Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 9/2015
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, no pleno das secções cíveis (1):
I.
MÁRIO CORDEIRO DE SOUSA e mulher LUCÍLIA DA SILVA SANTOS CORDEIRO propuseram acção declarativa de condenação contra LIBERTY SEGUROS, SA.
Pediram que a ré fosse condenada a pagar-lhes:
A) Ao autor:
a) A quantia total de (euro) 767.479,05 (obtido após desconto do valor de (euro) 7.481,95 que já recebeu), resultante das seguintes parcelas:
- (euro) 703.811, de rendimentos que deixou de auferir da actividade profissional que desenvolvia e que deixou de poder desenvolver, por ter ficado totalmente incapacitado para o trabalho;
- (euro) 50.000, de danos morais e (euro) 20.000 de dano estético;
- (euro) 1.150, de outros danos patrimoniais; e
b) O montante que vier a ser liquidado de tudo o que despender com tratamentos, operações, estadias hospitalares, medicamentos, fisioterapia, próteses, deslocações, tempo perdido e outras que tenham a ver com as sequelas de que ficou a padecer;
B) À autora:
a) A quantia total de (euro) 40.783, resultante das seguintes parcelas:
- (euro) 10.783, decorrentes da incapacidade de que ficou a padecer para o trabalho;
- (euro) 30.000, de danos morais; e
b) O montante a liquidar de tudo o que vier a despender com tratamentos, operações, estadias hospitalares, medicamentos, pensos, deslocações, tempo perdido e outras que tenham a ver com as sequelas de que ficou a padecer.
Na 1.ª instância, a acção foi julgada parcialmente procedente, tendo a ré Liberty Seguros, SA sido condenada a pagar:
"i. À Autora, Lucília da Silva Santos Cordeiro, a título de indemnização por danos de natureza patrimonial e moral, as quantias de, respectivamente, 5.000 (euro) e 15.000 (euro), acrescidas de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação sobre a primeira e desta decisão sobre a segunda, até efectivo pagamento;
ii) Ao Autor, Mário Cordeiro de Sousa:
1 - A título de indemnização por danos de natureza patrimonial:
a) A quantia de 92.518,05 (euro), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação até efectivo pagamento;
b) A quantia que vier a ser fixada em liquidação de sentença:
- Referente à roupa que ficou destruída e deslocações que o Autor fez a Coimbra e a Lisboa para tratamentos;
- Referente aos valores que o Autor venha a suportar pelo facto de as sequelas de que é portador necessitarem de acompanhamento médico para vigilância do coto, eventual prescrição medicamentosa e revisão e substituição da prótese, pelo próprio desgaste e deterioração que o material vai sofrer, o que obriga a ajustes e substituição;
c) Ainda, a quantia que resultar, se existir depois de efectuado o correspondente cálculo, também em liquidação de sentença, por referência ao valor que vier a ser fixado a título de indemnização pelo dano biológico directamente decorrente de perda de rendimentos, depois de efectuada a dedução a esse valor dos montantes que foram ou venham a ser pagos pela Interveniente SUVA - Schweizerische Unfallversischerungsanstalt [...]
2 - A título de indemnização por danos de natureza moral, a quantia de 47.013,22(euro), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde esta data até efectivo pagamento".
A Ré Liberty Seguros, SA interpôs recurso de apelação que a Relação decidiu nestes termos:
"[...] Julga-se, parcialmente, procedente o recurso da recorrente Liberty, assim se revogando a sentença recorrida, e em consequência vai a mesma absolvida da condenação de pagamento ao A. da quantia de 92.518,05 (euro), a título de danos de natureza patrimonial, indo, igualmente, absolvida da condenação de pagamento de juros a favor de ambos os AA".
Inconformados, os autores pediram revista, que foi concedida em parte, por Acórdão deste Tribunal de 10.04.2014, decidindo-se:
"a) Atribuir, ao autor, a indemnização de 92.518,05 euros pelo dano biológico sofrido, com juros de mora desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.
b) Aumentar para 20.000,00 euros a indemnização pelo dano patrimonial da autora, e para 17.500,00 euros a indemnização por danos não patrimoniais, vencendo a primeira juros de mora desde a data da citação e a segunda desde a data da sentença até efectivo e integral pagamento.
c) A obrigação de indemnização pelos danos não patrimoniais a pagar pela Liberty ao autor ((euro) 47.013,22) vence juros de mora, desde a data da sentença até efectivo e integral pagamento".
A ré Liberty Seguros, SA apresentou reclamação desta decisão, invocando a sua falta de fundamentação, por "não especificar os elementos de facto e de direito que justificam a decisão de fixar juros de mora", e defendendo que deveria ser mantido o decidido pelo Tribunal da Relação no que concerne a essa questão dos juros.
Foi depois proferido Acórdão que indeferiu esta reclamação.
Vem agora a ré Liberty Seguros, SA recorrer para o Pleno do STJ, para uniformização de jurisprudência, invocando como fundamento o Acórdão deste Tribunal de 06.10.2011 (Proc. n.º 2542/06.5TVLSB.L1. S1), requerendo que se fixe jurisprudência no sentido de que "a condenação no pagamento de juros de mora quando existe uma omissão do pedido de juros no pedido primitivo encerra uma nulidade, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 615.º do CPC".
