Acórdão 638/99/T.Const. - Processo 260/99. - Acordam no Tribunal Constitucional:
I - Relatório. - 1 - Paulo Jorge de Oliveira Pascoal, soldado n.º 116954-J, na disponibilidade, foi acusado no Tribunal Militar Territorial de Lisboa da prática de um crime de peculato, previsto e punido pelo artigo 193.º, n.º 1, alínea b), do Código de Justiça Militar (CJM), porquanto, no período de 20 de Agosto a 23 de Setembro de 1994, enquanto prestava serviço na central telefónica, efectuou em proveito próprio comunicações telefónicas correspondentes a 101 131 impulsos, no valor de 1 082 102$00, que não pagou, causando assim um prejuízo de valor equivalente à Força Aérea.
2 - Deduzido o pertinente libelo, procedeu-se ao julgamento de Paulo Jorge de Oliveira Pascoal, tendo o colectivo do 3.º Tribunal Militar Territorial de Lisboa decidido convolar a acusação de peculato para a de crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 186.º, n.º 1, alínea a), do CJM, invocando o disposto no artigo 418.º, n.º 2, do CJM. Em consequência, condenou-se o arguido pela prática de um crime continuado de falsificação de documento na pena de dois anos de presídio militar.
3 - Não se conformando com o assim decidido, Paulo Jorge de Oliveira Pascoal interpôs recurso para o Supremo Tribunal Militar, alegando logo, entre outras circunstâncias, que o crime previsto no artigo 186.º, n.º 1, alínea a), do CJM não é um crime essencialmente militar, além de que a pena prevista nessa disposição legal é desproporcional quando comparada com a correspondente pena prevista no Código Penal (CP).
O Supremo Tribunal Militar (STM), por Acórdão de 18 de Março de 1999, decidiu negar provimento ao recurso, mas alterou o acórdão recorrido quanto à qualificação jurídico-penal dos factos e condenou o réu Paulo Jorge de Oliveira Pascoal "na pena de 2 anos de prisão substituída pelos dois anos de presídio militar em que foi condenado".
O acórdão conclui que o crime do artigo 186.º, n.º 1, alínea a), do CJM é um crime essencialmente militar, uma vez que estão em causa valores específicos da instituição militar.
Quanto à qualificação jurídica dos factos provados, o acórdão conclui que não está provada a existência de crime continuado, pelo que devem ser dois os crimes praticados pelo arguido: para além do crime de falsificação por que foi condenado, o arguido cometeu também o crime de peculato, em concurso efectivo.
Para assim concluir, o acórdão não só não considera ter-se verificado o elemento de "solicitação à reiteração por parte de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente, mas considera ainda que se verificam os requisitos do crime de peculato previsto no artigo 193.º, n.º 1, do CJM, e que nada obsta a que o tribunal de recurso possa oficiosamente optar por uma diferente qualificação dos factos".
Assim, escreve-se no acórdão recorrido:
"Em conformidade com o exposto, haveria, pois, de condenar o réu pelo referido crime de peculato, tendo em consideração a pena aplicável prevista no artigo 375.º, n.º 1, do Código Penal, por se concordar com o decidido no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 201/98, de 3 de Março de 1998, e se considerar que é inconstitucional o segmento da norma contida na alínea b) do n.º 1 do artigo 193.º do Código de Justiça Militar, que fixa a medida da pena aplicável, por violação dos princípios da proporcionalidade e da igualdade previstos nos artigos 18.º e 13.º da CRP - cf. o Acórdão de 22 de Janeiro de 1998 do Supremo Tribunal Militar, in Colectânea, p. 17. Haveria, posteriormente, que proceder ao cúmulo dessa pena com a pena imposta pelo crime de falsificação, que, adiante-se já, se reconhece ajustada.
Acontece, porém, que tal constituiria uma reformatio in pejus, a nosso ver proibida pelo artigo 440.º, n.º 1, do Código de Justiça Militar. Com efeito, está em causa um recurso de uma decisão condenatória, da qual apenas recorreu o réu. E considera-se que tal proibição não deixa de se verificar pelo facto de a reformatio in pejus resultar de uma qualificação jurídica dos factos diferente da realizada no acórdão recorrido. É que, à semelhança do decidido pelo Tribunal Constitucional - Acórdão 173/92, para o qual se remete - a propósito do artigo 418.º, n.º 2, do Código de Justiça Militar, também se considera inconstitucional, por violação do princípio das garantias de defesa consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 440.º, n.º 2, alínea a), do Código de Justiça Militar, na medida em que não prevê que se previna o arguido da nova qualificação jurídico-penal conducente à condenação em pena mais grave e que se lhe dê, quanto a ela, oportunidade de defesa. Sendo assim, recusa-se a aplicação da referida norma - artigo 204.º da Constituição da República Portuguesa. Daí que, pese embora a qualificação jurídico-penal dos factos acima feita, não possa condenar-se o réu pelo acima mencionado crime de peculato, qualquer que fosse a pena a impor."
