Acórdão 165/86
Processo 7/86
Acordam, em sessão plenária, no Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1 - O procurador-geral-adjunto em exercício neste Tribunal, por delegação do procurador-geral da República, veio, nos termos do artigo 82.º da Lei do Tribunal Constitucional, conjugado com o artigo 281.º, n.º 2, da Constituição, requerer que se declare, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma do artigo 37.º, n.º 1, do Código de Justiça Militar (CJM), com o fundamento de que ela já foi julgada inconstitucional em três casos concretos pelo Tribunal Constitucional [Acórdão 16/84 (processo 27/83), Diário da República 2.ª série, de 12 de Maio de 1984; Acórdão 127/84 (processo 83/84), Diário da República, 2.ª série, de 12 de Março de 1985; e Acórdão 310/85 (processo 37/85), Diário da República, 2.ª série, de 11 de Abril de 1986].
Juntou cópias dos citados acórdãos.
2 - Notificado, nos termos do artigo 54.º também da Lei do Tribunal Constitucional, para responder, querendo, veio o Primeiro-Ministro oferecer o merecimento dos autos e juntar o parecer 18/86 da Auditoria Jurídica da Presidência do Conselho de Ministros, o qual merecera a sua concordância. Nesse parecer sufraga-se a doutrina firmada nos acórdãos indicados pelo magistrado do Ministério Público e opina-se no sentido igualmente de que "deverá ser declarada a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do n.º 1 do artigo 37.º do Código de Justiça Militar, por violação da norma do n.º 4 do artigo 30.º da Constituição da República Portuguesa».
3 - Cumpre, pois, apreciar e decidir a questão de saber se é (ou não) inconstitucional o artigo 37.º, n.º 1, do CJM.
II - Fundamentos
4 - O artigo 37.º, n.º 1, do CJM dispõe o seguinte:
A condenação de oficial ou sargento dos quadros permanentes ou de praças em situação equivalente por crime de ultraje à bandeira nacional, deserção, falsidade, infidelidade ao serviço, furto, roubo, prevaricação, corrupção, burla e abuso de confiança produz a demissão qualquer que seja a pena imposta.
A norma em causa foi julgada inconstitucional por este Tribunal nos casos apontados pelo magistrado do Ministério Público e, posteriomente, no Acórdão 94/86, de 19 de Março, ainda inédito, e foi-o, em todos eles, com o fundamento de que ela violou o artigo 30.º, n.º 4, da Constituição - preceito que, por sua vez, dispõe o seguinte:
4 - Nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos.
Os acórdãos mencionados foram tirados quer pela 1.ª quer pela 2.ª Secção deste Tribunal, e sempre sem qualquer voto discrepante; por outro lado, em nenhum outro caso, antes ou depois deles, o Tribunal Constitucional se pronunciou divergentemente sobre a questão em apreço. Está-se, pois, em face de uma jurisprudência uniforme e unânime - a qual é, de resto, harmónica com a orientação já seguida pelo Supremo Tribunal Militar.
Ora, não se vê qualquer razão ou argumento novo que possa justificar a sua inversão. Ao contrário, antes a doutrina emergente desses arestos se mostra inteiramente fundada e procedente, e merecedora de definitiva consagração. Posto isto, limitar-se-á o Tribunal, de seguida, a recordá-la, na sua linha essencial.
5 - Assenta essa doutrina - e assentam as decisões que a acolheram - nos seguintes dois postulados fundamentais: a) no de que a demissão prevista no artigo 37.º, n.º 1, do CJM constitui um "efeito» necessário e automático das penas aí referidas, e não, diversamente, uma "pena acessória» delas; b) e, depois, no de que esse efeito envolve a perda de um direito profissional do arguido condenado a qualquer daquelas penas.
a) Relativamente ao primeiro destes postulados, emerge ele, logo, do contexto sistemático em que o preceito do artigo 37.º, n.º 1, se encaixa no CJM, a saber, na divisão relativa aos efeitos das penas (artigos 35.º e seguintes), e não na divisão relativa às penas acessórias (artigos 32.º-34.º), na qual justamente se contempla - como algo de diverso, pois, do efeito previsto no artigo 37.º, n.º 1 - a pena acessória de demissão (artigo 33.º). E, daí, que valha indiscutivelmente quanto a tal efeito o que se preceitua assim no artigo 31.º do Código:
Os efeitos das penas resultam imediatamente da lei e executam-se com o trânsito em julgado da sentença condenatória, ainda que nesta nenhuma referencia se lhe faça.
Bem pode e deve, pois, dizer-se - como se disse no Acórdão 127/84 - que "nesse contexto resulta claro que: a) a demissão de que aí [artigo 37.º, n.º 1, do CJM] se fala não é a demissão enquanto 'pena acessória' a que se refere o artigo 33.º; b) não é uma pena a que o réu seja condenado, mas sim uma consequência 'produzida' ope legis pela condenação a uma pena propriamente dita, qualquer que esta seja; c) um tal 'efeito da pena' 'executa-se' uma vez transitada a sentença condenatória e não precisa sequer de ser mencionado nesta [artigo 35.º]».
b) Quanto, por sua vez, ao segundo dos postulados referidos, decorre ele do facto de a "demissão», enquanto "efeito» necessário das penas indicadas no preceito sub judice, não poder deixar de ser idêntica, no tocante ao seu conteúdo, à "demissão» prevista como "pena acessória», consoante já se disse, no artigo 33.º do CJM.