Concluiu assim as suas alegações:
1) O douto Acórdão fundamento decidiu perante a mesma questão fundamental de direito e no âmbito de uma situação factual igual, de forma oposta, tendo feito uma correcta interpretação da questão fundamental de direito que se pretende que recaia a uniformização;
2) A obrigação acessória de juros é diferente da obrigação de capital, é diversa do crédito principal (cf. A. Varela, D. Obrigações, Vol.1, 2.ª Ed., pág. 730/731 e artigo 561.º do CC);
3) Incumbe às partes não só pedir a resolução do conflito, enunciando-o e elegendo o meio concreto de tutela que pretendem perante a alegada violação do direito, carreando os factos e as provas que julguem adequados e formulando os pedidos correspondentes;
4) O pedido dos autores, conformando o objecto do processo condiciona o conteúdo da decisão de mérito, não podendo o juiz condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir (citado art. 615.º, n.º 1, do CPC);
5) Relativamente aos juros a situação é idêntica, pois estes integram uma indemnização de natureza disponível, são mero acessório do capital e acompanham a natureza deste;
6) Em situação em tudo idêntica à dos presentes autos, entendeu o Supremo Tribunal de Justiça no douto Acórdão de 06/10/2011 que: "A omissão do pedido de juros não pode ser entendida como um mero lapso material, pelo que, a condenação no pagamento dos mesmos, quando tal pedido tenha sido omitido, encerra uma nulidade, por constituir um «ir além» do que permite o ar. 661º, n.º 1, do CPC";
7) Pelo exposto e na esteira do Acórdão fundamento do STJ de 06/10/2011, entende a ora Recorrente que a condenação no pagamento de juros de mora quando existe uma omissão do pedido de juros no pedido primitivo encerra uma nulidade, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 615.º do CPC.
Nestes termos, deve ser dado provimento ao presente recurso para Uniformização de Jurisprudência e, em consequência, revogar-se o Acórdão recorrido, fixando-se a Jurisprudência no sentido do decidido no Acórdão fundamento e propugnado pela Recorrente.
Não foram apresentadas contra-alegações.
II.
O recurso foi admitido (despacho de fls. 82 e segs), por não haver dúvidas de que os Acórdãos referidos foram proferidos no domínio da mesma legislação e se reconhecer que ocorre entre eles a invocada contradição no que respeita à mesma questão de direito, aí assim identificada: pode o tribunal conceder juros de mora a partir da citação, quando tais juros não foram solicitados pelo autor na petição inicial?
Essa oposição parece realmente clara, representando as decisões dos Acórdãos referidos as duas soluções possíveis para a aludida questão.
Com efeito, no Acórdão recorrido concluiu-se assim a respectiva fundamentação:
"[...] tendo a sentença de 1.ª instância calculado o valor dos danos não patrimoniais do autor e da autora, actualizando-o à data da sentença, os juros de mora devem ser calculados a partir da data da decisão de 1.ª instância.
Para o dano biológico do autor e para o dano biológico da autora, não tendo a sentença procedido a qualquer actualização dos valores, que foram fixados por referência à data da citação, devem os juros de mora ser calculados a partir deste momento.
Estas regras mínimas não necessitam de ser requeridas pela partes, podendo ser oficiosamente decretadas pelos tribunais, por ser o seu decretamento uma consequência lógica dos métodos de cálculo da indemnização utilizados na sentença de condenação e das delongas do processo judicial, cujos prejuízos não devem recair sobre a parte que tem razão".
No Acórdão-fundamento analisou-se uma situação em que, na petição inicial, até se alegou que a ré deveria ser condenada no pagamento de juros a contar da citação, mas em que, no pedido, se omitiu qualquer referência a juros.
Diz-se na respectiva fundamentação:
"A omissão do pedido de juros não pode, pois, considerar-se um mero lapso material; antes a condenação (no pagamento dos mesmos), quando omitido (tal pedido), encerraria nulidade, por se ir além do que a lei permite no artigo 661.º, n.º 1, primeira parte.
Decerto que o processo civil, em geral, não deve ser encarado numa rigidez que faça perder de vista a sua natureza caracterizada por estar ao serviço da realidade substantiva. Por isso, ao longo da tramitação processual havia mecanismos que poderiam ter levado a tudo esclarecer. Mas nesta fase processual, nada mais há a fazer que atender ao pedido tal como está feito".
Assim, segundo o Acórdão recorrido, mesmo que o autor não formule o pedido de condenação em juros de mora, o tribunal pode decretá-los oficiosamente.
Para o Acórdão-fundamento, sendo omitido aquele pedido, não pode haver condenação no pagamento de juros, pois tal constituiria nulidade, por violação do disposto no artigo 661.º, n.º 1, do CPC.
Convém notar que a questão não tem a ver propriamente com o início da contagem dos juros (o dies a quo) e, assim, se estes são devidos desde a citação ou da decisão actualizadora (o Acórdão recorrido contemplou, no fundo, as duas situações, sendo certo que essa questão já foi dirimida no AUJ do STJ n.º 4/2002, de 09.05.2002), mas antes com o reconhecimento da existência da obrigação de juros.
III.
Pode, pois, enunciar-se assim a questão a resolver neste recurso:
O tribunal pode condenar no pagamento de juros de mora se o autor não formulou o correspondente pedido na petição inicial?
