Clínica Internacional de Campo de Ourique
Pub

Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda

Acórdão 291/2006/T, de 7 de Junho

Partilhar:

Texto do documento

Acórdão 291/2006/T. Const. - Processo 24/2006. - Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I - Relatório. - 1 - Inconformado com a decisão instrutória, na parte em que indeferiu diversas nulidades por si invocadas, o arguido, ora recorrente, Luís Miguel Costa Ramos Bandeira, recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra, tendo, a concluir a respectiva motivação e para o que agora importa, formulado as seguintes conclusões:

"I - No dia 5 de Fevereiro de 2003, o recorrente, após ter sido notificado para o efeito, compareceu nas instalações da PSP de Coimbra, sitas na Rua de Olímpio Nicolau Fernandes.

II - Já naquele local, o recorrente foi constituído arguido, prestou termo de identidade e residência e assinou o auto de interrogatório. Ao todo, entre originais e respectivos duplicados, o recorrente assinou seis papéis distintos.

III - O recorrente é invisual, pelo que naquele último dia do prazo que lhe foi concedido pela PSP para comparecer na esquadra, e em que não se conseguiu fazer acompanhar por alguém da sua confiança, inclusive o seu defensor, teve de fazer seis assinaturas em papéis que se encontrava absolutamente impossibilitado de ler ou compreender.

IV - Embora é certo que a lei [artigo 64.º, n.º 1, alínea c)], ao enumerar os casos em que é obrigatória a assistência do defensor, não refira, expressamente, os arguidos cegos, mas apenas os analfabetos, surdos, mudos, inimputáveis, menores de 21 anos e imputáveis diminuídos, a verdade é que não se descortinam quaisquer motivos válidos para semelhante discriminação negativa.

V - A capacidade de compreensão dos actos processuais pelo arguido analfabeto não é afectada pelo facto de este não possuir habilitações literárias, encontrando-se apenas limitado no que se refere a explicações ou relatos escritos desses mesmos actos processuais.

VI - A obrigatoriedade legal da assistência do defensor em todos os actos em que intervenha o arguido analfabeto não se prende com uma presunção do legislador de escassa inteligência deste para poder perceber as informações, direitos e deveres que lhe são transmitidos em determinado acto processual mas, principalmente, com a necessidade de garantir aquilo que não poderia ficar nas mãos de um representante da autoridade: a conformidade de tudo aquilo que era assinado pelo arguido.

VII - Cada uma das situações descritas no artigo 64.º do CPP (arguido analfabeto, menor de 21 anos, mudo, surdo, inimputável ou imputável diminuído) possui a sua própria teleologia imanente, sendo diferentes os motivos que determinam a presença do defensor em cada caso.

VIII - Mal se compreenderia que ficasse propositadamente de fora de protecção o invisual, quando situações bem menos dignas são devidamente acauteladas.

IX - Pelo que deverá considerar-se que o invisual se encontra abrangido pelo artigo 64.º do CPP, ou através de um exercício ou interpretação extensiva do conceito de analfabetismo ou através de um exercício de analogia, in bonam partem, integrando-se assim uma lacuna manifesta da lei processual penal.

X - Caso o artigo 64.º, n.º 1, alínea c), pretenda excluir intencionalmente o invisual, então essa disposição legal deverá ser declarada inconstitucional por violar o princípio da igualdade e o dever fundamental do legislador ordinário de proteger e discriminar favoravelmente todos os cidadãos portadores de deficiências. [...]"

2 - O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 23 de Novembro de 2005, negou provimento ao recurso, decisão que, para o que ora releva, fundamentou assim:

"[...] Nos termos do artigo 64.º, n.º 1, alínea c), do CPP, só se prevê a obrigação de constituição de advogado nas situações nela previstas, de onde se excluiu o invisual.

E teremos de concordar com o despacho recorrido, no qual se menciona que o legislador quis evitar que o cidadão arguido num processo penal se visse impossibilitado de alcançar o significado das expressões rituais que directamente lhe dizem respeito, e presumiu essas dificuldades de compreensão de princípio num conjunto de pessoas que, já porque padecem de desvantagem física ou por não atingirem níveis de conhecimento básico, estão, à partida, em situação de maior fragilidade processual.

