identificado, por entenderem que esse preceito, nessa interpretação, viola o disposto no artigo 27.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa;
b) Do artigo 180.º do Código Penal (anterior artigo 164.º), na douta interpretação que lhe é dada por esse venerando Tribunal, no acórdão proferido no processo à margem identificado por entenderem que esse preceito, nessa interpretação, viola o disposto no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa;
c) Dos artigos 107.º, n.º 2, do Código de Processo Penal e 146.º do Código de Processo Civil, na douta interpretação que lhes é dada por esse venerando Tribunal, no acórdão proferido no processo à margem identificado, por entenderem que esse preceito, nessa interpretação, viola o disposto no artigo 32.º, n.os 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa.
2 - Já neste Tribunal foram os recorrentes notificados para alegar, o que fizeram, tendo concluído nos seguintes termos:
"1 - Nos presentes autos foi ordenada, com base no artigo 116.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, em 13 de Janeiro de 1997, a detenção do recorrente Agostinho da Costa Santos a fim de que este estivesse presente na audiência de julgamento a realizar no dia seguinte.
2 - O arguido é primário, o crime em causa não justificava a prisão preventiva, era a primeira vez que com base na falta de um arguido era adiada uma diligência processual, e quanto a este recorrente o processo não tinha sequer natureza urgente nem tinha ainda decorrido o prazo legal de cinco dias para a justificação da falta.
3 - Entendeu, assim, o Tribunal a quo, ao considerar legal e justificada tal detenção, que o artigo 116.º, n.º 2, permite a detenção de quem tiver faltado a uma, mesmo ainda antes de ter decorrido o prazo para a justificação da falta, e sem que se mostre justificado não existirem outros meios para assegurar a sua comparência, nem se possa, com razoabilidade, supor que o faltoso não se apresentará voluntariamente, pode ser ordenada a sua detenção.
4 - Assim, tal norma do Código de Processo Penal, nessa interpretação que lhe foi dada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, no douto acórdão recorrido, é inconstitucional, por violar o disposto no artigo 27.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, devendo tal inconstitucionalidade ser declarada por esse venerando Tribunal Constitucional.
5 - Vinham os arguidos acusados do crime de difamação, previsto e punido no artigo 180.º do Código Penal (anterior artigo 164.º).
6 - A douta sentença da 1.ª instância, mantida integralmente pelo acórdão da Relação de Coimbra de que se recorre, entendeu que não se considerou provada a intenção dos arguidos, ora recorrentes, em ofender, isto é, o dolo específico.
7 - Ora, não obstante o muito respeito pela opinião e jurisprudência contrárias, é todavia de entender que a existência desse dolo e a sua prova é essencial para se considerar verificado o crime de difamação pelo qual os arguidos foram condenados.
8 - Com efeito, a douta posição defendida no acórdão da Relação de Coimbra leva à existência implícita de uma presunção do ânimo de ofender resultante da materialidade das expressões utilizadas.
9 - Tal interpretação viola, assim, o princípio acusatório do processo penal, bem como o da presunção da inocência do arguido, consagrado no artigo 32.º, n.os 2 e 5, da CRP.
10 - Pelo que deve ser declarado inconstitucional o artigo 180.º do Código Penal (anterior artigo 164.º), por violação do disposto no artigo 32.º, n.os 2 e 5, da CRP, na douta interpretação constante do acórdão recorrido de que, no crime de difamação, não é necessário qualquer dolo específico, bastando um dolo genérico consubstanciado na objectividade da injúria.
11 - Antes de interporem recurso da decisão final, e dentro do prazo legal deste, pretenderam os arguidos consultar as actas da audiência, o que lhes foi negado.
12 - A impossibilidade de consultar as actas de julgamento coarcta o direito de defesa que assiste aos recorrentes, pois que, para fundamentarem devidamente o recurso, designadamente para poderem efectuar as respectivas remissões, os recorrentes precisam de ter acesso a essas actas.