O Exmo Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de que deve fixar-se jurisprudência nestes termos:
"Se o autor não formula, na petição inicial, pedido de juros de mora, não pode o tribunal condenar o réu ao pagamento de tais juros de mora a partir da citação".
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
IV.
1 - Nos acórdãos acima referidos estava em causa a fixação de indemnização emergente de responsabilidade civil: no Acórdão recorrido, com fundamento na responsabilidade extracontratual por facto ilícito; no Acórdão-fundamento, derivada de responsabilidade pré-contratual por ruptura de negociações (2).
Essa indemnização que foi peticionada, decorrente do facto jurídico invocado como fonte de responsabilidade, distingue-se da indemnização que aqui se discute e que resulta do atraso na satisfação daquela primeira indemnização.
Como afirmava Antunes Varela (no domínio da versão originária do Código Civil), "no caso da obrigação de indemnizar, há ou pode haver duas indemnizações diferentes, sucessivas, que se somam a favor do credor: uma é a indemnização cujo objecto se pretende liquidar, proveniente de um primeiro facto constitutivo de responsabilidade, que tanto pode ser a mora ou falta de cumprimento da obrigação, como um facto lícito ou ilícito extracontratual ou até uma cláusula de um contrato de seguro; a outra é a indemnização pela mora no cumprimento da obrigação de indemnizar, depois de esta ter sido liquidada" (3).
No primeiro caso, trata-se de reparar os danos que o facto causa ao lesado e o critério legal para calcular a indemnização, por equivalente, assenta na teoria da diferença: deve atender-se à diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos (artigo 566.º, n.º 2, do CC). Isto é, deve apurar-se a diferença entre a situação real e a situação hipotética actuais do património do lesado.
Este critério, assente na comparação da situação do património do lesado, não é obviamente aplicável aos danos não patrimoniais, com ressalva do momento atendível ("data mais recente") para aferir o cálculo da indemnização, como decorre do princípio geral previsto no artigo 562.º (4); a fixação do montante da indemnização por esses danos está prevista no artigo 496.º, n.º 3, do CC.
No segundo caso, visa-se reparar o atraso no cumprimento da obrigação de indemnização por equivalente, correspondendo a indemnização aos juros a contar do dia da constituição em mora (artigo 806.º, n.º 1, do CC).
Neste caso, privativo das prestações pecuniárias, como o é, no fundo, aquela primeira indemnização depois da respectiva liquidação, utiliza-se uma forma abstracta de apuramento dos danos, estabelecendo-se uma indemnização a forfait, com recurso às taxas legais de juros de mora.
Porém, no caso de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco (e, como é entendido, também por facto lícito), o legislador criou um termo inicial específico para a mora, anterior à própria liquidação da indemnização (5): o devedor constitui-se em mora a partir da citação - artigo 805.º, n.º 3, do CC; ou seja, em vez de se proceder à avaliação do dano real sofrido com a mora, presume-se que, por estar privado do montante da indemnização, o lesado sofre um prejuízo que corresponde aos juros contados desde a citação (6).
Por outro lado, permite-se que o lesado possa exigir indemnização suplementar, mediante prova de que os danos reais são superiores ao quantum resultante da mera aplicação da taxa legal, consagrando-se assim a denominada "indemnização forfaitaire mínima" (7) - artigo 806.º, n.º 3, do CC.
Para fechar este ponto, importa reafirmar a natureza indemnizatória dos juros de mora, "destinados a cobrir, em abstracto, todos os prejuízos resultantes da mora, aí incluídos os provenientes da desvalorização da moeda" (8), papel que também é desempenhado pelo mecanismo previsto no artigo 566.º, n.º 2, do CC até ao momento aí considerado.
Daí que, sendo a indemnização fixada, e actualizada, nestes termos, por interpretação restritiva do artigo 805.º, n.º 3, só possa vencer juros desde a decisão actualizadora - citado AUJ n.º 4/2002.
Como é patente, perante o excerto que acima se reproduziu, no Acórdão recorrido teve-se em conta essa jurisprudência fixada, condenando-se a ré em juros de mora desde a citação, no caso dos danos patrimoniais, e desde a sentença, no caso dos danos não patrimoniais, em atenção à sua actualização.
A questão que se coloca neste recurso tem a ver com esta indemnização, mas não com o início da contagem dos juros: o que se discute é se o tribunal podia condenar em juros de mora sem ter sido formulado o respectivo pedido na petição inicial.
2 - A questão, nesta perspectiva, tem cariz essencialmente adjectivo e implica com um dos princípios que enformam o direito processual civil: o princípio do dispositivo ou da disponibilidade objectiva e, mais concretamente, com uma das suas principais manifestações - o princípio do pedido.
Ensinava Manuel de Andrade que "o processo só se inicia sob o impulso da parte, mediante o respectivo pedido"; "as partes é que circunscrevem o thema decidendum. O juiz não tem de saber se, porventura, à situação das partes conviria melhor outra providência que não a solicitada, ou se esta poderia fundar-se noutra causa petendi. Alguns (Calamandrei) falam aqui de correspondência entre o requerido e o pronunciado" (9).
Compreendem estas afirmações os dois sentidos do aludido princípio: o princípio da iniciativa ou impulso processual da parte e, no que nos interessa, o princípio da correspondência ou congruência entre o pedido deduzido e a decisão; não se concebe, na verdade, que, na jurisdição contenciosa cível, não haja correspondência entre o conteúdo da decisão e a vontade expressa pela parte no pedido formulado.