O arguido tem direito a escolher o seu defensor, cabendo-lhe a constituição deste, mas a assistência por advogado não se impôs obrigatoriamente como regra.

A obrigatoriedade de assistência por defensor para todo e qualquer acto processual é uma excepção que tem a justificá-la o seguinte: procurar obviar a situações de potencial incompreensão, mercê de razões diversas, do sentido e alcance do acto a que se está presente, bem como a dificuldades de comunicação de um lado e de outro (do arguido para os restantes intervenientes e destes para com o arguido).

Só se assim se compreende a equiparação entre surdo e menor de 21 anos, e entre estes e cidadão que não domine a língua portuguesa, ainda que tenha habilitações superiores, e entre todos estes e o analfabeto ou o inimputável. E também só dessa forma se justifica que a assistência seja para todo e qualquer acto processual, mesmo para os de menor relevo processual.

Deste modo já se vê que o cidadão invisual não está em posição de desvantagem por a sua situação ser diferente das dos restantes indivíduos mencionados na alínea c) do n.º 1 do artigo 64.º

O cidadão invisual, ao contrário do surdo, pode ouvir o que lhe é transmitido oralmente pela autoridade ou pelo funcionário que preside à diligência; ao contrário do mudo, pode exprimir-se oralmente perante aqueles; não sendo analfabeto, assiste ao cidadão invisual um conjunto de conhecimentos basilares que lhe tornam inteligível o sentido de todos os actos.

Assim sendo, não tem sentido aludir-se ao arguido invisual como um analfabeto funcional, como o fez o requerente, posto que a obrigatoriedade de assistência que a lei estabelece e a nulidade grave (insanável) com que fere o acto que a posterga, bem como todo o processado ulterior (artigo 122.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), não visam assegurar a estes arguidos a possibilidade de controlo sobre se o que declaram é o que consta do auto, mas sim garantir, pela presença de defensor, que existe adequada transmissão e recepção do conteúdo dos actos e da posição do arguido.

Se a finalidade da lei fosse a de acautelar a conformidade do auto com o declarado (e é certo que o invisual, como o analfabeto, não podem controlar o que de escrito passa a constar dos autos), não faria sentido algum que a lei dispusesse o mesmo para o surdo ou para o cidadão de 16 a 20 anos (que sempre podem ler o que está escrito), sendo certo que a nulidade do acto e de todo o processado posterior constitui uma sanção muito mais grave que aquele vício, não sendo sequer por ele (vício) reclamada.

É que a desconformidade entre aquilo que se declarou e o que ficou a constar sempre pode arguir-se e ser motivo para considerar inválido o acto de declaração, desta feita retirando-lhe qualquer utilidade ou eficácia processual ou substantiva.

Para este caso - desconformidade entre o declarado e o escrito - bastaria uma sanção processual com as características e efeitos da anulabilidade, não sendo compreensível o desaproveitamento de todo o processado ulterior.

Estamos, assim, convictos de que a lei processual não inclui a cegueira entre os motivos de assistência obrigatória de defensor porque a teleologia deste regime é específica e não é reclamada nessa situação.

Com isto afasta-se a necessidade de uma interpretação extensiva do disposto no artigo 64.º, n.º 1, alínea c), e, bem assim, o espectro da sua desconformidade com a Lei Constitucional por eventual violação do princípio da igualdade. É que o artigo 13.º da CRP apenas reclama tratamento igual para os casos que são iguais, com distinção das situações que são diferentes e sem privilégio ou prejuízo de quem quer que seja.

Os cidadãos portadores de deficiências, nomeadamente físicas, deverão ser sujeitos de soluções legislativas que vençam os obstáculos postos por tais deficiências, mas apenas onde isso seja necessário para se verem colocados em paridade de posição relativamente aos demais cidadãos.

No caso da presença em actos processuais, a assistência obrigatória por defensor não coloca o cidadão invisual em situação diferente ou menos desfavorecida relativamente às hipóteses de compreensão do conteúdo do acto, à recepção de informação ou à transmissão da sua posição aos demais sujeitos ou intervenientes no processo.

A respeito deste normativo, defende-se que 'se os factores inibitórios não forem absolutamente incapacitantes, permitindo ao arguido a compreensão e o alcance do acto, a nomeação do defensor passa a ser facultativa, restrita aos casos de necessidade ou conveniência'.

