O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa interpôs recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, nos termos dos artigos 437.º, n.º 2, e seguintes do Código de Processo Penal, do acórdão certificado de fl. 7 a fl. 10, com os fundamentos seguintes:
No acórdão recorrido entendeu-se que, em caso de condenação pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º do Código Penal de 1995, é de aplicar a sanção acessória de inibição de conduzir, prevista nos termos dos artigos 87.º, 138.º, n.º 1, 141.º, n.º 2, 144.º e 149.º, alínea i), do Código da Estrada de 1994, e não a proibição de conduzir prevista no artigo 69.º do Código Penal de 1995;
No acórdão fundamento decidiu-se, pelo contrário, que «no domínio do Código Penal revisto, em caso de condenação por crime de condução sob o efeito do álcool, deve ser aplicada a medida de segurança de cassação ou a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, integrando grave violação de regras de trânsito rodoviárias do artigo 69.º a própria condução em estado de alcoolemia»;
Há, assim, oposição de julgados transitados e proferidos no domínio da mesma legislação.
Foi o recurso admitido, dada a legitimidade do recorrente e os fundamentos invocados.
Por Acórdão, a fls. 15 e seguintes, de 17 de Fevereiro de 1999, julgou-se existente a mencionada contradição entre os dois referidos acórdãos.
Ordenado o cumprimento do disposto no n.º 1 do artigo 442.º do Código de Processo Penal, foram notificados o arguido e o Exmo. Magistrado do Ministério Público junto deste Supremo Tribunal.
O arguido nada disse.
Por sua vez, o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto emitiu muito douto parecer no sentido de que deve fixar-se jurisprudência nos seguintes termos:
«O agente do crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º do Código Penal, deve ser sancionado, a título de pena acessória, com a proibição de conduzir prevista no artigo 69.º do Código Penal.» Como resulta do acórdão proferido a fls. 15 e seguintes, é manifesto verificar-se a oposição mencionada no artigo 437.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal.
Posto isto, impõe-se determinar qual a sanção acessória a aplicar em caso de condenação do agente pela prática do crime de condução sob o efeito do álcool, previsto no artigo 292.º do Código Penal de 1995.
No Código da Estrada de 1954 havia a norma do artigo 61.º, n.º 2, alínea c), que decretava a inibição temporária de conduzir e a privação das respectivas licenças aos condutores que fossem encontrados a conduzir em estado de embriaguez. E a prova deste seria feita por exame médico ao condutor.
Procurando regulamentar melhor esta questão - a da condução de veículos por condutores em estado de embriaguez -, na Região Autónoma dos Açores foram publicados os Decretos Regionais n.os 13/77/A, de 22 de Junho, e 31/80/A, de 23 de Setembro (este praticamente a transcrição daquele, com excepção do artigo 4.º), que, de acordo com a taxa de alcoolemia apresentada pelo condutor, assim estabelecia a pena de multa.
Mandavam também ter em consideração as penalidades previstas no Código da Estrada e seu Regulamento e no Código Penal.
Depois, foi publicada a Lei 3/82, de 29 de Março, que no seu artigo 7.º, além da pena de multa, decretava a inibição da faculdade de conduzir por período de tempo fixado de acordo com a taxa de alcoolemia.
Segue-se o Decreto-Lei 124/90, de 14 de Abril, que, além do mais, passou a considerar crime a condução de veículos, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, quando o condutor apresentasse uma TAS igual ou superior a 1,20 g/l (artigo 2.º) e contravenção quando tal taxa fosse igual a 0,50 g/l e inferior a 0,80 g/l, ou superior a esta e inferior a 1,2 g/l (artigo 3.º). Às penas aplicadas acrescia a pena acessória de inibição da faculdade de conduzir - artigo 4.º Em 1 de Outubro de 1994 entrou em vigor novo Código da Estrada, cujo artigo 87.º, n.º 1, determinava a proibição de conduzir sob a influência do álcool, considerando como tal a condução com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5 g/l. As penalidades eram diferentes consoante a taxa fosse igual ou superior a 0,5 g/l e inferior a 0,8 g/l, ou igual ou superior a esta - n.º 2 do artigo 87.º Não se marcando limite superior nesta última situação e dado que era de considerar vigente o artigo 2.º do Decreto-Lei 124/90, esta não poderia ser igual ou superior a 1,2 g/l. É que neste caso estar-se-ia perante um crime.
Finalmente, foi público o Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, que revia o Código Penal de 1982. Com a entrada em vigor do Código Penal revisto em 1 de Outubro de 1995, temos que os artigos 2.º, 4.º, n.º 2, alínea a), e 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei 124/90 foram revogados expressamente pelo artigo 2.º, n.º 2, do Decreto-Lei 48/95 e foi introduzido o artigo 292.º segundo o qual «quem, pelo menos, por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l é punido».
E igualmente foi introduzido o artigo 69.º, que estabelece no seu n.º 1, alínea a), o seguinte: «É condenado na proibição de conduzir veículos motorizados por um período fixado entre um mês e um ano quem for punido:
a) por crime cometido no exercício daquela condução com grave violação das regras de trânsito rodoviário; [...]» De acordo com o artigo 148.º, alínea m), do Código da Estrada de 1994, é grave a contra-ordenação resultante da condução sob a influência do álcool e segundo o artigo 149.º, alínea i), é muito grave a contra-ordenação quando a infracção prevista na alínea m) do artigo anterior for cometida com uma taxa de álcool no sangue superior a 0,8 g/l.