Correspondência que, na questão aqui analisada, se discute apenas quanto ao limite quantitativo que resulta da petição inicial, problema que, diga-se, não tem gerado controvérsia (10).
O princípio do pedido tem consagração inequívoca no artigo 3.º, n.º 1, do CPC: o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes [...].
É ao autor que, naturalmente, incumbe definir a sua pretensão, requerendo ao tribunal o meio de tutela jurisdicional adequado a satisfazê-la. Será na petição inicial que o autor deve formular esse pedido - artigo 552.º, n.º 1, e) do CPC -, dizendo "com precisão o que pretende do tribunal - que efeito jurídico quer obter com a acção" (11).
É o pedido, assim formulado, que vinculará o tribunal quanto aos efeitos que pode decretar a final.
Com efeito, como dispõe o artigo 609.º, n.º 1, do CPC, a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir.
Assim, quanto ao conteúdo, a sentença deve ater-se aos limites definidos pela pretensão formulada na acção, o que é considerado "núcleo irredutível" do princípio do dispositivo (12). É a essa pretensão assim definida que o tribunal está adstrito, não podendo decretar um outro efeito, alternativo, apesar de legalmente previsto.
Como afirma Paula Costa e Silva, "o acto (postulativo) tem não só uma eficácia vinculante para o tribunal, como também uma função delimitadora da actuação do tribunal"; esse acto tem uma "função constitutiva insubstituível" (13).
É o princípio do pedido, como sublinha a mesma Autora, que "determina que o tribunal se encontra vinculado, no momento do proferimento da decisão, ao decretamento das consequências que o autor do acto postulativo lhe requerera. Não pode decidir-se por um maius, nem por um aliud" (14).
A violação da referida regra - se o juiz condena em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido - determina a nulidade da sentença, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, e), do CPC.
"Ao autor incumbe formular e definir a pretensão. É direito que lhe assiste mas, ao mesmo tempo, é um ónus que sobre si impende e cuja insatisfação - total ou parcial - contra si reverte" (15).
Assim, se o autor não actua em conformidade, não exercitando, em toda a sua virtualidade, o aludido princípio, não pode mais tarde, ultrapassada a fase em que seria processualmente admissível a ampliação (cf. artigo 265.º, n.º 2, do CPC), pedir ao tribunal que supra a sua omissão, nem este o pode fazer oficiosamente. Se o fizer, estará a ferir de nulidade a sentença, nos termos referidos (16).
Aliás, se o tribunal o fizer incorre também em excesso de pronúncia, por apreciar questão não suscitada pelas partes, o que é igualmente causa de nulidade, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, d), do CPC (17).
Será de acrescentar que esta vinculação do tribunal aos termos em que o pedido foi formulado, que caracteriza o princípio do pedido, sendo ditada por razões de certeza e segurança jurídicas, tem subjacentes também a disponibilidade da relação material e os princípios da liberdade e da autonomia da vontade das partes e da auto-responsabilidade destas. Mas não só.
Como flui do que se disse, também tem por escopo essencial a tutela da posição do demandado, permitindo-lhe que se defenda em relação ao conteúdo concreto daquele pedido. Só assim se assegura e cumpre o princípio do contraditório (cf. artigo 3.º do CPC) que aquele princípio igualmente visa preservar (18).
3 - Voltando à questão colocada no recurso.
O Acórdão recorrido e o Acórdão-fundamento partem de uma base nuclearmente idêntica: nas situações submetidas à sua apreciação foi formulado pedido de condenação das rés em indemnização derivada de responsabilidade civil.
Nesses pedidos não foi feita qualquer referência a juros; não foi pedida a condenação das rés no pagamento de juros.
Apesar disso, as sentenças proferidas na 1.ª instância condenaram as rés em juros de mora, vindo estas condenações a ser revogadas na Relação.
Diferentes foram, neste âmbito, as decisões proferidas no STJ, tendo o Acórdão recorrido revogado o acórdão da Relação e repristinado a sentença da 1.ª instância.
Com o devido respeito, afigura-se-nos que essa decisão não pode manter-se.
Como acima se referiu, a obrigação de pagamento de juros surge na sequência e na dependência da indemnização fixada ou a fixar para ressarcir o dano efectivamente sofrido pelo lesado; não pode nascer nem constituir-se sem esta (19).
Tem, como vimos, natureza indemnizatória, mas distingue-se dessa outra indemnização de que depende, quer pela função que visa - de indemnizar o retardamento na satisfação daquela outra indemnização -, quer pelo modo abstracto de cálculo por que é liquidada.
Trata-se, pois, de indemnização diferente e, nessa medida, autónoma (para além da autonomia que lhe é legalmente reconhecida depois de constituída - artigo 561.º do CC).
É certo que a obrigação de indemnização por equivalente, como dívida de valor, não sujeita, por isso, ao princípio nominalista, é calculada (e actualizada) tendo em conta a data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal (artigo 566.º, n.º 2, do CC) e que os juros, no caso da responsabilidade civil extracontratual, também podem cobrir, com função idêntica, este último período de tempo, desde a citação (artigo 805.º, n.º 3, do CC).