Aliás, a solução resultante da alínea c) do n.º 1 do artigo 64.º encontra-se temperada no n.º 2 do mesmo artigo, que prevê a faculdade de, oficiosamente ou a pedido do arguido, e sempre que haja necessidade ou conveniência, este ser assistido por defensor em qualquer acto processual.

Assim sendo, já se vê que, se alguma dificuldade existir no caso do arguido invisual, ou a autoridade ou funcionário que preside ao acto disso se apercebe e nomeia defensor ou o próprio arguido expõe essa pretensão e, sendo necessário ou conveniente, é-lhe nomeado defensor.

No caso dos autos, o arguido requerente é invisual e trata-se do acto de constituição como arguido e de prestação de termo de identidade e residência (fls. 495 e 496 do 2.º volume).

O arguido compareceu neste acto sem se fazer acompanhar de defensor e nem lhe foi nomeado defensor algum.

Já verificámos que a lei não o impunha obrigatoriamente.

Cabe questionar se era necessário ou conveniente fazê-lo.

Ora, não resulta que o arguido o tivesse solicitado, fosse porque motivo fosse.

Também não é patente que fosse necessário ou conveniente que o órgão de polícia criminal lhe tivesse nomeado advogado para aquele efeito (constituição como arguido e prestação de TIR).

Ademais, na mesma data lavrou-se auto de interrogatório de arguido e o certo é que o arguido ter-se-á remetido ao silêncio, como ali ficou constando (fl. 497).

De resto, o arguido é advogado e o natural e compreensível é que tivesse conhecimento do sentido e alcance daquela sua participação processual, sendo a nomeação de defensor, para aqueles actos específicos, uma faculdade que se não vislumbrava necessária à partida.

Não se verificou, pois, qualquer nulidade.

Mostra-se o despacho recorrido exaustivamente fundamentado, nada nos parecendo haver a acrescer, nem em nada o recorrente o contrariando, pelo que para ele se remete, não se verificando, portanto, qualquer inconstitucionalidade."

3 - É desta decisão que vem interposto, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, o presente recurso de constitucionalidade, através de um requerimento onde afirma, nomeadamente, o seguinte:

"[...] Nos termos do disposto no artigo 75.º-A, n.º 1, da LTC, pretende-se que seja apreciada a conformidade constitucional da norma do artigo 64.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal na parte em que exclui, por omissão, o arguido invisual das situações em que é obrigatória a assistência do arguido pelo seu defensor em todos os actos processuais em que aquele esteja presente. O supra-referido preceito deve considerar-se como inconstitucional por desrespeito dos artigos 13.º, n.º 1, 32.º, n.º 3, e 71.º, n.os 1 e 2, todos eles da Constituição da República Portuguesa, assim como aos princípios constitucionais subjacentes a essas disposições.

A inconstitucionalidade daquele segmento da norma do artigo 64.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal foi devidamente suscitada na motivação e respectivas conclusões do recurso que o ora recorrente interpôs da decisão do Tribunal de Instrução Criminal de Coimbra, tendo essa questão sido conhecida pelos Exmo.s Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Coimbra, que decidiram pela conformidade constitucional daquela norma legal. [...]

Pretende-se ainda que seja apreciada a conformidade constitucional da interpretação conjugada das normas dos artigos 425.º, n.º 4 (1.ª parte), 379.º, n.º 1, alínea a), e 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, levada a cabo pelo Tribunal da Relação de Coimbra, devendo julgar-se inconstitucional a mesma por violação do estatuído nos artigos 2.º, 32.º, n.º 1, e 205.º, n.º 1, da Constituição.

O acórdão recorrido interpretou e aplicou as normas conjugadas dos artigos 425.º, n.º 4, 379.º, n.º 1, alínea a), e 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, com o seguinte sentido e alcance:

A exposição dos motivos de direito que fundamentam os acórdãos proferidos pelos tribunais superiores que neguem provimento a recurso interposto pelo arguido em processo penal pode reduzir-se à mera transcrição, e adesão, de passagens da decisão impugnada.

Estamos perante uma 'decisão surpresa' da autoria do tribunal que conheceu o recurso, sendo a interpretação daqueles preceitos do CPP completamente imprevisível e anómala, pelo que o recorrente não dispunha de qualquer oportunidade processual para levantar a questão de inconstitucionalidade antes de proferida a decisão.