Conjugando estes dois artigos com o artigo 87.º do mesmo Código e com o artigo 292.º do Código Penal, há que chegar a uma conclusão: só haverá contra-ordenação no caso da alínea i) do artigo 149.º se a taxa de álcool no sangue for inferior a 1,2 g/l.
É que, se for igual ou superior a 1,2 g/l, então estaremos perante um crime e não já perante uma contra-ordenação, e isto dado o disposto no artigo 292.º A lei distingue claramente duas situações: de um lado, temos a prática de um crime - logo que a taxa de álcool no sangue seja igual ou superior a 1,2 g/l; do outro, a contra-ordenação - a taxa de alcoolemia oscila entre igual a 0,5 g/l, inferior a 1,2 g/l, com a subdistinção de ainda ser igual ou superior a 0,8 g/l.
A lei não valoriza o mesmo facto como sendo crime e igualmente contra-ordenação.
A este respeito escreve o Dr. Pinto de Albuquerque em «Crimes de perigo e contra a segurança das comunicações», na obra Jornadas de Direito Criminal - Revisão do Código Penal, Centro de Estudos Judiciários, vol. II, p. 309:
«É absolutamente ilegítimo considerar que há nas condutas de condução sob efeito de uma taxa de álcool superior a 1,2 g/l um concurso (aparente) de crime e contra-ordenação para punir com a inibição do artigo 141.º do Código da Estrada (de 2 meses a 1 ano), porque esta é mais grave do que a inibição do artigo 69.º do Código Penal (de 1 mês a 1 ano).» Logo, o artigo 138.º, n.º 1, do Código da Estrada não pode aqui ser invocado, uma vez que não se está perante um facto que é ao mesmo tempo crime e contra-ordenação.
Desde que a taxa de álcool seja igual ou superior a 1,2 g/l, estaremos, sempre e só, face a um crime - o do artigo 292.º do Código Penal. Vem sendo entendido por este Supremo Tribunal - nem, aliás, tal solução é posta em xeque no presente recurso - que a condução com uma taxa de álcool igual ou superior a 1,2 g/l integra grave violação das regras de trânsito - veja-se, neste sentido, os Acórdãos de 26 de Fevereiro de 1997, no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 464, p. 200, e de 11 de Fevereiro de 1998, no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 474, p. 144.
Segundo ainda o Dr. Pinto de Albuquerque (ob. cit., p. 307), «a condução sob efeito do álcool é punida, além da pena principal, com a medida de segurança do artigo 101.º, n.os 1 e 2, alínea c), ou com a pena acessória do artigo 69.º do novo Código Penal». É evidente que a condução aqui tida em vista é a que integra o crime previsto no artigo 292.º E mais à frente, afirma: «Este sistema punitivo acessório funciona deste modo: em primeiro lugar, o julgador deve, em face da gravidade dos factos e da perigosidade do agente [...], averiguar se há indícios de inaptidão para a condução automóvel ou se há perigo de reiteração da condução sob o efeito de álcool. Caso se tenham apurado indícios dessa inaptidão ou do perigo de continuação criminosa, deve aplicar-se a cassação.
Caso não se verifiquem esses indícios, deve então, e só então, o julgador aplicar a medida de proibição de conduzir do artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.» Se não ocorre, no caso, qualquer circunstância que se possa integrar no n.º 1 do artigo 101.º, então só há que aplicar, como pena acessória, a medida prevista no artigo 69.º, n.º 1, alínea a).
Como se lê no citado Acórdão de 26 de Fevereiro de 1997, «consubstanciando a conduta do arguido, como é indiscutível, um crime [...], vedado está aplicar-lhe a punição correspondente ao ilícito contra-ordenacional».
Nestes termos, acordam em:
a) Resolver o presente conflito de jurisprudência surgido entre o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21 de Outubro de 1998, processo 1710/98, e o do Tribunal da Relação de Coimbra de 17 de Abril de 1996, processo 175/96, do seguinte modo:
«O agente do crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º do Código Penal, deve ser sancionado, a título de pena acessória, com a proibição de conduzir prevista no artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.» b) Revogar o acórdão recorrido, tendo-se em consideração o disposto na parte final do n.º 2 do artigo 445.º do Código de Processo Penal.
Sem tributação.
Luís Flores Ribeiro - Virgílio António da Fonseca Oliveira - José Damião Mariano Pereira - Norberto José Araújo de Brito Câmara - José Pereira Dias Girão - Manuel Maria Duarte Soares - Armando Acácio Gomes Leandro - João Henrique Martins Ramires - António Gomes Lourenço Martins - António Correia Abranches Martins - Sebastião Duarte Vasconcelos da Costa Pereira - Hugo Afonso dos Santos Lopes - António Luís Sequeira Oliveira Guimarães - António de Sousa Guedes - José Pereira Dias Girão - Álvaro José Guimarães Dias - Bernardo Guimarães Fisher Sá Nogueira.