Todavia, apesar desta possível margem de coincidência (que esteve na base do citado AUJ n.º 4/2002), mantêm-se os demais traços distintivos acima referidos: a obrigação de indemnização por equivalente visa reparar os danos efectivamente sofridos pelo lesado; com a sua liquidação, através da teoria da diferença, converte-se, no fundo, numa obrigação pecuniária e é sobre o respectivo montante, assim liquidado, e para reparar o atraso na sua satisfação, que se aplicam os juros de mora.
Ora, no caso, como se referiu inicialmente, os autores limitaram-se a formular um pedido de indemnização por equivalente, discriminando com nitidez os danos patrimoniais e não patrimoniais efectivamente sofridos. Não se referem, implícita ou explicitamente, a essa outra obrigação de juros; não formularam um pedido de condenação em juros de mora.
O tribunal estava vinculado ao pedido, tal como foi formulado, com o conteúdo delimitado pelos autores; não poderia decretar um efeito, apesar de legalmente previsto, que não estivesse abrangido por esse pedido. Para mais, estando em causa interesses meramente patrimoniais dos lesados e, por isso, na inteira disponibilidade destes (20).
Assim, não tendo sido formulado pedido de condenação em juros de mora (arts. 3.º, n.º 1 e 552.º, n.º 1, e), do CPC), o tribunal não poderia, oficiosamente, condenar nesses juros, pois tal traduz uma condenação para além do pedido, isto é, em quantidade superior ao que foi pedido (artigo 609.º, n.º 1, do CPC).
Fazendo-o, violou o princípio do pedido, como acima se expôs, ferindo de nulidade a sentença (artigo 615.º, n.º 1, e), do CPC).
Crê-se que, mesmo a não relevar a distinção acima apontada entre indemnização pelos danos efectivos e indemnização pela mora, nem assim se poderia concluir de forma diferente: não será pelo facto de entender que o dano deve ser avaliado em 100 que o juiz pode condenar neste valor, se o lesado pediu apenas 50; do mesmo modo - a situação seria equiparável - não é pelo facto de entender que o lesado tem direito a juros de mora que o juiz pode condenar nesses juros, se o lesado não os pediu (21).
Saliente-se que, sendo omitida pelos autores a referência a juros de mora, a parte contrária não tomou, obviamente, posição sobre tal questão, vindo a ser surpreendida com a decisão depois proferida, que a condenou nesses juros. Decisão que assim, nesse âmbito, constituiu uma verdadeira decisão-surpresa, com violação do princípio do contraditório que, como vimos, o princípio do pedido também acautela.
Por outro lado, a existir a indesejada deficiência ou omissão na petição inicial, quanto ao pedido de juros de mora, os autores poderiam, com razoável amplitude temporal, ter corrigido o pedido formulado por forma a incluir nele esses juros.
Com efeito, sendo de considerar que o pedido de juros constitui desenvolvimento do pedido de condenação na indemnização por equivalente (22), os autores, mesmo sem o acordo da parte contrária, poderiam ter ampliado o pedido até ao encerramento da discussão na 1.ª instância (artigo 273.º, n.º 2, do CPC então em vigor), contemplando aqueles juros.
Não o fizeram, como se exigia que o fizessem para fazer valer essa pretensão, sendo-lhes vedado requerer a ampliação depois do referido encerramento. Mas, então, se os autores não o podem fazer a partir desse momento, daí decorre que a omissão não pode também ser depois sanada, oficiosamente, na decisão final.
Repare-se que, apesar da significativa relevância que, sobretudo nas últimas reformas processuais, tem sido reconhecida ao princípio da cooperação, concorrendo para uma gradual desformalização do processo, o artigo 266.º, n.º 1, do CPC (como o actual artigo 7.º, n.º 1, que o repete) limita-se a consagrá-lo como princípio geral: a cooperação tem em vista obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio. Mas, como tal, não é passível de aplicação imediata, carecendo de concretização.
Isso significa que, com base nesse princípio, o tribunal "não pode adoptar uma qualquer conduta interventiva que seja imediatamente justificada pela justa composição do litígio" (23). Essa intervenção tem de ser intermediada por norma que a permita ou imponha.
Ora, dos múltiplos deveres em que tal princípio se desdobra, pareceria pertinente convocar aqui o dever de prevenção. Só que este dever não é concebido em termos genéricos ou como "cláusula geral", estando apenas previsto para a remoção de obstáculos de natureza formal ao fim substancial do processo e para o suprimento da insuficiência ou imprecisão na exposição ou concretização da matéria de facto (cf. artigo 590.º, n.os 3 e 4, do CPC).
Está, assim, arredada a possibilidade de o tribunal sugerir a correcção ou o suprimento de deficiências ou omissões que afectem o conteúdo do pedido formulado (24).
Quer dizer: ao longo do processo o juiz não pode, sponte sua, convidar o autor a suprir qualquer omissão que vislumbre no conteúdo do pedido; no caso, portanto, não poderia sugerir a inclusão do pedido de condenação em juros de mora que entendesse devidos.
Mas, se assim é, parece que, por maioria de razão, não pode ele próprio suprir depois, oficiosamente, essa omissão no momento da decisão final (25).
Poderá dizer-se que, desse modo, se sobrepõem razões formais ao regime substantivo da obrigação de indemnizar e defender-se que, por esse motivo, a aplicação de juros "não se encontra na dependência do princípio do pedido" (26).