Também inexiste qualquer meio no direito processual penal português de submeter esta questão de inconstitucionalidade à reapreciação do Tribunal da Relação de Coimbra, uma vez que se trata dos fundamentos da decisão final unanimemente tomada pelos três Exmo.s Juízes Desembargadores titulares do processo, e não de um mero despacho do relator, estando esgotado completamente o poder jurisdicional do tribunal a quo, nem havendo lugar à correcção do acórdão, como resulta da interpretação conjugada dos artigos 425.º, n.º 4, 380.º, n.º 1, alínea a), 379.º, n.º 1, alínea a), e 374.º, n.º 2, todos eles do CPP.

Termos em que, perante a impossibilidade legal de suscitar a questão de inconstitucionalidade previamente, o presente recurso deverá também ser conhecido nesta parte no seguimento de abundante jurisprudência constitucional nesse sentido. [...]"

4 - Proferiu, então, o relator do processo o seguinte despacho:

"1 - Pretende o recorrente que o Tribunal aprecie a conformidade com a Constituição da República Portuguesa das seguintes normas:

'i) [...] do artigo 64.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, na parte em que exclui, por omissão, o arguido invisual das situações em que é obrigatória a assistência ao arguido pelo seu defensor em todos os actos processuais em que aquele esteja presente, [...] por desrespeito dos artigos 13.º, n.º 1, 32.º, n.º 3, e 71.º, n.os 1 e 2, todos da Constituição da República Portuguesa, assim como aos princípios constitucionais subjacentes a essas disposições;

ii) [...] dos artigos 425.º, n.º 4 (1.ª parte), 379.º, n.º 1, alínea a), e 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal', quando interpretados em termos de considerar que 'a exposição de motivos de direito que fundamentam os acórdãos proferidos pelos tribunais superiores que neguem provimento a recurso interposto pelo arguido em processo penal pode reduzir-se à mera transcrição, e adesão, de passagens da decisão impugnada', por violação do estatuído nos artigos 2.º, 32.º, n.º 1, e 205.º, n.º 1, da Constituição.

2 - Acontece, porém, que, como já de seguida se demonstrará, a questão identificada no n.º 1, alínea ii), supra, respeitante aos 'artigos 425.º, n.º 4 (1.ª parte), 379.º, n.º 1, alínea a), e 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal', não pode ser conhecida por este Tribunal. Com efeito, apenas podem ser objecto do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional as normas efectivamente aplicadas na decisão recorrida. Acresce que, como refere expressamente o artigo 72.º, n.º 2, daquela lei, o referido recurso 'só pode ser interposto pela parte que haja suscitado a questão de constitucionalidade [...] de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer'.

2.1 - Ora, no caso dos autos, nunca na decisão recorrida é feita qualquer menção aos preceitos questionados pelo recorrente. É, assim, legítimo concluir que tais preceitos não foram aplicados pela decisão recorrida, o que, desde logo, obsta a que se possa conhecer do recurso quanto a este ponto.

Por outro lado, ainda que assim se não entendesse, o que só em benefício de raciocínio se admite, o próprio recorrente reconhece que não confrontou o Tribunal da Relação de Coimbra, antes da prolação da decisão recorrida, com a questão de constitucionalidade que, nesta parte, pretende ver apreciada. O que, também, por si só, constitui motivo suficiente para que do recurso se não possa conhecer.

2.2 - Alega, porém, o recorrente, no requerimento de interposição do recurso, que, no caso dos autos, não teria de cumprir aquele ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade por estarmos perante uma 'decisão surpresa da autoria do Tribunal que conheceu o recurso, sendo a interpretação daqueles preceitos do CPP completamente imprevisível e anómala, pelo que o recorrente não dispunha de qualquer oportunidade processual para levantar a questão de inconstitucionalidade antes de proferida a decisão'. Não lhe assiste, porém, qualquer razão.