É desta decisão que vem interposto pelo promotor de Justiça junto do Supremo Tribunal Militar o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, por recusa de aplicação da norma da alínea b) do n.º 1 do artigo 193.º e da norma da alínea a) do n.º 2 do artigo 440.º, ambas do CJM.
Neste Tribunal apenas o Ministério Público alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:
"1.º A norma constante da alínea a) do n.º 2 do artigo 440.º do Código de Justiça Militar, ao afastar a proibição da reformatio in pejus, prevista no n.º 1, quando o Tribunal ad quem, no âmbito do recurso interposto unicamente pelo arguido, optar por uma qualificação jurídica mais gravosa para este, é inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 32.º, n.º 1, e 13.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
2.º Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida."
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos. - 4 - Sustenta o Ministério Público, enquanto recorrente, que não há que conhecer da questão de constitucionalidade do artigo 193.º, n.º 1, alínea b), do CJM, na medida em que a decisão recorrida não efectuou, de facto, qualquer recusa de aplicação daquela norma, pelo que o recurso não pode abranger, no seu âmbito, tal normativo.
Vejamos.
A simples leitura da decisão recorrida mostra que a norma em causa - o segmento contido na alínea b) do n.º 1 do artigo 193.º do CJM - respeita à medida da pena aplicável ao crime de peculato; ora, a decisão do STM refere expressamente que "pese embora a qualificação jurídico-penal dos factos acima feita, não possa condenar-se o réu pelo acima mencionado crime de peculato, qualquer que fosse a pena a impor". O que significa que o segmento da norma em questão não foi utilizado, nem o podia ter sido, uma vez que o recurso foi interposto apenas pelo réu, não podendo o tribunal de recurso modificar a pena, ainda que tivesse entendido modificar a qualificação jurídico-penal dos facto apurados.
Não tendo havido recusa de aplicação da alínea b) do n.º 1 do artigo 193.º do CJM, com fundamento na sua inconstitucionalidade, não pode conhecer-se do recurso quanto a esta norma, por não se verificar o requisito de admissibilidade do mesmo.
5 - Quanto à outra norma cuja inconstitucionalidade se questiona nos autos - o artigo 440.º, n.º 2, alínea a), do CJM -, o Ministério Público remete para a doutrina que resulta do Acórdão 135/99, de 3 de Março de 1999, ainda inédito, considerando que a solução ali adoptada "é plenamente transponível para a situação processual verificada nos autos, em que a possibilidade de agravação da situação do arguido recorrente radica não em posição assumida pelo representante da acusação no Tribunal, mas em diferente qualificação jurídica dos factos operada ex officio por este Tribunal".
Vejamos.
O artigo 440.º do CJM estabelece o seguinte:
"Artigo 440.º
1 - Interposto recurso de uma decisão condenatória somente pelo réu, pelo promotor de justiça no exclusivo interesse da defesa, ou pelo réu e pelo promotor nesse exclusivo interesse, o Supremo Tribunal não pode, em prejuízo de qualquer dos réus, ainda que não recorrente:
a) Aplicar pena que, pela espécie ou pela medida, deva considerar-se mais grave do que a constante da decisão recorrida;
b) Revogar o benefício da substituição da pena por outra menos grave;
c) Modificar, de qualquer modo, a pena aplicada pela decisão recorrida.
2 - A proibição estabelecida neste artigo não se verifica:
a) Quando o tribunal superior qualificar diversamente os factos, quer a qualificação respeite à incriminação quer a circunstâncias modificativas da pena;
b) Quando o promotor de justiça junto do tribunal superior se pronunciar, no visto inicial do processo, pela agravação da pena, aduzindo logo os fundamentos do seu parecer, casos em que serão notificados os réus, a quem será entregue cópia do parecer, para resposta no prazo de três dias."
A norma em causa nos presentes autos - n.º 2, alínea a), do artigo 440.º - viu recusada a sua aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, por violação dos artigos 32.º, n.º 1, e 13.º, n.º 1, da Constituição, enquanto afasta a proibição da reformatio in pejus "quando o tribunal superior qualificar diversamente os factos, quer a qualificação respeite à incriminação quer a circunstâncias modificativas da pena".