O caminho que tem sido seguido, como acima se aflorou, é realmente no sentido de uma gradual desformalização e menor rigidez do processo, visto como mero instrumento para ser alcançada a verdade material, dando-se prevalência à decisão de mérito sobre a decisão de forma. É inegável que a evolução é nesse sentido, e desejável que o seja, na procura de um processo mais justo, não apenas formalmente, mas também substancialmente. O percurso, porém, não estará ainda concluído (27).
No caso, a questão a resolver, que respeita ao limite quantitativo à decisão, é subsumível na previsão das normas legais acima referidas, que, a nosso ver, não permitem solução diferente da que ficou indicada.
Essas normas (ainda) existem e, com o devido respeito, apesar da natureza formal, não parece que possam ser postergadas; pelo menos, apenas com o fundamento de poderem conduzir a resultados injustos (cf. artigo 8.º, n.º 2, do CC).
De todo o modo, esse resultado não será definitivo, nem necessário, não tendo, em termos de dimensão, a relevância que aparenta.
Não é definitivo, uma vez que não implica a perda do direito do lesado aos juros não pedidos: é que, precisamente por não terem sido pedidos, não se forma caso julgado sobre essa questão (artigo 619.º do CPC), podendo o lesado, se o entender, peticionar esses juros em nova acção.
Nem é necessário, se a indemnização por equivalente for fixada (e actualizada) considerando a data mais recente que puder ser atendida (artigo 566.º, n.º 2, do CC), sendo certo que, com a sentença, o lesado passa a dispor de título executivo, desde logo com direito a juros de mora (que se consideram abrangidos pelo título, como dispõe o artigo 703.º, n.º 2, do CPC), mesmo que venha a ser interposto recurso da sentença (artigo 704.º, n.os 1 e 2, do mesmo diploma legal).
IV.
Em face do exposto, acorda-se em:
- Revogar o Acórdão recorrido, no que respeita à condenação da ré em juros de mora;
- Condenar nas custas os recorridos.
- Uniformizar a jurisprudência nestes termos:
Se o autor não formula na petição inicial, nem em ulterior ampliação, pedido de juros de mora, o tribunal não pode condenar o réu no pagamento desses juros.
(1) Proc. n.º 1520/04.3TBPBL.C1.S1-A; Relator: F. Pinto de Almeida
(2) Sendo controvertida a natureza desta - cf., a título exemplificativo das três tendências, Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10.ª ed., 301 (natureza extracontratual), Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Tomo I, 346 (natureza obrigacional) e Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, 11.ª ed. 326 (terceira via da responsabilidade civil, sendo aplicáveis normas da responsabilidade contratual ou da responsabilidade delitual, "consoante o que se considerar mais adequado à solução do caso" - o Acórdão-fundamento, sem tomar posição expressa sobre a questão, sugere o acolhimento da primeira solução, ou pelo menos a aplicação de regras da responsabilidade extracontratual, ao aludir, a final, ao artigo 483.º do CC.
(3) RLJ 102-89.
(4) Neste sentido, Almeida Costa, Ob. Cit., 780; Menezes Leitão, Ob. Cit., 364; fundamentação do citado AUJ n.º 4/2002.
(5) Mora que, por isso, é considerada "artificial", uma vez que esses juros serão verdadeiramente compensatórios e não moratórios - Correia das Neves, Manual dos Juros, 3.ª ed., 326.
(6) Cfr. Maria da Graça Trigo, Incumprimento da obrigação de indemnizar, em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Mário Júlio Brito de Almeida Costa, 997 e 999; também a fundamentação do Assento (hoje com valor de acórdão uniformizador) n.º 13/94, de 15.06.1994.
(7) Simões Patrício, As novas taxas de juro do Código Civil, em BMJ 305-58 e segs. e 68, estudo que esteve na origem das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 262/83, de 18/6, aos preceitos citados, seguindo a doutrina já anteriormente defendida por Vaz Serra, Mora do devedor, BMJ 48-101 e segs..
(8) Acórdão do STJ de 06.07.2000, BMJ 499-309.
(9) Noções Elementares de Processo Civil (1976), 372. No mesmo sentido, Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, I Vol., 2.ª ed., 52 e segs.; cf. também, Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, 121 e segs.
(10) Cfr., entre os estudos mais recentes, Lopes do Rego, O princípio do dispositivo e os poderes de convolação do juiz no momento da sentença, em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, 788; Miguel Mesquita, A flexibilização do princípio do dispositivo do pedido à luz do moderno Processo Civil, em RLJ 143-141; estudos que se inserem em tendência que preconiza uma "mitigação" ou "flexibilização "do princípio do pedido "em prol da efectividade do processo", mas não quanto ao limite quantitativo do pedido. No sentido dessa flexibilização, o Acórdão do STJ de 11.02.2015, em www.dgsi.pt.
(11) Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 234, nota (2).
(12) Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Ob. Cit., 657.
(13) Acto e Processo, 263. Cfr. também Lebre de Freitas, Ob. Cit., 129: "Constitui monopólio das partes a conformação da instância nos seus elementos objectivos e subjectivos".
(14) Ob. Cit., 583. Como referem Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, CPC Anotado, Vol. 2.º, 2.ª ed., 682, "o objecto da sentença coincide assim com o objecto do processo, não podendo o juiz ficar aquém nem ir além do que lhe foi pedido".
