Acórdão 3/95
Processo 47095
Acordam no plenário das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça:
O Ministério Público pelo seu procurador-geral-adjunto na Relação de Coimbra, nos termos e para os efeitos dos artigos 437.º e seguintes do Código de Processo Penal - diploma ao qual se devem ter como referidos todos os preceitos que vierem a ser citados sem indicação da respectiva origem - interpôs recurso do acórdão ali proferido no processo 52/92, em 17 de Fevereiro de 1994, e transitado em julgado em 10 de Março do mesmo ano, o qual, segundo alega, estaria em oposição com o acórdão da mesma Relação, proferido no processo 56/93, em 31 de Março de 1993, e transitado em julgado em Abril do mesmo ano, já que naquela primeira decisão teria sido entendido que «o tribunal singular é o competente para o julgamento do arguido acusado (ou pronunciado) por uma pluralidade de crimes cuja pena máxima, abstractamente aplicável, resultante da soma dos limites máximos das respectivas molduras penais, e superior a três anos de prisão, sem prejuízo da intervenção do tribunal colectivo se a pena unitária for (dever ser) superior a três anos de prisão», enquanto no acórdão citado em segundo lugar o entendimento foi o de que «é o tribunal colectivo o competente para o julgamento do processo no caso de concurso de infracções passíveis, individualmente, de pena máxima inferior a três anos, mas a que, em cúmulo jurídico, corresponda, em abstracto, pena superior àquele limite».
O recurso foi recebido, tendo-se julgado em conferência verificar-se a existência da pressuposta oposição de julgados, por isso que, sobre a mesma questão de direito - a da determinação da competência para o julgamento de um arguido acusado de um concurso de crimes a que, abstractamente, corresponde a cada um deles uma pena máxima de três anos de prisão, mas a que, também em abstracto, nos termos do artigo 78.º, n.º 2, do Código Penal, pode corresponder uma pena única superior àquele limite -, as duas decisões confrontadas pronunciaram-se, como se viu, em termos de clara e irredutível oposição.
Também preliminarmente foi reconhecido que aquelas duas decisões já haviam transitado em julgado quando o recurso foi interposto, que tinham sido proferidas no domínio da mesma legislação - o actual Código de Processo Penal - e que o mesmo recurso havia sido interposto dentro dos 30 dias seguintes ao trânsito em julgado da decisão recorrida.
Simplesmente, esta decisão preliminar tem mero carácter precário, já que no processo 43073, de 27 de Janeiro de 1993, foi tirado acórdão pelo plenário das secções criminais deste Supremo Tribunal no sentido de que a decisão proferida sobre a questão da oposição em cumprimento do artigo 441.º, n.º 1, não vincula o mesmo plenário.
No entanto, é tão evidente a oposição entre os julgados em questão como o é a verificação do demais requisitório exigido pelos artigos 437.º e 438.º, dados os documentos autênticos que o comprovam, que, neste aspecto, nada mais há a acrescentar do que foi entendido e decidido no acórdão a fls. 24 e seguintes, que, por isso mesmo, aqui se dá como reproduzido.
O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto nesta Secção Criminal, em muito douto e exaustivo parecer, assim se pronuncia:
No caso de concurso de infracções, passíveis, individualmente, de pena máxima não superior a três anos de prisão, mas a que, em cúmulo jurídico, corresponda pena máxima superior àquele limite, é competente, para todas as fases de julgamento do processo, o tribunal colectivo.
A problemática que, por esta via, se intenta solucionar, como o adverte o Ministério Público, já havia sido suscitada na vigência do Código de Processo Penal de 1929, face ao preceituado no seu artigo 69.º, que era do seguinte teor:
Se o emprego da forma de processo depender da pena que couber à infracção, atender-se-á àquela que for aplicável, independentemente de quaisquer circunstâncias agravantes ou atenuantes que nela possam concorrer, exceptuando-se as agravantes que forem especialmente previstas na lei e que alterem a pena, porque, neste caso, a esta se atenderá.
Recorda Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado e Comentado, 4.ª ed., de 1980, que, então, para efeito de determinação da forma de processo a seguir, deviam ser levadas em conta as circunstâncias agravantes modificativas da pena, nomeadamente a reincidência, embora reconheça que a questão teria perdido muito interesse prático após a fusão dos processos de polícia correccional e correccional.
O mesmo e ilustre magistrado dá conta também de que este Supremo Tribunal decidiu uniformemente naquele sentido mas que as Relações, embora julgando também assim predominantemente, haviam proferido arestos em sentido contrário.
