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Acórdão 678/2006, de 26 de Janeiro

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Sumário

Não conhece do recurso quer por a decisão recorrida não ter aplicado a dimensão normativa arguida de inconstitucionalidade, quer por não ter sido arguida uma questão de inconstitucionalidade normativa mas da própria decisão

Texto do documento

Acórdão 678/2006

Processo 192/2004

Acordam no plenário do Tribunal Constitucional:

I - Relatório. - 1 - Carlos Manuel Águas Garcia, melhor identificado nos autos, intentou acção declarativa de condenação, emergente de contrato individual de trabalho, com processo ordinário, contra PARTEX - Companhia Portuguesa de Serviços, S. A., Nuno Manuel Franco Ribeiro da Silva e David Estêvão da Silva Gouveia, também com os sinais nos autos, pedindo a declaração de nulidade do processo disciplinar de que fora alvo, ou, ao menos, a declaração de ilicitude do seu despedimento, bem como a condenação dos réus a indemnizar prejuízos materiais e não patrimoniais de diversa ordem, com juros desde a citação.

Tendo os 2.º e 3.º réus sido absolvidos da instância por ilegitimidade, prosseguiu a acção contra a ex-entidade patronal do autor, vindo o 2.º Juízo do Tribunal do Trabalho de Lisboa, em sentença de 15 de Julho de 2002, a condená-la ao pagamento de diversos montantes referentes a férias vencidas em 1994 e 1995 e subsídio de férias e de Natal referentes a 1995, julgando a acção, no mais, improcedente.

O autor recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por Acórdão de 22 de Maio de 2003, deliberou negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.

Inconformado, recorreu o autor para o Supremo Tribunal de Justiça alegando, entre o mais, que "os artigos 10.º, n.os 1, 4 e 5, e 12.º, n.º 3, alíneas a) e b), da lei dos despedimentos são interpretados de forma contrária à Constituição, visto que a irrelevância da inclusão na decisão disciplinar de infracções dadas como provadas e não constantes da nota de culpa tem de decorrer de uma interpretação dessas normas manifestamente inconstitucional por violação do n.º 10 do artigo 32.º da lei fundamental (norma essa que, de resto, veio a explicitar garantia idêntica constante do artigo 269.º, n.º 3, da lei fundamental);" e que "no contexto factual apurado pelas instâncias, considerar que a categoria-habilitação é determinante da categoria-função corresponde a interpretar os n.os 1 e 2 do artigo 22.º da LCT com ofensa do princípio da segurança de emprego consagrado no artigo 53.º da Constituição;".

Por decisão de 4 de Fevereiro de 2004, o Supremo Tribunal de Justiça considerou, quanto à primeira questão de constitucionalidade, que as infracções dadas como provadas constavam todas da nota de culpa e, quanto à segunda, que o facto de o autor ter sido contratado em função da categoria-habilitação a que a entidade patronal pretendeu reconduzi-lo "respeita exactamente assim o acordo havido", confirmando o acórdão impugnado.

2 - Veio então o autor interpor recurso de constitucionalidade ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo a apreciação das seguintes normas:

"I) As normas conjugadas dos artigos 10.º, n.os 1, 4 e 5, e 12.º, n.º 3, alíneas a) e b), da lei dos despedimentos (Decreto-Lei 64-A/89, de 27 de Fevereiro), interpretadas no sentido da irrelevância da inclusão na decisão disciplinar de infracções dadas como provadas e não constantes da nota de culpa (in casu, "ter faltado à verdade" ao fazer certa afirmação de que, na vigência do contrato de trabalho, nunca actuar na Companhia como engenheiro, ao passo que na nota de culpa lhe fora apenas imputada uma "notória falta de lealdade para com a sua entidade patronal, já que bem sabe o arguido que é engenheiro civil, que foi como engenheiro civil que se candidatou e que caricato se torna que 'deite às urtigas' os anos que passou na universidade, dizendo, absurdamente, que apesar de engenheiro civil, não se sente habilitado para o ser" - artigo 36.º).