13 - O facto de os recorrentes terem estado representados em audiência por defensor, com conhecimento de tudo o que nela se passou, não torna desnecessária a consulta das actas, tanto mais que o julgamento durou sensivelmente duas semanas e as actas em causa têm 268 páginas, num processo com cerca de 800 folhas.
14 - Pelo que, querendo os arguidos recorrer da matéria de facto, tais actas, quer para uma maior precisão, quer por necessidade de remissões ou de concretização do afirmado, quer ainda para uma maior certeza no afirmado ao longo da motivação do recurso, eram indispensáveis aos arguidos para poderem apresentar o mesmo.
15 - Como se sublinhou nos doutos acórdãos do Tribunal Constitucional (Acórdãos n.os 395/95, de 5 de Dezembro, e 117/96, de 6 de Fevereiro), o acesso pelos arguidos ao processo a fim de poderem preparar a defesa (neste caso o recurso) é um elemento essencial no próprio direito de defesa.
16 - Deste modo, estavam os recorrentes impedidos de interpor o seu recurso, enquanto não lhes fosse permitida a integral consulta do processo, designadamente da acta de julgamento.
17 - Assim, a interpretação dos artigos 107.º, n.º 2, do CPP e 146.º do CPC, no sentido de que a impossibilidade de consulta das actas do julgamento não constitui justo impedimento para a interposição do recurso, viola o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa."
3 - Notificado para responder, querendo, às alegações das recorrentes, disse o recorrido particular, a concluir:
"1.º O presente recurso interposto pelos arguidos não tem qualquer fundamento válido, nem moral nem legal, e;
2.º Visa exclusivamente um fim: a prescrição do procedimento criminal contra os arguidos, através do expediente, levado a cabo pelos arguidos desde o início do processo, de embaraçarem, atrasarem e paralisarem o mais possível e por todos os meios o processo, obstruindo de toda a maneira o que deveria ser o exercício normal da administração da justiça, numa clara e autêntica actuação de fraude à lei, inadmissível a todos os títulos num Estado de direito.
3.º O douto acórdão recorrido não deu qualquer interpretação a quaisquer normas legais que sejam violadoras de quaisquer normas da Constituição da República Portuguesa, designadamente dos seus artigos 27.º, n.º 1, e 32.º, n.os 1, 2 e 5.
4.º No douto acórdão recorrido não foi cometida qualquer inconstitucionalidade ou ilegalidade ou qualquer norma interpretada ou aplicada de forma inconstitucional ou ilegal."
4 - Por sua vez, igualmente notificado para responder, querendo, às alegações dos recorrentes, disse o Ministério Público, a concluir a sua legação:
"1 - A interpretação acolhida na decisão recorrida de que o artigo 116.º, n.º 2, do Código de Processo Penal permite a detenção do arguido que, regularmente notificado, tenha faltado a um acto processual, antes de decorrido o prazo para a justificação da falta, é inconstitucional, por violação do artigo 27.º, n.º 1, da Constituição.
2 - O artigo 180.º do Código Penal (anterior artigo 164.º), na interpretação constante do acórdão recorrido, de que não é necessário o dolo específico, bastando o dolo genérico, não é inconstitucional, por violação dos artigos 32.º, n.os 2 e 5, da Constituição.
3 - Os artigos 107.º, n.º 2, do Código de Processo Penal e 146.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, na interpretação perfilhada na decisão recorrida, não violam o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição."
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II - Fundamentação. - 5 - A questão de constitucionalidade reportada à norma do artigo 116.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, na redacção anterior à Lei 59/98.
5.1 - Tendo o arguido Agostinho da Costa Santos, devida e regularmente notificado, faltado à audiência marcada para o dia 13 de Novembro de 1997, foi a mesma adiada com fundamento na sua falta, designando-se o dia 14 de Novembro de 1997 (o dia seguinte) para a sua realização. Mais ordenou o juiz, a requerimento do Ministério Público, que fossem passados mandados de detenção para o arguido faltoso, nos termos do artigo 116.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, na redacção anterior à Lei 59/98, de 25 de Agosto (despacho a fl. 681, v.º).