Relendo Cavaleiro de Ferreira, Curso, I, pp. 182 e seguintes; Eduardo Correia, Apontamentos sobre as Penas e Sua Graduação no Direito Criminal Português, lições dactilografadas, 1953, pp. 118 e seguintes; e Lições de Processo Criminal, 1954, pp. 105 e seguintes; Adelino Barbosa de Almeida, Revista de Direito e Estudos Sociais, VIII, n.º 4, pp. 306 e seguintes, e Pinheiro Farinha, Código de Processo Penal, 2.ª ed., p. 115, verifica-se que todos estes autores se inclinaram também no sentido de que as circunstâncias agravantes modificativas devem ser levadas em conta na determinação da forma de processo.
Porém, como bem acentua o Ministério Público, a jurisprudência, quanto ao cúmulo jurídico das penas, entendia que neste não seriam de atender as circunstâncias modificativas e agravativas das mesmas penas, já que tal cúmulo só tinha lugar depois de fixadas as penas correspondentes a cada infracção.
A propósito, é de salientar o parecer 112/51 da Procuradoria-Geral da República, de 26 de Julho de 1952, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 46/48, em que, no que toca ao cúmulo jurídico das penas, se concluiu que «se a pena total exceder a competência normal do juiz singular, o cúmulo jurídico só pode ser feito com intervenção do tribunal colectivo, salvo os casos em que aquele pode aplicar pena maior».
Porém, a questão que nos preocupa tem de ser decidida adentro das regras da competência fixadas no actual Código de Processo Penal, que, no que ora importa, estabelece no seu artigo 16.º, n.º 2, alínea c), relativamente aos poderes do tribunal singular, que compete a este tribunal, em matéria penal, julgar os processos que respeitarem a crimes «cuja pena máxima, abstractamente aplicável, for igual ou inferior a três anos de prisão».
Simplesmente, estabelece-se nos artigos 14.º, n.º 2, alínea b), e 15.º do mesmo repositório legal, no que toca à competência do tribunal colectivo, que a este compete julgar os processos «cuja pena máxima, abstractamente aplicável, for superior a três anos de prisão», mas que «na determinação da pena abstractamente aplicável são levadas em conta todas as circunstâncias que possam elevar o máximo legal da pena a aplicar no processo».
Ora, não obstante a redacção actual dos textos apontar para a competência do tribunal colectivo sempre que concorram circunstâncias que elevem o máximo legal abstracto das penas para um limite superior àquele de três anos de prisão, quanto aos casos de concurso de crimes, a cada um dos quais corresponda (também abstractamente) pena inferior àquele quantitativo, ainda há quem propenda para a competência do tribunal singular para o seu julgamento, só sendo de requerer a intervenção do tribunal colegial quando as penas concretas aplicadas sugiram uma pena única superior a três anos de prisão.
Prova de que assim é está no próprio dualismo de entendimento que se encontra entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, conquanto seja visível uma tendência para seguir o expressamente acolhido neste último. Em acórdão relatado por quem agora é também relator - Acórdão de 10 de Junho de 1991, processo 41317 -, a solução foi igualmente a sufragada no acórdão fundamento.
Crê-se mesmo que, face à redacção do artigo 78.º, n.º 2, do Código Penal, tal solução não poderá ser outra daquela que, evidentemente, já se deixa antever como a eleita, isto é, a da competência do tribunal colectivo, logo ab initio, para o julgamento da hipótese que está a ser considerada.
Diz-se naquele preceito:
A pena aplicável tem como limite superior a soma das penas concretamente aplicáveis aos vários crimes, sem que possa ultrapassar os limites previstos nos artigos 40.º e 46.º
Ora, isto significa, pura e simplesmente, que, de acordo com o artigo 15.º que se citou, o cúmulo jurídico das penas é uma das circunstâncias que pode elevar o máximo legal da pena (singular ou unitária) a aplicar no processo. Com efeito, como diz Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 6.ª ed., 1994, p. 78, «o preceito parece mesmo ter sido introduzido tendo em vista os casos de cúmulo jurídico que suscitaram dificuldades e jurisprudência contraditória no regime anterior, mas é, evidentemente, aplicável a outros casos». E exemplifica (loc. cit.): «Assim, em face deste preceito, quem, no mesmo processo, responder por dois ou mais crimes a que corresponda pena de prisão até dois anos (v. g. furto de uso de veículo, do artigo 304.º do Código Penal) terá de ser julgado em tribunal colectivo (eventualmente pelo júri), uma vez que, perante o Código Penal, o cúmulo jurídico tem como limite máximo a soma material das penas parcelares». Nesta mesma linha de pensamento se afirmam Costa Pimenta, in Código de Processo Penal Anotado, 2.ª ed., p. 72, e Germano Marques, Curso de Processo Penal, p. 119.