(15) Fundamentação do Assento de 15.10.1996.
(16) Neste sentido, os Acórdãos deste Tribunal de 13.09.2011 (Revista n.º 3196/04) e de 16.10.2012 (Revista n.º 5943/07), com sumários publicados no Boletim Anual de Sumários do STJ de 2011 (pg. 661) e de 2012 (pg. 692), respectivamente.
(17) Cfr. Acórdão do STJ de 01.07.2010 (Revista n.º 6359/05), no referido Boletim Anual, ano de 2010 (pg. 608). Assim também o Acórdão da Relação que, nesse ponto, veio a ser revogado pelo Acórdão aqui recorrido.
(18) Neste sentido, Paula Costa e Silva, Ob. Cit., 587.
(19) Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10.ª ed., 875.
(20) Cfr. Abrantes Geraldes, Ob. Cit., 50.
(21) Cfr. Lopes do Rego e Miguel Mesquita, Ob. e Loc. acima citados.
(22) Neste sentido, Alberto dos Reis, Comentário ao CPC, Vol. 3.º, 93 e Lebre de Freitas, Ob. Cit., 128, nota (30).
(23) Paula Costa e Silva, Ob. Cit., 591.
(24) Neste sentido, Paula Costa e Silva, Ob. Cit., 593 e 594. De modo idêntico, Lopes do Rego, Comentários ao CPC, Vol. I, 2.ª ed., 265, depois de referir os termos "algo mitigados" em que o princípio da cooperação está consagrado, afirma: "não se prevê expressamente - como decorrência da cooperação do tribunal com as partes - a existência de um genérico dever de prevenção e esclarecimento das partes sobre quaisquer insuficiências e deficiências das peças processuais que apresentem em juízo, de modo a caber ao juiz sugerir-lhes os comportamentos processuais que repute mais adequados, incluindo - como sucede no sistema jurídico alemão - a própria alteração das pretensões deduzidas" (sublinhado nosso).
(25) Será de referir que, tendo em atenção a fase processual em que poderia ser aplicado, não pode ser aqui invocado o princípio da gestão processual, previsto agora, "com contornos pouco definidos", no artigo 6.º do NCPC, que então não estava em vigor, não importando, por isso, saber se o mesmo tem um sentido material ou meramente formal - cf. as posições divergentes de Miguel Mesquita, Ob. Cit., 145, e de Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC Anotado, Vol I, 3.ª ed., 23; cf. também os deveres em que a gestão se pode desdobrar - Teixeira de Sousa, Apontamentos sobre o princípio da gestão processual, CDP n.º 43, 10 e segs.
(26) Neste sentido, Maria da Graça Trigo, Ob. Cit., 1022.
(27) O legislador vai, passo a passo, reformando o sistema, numa técnica que será porventura a adequada, como refere Paula Costa e Silva, Ob. Cit., 602.
Lisboa, 14 de Maio de 2015. - Fernando Manuel Pinto de Almeida (Relator) - Fernanda Isabel de Sousa Pereira - Manuel Tomé Soares Gomes - Júlio Manuel Vieira Gomes - Sebastião José Coutinho Póvoas - António Manuel Machado Moreira Alves - Nuno Pedro de Melo e Vasconcelos Cameira - António Alberto Moreira Alves Velho - João Mendonça Pires da Rosa - Carlos Alberto de Andrade Bettencourt de Faria - José Amílcar Salreta Pereira - João Luís Marques Bernardo - João Moreira Camilo - Paulo Armínio de Oliveira e Sá - Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza - Fernando Manuel de Oliveira Vasconcelos - António José Pinto da Fonseca Ramos - Ernesto António Garcia Calejo - Helder João Martins Nogueira Roque - José Fernando de Salazar Casanova Abrantes - Carlos Francisco de Oliveira Lopes do Rego - Orlando Viegas Martins Afonso - Paulo Távora Victor - Gregório Eduardo Simões da Silva Jesus - José Augusto Fernandes do Vale - Manuel Fernando Granja Rodrigues da Fonseca - Fernando da Conceição Bento - João José Martins de Sousa - Gabriel Martim dos Anjos Catarino - João Carlos Pires Trindade - José Tavares de Paiva - António da Silva Gonçalves - António dos Santos Abrantes Geraldes - Ana Paula Lopes Martins Boularot - Maria Clara Pereira de Sousa de Santiago Sottomayor (Vencida de acordo com a declaração que junto).
Declaração de voto
Voto vencida por entender que a justiça cível deve ser efetiva e que as indemnizações, nas ações de responsabilidade civil extracontratual, não devem ser meramente fictícias mas cobrir a integralidade dos danos sofridos pelo lesado.
Compreendendo as razões de segurança jurídica inerentes à rigidez da tramitação processual, penso que a evolução do sistema no sentido da justiça material se pode fazer por via jurisprudencial. Sempre houve jurisprudência que, em matéria de inflação e morosidade processual das ações de responsabilidade civil extracontratual por acidentes de viação, procedeu à flexibilização do princípio do pedido. Nesta sede, tem sido entendimento de alguma jurisprudência, neste Supremo Tribunal, que a fixação dos danos parcelares em quantia superior à valorada pelos autores na petição inicial não infringe o disposto no artigo 661.º do CPC, quando a sentença não condene em valor superior ao do pedido global de indemnização (entre outros, vide, acórdão de 01-07-2004 - Revista n.º 296/04; acórdão de 29-03-2007 - Revista n.º 3261/06; acórdão de 03-07-2008; acórdão de 17-06-2010 - Revista n.º 1433/04.9TBFAR.E1.S1; acórdão de 23-11-2010 - Revista n.º 456/06.8TBVGS.C1.S1).