A norma que foi julgada inconstitucional pelo Acórdão 135/99, de 3 de Março de 1999, ainda inédito, foi a da alínea b) do n.º 2 do mesmo preceito do CJM. Entendeu-se inconstitucional tal norma, enquanto afasta a proibição da reformatio in pejus, prevista no n.º 1, quando o promotor de justiça junto do STM se pronunciar, no visto inicial do processo, pela agravação da pena, se o recurso tiver sido interposto unicamente pelo arguido, por contender com os artigos 32.º, n.º 1, e 13.º, n.º 1, da Constituição.
No acórdão refere-se que o processo penal assegurará todas as garantias de defesa (n.º 1 do artigo 32.º); porém, tal princípio "não se esgota na elencação feita nos n.os 2 e seguintes do referido preceito". Com efeito, "aquele n.º 1 funciona ainda como cláusula geral, englobadora de todas as garantias que, embora não explicitadas nos números seguintes, hajam de decorrer do princípio da protecção global e completa dos direitos de defesa do arguido em processo criminal", sendo "fonte autónoma de garantias de defesa". Afirma ainda o acórdão que "o instituto da proibição da reformatio in pejus é [...] uma dessas garantias que, embora não explicitadas, há-de decorrer do princípio da protecção global e completa dos direitos de defesa do arguido em processo criminal, consagrado no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição", o que já foi também afirmado nos Acórdãos n.os 499/97 e 498/98, este ainda inédito e o primeiro publicado no Diário da República, 2.ª série, de 21 de Outubro de 1997.
Esta jurisprudência, decorrente destes acórdãos e que se considerou manter inteira validade no Acórdão 135/99, é transponível para o caso em apreço. Com efeito, na decisão recorrida previu-se a possibilidade de agravação da situação do arguido recorrente, em consequência de diferente qualificação jurídica dos factos operada ex officio pelo tribunal a quo. A decisão recorrida, porém, recusou aplicar a norma do artigo 440.º, n.º 1, alínea a), do CJM por entender que tal disposição não prevê que se previna o arguido da nova qualificação jurídico-penal conducente à condenação em pena mais grave e se lhe dê oportunidade de defesa quanto a essa nova qualificação.
Efectivamente, como se escreve nas alegações do Ministério Público, "se mesmo no caso de a acusação - que não exerceu oportunamente a faculdade de recorrer - promover a agravação da pena aplicada ao arguido no tribunal a quo está constitucionalmente vedada a reformatio in pejus, por maioria de razão terá esta de se considerar postergada quando a agravação da situação do arguido radique exclusivamente numa actuação oficiosa do tribunal, susceptível de determinar um enquadramento ou qualificação jurídica mais gravosa do que a realizada nas instâncias".
Há, assim, violação do princípio da protecção global e completa dos direitos de defesa do arguido em processo penal quando, em recurso apenas do arguido, se proceda a uma diferente qualificação jurídica dos factos conducente a uma condenação mais grave, sem que dela se previna o arguido para organizar a sua defesa.
Quanto à violação do princípio da igualdade constante do artigo 13.º da Constituição, dir-se-á que a norma do artigo 440.º, n.º 2, alínea a), do CJM, enquanto prevê que a proibição da reformatio in pejus, prevista no n.º 1 do preceito, não se aplica quando o tribunal superior qualificar diversamente os factos, quer a qualificação respeite à incriminação quer a circunstâncias modificativas da pena, não pode deixar de contender com tal princípio.
Com efeito, a situação que decorre da norma em causa implica uma frontal desigualdade em relação ao regime da proibição da reformatio in pejus constante do artigo 409.º do Código de Processo Penal. Ora, não se vislumbra nas especificidades próprias da instituição militar ou do processo penal militar uma base material que permita justificar esta concreta e específica diferença de tratamento.
E não existindo fundamento racional a justificar um diferente regime, tem de se concluir que a norma em causa é inconstitucional também por violação do artigo 13.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
III - Decisão. - Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide julgar inconstitucional, por violação dos artigos 32.º, n.º 1, e 13.º, n.º 1, da Constituição, a norma do artigo 440.º, n.º 2, alínea a), do CJM enquanto afasta a proibição da reformatio in pejus, quando o Tribunal ad quem, no âmbito de um recurso só do arguido, optar por uma qualificação jurídica que permita uma condenação mais gravosa, e, em consequência, negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida, na parte impugnada.
Lisboa, 23 de Novembro de 1999. - Vítor Nunes de Almeida - Maria Helena Brito - Artur Maurício - Luís Nunes de Almeida.