É que, ao contrário do que o recorrente afirma, nada de insólito, anómalo ou imprevisível ocorre na decisão recorrida, a qual se não pode, de modo algum, qualificar de 'surpresa'. Em primeiro lugar, pela razão evidente de que, limitando-se o acórdão a transcrever longos passos do despacho de pronúncia, acrescentando 'nada nos parecendo haver a acrescer, nem em nada o recorrente o contrariando, [...] para ele se remete', a decisão recorrida estará, quanto muito, a ter em consideração o disposto no artigo 713.º, n.º 5, do Código de Processo Civil - norma que, de todo em todo, não vem questionada -, com um sentido perfeitamente compatível com o seu próprio teor literal. Sendo certo que os tribunais superiores várias vezes têm considerado aplicável ao próprio processo penal um tal preceito. Em segundo lugar, porque o próprio Tribunal Constitucional, também já por mais de uma vez, considerou não violar a Constituição, não só o referido artigo 713.º, n.º 5, mas, inclusivamente, uma norma extraída dos preceitos agora questionados pelo recorrente, interpretada no sentido contestado (cf. Acórdão 281/2005, disponível na página da Internet do Tribunal Constitucional - http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos).

Ora, existindo a orientação jurisprudencial citada e tendo o despacho de pronúncia já longamente analisado as questões colocadas ao Tribunal da Relação, se o recorrente entendia que a mera transcrição desses fundamentos na decisão do tribunal superior configuraria uma interpretação inconstitucional dos preceitos que agora veio questionar, não poderia, então, deixar de suscitar uma tal inconstitucionalidade, para que, caso viesse a ocorrer essa interpretação pelo Tribunal da Relação, lhe estar aberta uma via de recurso para o Tribunal Constitucional. É que, como este Tribunal tem afirmado repetidamente, recai sobre a parte o ónus de analisar as diversas possibilidades interpretativas susceptíveis de virem a ser seguidas e utilizadas na decisão e de utilizar as necessárias precauções, de modo a poder, em conformidade com a orientação processual considerada mais adequada, salvaguardar a defesa dos seus direitos (cf., nesse sentido, entre muitos outros, o Acórdão 479/89, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 14.º vol., pp. 149 e 150).

3 - Nestes termos, o recurso tem apenas o seguinte objecto: 'é a norma constante do artigo 64.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, na parte em que exclui o arguido invisual das situações em que é obrigatória a assistência ao arguido pelo seu defensor em todos os actos processuais em que aquele esteja presente, inconstitucional por violação dos artigos 13.º, n.º 1, 32.º, n.º 3, e 71.º, n.os 1 e 2, todos da Constituição, assim como dos princípios constitucionais subjacentes a essas disposições?'

4 - Com esta delimitação, notifique-se para alegações."

5 - Concluiu, então, o recorrente as suas alegações do seguinte modo:

"I - Deverá ser considerada inconstitucional a norma do artigo 64.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, na parte em que exclui o arguido invisual das situações em que é obrigatória a assistência ao arguido pelo seu defensor em todos os actos processuais em que aquele esteja presente.

II - O supra-referido preceito legal viola o artigo 13.º, n.º 1, da Constituição, uma vez que determina a obrigatoriedade de assistência por defensor em qualquer acto processual unicamente quando o arguido for 'surdo, mudo, analfabeto, desconhecedor da língua portuguesa, menor de 21 anos, ou se suscitar a questão da sua inimputabilidade ou da sua imputabilidade diminuída'.

III - Inexiste a menor explicação lógico-racional para semelhante dualidade de critérios, o que consubstancia uma discriminação absolutamente arbitrária das pessoas invisuais, situação que escapa à margem de discricionariedade de que goza o legislador ordinário.

IV - O arguido invisual deve beneficiar de uma discriminação positiva que determine a obrigatoriedade de assistência por defensor, em virtude de o legislador ter contemplado outras situações semelhantes mas menos carecidas dessa protecção adicional.

V - Embora o artigo 13.º da Constituição não faça menção a que ninguém possa ser prejudicado ou privado de qualquer direito em razão de deficiência, o referido preceito constitucional não possui uma natureza taxativa.

VI - O artigo 32.º, n.º 3, da Constituição determina que '[o] arguido tem direito a escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os actos do processo, especificando a lei os casos e as fases em que a assistência por advogado é obrigatória'.

VII - O arguido invisual tem uma particular dificuldade em contribuir relevantemente para a sua defesa, pelo que a sua não inclusão pelo legislador ordinário na previsão do artigo 64.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, atinge o núcleo essencial do artigo 32, n.º 3, da nossa lei fundamental.

