Acórdão 322/2000/T. Const. - Processo 148/2000. - Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório. - 1 - Algir Duarte e sua mulher, Maria de Lurdes Duarte, interpõem o presente recurso, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, do Acórdão da Relação de Lisboa de 25 de Novembro de 1999, que negou provimento à apelação interposta da sentença do juiz da 1.ª instância, que julgou procedente a acção de despejo que Maria de Lurdes de Brito Fernandes propôs contra eles.
Pedem que se julgue inconstitucional a norma constante da alínea c) do n.º 2 do artigo 64.º do Regime do Arrendamento Urbano, que o acórdão recorrido aplicou, não obstante eles terem sustentado, na alegação então apresentada, que tal norma, a ser entendida como visando "tão-só proteger o inquilino e não a respectiva família", "é inconstitucional, na medida em que viola a norma constante do artigo 65.º da Constituição da República Portuguesa, onde se protege o direito à habitação que, mais que um direito individual, é um direito da família".
A acção de despejo, que o juiz da 1.ª instância julgou procedente, foi proposta com fundamento na alínea i) do n.º 1 do artigo 64.º do Regime do Arrendamento Urbano, em virtude de os ora recorrentes não residirem no prédio urbano que, em 2 de Maio de 1962, a aqui recorrida (Maria de Lurdes de Brito Fernandes) lhes arrendara para sua habitação (ou seja: no prédio sito na Vila Palmira Ferreira, 12, Bairro da Fonte Perra, Sacavém).
Nessa acção, provou-se, de entre o mais, que os ora recorrentes não habitam o prédio arrendado desde 1975, e que, nessa casa, residem os pais do recorrente marido (António Duarte e Deolinda Duarte), que, quando o casal de lá saiu em 1975, aí ficaram, em virtude de estarem a viver com o filho e a nora, que os acolheram na sua habitação quando, antes de 1975, estes ficaram sem casa para viver.
Os recorrentes concluíram a sua alegação como segue:
"1.º Com fundamento no normativo, constante da alínea c) do n.º 2 do artigo 64.º do RAU, os réus defenderam a manutenção do contrato de arrendamento a que se referem os presentes autos por se encontrarem reunidos os requisitos legalmente exigidos e que consubstanciam a excepção constante neste normativo.
2.º Não obstante a defesa apresentada pelos réus e os factos dados como assentes - designadamente que Deolinda Duarte e marido (pais de Algir Duarte) habitavam com o seu filho no locado desde que este os acolheu (no ano de 1975) e aí permanecem mesmo após o arrendatário ter ido habitar para outra casa -, sucede que o acórdão ora recorrido considerou que houve desagregação da família de Algir Duarte, e que tal facto seria o bastante para afastar a aplicabilidade da excepção a que se refere a alínea c) do n.º 2 do artigo 64.º do RAU.
3.º Perante a posição tomada no, aliás douto, acórdão recorrido, não se encontram asseguradas as garantias de defesa do direito à habitação do cidadão e da sua família, constitucionalmente consagrada nos termos do artigo 65.º da CRP.
4.º Violando-se, assim, o preceito constitucional constante do artigo 65.º da CRP.
5.º Desta feita, tendo a norma constante na alínea c) do n.º 2 do artigo 64.º do RAU sido interpretada e aplicada com os condicionalismos e alcance acima referenciados e que ora se dão por reproduzidos, a mesma só poderá estar ferida de inconstitucionalidade material. O que ora se refere com as legais consequências e para todos os legais efeitos.
Nestes termos deverá tal norma ser julgada inconstitucional quando interpretada e aplicada nos termos em que os progenitores do arrendatário - parentes em 1.º grau da linha recta deste - não gozam da excepção consignada no âmbito da alínea c) do n.º 2 do artigo 64.º do RAU e por tal se declare a resolução e o despejo nos precisos termos da norma constante da alínea i) do n.º 1 daquele artigo do RAU, por se considerar que o simples facto de o arrendatário não habitar naquela casa consubstancia desagregação do agregado familiar, sem mais, negando a protecção mais abrangente da família do arrendatário, nos precisos termos supraexpostos.
A recorrida, de sua parte, não apresentou qualquer alegação.
2 - Cumpre decidir.
II - Fundamentos. - 3 - A norma sub iudicio.
3.1 - Em matéria de arrendamento para habitação, vigora no nosso direito, quanto ao senhorio, a regra da renovação automática e obrigatória, introduzida pelo Decreto 5411, de 17 de Abril de 1919 (cf. os artigos 68.º e 69.º do Regime do Arrendamento Urbano).
