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Acórdão 132/2007, de 24 de Abril

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Sumário

Não julga inconstitucionais as normas dos artigos 733.º e 736.º, n.º 1, do Código Civil, na interpretação segundo a qual um crédito do Estado originado numa dívida de IVA dotado de privilégio creditório prefere a um crédito derivado de uma multa de natureza criminal para cobrança da qual foi instaurada uma execução e penhorados bens móveis

Texto do documento

Acórdão 132/2007

Processo 929/06

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I - 1 - Nuns autos de execução para pagamento de custas e multa criminal, o Ministério Público deduziu, em representação da Fazenda Nacional, reclamação de créditos contra o executado José Luís Rubio Rioja Silveirinha, alegando, entre o mais, que este devia à Fazenda Nacional o montante global de Euro 2146,80 referente ao imposto sobre o valor acrescentado (IVA).

2 - Por sentença de 2 de Agosto de 2006, o juiz do Tribunal da Comarca de Elvas graduou o crédito derivado da multa criminal antes dos créditos da Fazenda Nacional provenientes das dívidas de IVA e respectivos juros, pelos seguintes fundamentos (fls. 18 e seguintes):

"[...]

A Fazenda Nacional, para pagamento de dívidas referentes a IVA - que reveste a natureza jurídica de imposto indirecto -, goza de privilégio mobiliário geral, nos termos do artigo 736.º, n.º 1, do Código Civil.

Os referidos créditos serão a graduar em conformidade com o disposto no artigo 747.º, n.º 1, alínea a), do mesmo diploma que abrange os juros de mora, sem a limitação temporal que resulta do artigo 734.º do Código Civil.

[...]

Por sua vez, a penhora apenas confere ao exequente o direito de ser pago com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior (artigo 822.º do Código Civil) ou que não beneficie de privilégio creditório (artigo 733.º do Código Civil).

Nestes termos, haveria de dar aos créditos em questão a competente graduação, a qual atendendo ao privilégio creditório atribuído aos créditos por impostos indirectos implicaria de acordo com o ordenamento infra constitucional vigente que o crédito reclamado fosse graduado antes do crédito exequendo.

Sucede que parte do crédito exequendo diz respeito a uma pena de multa de natureza criminal que não foi paga pelo arguido, aqui executado.

Em relação a esta a lei não estabelece qualquer prioridade no pagamento nem atribui qualquer privilégio creditório.

No entanto, entendemos que o ordenamento constitucional vigente impõe que a mesma seja graduada antes do crédito dotado de privilégio creditório, sobrepondo-se às normas constantes do Código Civil.

Com efeito, a não ser assim estar-se-ia a dar prevalência a um crédito derivado de uma dívida tributária sobre uma obrigação de pagamento de uma multa de natureza criminal, o que violaria a Constituição.

O pagamento da multa criminal assume uma relevância no que concerne à salvaguarda dos direitos fundamentais que deve prevalecer sobre o interesse na cobrança dos créditos tributários.

A execução patrimonial, tendo em vista obter o pagamento coercivo de uma multa criminal instaurada pelo Ministério Público, ao abrigo do artigo 491.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal, é uma das principais formas de garantir o cumprimento da sanção penal, sendo obrigatória no caso [de o] condenado ter bens suficientes e desembaraçados.

Os fundamentos que presidem à sua instauração prendem-se com a realização dos fins das penas e relacionam-se com a salvaguarda do Estado de direito democrático [artigos 2.º e 9.º, alínea b), da Constituição da República Portuguesa].

Ao invés, a consagração de privilégios creditórios tem como fundamento a necessidade de 'permitir ao Estado a satisfação de relevantes necessidades colectivas constitucionalmente tuteladas' (cf. Acórdãos n.os 160/2000, 362/2002 e 317/2002 do Tribunal Constitucional).

Ora, do confronto destes dois interesses deve prevalecer o primeiro, sendo violador dos princípios do Estado de direito democrático e da proporcionalidade (artigos 2.º e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa) que um crédito de IVA se sobreponha sobre uma dívida respeitante a uma multa criminal.

Com efeito, em nosso entender, será contrário aos referidos princípios que um arguido, dispondo de bens penhoráveis que podem servir para o pagamento de uma multa criminal de que é devedor, veja os bens móveis que lhe foram penhorados vendidos e que o produto dessa mesma venda seja utilizado primeiramente para pagamento de uma dívida de IVA de que é igualmente devedor do que para a satisfação da multa, como é o caso presente.

Não se afigura proporcional que o produto da venda dos bens penhorados não seja usado para o pagamento da multa criminal em que foi condenado e que a sanção penal subsista quando existiam bens penhoráveis que poderiam servir para a sua satisfação.

Pelos mesmos motivos, entendemos que a atribuição de prevalência a um privilégio creditório sobre uma dívida de multa criminal na graduação de créditos é ainda contrária ao princípio constitucional do direito à liberdade previsto no artigo 27.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

Efectivamente, a prevalência da dívida de IVA sobre a multa poderá levar a que, não sendo paga a multa de forma voluntária nem coercivamente, seja decretada a prisão subsidiária, nos termos do artigo 49.º, n.º 1, do Código Penal, pelo tempo correspondente reduzido a dois terços.