Também já se admitiu, que o pedido de juros fosse visto como um desenvolvimento do pedido de indemnização (STJ 25-03-1980, BMJ 295), ou que estivesse incluído na vontade presumida do autor, tal como defendeu Vaz Serra em relação à indemnização sob a forma de renda, prevista no artigo 567.º do CC (RLJ 105.º, p. 154).
Admite-se, desde 1980, que a desvalorização monetária é um facto notório que não tem de ser alegado nem provado pelo autor (STJ 28-02-1980, BMJ, 294, 283; Simões Patrício, «As novas taxas de juro», BMJ, n.º 305, 1981).
Mais tarde, pelo menos a partir do acórdão uniformizador n.º 4/2002, admitiu-se que a atualização da indemnização à data da sentença de 1.ª instância pudesse ser feita pelo juiz, em conformidade com a norma do artigo 566.º, n.º 2 do CC, levando em conta não só os danos alegados, mas também a correção monetária, como fez o tribunal de 1.ª instância no caso sub judice.
Neste mesmo acórdão uniformizador, equipara-se, para efeitos de finalidade, a atribuição de juros de mora desde a citação à atualização da indemnização à data da sentença, afirmando-se que «ambas as providências influenciadoras do cálculo da indemnização devida obedecem à mesma finalidade, que consiste em fazer face à erosão do valor da moeda no período compreendido entre a localização no tempo do evento danoso e o da satisfação da obrigação indemnizatória». Ou seja, reconhece-se aos juros de mora à taxa legal a função principal de compensar o dano da inflação e de traduzir o valor real da moeda. Esta visão funcional dos juros faz com que estes partilhem da mesma finalidade da atualização inerente às dívidas de valor, entendendo-se que ambas as providências constituem uma consequência lógica da teoria da diferença. A dívida de valor não tem por objeto diretamente uma soma de dinheiro, mas uma prestação de outra natureza, intervindo o dinheiro como meio de liquidação.
A decisão de atribuir juros de mora, mediante a aplicação da taxa legal a partir da citação é, assim, inerente às regras substantivas da responsabilidade civil sob pena de a indemnização legalmente prefixada não corresponder à sua função sócio-jurídica. Neste sentido se pronunciou Graça Trigo, em comentário ao acórdão uniformizador n.º 13/96 («Incumprimento da obrigação de indemnizar», Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Almeida Costa, Universidade Católica Editora, 2002, pp. 1022-10239), entendendo que a prevalência absoluta de uma visão puramente literal do princípio dispositivo pode conduzir à sobreposição do direito adjetivo ao direito substantivo e que não é compatível com a natureza da obrigação de indemnizar enquanto dívida de valor, a esta luz devendo interpretar-se o pedido do autor.
Sendo assim, devido à analogia substancial entre os dois métodos de combate à inflação - atualização à data mais recente e juros de mora - ambos enquadrados nas finalidades e exigência do instituto da responsabilidade civil extracontratual, entendo que a atribuição de juros moratórios pode ser concedida a partir da citação, por tal resultar implicitamente do pedido do autor quando remete para as normas da responsabilidade civil extracontratual.
O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5.º, n.º 3 do CPC). Esta norma visa facultar ao juiz os meios necessários para produzir uma decisão de mérito que atinja, tanto quanto possível, o ideal da justiça material. O que está em causa, no acórdão recorrido, é a natureza jurídica do dinheiro enquanto direito ao valor e a um determinado poder aquisitivo e a natureza indemnizatória dos juros, como forma de reparar o lesado pelo dano patrimonial da desvalorização monetária, em obediência ao princípio da reparação integral dos danos do lesado.
O que significa que os autores têm direito, para além da atualização à data da sentença dos valores pedidos a título de indemnização por danos não patrimoniais, tal como foi efetuado pela sentença de 1.ª instância e não se impugnou, à aplicação da taxa legal de juros de mora a partir da citação, nos moldes previstos e regulados pelo acórdão uniformizador n.º 4/2002.
O acórdão recorrido não constitui decisão surpresa, pois a seguradora não foi condenada a pagar indemnização superior ao valor global do pedido dos autores, estando o montante arbitrado, mesmo com o acréscimo proveniente de juros de mora, dentro das expetativas possíveis quanto ao resultado da ação. Por outro lado, a seguradora, no recurso de apelação, teve oportunidade de discutir a questão dos juros e apresentou, de facto, na alegação de recurso, os seus argumentos e estratégia processual em relação à questão.
Não viola o princípio do pedido, nos termos do artigo 609.º, n.º 1 do CPC, a decisão de decretar juros de mora à taxa legal sobre indemnizações provenientes de factos constitutivos de responsabilidade civil extracontratual, por tal não consistir numa condenação em objeto diverso ou em quantidade superior do pedido, mas apenas numa forma de combater a inflação verificada entre a data da citação e a data do efetivo e integral pagamento, atribuindo ao lesado o valor real do dinheiro pedido. - Maria Clara Sottomayor.