II) As normas dos n.os 1 e 2 do artigo 22.º, versão originária (vigente à data do despedimento, em 1994) do regime jurídico do contrato individual de trabalho de 1969, interpretadas no sentido de que a categoria-habilitação (no caso, o diploma de licenciatura em engenharia civil) é determinante da categoria-função (técnico de marketing)."

Determinada a produção de alegações, concluiu assim o recorrente:

"A) O ora recorrente, ao serviço da PARTEX, não podia negar, nem negou, que fora contratado em 1983, em regime de profissão liberal, para exercer funções de engenheiro civil na empresa;

B) Simplesmente, em 1985 passou a exercer funções de técnico de marketing na empresa, tendo sido admitido, como trabalhador por conta de outrem, na PARTEX com a categoria-habilitação de engenheiro civil, continuando a desempenhar funções na área de marketing;

C) Na sequência de uma "queda em desgraça" na empresa, foi-lhe dada ordem de transferência para a área da engenharia civil na PARTEX, ao fim de um período de nove anos em que não exerceu estas funções;

D) Na sequência de uma fase litigiosa em que foi discutida pelo trabalhador a licitude da ordem de transferência, foi instaurado um processo disciplinar ao trabalhador, foi suspenso preventivamente e foi, finalmente, despedido com justa causa;

E) Enquanto que, na nota de culpa do processo disciplinar, o trabalhador era acusado de falta de lealdade para com a entidade patronal - por não acatar a ordem desta de o transferir para a área da engenharia civil, onde já exercera funções como profissional liberal - no relatório final e na decisão disciplinar passou a ser tido por autor de uma mentira deliberada, por ter negado que fora admitido como engenheiro civil na PARTEX, enquanto trabalhador por conta de outrem;

F) A decisão do Supremo Tribunal de Justiça, ora recorrida, considerou que a falta de lealdade continha em si só a acusação de mentira, por esta ser um desenvolvimento de outra imputação, concluindo no sentido da improcedência da nulidade suscitada;

G) Ao decidir como decidiu, o Supremo Tribunal de Justiça adoptou uma interpretação do disposto nas normas conjugadas dos artigos 10.º, n.os 1, 4 e 5, e 12.º, n.º 3, alíneas a) e b), da lei dos despedimentos de 1989 (Decreto-Lei 64-A/89, de 27 de Fevereiro) contrária às garantias do processo disciplinar constantes do artigo 32.º, n.º 10, da Constituição, revisão de 1997, as quais já se continham na versão anterior da Constituição (artigo 269.º, n.º 3, aplicável por analogia), sendo a nova disposição interpretativa da versão anterior da Constituição;

H) Por outro lado, o Supremo Tribunal de Justiça considerou que a categoria-habilitação define o trabalhador tipo a que se refere o contrato de trabalho em concreto, tanto bastando para que a transferência ordenada do recorrente da área de marketing para a área de engenharia fosse lícita;

I) Ao decidir como decidiu, o Supremo Tribunal de Justiça adoptou um entendimento do artigo 22.º, n.os 1 e 2, do regime do contrato individual de trabalho (versão originária) que é contrário ao artigo 53.º da Constituição, por admitir um ius variandi sem restrições, nomeadamente a de desvalorização do trabalhador em termos sócio-profissionais."

Não houve contra-alegações por parte da recorrida.

Na sequência das alegações do recorrente, o relator proferiu despacho em que advertiu o recorrente para a eventualidade de se não poder vir a tomar do recurso, reportado à constitucionalidade de dimensões normativas tal como elas foram, por último, representadas nas alegações de recurso, tendo o recorrente sido notificado para se pronunciar sobre tal possibilidade.

O recorrente veio, então, dizer que se lhe afigura indiscutível que o Supremo Tribunal de Justiça aceitou como ratio decidendi "a norma retirada da conjugação dos artigos 10.º, n.os 1, 4 e 5, e 12.º, n.º 3, alíneas a) e b), da lei dos despedimentos de 1989, interpretada no sentido da irrelevância da inclusão na decisão disciplinar de infreacções dadas como provadas e não constantes da nota de culpa". Para o recorrente, "o Supremo Tribunal de Justiça considerou equivalente, como facto indiciador de uma infracção disciplinar, um juízo de valor - "falta de lealdade", ilustrada por afirmações constantes de exposições subscritas pelo recorrente - e um facto concreto, traduzido no proferimento de afirmações conscientemente falsas, ou seja, ter faltado à verdade".

E concluiu ainda (n.º III, "Conclusões") o seguinte:

"Ora, independentemente da procedência da apreciação de mérito ou de fundo da questão de constitucionalidade, é patente que a ratio decidendi da decisão do Supremo tem a ver com as normas do artigo 22.º, n.os 1 e 2, da referida lei do contrato de trabalho, na interpretação referida, abundantemente demonstrada e denunciada como inconstitucional pelo recorrente, sendo certo que a decisão sobre esta matéria condiciona o juízo sobre se houve ou não desobediência ilegítima por parte do recorrente em relação à sua entidade patronal."

Cumpre apreciar a decidir.

III - Fundamentos. - 3 - Começando pela questão de constitucionalidade referida às normas dos n.os 1 e 2 do artigo 22.º do regime jurídico do contrato de trabalho (LCT), na versão originária (por vigente à data do despedimento, ocorrido em 1994), nota-se que, no requerimento de interposição de recurso, essa questão surgia como decorrente da sua interpretação "no sentido de que a categoria-habilitação (no caso, o diploma de licenciatura em Engenharia Civil) é determinante da categoria-função (técnico de marketing)".

Se bem que, prima facie, se admitisse que alguma questão de constitucionalidade se poderia colher desta fórmula - embora aparentemente inversa do que estava em causa (se alguma categoria-função poderia ser vista como determinada pela licenciatura em engenharia civil, ela não era certamente a de técnico de marketing) -, assim se tendo determinado a produção de alegações, o modo como o recorrente veio a equacionar e precisar a questão de constitucionalidade nessas suas alegações de recurso tornou clara a impossibilidade da sua apreciação, por nenhum dos sentidos impugnados corresponder ao sentido com que as normas questionadas foram aplicadas na decisão recorrida.

De facto, como o Supremo Tribunal de Justiça deixou claro, a norma do artigo 22.º, n.os 1 e 2, da LCT (na versão vigente em 1994) não foi interpretada como bastando-se com "a titularidade de uma categoria-habilitação para permitir atribuir ao trabalhador a categoria-função própria dessa habilitação", nem foi entendido "que a categoria-habilitação é determinante da categoria-função, ainda que ocorra desvalorização profissional", tal como se não entendeu que tais normas admitissem "um jus variandi sem restrições, nomeadamente a desvalorização do trabalhador em termos sócio-profissionais", que, alternativamente, foram os sentidos que vieram a ser impugnados nas alegações do recorrente.

As transcrições que o acórdão recorrido fez de passos relevantes da sentença do 2.º Juízo do Tribunal do Trabalho de Lisboa, apoiando o juízo de que não eram as habilitações do autor que determinavam as suas actividades na empresa, mas sim os próprios termos do contrato por ele celebrado, sem que houvesse nesse regresso às origens qualquer desvalorização, provam isso mesmo: o autor "não foi admitido na ré como especialista de marketing, mas como engenheiro, sendo que o seu recrutamento para a ré, embora em regime de prestação de serviços, teve como base fundamental o seu currículo e capacidades na área de engenharia civil; no âmbito do contrato de trabalho vigente entre autor e ré, estava incluída a eventual prestação de trabalho na área da engenharia, competências e habilitações estas do autor que foram determinantes para o seu recrutamento para a ré; as novas funções atribuídas ao autor na área de engenharia eram compatíveis com as suas habilitações académicas e idênticas a outras que em tempos exercera já na ré antes de Maio de 1985, no âmbito de um contrato de prestação de serviços, e sem prejuízo em termos de posição salarial; [e]stando a actividade na área da engenharia compreendida no objecto do seu contrato, é de considerar terem sido atribuídas ao autor funções que se justificam nos termos do artigo 22.º, n.º 1, da LCT, sem qualquer desvalorização profissional, e sem modificação substancial da sua posição".

Não correspondendo, como é patente, a interpretação professada pelo Supremo Tribunal de Justiça a nenhuma das que foram impugnadas como desconformes à Constituição, nem havendo sequer critério para preferir umas às outras, atenta a desconformidade com a que foi incluída no requerimento de interposição do recurso, falha logo o primeiro pressuposto do recurso intentado: que a norma impugnada tivesse sido aplicada, com o sentido impugnado, na decisão recorrida.

A resposta do recorrente ao despacho do relator que o convidou a pronunciar-se sobre a possibilidade de não conhecimento do recurso (fl. 974) não altera tal verificação. Designadamente, não releva afirmar-se que "o Supremo Tribunal de Justiça privilegia a fase de celebração de um primeiro contrato de prestação de serviço do recorrente como profissional liberal" (n.º 20), e que para o Supremo Tribunal de Justiça "é relevante, no domínio laboral, o desempenho de certas funções no âmbito de um anterior contrato de prestação de serviço" [n.º 28, alínea a)], uma vez que o objecto do recurso se encontra delimitado pelas inconstitucionalidades suscitadas durante o processo e indicadas no respectivo requerimento de interposição e que no recurso de constitucionalidade a norma aplicada pelo tribunal a quo é, para o Tribunal Constitucional, um dado que este não pode alterar, não lhe competindo controlar, e corrigir, a interpretação do direito infraconstitucional ou, ainda menos, a interpretação da matéria de facto efectuada pelo tribunal recorrido.

Não se pode, pois, tomar conhecimento do recurso, na parte em que se refere ao artigo 22.º, n.os 1 e 2, do regime do contrato individual de trabalho constante do Decreto-Lei 49 408, de 24 de Novembro de 1969, sob pena de a intervenção do Tribunal Constitucional na apreciação da conformidade constitucional da norma impugnada não se reflectir utilmente no processo, uma vez que sempre a decisão recorrida seria a mesma, ainda que a norma questionada viesse a ser julgada inconstitucional (cf. os Acórdãos deste Tribunal n.os 124/88, 454/91, 337/94, 608/95, 577/95 e 196/97, publicados os quatro primeiros no Diário da República, 2.ª série, respectivamente de 5 de Setembro de 1988, 24 de Abril de 1992, 4 de Novembro de 1994 e 19 de Março de 1996, e os dois últimos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).

4 - No requerimento de interposição de recurso, a questão de constitucionalidade referida às normas dos artigos 10.º, n.os 1, 4 e 5, e 12.º, n.º 3, alíneas a) e b), do Decreto-Lei 64-A/89 era dita decorrente de uma alegada "irrelevância da inclusão na decisão disciplinar de infracções dadas como provadas e não constantes da nota de culpa", particularizando-se em seguida: "in casu, "ter faltado à verdade" ao fazer certa afirmação de que, na vigência do contrato de trabalho, nunca actuara na Companhia como engenheiro, ao passo que na nota de culpa lhe fora apenas imputada uma "notória falta de lealdade para com a sua entidade patronal, já que bem sabe o arguido que é engenheiro civil, que foi como engenheiro civil que se candidatou e que caricato se torna que 'deite às urtigas' os anos que passou na universidade, dizendo, absurdamente, que apesar de engenheiro civil, não se sente habilitado para o ser" - artigo 36.º".

Mesmo desconsiderando as notórias especificidades do caso concreto, que não relevam para o sentido normativo, resulta já desta tentativa de delimitação do objecto do recurso que o que o recorrente provavelmente visava era realmente a reapreciação da avaliação e subsunção dos factos realizada pelo tribunal a quo, e não a apreciação de uma norma, em si mesma ou numa dimensão interpretativa. E tal veio a confirmar-se com as alegações apresentadas a este Tribunal, onde se pode ler:

"G) Ao decidir como decidiu, o Supremo Tribunal de Justiça adoptou uma interpretação do disposto nas normas conjugadas dos artigos 10.º, n.os 1, 4 e 5, e 12.º, n.º 3, alíneas a) e b), da lei dos despedimentos de 1989 (Decreto-Lei 64-A/89, de 27 de Fevereiro) contrária às garantias do processo disciplinar constantes do artigo 32.º, n.º 10, da Constituição, revisão de 1997, as quais já se continham na versão anterior da Constituição (artigo 269.º, n.º 3, aplicável por analogia), sendo a nova disposição interpretativa da versão anterior da Constituição;"

Ora, em que é que se teria traduzido essa interpretação contrária às garantias do processo disciplinar? É o próprio recorrente a afirmá-lo nas conclusões imediatamente anteriores:

"E) Enquanto que, na nota de culpa do processo disciplinar, o trabalhador era acusado de falta de lealdade para com a entidade patronal - por não acatar a ordem desta de o transferir para a área da engenharia civil, onde já exercera funções como profissional liberal - no relatório final e na decisão disciplinar passou a ser tido por autor de uma mentira deliberada, por ter negado que fora admitido como engenheiro civil na PARTEX, enquanto trabalhador por conta de outrem;

F) A decisão do Supremo Tribunal de Justiça, ora recorrida, considerou que a falta de lealdade continha em si só a acusação de mentira, por esta ser um desenvolvimento de outra imputação, concluindo no sentido da improcedência da nulidade suscitada;"

Na resposta ao despacho do relator de fl. 974, o recorrente acrescenta (n.º 11):

"[...] o Supremo Tribunal de Justiça considerou equivalente, como facto indiciador de uma infracção disciplinar, um juízo de valor -"falta de lealdade", ilustrada por afirmações constantes de exposições subscritas pelo recorrente - e um facto concreto, traduzido no proferimento de afirmações conscientemente falsas, ou seja, ter faltado à verdade."

O juízo do Supremo Tribunal de Justiça que o recorrente contesta condensa-se na passagem seguinte:

"[...]a falta de lealdade para com a entidade patronal imputada ao recorrente no artigo 36.º da nota de culpa, no contexto em que essa imputação foi feita, só tem um significado: o de que o recorrente faltou à verdade para com a sua entidade patronal. Efectivamente, o que ficou a constar no referido artigo é que o recorrente apesar de saber que se candidatou como engenheiro civil e que foi nessa qualidade que a recorrida o recrutou, nunca admitiu esses factos, tendo antes afirmado, como se refere no artigo 35.º da nota de culpa, designadamente, que "nunca actuou na empresa como engenheiro" e que "foi como especialista de marketing que foi admitido na empresa". Embora no artigo 36.º da nota de culpa se tenha utilizado a expressão "falta de lealdade" e no n.º 71, alínea c), do relatório final se tenha utilizado a expressão "ter faltado à verdade" as duas expressões reflectem a mesma realidade e daí que se imponha concluir, tal como se concluiu no douto acórdão recorrido, pela inexistência de discrepância entre os factos dados como provados no relatório final e os vertidos na nota de culpa, não tendo havido, consequentemente, violação do direito de audiência e defesa que é reconhecido no n.º 4 do artigo 10.º do RJCCT, aprovado pelo Decreto-Lei 64-A/89, de 27 de Fevereiro."

Este juízo é idêntico ao que já fora formulado pelo 2.º Juízo do Tribunal de Lisboa (fl. 752 dos autos) e reproduzido pelo Tribunal da Relação de Lisboa (fl. 836):

"Verifica-se deste modo que os factos dados como provados no relatório final ou são exactamente os mesmos constantes da nota de culpa ou são mero desenvolvimento ou concretização dos já constantes na nota de culpa, o que, como é entendimento quase absoluto da jurisprudência, não determina nulidade do processo disciplinar (veja-se, a título meramente exemplificativo, o Acórdão do STJ de 20 de Maio de 1988, BMJ, n.º 377, pp. 396 e segs., maxime a p. 400)."

Pretende o recorrente que um tal juízo sobre a sua conduta implica, ou pressupõe, uma interpretação inconstitucional das normas dos artigos 10.º, n.os 1, 4 e 5, e 12.º, n.º 3, alíneas a) e b), do Decreto-Lei 64-A/89, assim redigidas:

"Artigo 10.º

Processo

1 - Nos casos em que se verifique algum comportamento que integre o conceito de justa causa, a entidade empregadora comunicará, por escrito, ao trabalhador que tenha incorrido nas respectivas infracções a sua intenção de proceder ao despedimento, juntando nota de culpa com a descrição circunstanciada dos factos que lhe são imputáveis.

...

4 - O trabalhador dispõe de cinco dias úteis para consultar o processo e responder à nota de culpa, deduzindo por escrito os elementos que considere relevantes para o esclarecimento dos factos e da sua participação nos mesmos, podendo juntar documentos e solicitar as diligências probatórias que se mostrem pertinentes para o esclarecimento da verdade.

5 - A entidade empregadora, directamente ou através de instrutor que tenha nomeado, procederá obrigatoriamente às diligências probatórias requeridas na resposta à nota de culpa, a menos que as considere patentemente dilatórias ou impertinentes, devendo, nesse caso, alegá-lo fundamentadamente, por escrito.

...

Artigo 12.º

Ilicitude do despedimento

...

3 - O processo só pode ser declarado nulo se:

a) Faltar a comunicação referida no n.º 1 do artigo 10.º;

b) Se se fundar em motivos políticos, ideológicos ou religiosos, ainda que com invocação de motivo diverso;

..."

Não cabe ao Tribunal Constitucional apreciar ou valorar, novamente, para efeitos disciplinares, a conduta do ora recorrente, ou controlar a apreciação que a tal propósito foi efectuada pelo tribunal a quo, ainda que apenas para averiguar se as infracções verificadas foram ou não efectivamente provadas e constavam, ou não, da nota de culpa.

Ora, tendo em conta a imputação que se fez na nota de culpa, e considerando que as instâncias julgaram corresponder, neste particular, ao fundamento invocado na decisão final do processo disciplinar - "as duas expressões reflectem a mesma realidade", diríamos, o mesmo facto concreto, o qual integra violação do dever de lealdade -, logo tem, porém, de concluir-se que as previsões do artigo 10.º, n.os 1, 4 e 5, foram consideradas preenchidas e, portanto, que as normas do artigo 12.º, n.º 3, alíneas a) e b), do referido diploma não foram interpretadas em sentido diverso do que a Constituição lhes impõe, como poderia ser o caso se tivesse havido um juízo de desconformidade entre a imputação da nota de culpa e o fundamento invocado na decisão final do processo disciplinar.

Pode, efectivamente, ler-se no acórdão recorrido, a fls. 920 v.º e 921 dos autos:

"Ora, prossegue, da nota de culpa não constam as imputações de o recorrente faltar conscientemente à verdade, ou seja, ser mentiroso.

Mas não é assim.

Na realidade, no artigo 35.º da nota de culpa são feitas referências várias a afirmações do recorrente constantes de diversas exposições escritas enviadas à entidade patronal, dizendo-se depois, no artigo 36.º, que aquelas (afirmações) envolviam uma "notória atitude de falta de lealdade para com a sua entidade patronal, já que bem se sabe o arguido é engenheiro civil, que foi como engenheiro civil que se candidatou e foi recrutado [...]".

Ora, como bem diz a M.mª Procuradora-Geral-Adjunta "[...] a falta de lealdade para com a entidade patronal imputada ao recorrente no artigo 36.º da nota de culpa, no contexto em que essa imputação foi feita, só tem uma justificação: a de que o recorrente faltou à verdade para com a sua entidade patronal. Efectivamente, o que ficou a constar no referido artigo é que o recorrente apesar de saber que se candidatou como engenheiro civil e que foi nessa qualidade que a recorrida o recrutou, nunca admitiu esses factos, tendo antes afirmado, como se refere no artigo 35.º da nota de culpa, designadamente que 'nunca actuou na empresa como engenheiro' e que 'foi como especialista de marketing que foi admitido na empresa'.

Embora no artigo 36.º da nota de culpa se tenha utilizado a expressão 'falta de lealdade' e no ponto H), alínea c), do relatório final se tenha utilizado a expressão 'ter faltado à verdade', as duas expressões reflectem a mesma realidade e daí que se imponha concluir, tal como se concluiu no douto acórdão recorrido, pela inexistência de discrepância entre os factos dados como provados no relatório final e os vertidos na nota de culpa".

Não se pode dizer, assim, que houve violação do direito de audiência e de defesa tal como é reconhecido no artigo 10.º, n.º 4, da LCCT."