É bem verdade que a execução da prisão subsidiária poderá ser suspensa na sua execução ao abrigo do disposto no artigo 49.º, n.º 3, do Código Penal e subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro.

No entanto, esta faculdade depende da prova de que a razão do não pagamento da multa não é imputável ao condenado e constitui um passo em frente no sentido de ser cumprida a prisão subsidiária.

Essa fase e o eventual cumprimento da prisão subsidiária poderia ser evitado face à existência de bens penhoráveis que em sede de execução patrimonial permitiriam o cumprimento da pena.

Afigura-se-nos, pois, que a circunstância do produto da venda dos bens do condenado ser utilizado para pagamento de uma dívida tributária em vez de para o pagamento de uma multa criminal constitui uma restrição ao direito à liberdade - que a seguir ao direito à vida constitui o direito fundamental mais importante - inadmissível face à Constituição na medida em que limita uma forma de cumprimento da pena e poderá conduzir ao efectivo cumprimento da pena de prisão subsidiária.

Concluímos, assim, que os princípios constitucionais derivados dos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, e 27.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa implicam que os artigos 733.º e 736.º, n.º 1, do Código Civil sejam considerados inconstitucionais na medida em que impõe a existência de um privilégio creditório sobre a dívida resultante de uma multa criminal.

Pelo exposto, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da lei do Tribunal Constitucional, recuso a aplicação dos artigos 733.º e 736.º, n.º 1, do Código Civil, por os mesmos serem inconstitucionais na interpretação segundo a qual um crédito do Estado originado numa dívida de IVA dotado de privilégio creditório prefere a um crédito derivado de uma multa de natureza criminal para cobrança da qual foi instaurada uma execução e penhorados bens móveis.

Em consonância com a referida interpretação dos preceitos constitucionais em apreço, devem os créditos em causa nos autos ser graduados por forma que fique em primeiro lugar a dívida respeitante à multa criminal no valor de Euro 480, seguindo-se os créditos de IVA dotados de privilégio creditório e respectivos juros e, finalmente, os créditos respeitantes às custas no montante total de Euro 446,71 e respectivos juros de mora.

[...]."

3 - Desta sentença recorreu o Ministério Público para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da lei do Tribunal Constitucional, nos seguintes termos (fl. 26):

"[...] vem interpor recurso, para o Tribunal Constitucional, da sentença de graduação de créditos na parte em que recusou, por as considerar inconstitucionais, a aplicação das normas constantes dos artigos 733.º e 736.º, n.º 1, do Código Civil, por violação dos princípios derivados dos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, e 27.º, n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa."

O recurso foi admitido por despacho de fl. 27.

4 - Nas alegações, concluiu assim o representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional (fls. 32 e seguintes):

"1 - A norma constante dos artigos 733.º e 736.º, n.º 1, do Código Civil, interpretada como outorgando um privilégio creditório mobiliário geral aos créditos do Estado por impostos - o qual prevalece sobre os créditos provenientes de multas penais, impostas ao arguido -, não se configura como arbitrária ou desproporcionada, já que tem na sua base o reconhecimento da relevância constitucional do 'sistema fiscal', tendo como objectivo directo a tutela reforçada do interesse da Fazenda Nacional no efectivo recebimento das quantias devidas a título de débitos fiscais, indispensáveis a um regular funcionamento das instituições e da máquina administrativa.

2 - Tal solução legislativa não conduz a uma inadmissível restrição ao direito à liberdade do arguido, já que não decorre automaticamente da impossibilidade de cobrança efectiva da importância da multa o inelutável cumprimento da pena de prisão subsidiária, sendo lícito ao juiz, no quadro normativo do artigo 49.º, n.º 3, do Código Penal, valorar, em concreto, as razões do incumprimento e da sua efectiva imputação ao arguido, sendo-lhe lícito optar pela suspensão da execução daquela pena privativa da liberdade.

3 - Termos em que deverá proceder o presente recurso."

Cumpre apreciar e decidir.

II - 5 - O objecto do presente recurso é constituído pelos "artigos 33.º e 736.º, n.º 1, do Código Civil, na interpretação segundo a qual um crédito do Estado originado numa dívida de IVA dotado de privilégio creditório prefere a um crédito derivado de uma multa de natureza criminal para cobrança da qual foi instaurada uma execução e penhorados bens móveis".

É a seguinte a redacção dos artigos 733.º e 736.º, n.º 1, do Código Civil (o primeiro sistematicamente integrado nas disposições gerais atinentes aos privilégios creditórios e o segundo nas disposições relativas aos privilégios mobiliários gerais):

"Artigo 733.º

Noção

Privilégio creditório é a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros.

Artigo 736.º

Créditos do Estado e das autarquias locais

1 - O Estado e as autarquias locais têm privilégio mobiliário geral para garantia dos créditos por impostos indirectos e também pelos impostos directos inscritos para cobrança no ano corrente na data da penhora, ou acto equivalente, e nos dois anos anteriores.

[...]"

6 - O tribunal recorrido julgou inconstitucional - e, por isso, recusou a respectiva aplicação - a interpretação normativa que constitui o objecto do presente recurso, essencialmente por duas razões:

a) Os interesses que subjazem ao pagamento da multa criminal (a realização dos fins das penas e a salvaguarda do Estado de direito democrático) sobrepõem-se ao interesse que subjaz ao pagamento de um crédito proveniente de IVA (o de permitir ao Estado, através da cobrança dos impostos, a satisfação de relevantes necessidades colectivas constitucionalmente tuteladas), pelo que viola os princípios do Estado de direito democrático e da proporcionalidade, consagrados nos artigos 2.º e 18.º, n.º 2, da Constituição, a utilização do produto da venda de bens penhorados primeiramente para pagamento de uma dívida de IVA e, só depois, para pagamento da multa criminal;

b) A atribuição de prevalência a um privilégio creditório sobre uma dívida de multa criminal contraria o direito à liberdade, consagrado no artigo 27.º da Constituição, pois que "poderá levar a que, não sendo paga a multa de forma voluntária nem coercivamente, seja decretada a prisão subsidiária nos termos do artigo 49.º, n.º 1, do Código Penal pelo tempo correspondente reduzido a dois terços".

7 - Não se acompanham, porém, as razões sufragadas pelo tribunal recorrido.

7.1 - No que se refere à primeira [supra n.º 6, alínea a)], e ainda que se aceitasse a superioridade dos interesses na realização dos fins das penas e na salvaguarda do Estado de direito democrático face ao interesse na cobrança dos impostos, ou face ao interesse na satisfação de relevantes necessidades colectivas, certo é que não existe norma ou princípio constitucional de que decorra que tal superioridade haja de ser feita valer no processo de execução e, concretamente, aquando da graduação dos créditos reclamados com o crédito exequendo. É aliás discutível, como salienta o Ministério Público nas contra-alegações (cf. fls. 33 e seguinte), a "desvalorização" da relevância constitucional da tutela dos créditos fiscais, operada na decisão recorrida.

Dito de outro modo, não se retira da Constituição - nomeadamente dos artigos 2.º e 18.º, n.º 2 -, que a superioridade dos interesses na realização dos fins das penas e na salvaguarda do Estado de direito democrático deva reflectir-se ou ser assegurada no preciso momento da graduação de créditos provenientes de dívidas de IVA e de créditos provenientes de multas criminais, retirando aos primeiros a preferência no pagamento, ou atribuindo-a aos segundos.

A concessão da preferência no pagamento aos créditos provenientes de dívidas de IVA, relativamente aos créditos provenientes de multas criminais, consubstancia, assim, um domínio aberto à discricionariedade do legislador.

Isto não significa, obviamente, que, ao conceder tal preferência, o legislador não deva respeitar certos limites: simplesmente, não configura um desses limites a alegada superioridade dos interesses na realização dos fins das penas e na salvaguarda do Estado de direito democrático, em si mesma considerada.

7.2 - No que se refere à segunda razão aduzida pelo tribunal recorrido [supra n.º 6, alínea b)], é o próprio tribunal a reconhecer, por um lado, que a prevalência da dívida de IVA sobre a multa poderá levar a que seja decretada a prisão subsidiária, nos termos do artigo 49.º, n.º 1, do Código Penal, e, por outro lado, que o Código Penal consagra, no n.º 3 do mesmo artigo 49.º, mecanismos destinados a obter a suspensão da execução da prisão subsidiária.

Logo por aqui se vê que a causa da restrição da liberdade do condenado em multa não é a prevalência da dívida de IVA sobre a multa, mas o não pagamento da multa, sendo certo que o condenado teve oportunidade de proceder ao pagamento voluntário da multa e até de requerer a substituição de tal pagamento por dias de trabalho (artigo 48.º do Código Penal). Ora, não é possível formular um juízo de inconstitucionalidade, por violação do direito à liberdade, relativamente a uma norma que constitui tão-só causa remota e, além do mais, virtual, da privação desse direito à liberdade.

Por outro lado, e ainda que tal causa fosse, para o efeito, relevante, sempre deveria entender-se que a restrição do direito à liberdade não seria desproporcionada ou excessiva e, como tal, constitucionalmente ilegítima, atendendo a que a lei contém soluções que consideravelmente atenuam essa mesma restrição, quando o não pagamento não é imputável ao condenado (as previstas no artigo 49.º, n.º 3, do Código Penal).

Improcede, assim, o juízo de inconstitucionalidade formulado na sentença recorrida.

III - 8 - Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide conceder provimento ao presente recurso, determinando a reforma da decisão recorrida de acordo com o presente juízo quanto à questão de constitucionalidade.

Lisboa, 27 de Fevereiro de 2007. - Maria Helena Brito - Rui Manuel Moura Ramos - Carlos Pamplona de Oliveira - Maria João Antunes - Artur Maurício.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1562501.dre.pdf .

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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