No entender dos recorrentes, aquela decisão, na parte em que ordena, ao abrigo do disposto no artigo 116.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, a passagem de mandados de detenção para o arguido Agostinho da Costa Santos, assenta numa interpretação normativa daquele preceito - a que permite que seja ordenada a detenção do arguido que tenha faltado, pela primeira vez, à audiência de julgamento, antes de ter decorrido o prazo de que legalmente dispõe para a justificação da falta - incompatível com o disposto no artigo 27.º da Constituição.
A questão de constitucionalidade que, nesta parte, vem colocada ao Tribunal pode, pois, enunciar-se nos seguintes termos: é inconstitucional, designadamente por violação do artigo 27.º da Constituição, a interpretação normativa do disposto no artigo 116.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, que permite que seja ordenada a detenção, para comparência em julgamento, do arguido que tenha faltado, pela primeira vez, à audiência de julgamento, antes de ter decorrido o prazo de que legalmente dispunha para a justificação da falta?
5.2 - O artigo 27.º da Constituição, preceito com o qual deve ser confrontada aquela dimensão normativa do artigo 116.º, n.º 2, do CPP, na redacção anterior à Lei 59/98, de 25 de Agosto, dispõe, na parte ora relevante, como segue:
"Artigo 27.º
Direito à liberdade e à segurança
1 - Todos têm direito à liberdade e à segurança.
2 - Ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança.
3 - Exceptua-se deste princípio a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar, nos casos seguintes:
a) ...
b) ...
c) ...
d) ...
e) ...
f) Detenção por decisão judicial em virtude de desobediência a decisão tomada por um tribunal ou para assegurar a comparência perante autoridade judiciária competente;
g) ...
h) ..."
Do preceito supra-referido resulta que a lei ordinária só pode restringir o direito à liberdade (enunciado no n.º 1) nas hipóteses previstas nos seus n.os 2 e 3. Consagrou-se, assim, no artigo 27.º da Constituição o princípio da tipicidade constitucional das medidas privativas ou restritivas da liberdade (nesse sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed. revista e ampliada, 1.º vol., Coimbra: Coimbra Editora, 1984, p. 199).
Em face daquele princípio - da tipicidade constitucional das medidas privativas ou restritivas da liberdade -, o que há então que decidir é a questão de saber se a restrição do direito à liberdade, em situações como a retratada nos autos, se encontra ou não autorizada por aqueles n.os 2 ou 3 do artigo 27.º da Constituição.
Pois bem, da análise das diferentes hipóteses ali previstas verifica-se que a única em relação à qual se pode discutir se não autorizará a existência de norma infraconstitucional como aquela que, na interpretação da decisão recorrida, se extrai do artigo 116.º, n.º 2, do CPP, é a prevista na alínea f) do n.º 3, nos termos da qual é permitida a restrição da liberdade em casos de "detenção por decisão judicial em virtude de desobediência a decisão tomada por um tribunal ou para assegurar a comparência perante autoridade judiciária competente".
Cremos, contudo, pelas razões que enunciaremos já de seguida, que a interpretação normativa do artigo 116.º, n.º 2, do Código de Processo Penal por que optou a decisão recorrida não encontra suporte constitucional no preceito supra-referido.
Em primeiro lugar porque o próprio n.º 3 acentua (no proémio) que a privação da liberdade nos casos previstos nas suas alíneas apenas pode acontecer nas condições que a lei determinar. Ora, o artigo 116.º, n.º 2, identifica claramente como condição prévia da possibilidade de o juiz ordenar a detenção para comparência em julgamento que a pessoa cuja detenção é ordenada (no caso o arguido) tenha faltado injustificadamente. Pois bem, concedendo a lei, à data em que a detenção foi decretada, um prazo para a justificação da falta (cinco dias, segundo o artigo 117.º, n.º 2, do CPP, na redacção em vigor na data da prática dos factos) é evidente que não poderia o tribunal antecipar um juízo quanto ao carácter injustificado da mesma antes de ter decorrido o prazo de que o faltoso dispunha para a sua justificação.
Acresce, no mesmo sentido, que o próprio teor literal da alínea f) daquele n.º 3 reforça a ideia de que só será legítima a restrição da liberdade, em que a detenção para comparência em julgamento se traduz, quando existissem fundados receios - nesse sentido deve ser interpretada a expressão "assegurar a comparência" constante da parte final daquela alínea f) - de que os meios normais de garantir essa comparência não seriam suficientes. O que, aliás, se compreende, porquanto, como acentuam Gomes Canotilho e Vital Moreira (ob. cit., loc. cit.) "o direito à liberdade, enquanto 'direito, liberdade e garantia', está sujeito às competentes regras do artigo 18.º, n.os 2 e 3, o que quer dizer, entre outras coisas, que só podem ser estabelecidas restrições para proteger outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, devendo limitar-se ao necessário para os proteger. Tais princípios vinculam o legislador na definição dessas medidas e o aplicador (designadamente o juiz) delas".
De facto, não podendo legitimamente concluir-se -designadamente em face do comportamento anterior do arguido, traduzido, por exemplo, em anteriores faltas injustificadas- pela existência de risco de não comparência perante a autoridade judiciária, revelar-se-ia efectivamente desproporcionada -e, nesse medida, contrária ao disposto no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição- a restrição do direito fundamental à liberdade em hipóteses como a dos autos. Tudo isto no pressuposto do regime legal à data em vigor. É claro que se o prazo legal para a justificação da falta fosse antecipado, nos termos da redacção dada ao artigo 117.º pela Lei 59/98, por exemplo, outra seria a solução.
Por tudo o exposto, é efectivamente de considerar inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 18.º, n.º 2, e 27.º da Constituição, a interpretação normativa do disposto no artigo 116.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, na redacção anterior à Lei 59/98, de 25 de Agosto, que permitia que fosse ordenada a detenção, para comparência em julgamento, do arguido que tenha faltado, pela primeira vez, à audiência de julgamento, antes de ter decorrido o prazo de que legalmente dispunha para a justificação da falta.
6 - A questão de constitucionalidade reportada à norma do artigo 180.º (anterior artigo 164.º) do Código Penal.
6.1 - Pretendem ainda os recorrentes ver declarada a inconstitucionalidade do artigo 180.º do Código Penal (anterior artigo 164.º), na interpretação normativa que dele fez a decisão recorrida, por alegada violação do disposto no artigo 32.º, n.os 2 e 5, da Constituição.
É, porém, manifesto, como vai ver-se, que neste ponto não lhes assiste qualquer razão.
6.2 - A decisão recorrida optou por aderir à orientação, hoje maioritária na jurisprudência, segundo a qual o crime de difamação não exige a verificação de uma especial intenção ou propósito de ofender (animus diffamandi), sendo suficiente para o preenchimento do tipo subjectivo a verificação do dolo em qualquer das suas modalidades.
É esta dimensão normativa do artigo 180.º do Código Penal que os recorrentes contestam, porquanto, no seu entender, "leva à existência implícita de uma presunção do ânimo de ofender [...], violando o princípio acusatório do processo penal, bem como o da presunção da inocência do arguido, consagrados no artigo 32.º, n.os 2 e 5, da CRP".
É, porém, evidente o lapso em que laboram os recorrentes. É que, ao contrário do que sustentam, o entendimento da decisão recorrida não foi o de que a "intenção de ofender" se presumia, mas a de que o tipo legal de crime não a exige, bastando-se com a demonstração do dolo simples, em qualquer das suas modalidades (directo, necessário ou eventual).
Nesta medida não pode sequer, nesta parte, conhecer-se do objecto do recurso, por falta de um dos seus pressupostos essenciais, a saber: ter a decisão recorrida aplicado, como ratio decidendi, a exacta dimensão normativa cuja constitucionalidade vem questionada.
7 - A questão de constitucionalidade reportada à norma que se extrai dos artigos 107.º n.º 2, do Código de Processo Penal e 146.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
7.1 - Durante o decurso do prazo para a interposição de recurso da decisão final pretenderam os arguidos -que haviam declarado, no início da audiência, não prescindir da documentação em acta das declarações orais que ali fossem prestadas (cf. artigo 364.º do CPP)- consultar as respectivas actas da audiência, o que lhes foi negado por as mesmas não se encontrarem disponíveis.
Inconformados com essa situação, os recorrentes suscitaram o incidente a fl. 840 dos autos, em que, em síntese, invocavam: a) a irregularidade do processo nos termos do artigo 123.º do Código de Processo Penal e a consequente invalidade dos actos praticados por as actas de julgamento não se encontrarem ainda disponíveis passadas duas semanas do fim do mesmo; b) o reconhecimento do justo impedimento quanto à apresentação do recurso, uma vez que, por as actas não se encontrarem disponíveis. não dispunham de todos os elementos necessários à sua fundamentação.
O requerido foi, porém, indeferido pelo despacho a fls. 859 e 860. Escudou-se o Tribunal, para tanto, na seguinte fundamentação:
"I - Irregularidade por falta de actas:
É certo que nem todas as actas foram imediatamente elaboradas após o termo do julgamento (e, por isso, nenhuma estava disponível para consulta).
O acesso dos sujeitos processuais às mesmas deve ser assegurado.
Todavia, há casos em que se compreende que as mesmas não sejam elaboradas imediatamente.
Nestes autos, o julgamento prolongou-se durante mais de duas semanas, amiúde, começando de manhã e acabando no fim do dia (com todas as consequências, como a realização de grande número de adiamentos e grande acumulação de serviço, havendo a referir, ainda, que todo o contencioso eleitoral desta comarca até ao apuramento geral teve lugar exclusivamente neste 1.º Juízo).
No que toca à Secção notar-se-á que dois funcionários se encontravam de baixa, praticamente contínua, desde Outubro (um dos quais, como é público, faleceu enquanto decorria este julgamento), tendo a audiência decorrido quase toda com a colaboração, aliás prestimosa, de uma senhora funcionária de outra secção, até que, tal como uma terceira, adoeceu por breve período.
Mas vejamos o que teria acontecido se a audiência tivesse sido gravada: aqui, as declarações teriam de ser documentadas na acta (artigos 363.º e 364.º do CPP), o que implicaria que a senhora funcionária tivesse depois de as reproduzir em acta. Dado o número de testemunhas e a forma muito extensa como foram interrogadas, é manifesto e indubitável que nunca estariam feitas em menos tempo do que aquele que, assim, levaram a ser concluídas.
Consequentemente, há que concluir que - apesar do carácter urgente do processo - a falta de elaboração das actas em duas semanas (como dizem os requerentes) não constitui qualquer irregularidade susceptível de afectar a validade de quaisquer actos (artigo 123.º do CPP).
II - Justo impedimento:
Consiste o justo impedimento na 'impossibilidade de praticar o acto no prazo legal' (Santos, Henriques e Pinho, Código de Processo Penal Anotado, 1996, 1.º vol., p. 454; no mesmo sentido, cf. Costa Pimenta, Código de Processo Penal Anotado, 1987, p. 469, acrescentando este que tem de tratar-se de impossibilidade, e não de mera dificuldade).
Isto decorre do disposto no artigo 146.º, n.º l, do CPC.
A acta não é condição necessária para a elaboração do recurso, nem sequer quando, como aqui, a prova foi reduzida a escrito, tanto mais que os arguidos estiveram, naturalmente, representados em audiência por defensor com conhecimento de tudo o que nela se passou.
Pelo exposto, indefiro o requerido."
Esta decisão, veio, depois, a ser confirmada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, com base na seguinte fundamentação:
"Por fim, cumpre apreciar e conhecer do terceiro recurso.
Com ele reagem os impugnantes contra o despacho a fls. 859 e 860, que indeferiu um pedido de justo impedimento: como as actas não estiveram acessíveis até 16 de Dezembro de 1997, afirmam que não puderam entregar o recurso da sentença final atempadamente; e por isso pretendem que lhes seja restituída a multa paga pela interposição do mesmo no 1.º dia a seguir ao termo do prazo legal de 10 dias.
Vejamos então.
Os arguidos estiveram representados em audiência por defensor, que tomou conhecimento de tudo o que nas mesmas se passou; quanto à questão de a impugnação versar também a matéria de direito é argumento algo sem sentido, quando é certo que os recorrentes não atacam a matéria de facto que o ilustre julgador teve como provada, materialidade assente que aceitam, apenas atacando do ponto de vista de interpretação (necessidade de dolo específico; carácter não injurioso das expressões do arguido Agostinho; problema de extinção do direito de queixa).
Depois sempre diremos que a redução da prova a escrito (a hoje chamada documentação dos actos de audiência) se destina a possibilitar a fiscalização e controlo pela instância de recurso.
Não houve, pois, qualquer impedimento justificativo da apresentação da motivação para além do prazo legal de 10 dias, se entendermos como 'justo impedimento' o facto ou factos que colocam a pessoa que devia praticar o acto na impossibilidade absoluta de o fazer, por si ou por mandatário, em virtude da ocorrência de um facto independente da sua vontade e que um cuidado e diligência normais não fariam prever. Diremos, aliás, que a prática de actos para além do prazo nestes autos não aconteceu apenas neste caso da sentença final.
Improcedem assim as conclusões."
É esta interpretação normativa dos artigos 107.º, n.º 2, do Código de Processo Penal e 146.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, no sentido de que a impossibilidade de consulta das actas do julgamento, por não estarem disponíveis, não constitui "justo impedimento" para a interposição do recurso da decisão final condenatória em processo penal, que os recorrentes pretendem ver confrontada com a Constituição, designadamente com o seu artigo 32.º, n.º 1. É que, sustentam os recorrentes, a impossibilidade de consultar as actas de julgamento coarcta o seu direito de defesa, pois que, para fundamentarem devidamente o recurso, designadamente para poderem efectuar as respectivas remissões, os recorrentes precisam de ter acesso a essas actas".
A questão de constitucionalidade que, nesta parte, vem colocada à consideração do Tribunal Constitucional, pode, assim, enunciar-se nos seguintes termos:
"É inconstitucional, designadamente por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, a interpretação normativa dos artigos 107.º n.º 2 do Código de Processo Penal e 146.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (aqui aplicado subsidiariamente), segundo a qual a impossibilidade de consulta das actas do julgamento (quando tenha sido requerida a documentação em acta das declarações orais prestadas em audiência, nos termos do artigo 364.º n.º 1 do CPP), por as mesmas não estarem ainda disponíveis, não constitui justo impedimento para a interposição do recurso da decisão final condenatória em processo penal?"
Vejamos.
7.2 - O artigo 32.º, n.º 1, da Constituição dispõe que: "O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso."
Ponderando sobre o sentido e alcance deste preceito, escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., revista e ampliada, vol. I, Coimbra: Coimbra Editora, p. 214):
"A fórmula do n.º 1 é, sobretudo, uma expressão condensada de todas as normas restantes deste artigo, que todas elas são, em última análise, garantias de defesa. Todavia, este preceito introdutório serve também de cláusula geral englobadora de todas as garantias que, embora não explicitadas nos números seguintes, hajam de decorrer do princípio da protecção global e completa dos direitos de defesa do arguido em processo criminal. 'Todas as garantias de defesa' englobam indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação."
Em sentido semelhante se tem pronunciado igualmente o Tribunal Constitucional. Nesse sentido, escreveu-se, por exemplo, no Acórdão 61/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11.º vol., p. 621):
"Esta cláusula constitucional apresenta-se com um cunho 'reassuntivo' e 'residual' - relativamente às concretizações que já recebe nos números seguintes do mesmo artigo - e, na sua abertura, acaba por revestir-se, também ela, de um carácter acentuadamente 'programático'. Mas, na medida em que se proclama aí o próprio princípio da defesa, e portanto indubitavelmente se apela para um núcleo essencial deste, não deixa a mesma cláusula constitucional de conter 'um eminente conteúdo normativo imediato a que se pode recorrer directamente, em casos limite, para inconstitucionalizar certos preceitos da lei ordinária' (cf. Figueiredo Dias, A Revisão Constitucional, o Processo Penal e os Tribunais, p. 51; e Acórdão 164 da Comissão Constitucional, apêndice ao Diário da República, 1.ª série, de 31 de Dezembro de 1979).
A ideia geral que pode formular-se a este respeito - a ideia geral, em suma, por onde terão de aferir-se outras possíveis concretizações (judiciais) do princípio da defesa, para além das consignadas nos n.os 2 e seguintes do artigo 32.º - será a de que o processo criminal há-de configurar-se como um due process of law, devendo considerar-se ilegítimas, por consequência, quer eventuais normas processuais, quer procedimentos aplicativos delas, que impliquem um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa do arguido (assim, basicamente, cf. Acórdão 337/86, deste Tribunal, in Diário da República, 1.ª série, de 30 de Dezembro de 1986)."
7.3 - Pois bem, em face do que antecede cremos que a resposta a dar à questão de saber se a interpretação normativa dos artigos 107.º, n.º 2, do CPP e 146.º, n.º 1, do CPC por que optou a decisão recorrida é ou não inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1 da Constituição, depende da resposta a dar a duas outras questões: a primeira é a de saber se o acesso às actas em que se encontram documentadas as declarações prestadas oralmente em audiência constitui ou não um elemento essencial à preparação da defesa do arguido, designadamente a elaboração do recurso em matéria de facto; a segunda consiste em saber se contra a atribuição desse direito processual (o direito a consultar as actas da audiência para efeitos de preparação do recurso, designadamente quando tenha sido requerida a documentação da prova) não existirá uma justificação racional suficiente em função de outros interesses constitucionalmente garantidos.
7.3.1 - Quanto à primeira questão, pensamos que a resposta a dar é positiva; isto é, o acesso às actas em que se encontram documentadas as declarações prestadas oralmente em audiência constitui um elemento importante para a preparação da defesa do arguido, concretamente para a elaboração da alegação do recurso.
A documentação da prova produzida em audiência visa, fundamentalmente, permitir o recurso em matéria de facto. Na realidade, não estando o juiz ad quem presente na audiência realizada em primeira instância, só poderá vir a julgar da bondade do decidido em matéria de facto se puder ter acesso à prova aí produzida, o que só é evidentemente possível através do seu registo.
Pois bem, constituindo a acta da audiência (em que se encontra registada toda a prova aí produzida) o suporte fundamental da decisão que o tribunal de recurso virá a tomar em matéria de facto parece-nos evidente que, só por isso, ela constitui igualmente um elemento essencial para que o arguido (ou o seu defensor) possam preparar a defesa.
O acesso à acta da audiência nestas hipóteses, num momento prévio à elaboração da alegação de recurso, não só pode constituir um elemento essencial para que o arguido decida o sentido em que deve orientar a sua defesa como, fundamentalmente, permitirá sempre uma muito mais rigorosa e completa preparação da alegação de recurso. Com o acesso à acta a alegação de recurso pode certamente ganhar em rigor e consistência e, nessa medida, em qualidade.
Não vale, por isso, o argumento de que se socorre a decisão recorrida no sentido de que o acesso por parte do arguido à acta da audiência não é essencial à preparação da sua defesa; uma vez que não há aí nada que lhe seja desconhecido, já que participou na audiência. Parece-nos, de facto, evidente, que as condições de elaboração da alegação do recurso em matéria de facto são substancialmente diferentes se o arguido (ou o seu defensor) o puder fazer tendo acesso à acta em que se encontram registadas as declarações orais feitas em audiência, do que se a tiver de a elaborar em função de "notas" que tenha tirado acerca do que foi dito nessa mesma audiência ou em função do que a sua "boa memória" lhe permita ter registado.
Em suma: julgamos, pois, ser essencial à preparação da alegação de recurso que o arguido e o seu representante possam dispor dos mesmos elementos - entre os quais assumirá particular importância na hipótese de haver recurso em matéria de facto, a acta da audiência - de que o tribunal ad quem depois disporá para decidir.
7.3.2 - Demonstrada a importância para o arguido do acesso à acta da audiência em tempo de a poder utilizar para efeitos de preparação da sua defesa, resta saber se à atribuição desse direito processual não se opõem outros interesses constitucionalmente garantidos que no caso devam prevalecer.
Cremos que não.
Contra a interpretação que reconhece ao arguido o direito processual de aceder à acta da audiência em tempo de poder preparar a alegação de recurso poder-se-ia invocar que ela põe em causa a desejada celeridade processual e, nessa medida, a realização da justiça em tempo razoável, uma vez que dela pode resultar um alargamento do prazo para apresentação da alegação.
O argumento, porém, não é decisivo.
É que, sendo certo que o recurso só pode subir ao tribunal superior uma vez estando pronta a acta da audiência em que se encontra registada a prova aí produzida, então o único atraso para o processo imputável a esta interpretação é, no limite, o do prazo para a apresentação da alegação de recurso, o que não é, manifestamente, significativo.
Não há, pois, um interesse contrário significativo que possa ser posto em causa com esta interpretação e que, nessa medida, se oponha ao interesse em que se traduz o assegurar ao arguido todas as garantias de defesa.
7.4 - Em suma: cremos que a interpretação normativa dos artigos 107.º, n.º 2, do Código de Processo Penal e 146.º, n.º 1, do Código de Processo Civil por que optou a decisão recorrida, segundo a qual a impossibilidade de consulta das actas do julgamento (quando tenha sido requerida a documentação em acta das declarações orais prestadas em audiência, nos termos do artigo 364.º, n.º 1, do CPP), por as mesmas não estarem ainda disponíveis, não constitui justo impedimento para a interposição do recurso da decisão final condenatória em processo penal é efectivamente inconstitucional, designadamente por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, porquanto traduz uma "diminuição inadmissível, um prejuízo insuportável e injustificável" (para usarmos as palavras do Acórdão 61/88), das garantias de defesa do arguido, dado que para essa diminuição não se encontra uma justificação racional suficiente em função de outros interesses constitucionalmente garantidos.
III - Decisão. - Por tudo o exposto, decide-se:
a) Não conhecer do objecto do recurso, na parte em que se pretende ver apreciada a inconstitucionalidade do artigo 180.º do Código Penal;
b) Julgar inconstitucional, por violação dos artigos 18.º, n.º 2, e 27.º da Constituição, a interpretação normativa do disposto no artigo 116.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, na redacção anterior à Lei 59/98, de 25 de Agosto, que permitia que fosse ordenada a detenção, para comparência em julgamento, do arguido que tivesse faltado, pela primeira vez, à audiência de julgamento, antes de ter decorrido o prazo de que legalmente dispunha para a justificação da falta;
c) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, os artigos 107.º, n.º 2, do Código de Processo Penal e 146.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (quando aplicado subsidiariamente em processo penal) quando interpretados no sentido de que a impossibilidade de consulta das actas do julgamento (quando tenha sido requerida a documentação em acta das declarações orais prestadas em audiência, nos termos do artigo 364.º, n.º 1 do Código de Processo Penal), por as mesmas não estarem ainda disponíveis, não constitui justo impedimento para a interposição do recurso da decisão final condenatória em processo penal;
d) Consequentemente, conceder provimento ao recurso, na parte em que dele se conhece.
5 de Julho de 2000. - José de Sousa e Brito - Messias Bento - Alberto Tavares da Costa - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza - Luís Nunes de Almeida.