VIII - Cada uma das situações descritas no artigo 64.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, possui a sua própria teleologia, sendo diversos os motivos que determinam a presença do defensor em cada caso.

IX - Analisados os diferentes casos de obrigatoriedade legal de assistência por defensor, mal se compreende que tenha sido excluído o arguido invisual, quando situações bem menos dignas de protecção são devidamente tuteladas.

X - O artigo 64.º, n.º 1, alínea c), do CPP, ao excluir intencionalmente o invisual de um regime processual mais favorável, está a violar a injunção constitucional que impende sobre o legislador ordinário no sentido de proteger e discriminar favoravelmente todos os cidadãos portadores de deficiências nas situações em que estes se vejam por causa dessas mesmas deficiências, particularmente diminuídos ou limitados quando comparados com o cidadão comum colocado na mesma situação.

XI - As possibilidades de defesa de um cidadão que usufrua do sentido da visão são muito superiores aos escassos meios de controlo da diligência ao dispor do cidadão invisual, que se encontra literalmente à mercê da autoridade que leva a cabo a diligência.

XII - Por conseguinte, a referida discriminação negativa do arguido invisual levada a cabo pela alínea c) do n.º 1 do artigo 64.º do CPP é materialmente inconstitucional por violação do disposto nos artigos 13.º, n.º 1, 32.º, n.º 3, e 71.º, n.os 1 e 2, da nossa lei fundamental.

XIII - Termos em que deve ser declarada a inconstitucionalidade parcial da norma constante do artigo 64.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, com a consequente projecção dos respectivos efeitos ao nível do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, Tribunal que deverá acatar o juízo de inconstitucionalidade expresso, reformulando, em conformidade, a decisão proferida. Se assim se fizer, será feita justiça."

6 - Notificado para responder, querendo, à alegação do recorrente, disse o Ministério Público, ora recorrido, a concluir:

"1 - A norma constante do artigo 64.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal limita-se a tipificar as situações de deficiência física ou cognitiva, com directa incidência na inteligibilidade do sentido dos actos processuais ou na possibilidade de comunicação com o tribunal ou órgão de polícia criminal, que o legislador considerou mais gravosas, em termos de justificarem a obrigatória assistência por defensor, independentemente da vontade do arguido ou de um juízo de conveniência da própria autoridade sob cuja direcção se realiza o acto.

2 - Não constitui solução legislativa discriminatória ou arbitrária a que se traduz em não incluir nesse elenco de situações o cidadão portador de outras deficiências, nomeadamente o invisual, por não ser de presumir que este sofra necessariamente de um défice cognitivo ou comunicacional que o iniba de ter plena consciência do acto e do seu eventual interesse em ser assistido por defensor.

3 - No caso dos autos, a circunstância de o arguido/invisual ser advogado - presumindo-se, como decorrência de tal profissão, que terá plena consciência quer da relevância do acto em que intervém quer do seu direito a ser eventualmente assistido por defensor - afasta qualquer risco de a interpretação normativa, acolhida no acórdão recorrido, o privar dos meios adequados de controlo do acto ou diligência em que intervém.

4 - Termos em que deverá improceder o presente recurso."

Corridos os vistos, cumpre decidir.

II - Fundamentação. - 7 - Delimitação do objecto do recurso.

Por decisão não impugnada, está o presente recurso limitado à apreciação da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 64.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, na parte em que exclui o arguido invisual das situações em que é obrigatória a assistência ao arguido pelo seu defensor em todos os actos processuais em que aquele esteja presente, por alegada violação dos artigos 13.º, n.º 1, 32.º, n.º 3, e 71.º, n.os 1 e 2, todos da Constituição, assim como dos princípios constitucionais subjacentes a essas disposições. Vejamos, então.

8 - Julgamento do objecto do recurso.

8.1 - Alega o recorrente que a norma que vem questionada viola, desde logo, o princípio constitucional da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição. Mas, como verá já de seguida, não tem razão.

8.1.1 - O princípio da igualdade postula, na sua formulação mais sintética, um tratamento igual para situações de facto essencialmente iguais e um tratamento diferente para as situações de facto distintas (cf., por todos, entre inúmeros nesse sentido, os Acórdãos n.os 563/96, 319/2000 e 232/2003, disponíveis na página da Internet do Tribunal - http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos, que procederam, cada um deles no seu tempo, a uma síntese da abundante jurisprudência constitucional sobre o tema).