A solução preconizada é, de resto, a que logra acolhimento nas regras de interpretação fixadas no artigo 9.º do Código Civil e que são válidas mesmo em direito penal, por isso que, embora o intérprete não deva cingir-se à letra da lei, a verdade é que a redacção dos preceitos que estão em análise, na sua literalidade, não consente outra interpretação que não seja aquela em que assenta tal solução.
De resto, a interpretação que se avança ex adverso contende frontalmente com os princípios da economia e da celeridade processuais.
Senão vejamos: fazer intervir, sucessivamente, o tribunal singular para apreciar os factos e fixar as penas e, depois, chamar o colectivo para encontrar a pena única quando aquelas, pelo seu volume, consintam uma pena unitária superior a três anos de prisão implica necessariamente uma duplicação de julgamento, com prejuízo da economia processual, prejuízo que poderia ser evitado se, desde logo, interviesse o tribunal colegial, o que nem sequer importa risco para os arguidos, uma vez que sobeja àquele competência para o julgado.
Mas também, pelas razões expostas, há lesão da celeridade processual, uma vez que não é pensável que o tribunal colectivo esteja desde logo disponível para intervir quando o juiz singular, em caso de concursos de infracções, aplicar penas que possam conduzir a uma pena unitária que exceda a sua competência. De resto, este prejuízo da celeridade processual contende, até, com o querer constitucional, uma vez que no artigo 32.º, n.º 2, da lei fundamental se estabelece que «todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa», pretensão esta última que, necessariamente, fica prejudicada pela sucessiva intervenção de dois tribunais, com a natural incerteza e provável angústia da pessoa julgada até que lhe seja explicado qual, afinal, a pena que terá de cumprir (sobre a validade em direito processual dos princípios da economia e da celeridade processuais e, ainda, sobre o vero sentido dos mesmos, é de consultar o Prof. Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, 1.ª ed., p. 371).
Em prol da solução que vem sendo defendida, o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto, no seu referido parecer, acrescenta ainda um argumento cujo valor é desnecessário encarecer, enquanto, face às discordâncias que se têm encontrado sobre o tema em análise, se fica a saber que a comissão de revisão do Código de Processo Penal por aquela mesma solução enveredou.
Assim, para o controverso artigo 14.º, n.º 2, está prevista a seguinte redacção:
Compete ainda ao tribunal colectivo julgar os processos que, não devendo ser julgados pelo tribunal singular, respeitarem a crimes cuja pena máxima abstractamente aplicável for superior a cinco anos de prisão, mesmo quando, no caso de concurso de infracções, for inferior a moldura penal correspondente a cada crime.
Na justificação desta inequívoca tomada de posição argumentou convincentemente Figueiredo Dias, dizendo que «no concurso tudo se passa como se aqueles diferentes factos constituíssem um novo facto» (punível com a pena de concurso).
Pelo exposto e sem necessidade de ajuntar mais considerações, fixa-se, com carácter obrigatório para os tribunais judiciais, a seguinte jurisprudência:
No caso de concurso de infracções passíveis individualmente de pena máxima não superior a três anos de prisão, mas a que, em cúmulo jurídico, possa corresponder uma pena única superior àquele limite, é competente para o seu julgamento o tribunal colectivo.
Consequentemente, revoga-se o acórdão recorrido.
Não é devida tributação.
Lisboa, 17 de Maio de 1995. - José Henriques Ferreira Vidigal - Bernardo Guimarães Fisher de Sá Nogueira - José Sarmento da Silva Reis - Rui Manuel Brandão Lopes Pinto - Manuel António Lopes Rocha - Manuel Luís Pinto de Sá Ferreira - Humberto Carlos Amado Gomes - Pedro Elmano de Figueiredo Marçal - Herculano Carlindo Machado Moreira de Lima - José Moura Nunes da Cruz - Eduardo Júlio Vaz dos Santos - António Alves Teixeira do Carmo - João Fernando Fernandes de Magalhães - José Joaquim da Costa Figueirinhas - António de Sousa Guedes.