Visou-se, com esta regra, conferir estabilidade à posição do locatário que, findo o prazo convencionado ou fixado na lei, pode impor ao senhorio a renovação do contrato, unilateral e discricionariamente.
O senhorio não pode, pois, denunciar o contrato de arrendamento ad nutum. Salvo o caso de denúncia do contrato por necessidade da casa para habitação (cf., o artigo 71.º do Regime do Arrendamento Urbano) - que aqui não importa considerar -, o senhorio só pode resolver o contrato (e, assim, despejar o inquilino) quando se verifique algum dos fundamentos enumerados nas alíneas a) a j) do n.º 1 do artigo 64.º daquele Regime do Arrendamento Urbano. E, mesmo assim, no que toca ao fundamento da alínea i), necessário é ainda que não ocorra nenhuma das situações enunciadas nas alíneas a) a c) do n.º 2 do mesmo artigo 64.º, pois, ocorrendo alguma delas, o despejo já não pode ser decretado. A enumeração das causas de resolução do contrato de arrendamento, constantes do citado artigo 64.º, é, assim, taxativa.
3.2 - O fundamento de despejo que aqui importa considerar é, justamente, o da alínea i) do n.º 1 do artigo 64.º - e tão-só na parte em que tal norma se refere à falta de residência permanente do locatário na casa arrendada.
Reza assim a norma em causa:
"Artigo 64.º
Casos de resolução pelo senhorio
1 - O senhorio só pode resolver o contrato se o arrendatário:
...
i) Conservar o prédio desabitado por mais de um ano ou, sendo o prédio destinado à habitação, não tiver nele residência permanente, habite ou não outra casa, própria ou alheia."
O arrendatário que não tiver residência permanente na casa arrendada pode, pois, em princípio, ser despejado pelo senhorio. Só não corre esse risco se, no caso, se verificar alguma das situações enunciadas nas alíneas a) a c) do n.º 2 do mesmo artigo 64.º
No caso dos autos, de entre as situações que obstam à resolução do contrato apesar de se verificar falta de residência permanente do inquilino na casa arrendada, só importa considerar a que diz respeito à permanência, nesse local, de parentes em linha recta do arrendatário, prevista na alínea c) do n.º 2.
Reza como segue este n.º 2, alínea c):
"Artigo 64.º
Casos de resolução pelo senhorio
...
2 - Não tem aplicação o disposto na alínea i) do número anterior:
...
c) Se permanecerem no prédio o cônjuge ou parentes em linha recta do arrendatário ou outros familiares dele, desde que, neste último caso, com ele convivessem há mais de um ano."
Pode dizer-se unânime na jurisprudência o entendimento segundo o qual o arrendatário tem residência permanente na casa onde tem o seu lar - ou seja, onde tem instalada e organizada a sua vida familiar e social e a sua economia doméstica, onde dorme e toma as refeições de forma habitual e de modo estável e onde também recebe a sua correspondência, os seus amigos e as visitas (cf., Aragão Seia, Arrendamento Urbano, 5.ª ed., Coimbra, 2000, pp. 385 e segs.).
Na jurisprudência, é também corrente o entendimento de que, quando o arrendatário não tem residência permanente na casa arrendada, a permanência aí de parentes seus em linha recta só obsta ao despejo se eles já anteriormente viviam com o locatário, se a ausência deste é temporária (ou seja, se ele tiver o propósito de ali regressar) e se, entre o arrendatário e os familiares que lá ficaram, continuar a existir um vínculo de dependência económica.
Por isso, quando se dá a desintegração ou o desmembramento da família, a circunstância de os pais do arrendatário continuarem a residir na casa arrendada já não pode constituir facto impeditivo do despejo (cf., Aragão Seia, ob. cit., pp. 399 a 401). (Cf., também, António Pais de Sousa, Anotações ao Regime do Arrendamento Urbano, 3.ª ed., Lisboa, 1994, p. 191).
A necessidade de se verificar um vínculo de dependência económica entre o arrendatário e os seus parentes em linha recta, que permaneceram no local arrendado, fundamenta-a a jurisprudência no facto de estarem autorizados a viver com o arrendatário na casa locada "todos os que vivem com ele em economia comum" (cf., o artigo 76.º, n.º 1, do Regime do Arrendamento Urbano), presumindo-se que vivem nessas condições "os seus parentes ou afins na linha recta [...] ainda que paguem alguma retribuição [...]" (cf., o n.º 2 do mesmo artigo 76.º).