Como o Tribunal tem reiteradamente afirmado, este princípio não proíbe as distinções, mas apenas aquelas que se afigurem destituídas de um fundamento racional. Nesse sentido, afirmou-se, por exemplo, no Acórdão 187/2001 (igualmente disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/): "como princípio de proibição do arbítrio no estabelecimento da distinção, tolera, pois, o princípio da igualdade a previsão de diferenciações no tratamento jurídico de situações que se afigurem, sob um ou mais pontos de vista, idênticas, desde que, por outro lado, apoiadas numa justificação ou fundamento razoável, sob um ponto de vista que possa ser considerado relevante".

Em suma, e no essencial, o que o princípio constante do artigo 13.º da Constituição impõe, sobretudo, é uma proibição do arbítrio e da discriminação sem razão atendível. Como afirma, sugestivamente, Vieira de Andrade (Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 2.ª ed., 2001, p. 272), e tem sido repetido em inúmeras ocasiões pelo próprio Tribunal Constitucional (cf., por exemplo, o Acórdão 467/2003), "o que importa é que não se discrimine para discriminar".

Por outro lado ainda, tem o Tribunal igualmente sublinhado (cf., por todos, o Acórdão 6/99) que "[a] proibição do arbítrio constitui um critério essencialmente negativo, com base no qual são censurados apenas os casos de flagrante e intolerável desigualdade". Nas palavras do parecer da Comissão Constitucional n.º 458, de 25 de Novembro de 1982 (apêndice ao Diário da República, de 23 de Agosto de 1983), entretanto já por várias vezes repetidas pelo Tribunal Constitucional, "o Tribunal [...], ao aferir a compatibilidade de uma norma legislativa com o princípio da igualdade, não deve pôr em causa a liberdade de conformação do legislador ou a discricionariedade legislativa. Deve abster-se de [se substituir] ao legislador, ponderando a situação como se estivesse no lugar deste e impondo a sua própria ideia do que seria, no caso, a solução 'razoável', 'justa' e 'oportuna'. O seu controlo deve ser tão-só de carácter negativo, consistindo este em saber se a opção do legislador se apresenta intolerável ou inadmissível de uma perspectiva jurídico-constitucional, por não se encontrar para ela qualquer fundamento material".

8.1.2 - Caracterizado, nestes termos, o parâmetro constitucional com o qual o artigo 64.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, tem de ser confrontado, haverá agora que averiguar se a não equiparação que dele resulta, na interpretação normativa que vem questionada, do arguido invisual às situações que nele se descrevem é, pura e simplesmente, "arbitrária ou discriminatória, ou se, pelo contrário, se funda ainda numa justificação razoável sob um ponto de vista que possa ser considerado relevante".

Como vai ver-se, é esta segunda hipótese que se verifica.

Com efeito, como se salientou na própria decisão recorrida, o legislador procurou identificar, no preceito que vem questionado, um conjunto de situações em relação às quais é possível formular uma presunção no sentido de que, em geral, são susceptíveis de afectar de um modo mais intenso a capacidade de compreender o sentido dos actos processuais (será o caso, por exemplo, do analfabeto, do que desconhece a língua portuguesa ou do inimputável) e ou a capacidade de comunicar com o tribunal ou com o órgão de polícia criminal (será, designadamente, o caso do que sofre de surdez ou mudez). Ora, a verdade é que o mesmo não pode dizer-se do arguido invisual, em relação ao qual não pode, genericamente, afirmar-se que padece de um défice de compreensão ou de comunicabilidade que imponha, por si só, a necessidade da presença, em qualquer acto processual, do seu defensor. E, assim sendo, está encontrada uma razão atendível para a distinção, improcedendo consequentemente a alegação de que a mesma é arbitrária ou discriminatória e, como tal, violadora do princípio constitucional da igualdade.