Não assiste, pois, razão ao recorrente quando, na resposta ao despacho do ora relator a fl. 974, defende que "o Supremo Tribunal de Justiça aceitou como ratio decidendi a norma retirada da conjugação dos artigos 10.º, n.os 1, 4 e 5, e 12.º, n.º 3, alíneas a) e b), da lei dos despedimentos de 1989, interpretada no sentido da irrelevância da inclusão na decisão disciplinar de infracções dadas como provadas e não constantes da nota de culpa." (n.º 12).

Na medida em que o juízo de conformidade constitucional de uma norma dependa de um juízo de facto sobre o cumprimento ou não cumprimento de normas infra-constitucionais, não pode o Tribunal Constitucional, sob pena de exorbitar das suas competências de estrito controlo normativo, deixar de acatar esse juízo de facto.

Em consequência, e porque o sentido normativo pretensamente desconforme com a Constituição teria de assentar num juízo em matéria de facto, e sua valoração, distinto do que foi reiteradamente formulado pelas três instâncias, tem este Tribunal de concluir que o sentido normativo impugnado, relativo à inclusão na decisão disciplinar de infracções dadas como provadas e não constantes da nota de culpa, não foi aplicado na decisão recorrida, e, portanto, que também em relação às normas dos artigos 10.º, n.os 1, 4 e 5, e 12.º, n.º 3, alíneas b) e c), do Decreto-Lei 64-A/89, se não verificam os pressupostos para poder tomar conhecimento do recurso de constitucionalidade.

III - Decisão. - Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do presente recurso e, consequentemente, condenar o recorrente em custas, fixando a taxa de justiça em 20 unidades de conta.

Lisboa, 12 de Dezembro de 2006. - Paulo Mota Pinto (relator) - Benjamim Rodrigues - Mário José de Araújo Torres - Maria Fernanda Palma (vencida nos termos da declaração de voto junta) - Rui Manuel Moura Ramos.

Declaração de voto

Votei vencida o presente acórdão por entender que o Tribunal Constitucional deveria ter tomado conhecimento da dimensão normativa suscitada, já que ela consta necessariamente da respectiva ratio decidendi.

Na realidade, entendo que a imputação constante da nota de culpa relativamente à violação do dever de lealdade se baseava em factos específicos diversos dos que vieram a constar da decisão disciplinar, podendo, obviamente, estar em causa a violação do mesmo dever.

De qualquer modo, a fundamentação da violação do dever em questão depende, por razões garantísticas e de defesa, de factos individualizados, não podendo ser imputada ao trabalhador apenas uma genérica violação do dever de lealdade. Aliás, a diversidade dos factos não só poderia ser relevante para efeitos de defesa como para efeitos de uma eventual pluralidade de infracções do mesmo dever.

Os factos que estão em causa revelam uma diferenciação suficiente, apesar de existir entre eles conexão. No entanto, são factos diversos uma eventual desobediência e a invocada mentira deliberada sobre a posição com que o trabalhador entrou na empresa. Que "desobediência" e "mentira" se distinguem é, porém, manifesto.

Assim, se o Tribunal Constitucional não podia "apreciar ou valorar, novamente, para efeitos disciplinares, a conduta do ora recorrente", em si mesmo, como refere o acórdão, também é verdade que, sendo a raiz do problema de constitucionalidade precisamente a possibilidade de factos diferentes aos da nota de culpa constarem da decisão disciplinar, não poderia prescindir da consideração desse facto. Essa era a matéria objecto da questão de constitucionalidade.

Por tudo isto, conheceria do objecto do presente recurso. - Maria Fernanda Palma.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1540017.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1969-11-24 - Decreto-Lei 49408 - Ministério das Corporações e Previdência Social - Gabinete do Ministro

    Aprova o novo regime jurídico do contrato individual de trabalho.

  • Tem documento Em vigor 1989-02-27 - Decreto-Lei 64-A/89 - Ministério do Emprego e da Segurança Social

    Aprova o regime jurídico da cessação do contrato individual de trabalho, incluindo as condições de celebração e caducidade do contrato de trabalho a termo.

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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