Dispõe-se neste último preceito:
1 - A pena acessória de demissão imposta a oficiais e sargentos dos quadros permanentes [...] consiste na sua eliminação imediata dos respectivos quadros e na perda de posto, assim como do direito de usar medalhas militares e de haver recompensas e pensões.
Nestes termos, conclui-se que o militar condenado em qualquer das penas referidas no artigo 37.º, n.º 1, do CJM fica automaticamente, e independentemente de condenação específica, privado do seu lugar no respectivo quadro - isto é, do seu "emprego» -, do seu título profissional e bem assim do direito a quaisquer recompensas e pensões.
Não há, assim, a menor dúvida de que o preceito questionado liga às penas nele previstas um efeito automático e necessário que se traduz na perda de direitos profissionais - e, antes de mais, logo do direito profissional verdadeiramente nuclear (e funda mental: cf. artigos 53.º e 47.º, n.º 2, da Constituição), que é o direito ao próprio emprego, legitimamente obtido.
6 - Ora, um resultado destes está absolutamente interdito pelo artigo 30.º, n.º 4, da Constituição. Na verdade, este preceito, introduzido pela revisão constitucional de 1982, veio justamente dar guarida, ao nível da própria lei fundamental, às vozes dos nossos mais reputados penalistas, os quais, em consonância com a doutrina jurídico-criminal mais evoluída, vinham pugnando pela eliminação total dos chamados "efeitos necessários das penas». Um tal objectivo, ou propósito, fora já designadamente afirmado no Projecto de Código Penal de 1963 (da autoria do Prof. Eduardo Correia), cujo artigo 76.º (artigo 77.º após a revisão ministerial: "nenhuma pena implica automaticamente a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos») bem pode e deve considerar-se como "precursor da norma constitucional» antes citada.
Nesse sentido - no sentido da eliminação dos efeitos automáticos das penas - invocava-se, e invoca-se, não só que elas constituíam um obstáculo à realização de um fim essencial das penas - o da recuperação social do deliquente (cf. as tomadas de posição do autor do Projecto, e também do Prof. Ferrer Correia, na 25.ª sessão da Comissão Revisora do referido Projecto de Código Penal, de 2 de Abril de 1965) -, mas também, e sobretudo, o carácter infamante e estigmatizante que tais efeitos inelutavelmente implicam (v. Prof. Eduardo Correia, "As grandes linhas da reforma penal», in Jornadas de Direito Criminal, p. 29, e Prof. Figueiredo Dias, Os Novos Rumos da Política Criminal e o Direito Penal do Futuro, sep. da Revista da Ordem dos Advogados, 1983, I, p. 31).
Que o mesmo pensamento há-de ter estado presente na aprovação pela Assembleia da República, por unanimidade, do referido n.º 4 do artigo 30.º da Constituição mostram-no inequivocamente as palavras proferidas nessa oportunidade pelo deputado Nunes de Almeida: "a aprovação do n.º 4 vem obviar algumas disposições, ainda hoje vigentes na nossa lei penal, de extraordinária violência, como eram as que envolviam, como efeito necessário de certas penas, a perca de alguns direitos. Designadamente, e como exemplo, lembro o caso de certas infracções criminais cometidas por funcionários públicos [...] que envolviam necessariamente e como efeito acessório a demissão» (cf. Diário da Assembleia da República, 1.ª série, de 11 de Junho de 1982, pp. 4176 e segs.).
Tudo isto - que agora se resume - foi já amplamente exposto no Acórdão 16/84 deste Tribunal. Como aí se salientou, "no fundo, o n.º 4 do artigo 30.º da Constituição deriva, em linha recta, dos primordiais princípios definidores da actuação do Estado de direito democrático que estruturam a nossa lei fundamental, ou sejam: os princípios do respeito pela dignidade humana (artigo 1.º); e os do respeito e garantia dos direitos fundamentais (artigo 2.º)». E continua-se: "Daí decorrem os grandes princípios constitucionais de política criminal: o princípio da culpa; o princípio da necessidade da pena ou das medidas de segurança; o princípio da legalidade e o da jurisdicionalidade da aplicação do direito penal, o princípio da humanidade; e o princípio da igualdade.» "Ora», conclui-se, "se da aplicação da pena resultasse, como efeito necessário, a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos, far-se-ia tábua rasa daqueles princípios, figurando o condenado como um proscrito, o que constituiria um flagrante atentado contra o princípio do respeito pela dignidade da pessoa humana.»
III - Decisão
7 - Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, declara-se, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade do artigo 37.º, n.º 1, do Código de Justiça Militar, aprovado pelo Decreto-Lei 141/77, de 9 de Abril, por violação do artigo 30.º, n.º 4, da Constituição.
Tribunal Constitucional, 20 de Abril de 1986. - José Manuel Cardoso da Costa - António Luís da Costa Mesquita - José Magalhães Godinho - Mário Afonso - Messias Bento - Monteiro Diniz - José Martins da Fonseca - Mário de Brito - Raul Mateus - Armando Manuel Marques Guedes.