3.3 - É nesta orientação jurisprudencial que se inscreve o acórdão recorrido. Nele, de facto - depois de se ponderar que "a permanência de familiares no arrendado só releva quando não tiver havido desintegração ou desmembramento da família" -, acrescentou-se que, tendo o arrendatário (recorrente) saído da casa arrendada "com carácter de permanência", "aí ficando os seus pais", existe "desmembramento da família". E, "havendo desintegração não existe causa impeditiva do direito de resolução do contrato de arrendamento, mesmo que na casa fiquem familiares constituindo um novo agregado familiar, pois o agregado familiar contemplado nesta alínea é o do arrendatário, e não o constituído por familiares que dele se desagreguem". Sublinhou-se ainda que "a ausência do arrendatário tem de ser sempre temporária, mantendo-se em suspenso o seu regresso ao lar".
Vista a norma sub iudicio tal como foi interpretada pelo acórdão recorrido, que seguiu na linha jurisprudencial corrente, há, agora, que ver se a mesma é inconstitucional, como pretendem os recorrentes.
4 - A questão de constitucionalidade:
4.1 - O artigo 65.º, n.º 1, da Constituição reza assim: "1 - Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar."
Como se escreveu no Acórdão 151/92 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21.º vol., p. 647), todos têm direito a uma morada decente, para si e para a sua família, uma morada que seja proporcionada ao número dos membros do respectivo agregado familiar, por forma que seja preservada a intimidade de cada um deles e a privacidade da família no seu conjunto, uma morada que, além disso, permita a todos viver em ambiente fisicamente são e que ofereça os serviços básicos para a vida da família e da comunidade.
Para assegurar um tal direito - prescreve o n.º 2 do mesmo artigo 65.º - há-de o Estado:
"a) Programar e executar uma política de habitação inserida em planos de ordenamento geral do território e apoiada em planos de urbanização que garantam a existência de uma rede adequada de transportes e equipamento social;
b) Promover, em colaboração com as autarquias locais, a construção de habitações económicas e sociais;
c) Estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação própria ou arrendada;
d) Incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais e das populações tendentes a resolver os respectivos problemas habitacionais e a fomentar a criação de cooperativas de habitação e a autoconstrução."
Mais: o Estado deve ainda adoptar "uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria" -, preceitua o n.º 3 do mesmo artigo 65.º
O direito à habitação (ou seja, o direito a ter uma morada decente ou condigna) é, assim, um direito a prestações - um direito "sob reserva do possível", cujo grau de realização depende, naturalmente, das opções que o Estado faça em matéria de política de habitação. Essas opções estão, de resto, condicionadas pelos recursos materiais (financeiros e outros) de que o Estado possa dispor, em cada momento. É, por isso, um direito de realização gradual - realização que a Constituição comete ao Estado, em colaboração com as autarquias locais.
Mas - sublinhou-se no citado Acórdão 151/92 -, fundando-se o direito à habitação na dignidade da pessoa humana (ou seja, naquilo que a pessoa realmente é - um ser livre com direito a viver dignamente), existe, aí, um mínimo que o Estado sempre deve satisfazer. E, para isso, pode até, se tal for necessário, impor restrições aos direitos do proprietário privado. Nesta medida, também o direito à habitação vincula os particulares, chamados a serem solidários com o seu semelhante (princípio de solidariedade social); vincula, designadamente, a propriedade privada, que tem uma função social a cumprir.
É a esta luz - insistiu-se no citado acórdão 151/92 - que hão-de ser avaliadas normas como aquelas que subtraem o contrato de arrendamento para habitação à regra da liberdade contratual e o submetem à regra da renovação automática e obrigatória. Nelas, o legislador, ciente da falta de casas para habitação, sacrifica um direito do senhorio a favor do direito do locatário a dispor de uma casa para sua habitação: de facto, retira àquele o direito que, em princípio, lhe assistia de denunciar livremente o contrato de arrendamento celebrado - direito este que está compreendido, seja no direito de iniciativa económica seja no direito de propriedade privada.
A legislação sobre arrendamento para habitação é fortemente vinculística, sendo um domínio onde a hipoteca social que recai sobre a propriedade privada é, talvez, mais forte.
4.2 - A referida hipoteca social justifica-se quando está em causa satisfazer as necessidades de habitação do arrendatário. Mas já não é exigível quando o arrendatário, por ter mudado para outro local o centro da sua vida familiar, deixou de ter residência permanente na casa arrendada. E isso mesmo que aí tenha deixado a viver seus pais. Num caso assim, com efeito, não pensando o arrendatário voltar a residir no local arrendado, nunca a Constituição poderia impor uma tal restrição aos direitos do senhorio que o impedisse de resolver o contrato.
Se a circunstância de lá continuarem a viver os pais do arrendatário, tendo este deixado a casa definitivamente, fosse impeditiva do despejo, então a lei estava a sacrificar os direitos do senhorio nas aras do direito à habitação, não já do inquilino mas de alguém que só lá podia viver enquanto este lá residisse.
Este Tribunal, no Acórdão 32/97 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 36.º vol., p. 208) - depois de dizer que "o que a recorrente pretende é o reconhecimento, por efeito da sua qualidade de arrendatária, do direito de não habitar, por tempo indeterminado o prédio arrendado", já teve, aliás, ocasião de sublinhar que "tal pretensão não se integra no núcleo de protecção constitucional do direito à habitação, já que neste se visa assegurar o direito de habitar, não o de não habitar".
Ora, se, no caso aqui sub iudicio, não pudesse decretar-se o despejo, o que se estaria a assegurar era, justamente, o direito de o arrendatário não habitar a casa arrendada. Isso, porém, "não se integra no núcleo de protecção constitucional do direito à habitação".
Também o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 9 de Maio de 1972 (publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 217, p. 92), já decidiu que "o arrendatário pode ter tantas residências quantas desejar, o que não pode é beneficiar para aquela em que não tenha residência permanente do benefício da legislação proteccionista da habitação com as limitações que impõe ao termo do contrato por vontade do senhorio".
4.3 - Não se argumente, ex adverso, dizendo, como fazem os recorrentes, que, deste modo, se não dá cabal satisfação ao direito à habitação do arrendatário, uma vez que este direito compreende não apenas a sua própria habitação, mas também a da sua família.
É que os pais do arrendatário só podem considerar-se familiares para o efeito aqui considerado, quando com ele convivam em economia comum, não quando cada um tenha a sua casa e a sua economia familiar (cf., identicamente o Acórdão 24/2000, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 24 de Março de 2000).
4.4 - Em conclusão, pois: a norma constante da alínea c) do n.º 2 do artigo 64.º do Regime do Arrendamento Urbano, tal como foi interpretada pelo acórdão recorrido (isto é, no sentido de que, tendo o arrendatário deixado de ter residência permanente na casa arrendada, a circunstância de lá permanecerem seus pais não constitui facto impeditivo da resolução do contrato), não é, assim, inconstitucional.
De resto, este Tribunal, no seu Acórdão 952/96 (por publicar), em que estava em causa o referido artigo 64.º, n.º 1, alínea i) - conjugada com a alínea c) do seu n.º 2 -, já decidiu que, "na interpretação feita [...] de que a falta de residência permanente do arrendatário no arrendado só não acarretará a resolução do respectivo contrato de arrendamento no caso de ali permanecer um familiar do arrendatário que com ele convivesse há mais de um ano e estivesse na sua dependência económica, não viola o artigo 65.º, n.º 1, da Constituição ou outra norma ou princípio constitucional" (cf., também identicamente, o citado Acórdão 24/2000).
O Tribunal concluiu desse modo, depois de frisar que, "dada a necessária intervenção do legislador ordinário para concretizar o conteúdo do direito, o cidadão só pode exigir o seu cumprimento, nas condições e nos termos plasmados na lei (cf., o Acórdão 130/92, in Diário da República, 2.ª série, de 24 de Julho de 1992), não sendo também constitucionalmente exigível que tal direito se realize pela imposição de limitações intoleráveis e desproporcionadas de direitos constitucionalmente consagrados de terceiros, como é o caso do direito de propriedade (cf., o Acórdão 101/92, in Diário da República, 2.ª série, de 18 de Agosto de 1992)".
Também por estas razões, que, em direitas contas, não são substancialmente diferentes das referidas atrás, se justifica o juízo de não inconstitucionalidade a que aqui se chegou.
III - Decisão. - Pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar o acórdão recorrido quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade;
b) Condenar os recorrentes nas custas, com 15 unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 21 de Junho de 2000. - Messias Bento - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza - José de Sousa e Brito - Luís Nunes de Almeida.