Acresce, no mesmo sentido e de modo igualmente relevante, que o próprio artigo 64.º do Código de Processo Penal expressamente salvaguarda as hipóteses em que, por força de uma situação de deficiência diferente das enunciadas na alínea c) do seu n.º 1, se verifique que o arguido tem a sua capacidade de compreensão do sentido do acto processual ou de comunicar com o tribunal ou com o órgão de polícia criminal igualmente afectada, ao preceituar no seu n.º 2 que o disposto no número anterior não preclude a possibilidade de, oficiosamente ou a solicitação do arguido, lhe ser nomeado defensor "sempre que as circunstâncias concretas do caso revelem a necessidade ou conveniência de o arguido ser assistido".

Ora, nestas circunstâncias, não se verificando, por um lado, como se viu, em relação ao arguido invisual, as mesmas razões que justificam a solução aplicável aos arguidos mencionados naquela alínea c) do n.º 1 do artigo 64.º, e, por outro, estando sempre assegurada, em qualquer caso, a possibilidade de assistência ao arguido, não se vislumbra qualquer violação do princípio constitucional invocado.

Aliás, embora de modo não decisivo para o juízo de não inconstitucionalidade que aqui se formula, não pode deixar de se notar que, no caso dos autos - como decorre a fl. 43 -, o arguido é advogado, o que - como salienta o Ministério Público recorrido - lhe permite, seguramente, compensar qualquer eventual "'défice' ou particular 'fragilidade' que poderia decorrer da deficiência física de que é portador", garantindo-lhe, designadamente, que "se não encontre 'à mercê da autoridade que leva a cabo a diligência', podendo facilmente 'quebrar' tal 'subordinação' com a mera apresentação de um requerimento solicitando a assistência de defensor", coisa que nunca fez.

8.2 - Alega ainda o recorrente que a norma que vem questionada viola o disposto no artigo 32.º, n.º 3, da Constituição, preceito que dispõe da seguinte forma: "o arguido tem direito a escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os actos do processo, especificando a lei os casos e as fases em que a assistência por advogado é obrigatória." Porém, neste ponto, também manifestamente sem razão. Com efeito, na parte ora relevante, este preceito limita-se a remeter para a lei ordinária a tarefa de identificação "dos casos e das fases em que a assistência por advogado é obrigatória" - o que esta faz, designadamente no artigo 64.º que vem questionado - não resultando do mesmo - mas de outros preceitos constitucionais, como, por exemplo, do n.º 1 do mesmo artigo 32.º, cuja violação não vem arguida pelo recorrente, nem se considera existir - qualquer critério material a que esta deva obedecer no cumprimento dessa tarefa.

8.3 - Finalmente, invoca ainda o recorrente a violação do disposto nos n.os 1 e 2 do artigo 71.º da Constituição, que dispõem da seguinte forma:

"1 - Os cidadãos portadores de deficiência física ou mental gozam plenamente dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição, com ressalva do exercício ou do cumprimento daqueles para os quais se encontrem incapacitados.

2 - O Estado obriga-se a realizar uma política nacional de prevenção e tratamento, reabilitação e integração dos cidadãos portadores de deficiência e de apoio às suas famílias, a desenvolver uma pedagogia que sensibilize a sociedade quanto aos deveres de respeito e solidariedade para com eles e a assumir o encargo da efectiva realização dos seus direitos, sem prejuízo dos direitos e deveres dos pais e tutores."

A simples transcrição do que estatuem as normas invocadas pelo recorrente, associada ao que já se disse, torna por demais evidente a improcedência, também nesta parte, do alegado. Com efeito, afastada a alegação de que a solução normativa que vem questionada é arbitrária ou discriminatória em prejuízo do arguido invisual e demonstrado que a mesma em nada afecta as suas garantias de defesa em processo penal, evidente se torna que a mesma em nada contende com o gozo pleno dos direitos, designadamente dos direitos de defesa em processo penal, do cidadão/arguido invisual.

8.4 - Por tudo o exposto, apenas resta concluir que a norma questionada não enferma de inconstitucionalidade e, designadamente, que não viola os princípios ou preceitos invocados pelo recorrente.

III - Decisão. - Nestes termos, nega-se provimento ao recurso.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta.

Lisboa, 4 de Maio de 2006. - Gil Galvão - Vítor Gomes - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza - Bravo Serra - Artur Maurício.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1494125.dre.pdf .

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

O URL desta página é:

Clínica Internacional de Campo de Ourique
Pub

Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda