Acórdão 437/2000
Processo 531/97
Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional:
I - O pedido
1 - O Provedor de Justiça impugna a constitucionalidade da norma ínsita na última parte do artigo 16.º, n.º 4, do Decreto-Lei 215-B/75, de 30 de Abril, por violação dos artigos 18.º, n.º 2, e 55.º, n.º 2, alínea b), da Constituição, o qual dispõe o seguinte:
«O trabalhador tem direito de retirar-se a todo o tempo do sindicato em que esteja filiado, mediante comunicação por escrito ao presidente da direcção, sem prejuízo do direito de o sindicato exigir o pagamento da quotização referente aos três meses seguintes ao da comunicação.»
2 - Fundamenta o pedido em razões que são, em síntese, as seguintes:
a) A norma sub judicio, ao atribuir ao sindicato o direito de exigir ao trabalhador que dele se desvincule o pagamento da quotização referente aos três meses seguintes ao da comunicação de desvinculação é uma medida limitativa da liberdade de inscrição sindical negativa, isto é, da liberdade de os trabalhadores não se inscreverem nos sindicatos e de, uma vez inscritos, os poderem abandonar.
A possibilidade de exigir ao trabalhador aquele pagamento condiciona a livre decisão dos trabalhadores relativamente à permanência no sindicato: o pagamento de três meses de quotização, quantia a que poderá acrescer a da quotização para outro sindicato em que o trabalhador decida inscrever-se, não deixará de ser tomada em conta no momento em que se desenhe uma opção de abandono.
b) A restrição da liberdade sindical, que integra o elenco dos direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores, constante do capítulo III do título II da Constituição, não é necessária para protecção constitucional das associações sindicais, a qual não pode compreender a possibilidade de exigir o pagamento daquelas quotizações, porque «ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação nem coagido por qualquer meio a permanecer nela» (artigo 46.º, n.º 3, da Constituição).
c) Também a subsistência de cada sindicato não é determinante para o objectivo constitucional de reforço das associações sindicais.
d) Mas mesmo que se admitisse ser necessária a referida restrição ela não se mostraria conforme ao princípio da proporcionalidade nas suas três vertentes: adequação ou idoneidade, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito ou justa medida.
e) Finalmente, também esta medida se revela excessiva em face da prevalência constitucional da liberdade de inscrição sindical - a qual integra a liberdade de não se filiarem em nenhum sindicato - sobre o reforço das associações sindicais existentes.
3 - Dada a circunstância de a norma questionada pertencer a um diploma emanado de um órgão (o Conselho da Revolução) entretanto extinto, foi ordenada a notificação, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, do Presidente da Assembleia da República - já que a esta cabe hoje competência reservada para dispor sobre a matéria (despacho a fl. 17).
Essa entidade limitou-se a oferecer o merecimento dos autos.
II - Fundamentação
4 - Segundo entendimento firmado em jurisprudência do Tribunal Constitucional (Acórdão 445/93 - Diário da República, 1.ª série-A, de 13 de Agosto de 1993) «a liberdade de inscrição no sindicato comporta tanto uma dimensão positiva, que reconhece ao trabalhador o direito de se filiar ou inscrever no sindicato que o possa representar sem dependência de um acto de admissão discricionário por parte daquele [...] como uma dimensão negativa que garante o direito de não inscrição sindical e o direito de abandonar o sindicato a todo o tempo no caso de tal inscrição existir».
Este direito de livre sindicalização, na dupla vertente assinalada, analisa-se, ainda, na proibição de quaisquer mecanismos ou medidas de pressão que directa ou indirectamente possam contribuir para limitar o pleno gozo e fruição daquela liberdade, obstando a que, por qualquer forma, mesmo remota ou indirecta, os sindicatos possam funcionar como estrutura de coacção.
No referido acórdão o Tribunal Constitucional chegou mesmo a considerar que a liberdade sindical negativa deverá ser «interpretada de modo extensivo, de maneira que se compreendam nela tanto as obrigações directas como as indirectas [...]».
Este entendimento da liberdade sindical sugere, desde logo, que o Tribunal tem adoptado um sentido bastante amplo de liberdade sindical, de modo a limitar as possibilidades de condicionamento da mesma, em função de quaisquer outros interesses.
Mas a necessidade de equacionar uma ponderação concreta de valores para o caso, que justificasse restrições, está superada pelo modo como o texto constitucional explicita as dimensões da mesma liberdade, incluindo a dimensão da «liberdade de inscrição» e acrescentando justamente à afirmação da liberdade de inscrição sindical a seguinte menção: «não podendo nenhum trabalhador ser obrigado a pagar quotizações para sindicato em que não esteja inscrito» [artigo 55.º, n.º 2, alínea b), da Constituição].
É assim o próprio texto constitucional que proscreve a possibilidade de qualquer obrigação de quotização que não corresponda ao puro exercício da liberdade sindical.
Tendo tal dimensão normativa o sentido de impedir quotizações obrigatórias em geral que sejam uma via de anular a liberdade de inscrição, também não pode deixar de incluir situações em que tenha deixado de existir inscrição, na decorrência do exercício claro da vontade de abandono do sindicato, isto é, da própria liberdade sindical, mantendo-se, apesar disso, o pagamento de quotizações.
5 - A situação desenhada na norma em crise conflitua directamente com a proibição contida no texto constitucional, não existindo razões constitucionalmente fundadas para a excepcionar dela.
Na realidade, sendo a necessidade de financiamento dos sindicatos e, consequentemente, a consolidação da actividade sindical a única justificação possível para a situação prevista na norma sub judicio, não será nunca meio adequado para obter tal fim alguma medida que restrinja directa ou indirectamente a liberdade de desvinculação do sindicato.
Sendo a protecção da actividade sindical justificada ela própria pela liberdade sindical em todas as suas dimensões, não poderá justificar restrições deste tipo, que desvirtuem o sentido da própria liberdade.
6 - Com efeito, de um ponto de vista subjectivo, aquela exigência poderá ser encarada pelo trabalhador como uma «sanção» por se ter desfiliado. E, pelo menos, poderá desincentivar o abandono do sindicato pelo trabalhador.
E mesmo a perspectiva, num plano objectivo, de que aquela verba corresponderia a uma espécie de indemnização por facto lícito não impede o assinalado efeito condicionador da liberdade sindical. Uma tal exigência, enquanto contrária ao texto constitucional, careceria de uma justificação fornecida pelos valores constitucionais. Qualquer qualificação técnica, por si, nem anularia um efeito restritivo da liberdade sindical nem superaria o problema da necessidade de uma sua justificação no plano constitucional. Ora, como se referiu, não pode a protecção da actividadade sindical em si mesma fornecer a procurada justificação, porquanto está subordinada ao prius do livre exercício pleno da liberdade sindical, o qual pode consistir exactamente na extinção de certos sindicatos e na formação de outros. O único valor constitucionalmente relevante nesta sede, para além da própria liberdade sindical, será o asseguramento de condições materiais para que se possam constituir sindicatos.
III - Restrição de efeitos
7 - Concluindo-se pela inconstitucionalidade da norma do artigo 16.º, n.º 4, do Decreto-Lei 215-B/75, na parte em que atribui ao sindicato o direito de exigir ao trabalhador que dele se desfilie o pagamento de quotização referente aos três meses seguintes ao da comunicação da desfiliação, concluir-se-á pela correspondente declaração, com força obrigatória geral.
É, porém, aconselhável, por razões de segurança jurídica, exactamente pelo efeito que esta declaração poderia produzir nos sindicatos existentes no exercício normal das suas actividades, restringir os efeitos da inconstitucionalidade com força obrigatória geral.
Neste sentido, valerá aqui o que se entendeu no Acórdão 135/90 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 15.º, pp. 83 e segs.), respeitante a uma norma que previa a utilização de meios informáticos para desconto na fonte das quotizações sindicais.
Importa, no entanto, nessa ressalva de efeitos, ponderar também a solução acolhida no Acórdão 76/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 11.º, pp. 331 e segs.). Nesse aresto, em que se declararam inconstitucionais certas normas regulamentares municipais que criavam uma tarifa de saneamento, devida por todos os consumidores de água do concelho de Lisboa, igualmente o Tribunal «por razões de interesse público, e considerando muito em particular a perturbação que adviria para os serviços autárquicos se estes tivessem de restituir toda a 'tarifa de saneamento' entretanto cobrada», decidiu ressalvar os efeitos dessa decisão, por forma a que eles se produzissem apenas a partir da publicação dela: dessa ressalva de efeitos excepcionou, todavia, «os contribuintes que ainda não houverem pago a tarifa».
Ora, à semelhança do que se decidiu nesse Acórdão 76/88, considera-se que a restrição da inconstitucionalidade, a emitir no presente processo, não deve ir tão longe que leve ainda (embora, provavelmente, essa seja uma possibilidade remota) a que quem não pagou ou contestou em devido tempo o pagamento de quotas sindicais relativas a um período posterior à sua desfiliação de um sindicato ainda tenha de pagá-las ou não possa reaver a respectiva importância.
IV - Decisão
8 - Nestes termos, o Tribunal Constitucional declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, a norma do artigo 16.º, n.º 4, do Decreto-Lei 215-B/75, de 30 de Abril, na parte em que atribui ao sindicato o direito de exigir do trabalhador que dele se desfilie o pagamento de quotização referente aos três meses seguintes ao da comunicação da desfiliação, por violação do artigo 55.º, n.º 2, alínea b), da Constituição.
Nos termos do artigo 282.º, n.º 4, da Constituição, e por razões de segurança jurídica, restringem-se os efeitos da inconstitucionalidade, por forma que só se produzam a partir da publicação da mesma declaração, salvo quanto às quantias não pagas ou cujo pagamento foi impugnado.
Lisboa, 18 de Outubro de 2000. - Maria Fernanda Palma - José de Sousa e Brito - Maria Helena Brito - Vítor Nunes de Almeida - Artur Maurício - Paulo Mota Pinto - Bravo Serra - Messias Bento - Guilherme da Fonseca - Alberto Tavares da Costa - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (vencida, nos termos da declaração de voto junta) - José Manuel Cardoso da Costa.
Declaração de voto
1 - Votei vencida, no essencial, porque não considero que a norma constitucional considerada infringida tenha o alcance que lhe foi atribuído pelo acórdão. Em meu entender, a referência ao «pagamento da quotização referente aos três meses seguintes ao da comunicação» apenas tem por função fixar o montante a pagar ao sindicato em caso de desvinculação e, de forma alguma, pretender prolongar a obrigação de pagar quotas por três meses a um sindicato a que o trabalhador já não pertence.
Poderia a lei definir um montante fixo, sem qualquer relação com o montante das quotas cobradas pelo sindicato, que a questão de constitucionalidade a resolver seria exactamente a mesma.
O objectivo da proibição constitucional de pagamento de «quotizações para sindicato em que não esteja inscrito» é o de impossibilitar disposições legais como as que integraram o ordenamento português na vigência do regime corporativo, e que impunham o pagamento de quotas a trabalhadores não inscritos no sindicato correspondente à respectiva profissão, como é bem conhecido.
2 - E não creio que a norma apreciada neste processo afecte a liberdade sindical, nem em geral, nem em particular no que à liberdade de escolha e de inscrição no sindicato se refere. Deste ponto de vista, não considero constitucionalmente censurável impor a quem esteve inscrito num sindicato e -é legítimo presumir- beneficiou da respectiva máquina o pagamento de uma quantia (cujo montante se não afigura excessivo ou desproporcionado) cuja justificação se encontra na conveniência de não privar essa máquina, de forma imprevisível, do financiamento com que contava para manter o respectivo funcionamento. - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza.