Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 18/2025
Revista Ampliada n.º 916/19.0T8GDM.P1.S1
***
No Pleno das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça, acordam os Juízes Conselheiros que integram o colectivo *** Habiserve Construções Norte, Lda. instaurou acção declarativa, com processo comum, contra AA, pedindo a condenação desta a reconhecer a propriedade da autora quanto a um determinado espaço de arrumos existente no 7.º Andar do prédio sito Rua 1, Fânzeres, Gondomar, e a entregálo à demandante devoluto de pessoas e bens.
A ré contestou por excepção e impugnação e deduziu reconvenção. Pediu, nesta sede, que a autora seja condenada a reconhecer que o espaço de arrumos A5 não faz parte da fracção J, mas, ao invés, é propriedade da reconvinte por o haver adquirido por usucapião.
A autora impugnou o pedido reconvencional.
Foi proferida sentença que julgou totalmente improcedente o peticionado pela autora e, parcialmente procedente, o peticionado em sede reconvencional.
Em consequência:
a) Absolveu a R./Reconvinte AA dos pedidos contra si formulados na p.i./réplica;
b) Declarou e condenou a A./Reconvinda a reconhecer que o espaço de arrumos A5, existente no 7.º andar do prédio, sito na Rua 1, em Fânzeres-Gondomar, não faz parte integrante da fracção J, inscrita na matriz sob o artigo..92, e descrita na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ..37, mas é, ao invés, propriedade da R./reconvinte, por o haver adquirido por usucapião.
A autora interpôs, com sucesso, recurso para o Tribunal da Relação do Porto, visto que o segundo grau revogou a decisão recorrida, que substituiu por outra, que condenou a ré a reconhecer que o aludido espaço de arrumos A5 faz parte integrante da fração J, devendo, por isso, proceder à sua restituição.
Inconformada, foi, desta vez, a ré a interpor recurso de revista, cuja minuta concluiu da seguinte forma:
Questão prévia:
Transitaram já em julgado, três decisões judiciais (tendo a A/Recorrente a mesma identidade), todas elas reconhecendo o direito de usucapir aos diferentes Réus, nomeadamente quanto aos arrumos e garagens, que ocupavam e ocupam pacificamente e à vista de toda a gente, desde a compra dos imóveis. Em bom rigor, a presente ação é a 4.ª ação que obteve em primeira instância o mesmo desfecho (sempre a favor dos Réus), aguardando-se ainda a decisão da última ação, que corre termos neste tribunal central sob o n.º 3922/18.9T8GDM-J2.
As 3 (três) decisões judiciais, já transitadas em julgado, fazem parte de um total de 5 (cinco), tendo sido reconhecido em todas elas, o direito dos Réus (condóminos/proprietários) em adquirir as frações por usucapião, quer quanto aos arrumos quer quanto aos lugares de garagem.
Ora, sempre com respeito por diferente opinião, a identidade dos sujeitos de todas as ações é manifesta, a Autora é a mesma em todos os processos e os Réus são os mesmos, sob ponto de vista da sua qualidade jurídica, ou seja, mesmo tratando-se de diferentes pessoas, esta particularidade, não mostra ter a virtualidade de descaracterizar esta identidade isto é, no limite, estamos perante casos e decisões completamente análogas, uma vez que se verifica um conflito de interesses paralelo e semelhante, de modo a que, o critério valorativo adotado pelos tribunais para compor esses conflitos de interesses, nos casos já conhecidos, são por igual ou por maioria de razão, aplicáveis ao outro.
A simplicidade de raciocínio, traduzida numa forma simples, mas demonstrativa dos factos verídicos apresentados nas decisões judiciais aludidas, não pode, nem deve, deixar aqui de ser realçado, o que fazemos, com a devida vénia.
Posto isto, I. Vem o presente recurso do douto acórdão, proferido a 07 de Dezembro de 2023, pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto, que julgou procedente o recurso de apelação interposto pela autora revogando a decisão recorrida e declarando e condenando a Ré/Reconvinda a reconhecer que o espaço de arrumos “A5” existente no 7.º andar do prédio sito na Rua 1, em Fânzeres-Gondomar faz parte integrante da fração “J”, inscrita na matriz sob o artigo..92 e descrita na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ..37 a favor da autora.
II. A materialidade considerada como assente pela primeira instância impunham uma decisão absolutamente diversa, ou seja, reconhecer que o espaço de arrumos “A5” existente no 7.º andar do prédio sito na Rua 1, em Fânzeres-Gondomar não faz parte integrante da fração “J”, mas, ao invés, é propriedade da R/Recorrida, por o haver adquirido por usucapião.
III. Em síntese, e com relevante interesse para a boa decisão da causa, resultou como provado que:
a) a existência de inúmeras divergências relativamente à fração “J”, nomeadamente da descrição constante do registo predial, da escritura de propriedade horizontal e da caderneta predial, sendo certo que, fisicamente só existem 8 espaços destinados a arrumos no 7.º andar do prédio sito na Rua 1, em Fânzeres-Gondomar, ao contrário dos 44 lugares (Reg. Predial) ou dos 14 (Caderneta Predial)-Factos:
2;
3, 6, 25 e 26 da matéria de facto provada.
b) A Câmara Municipal de Gondomar, indeferiu, inicialmente, a emissão das licenças de habitabilidade, à A. (à data BB e CC L.da) pelo seguinte motivo:
“A compartimentação e o número dos arrumos no último piso não corresponde ao que foi aprovado; há diminuição no número de lugares de garagem, em favor da fração R; a propriedade horizontal não corresponde ao nível da cave e rés-do-chão e arrumos ao projeto aprovado, e, a rede de saneamento não foi executada de acordo com o aprovado”-Facto:
45 da matéria de facto provada.
c) As licenças de habitabilidade viriam a ser emitidas unicamente em 18 de dezembro de 1992-Facto:
46 da matéria de facto provada.
d) Das licenças de habitabilidade emitidas, não constam as frações “J”, “O” e “R”-Facto:
47 da matéria de facto provada.
e) Da escritura de propriedade horizontal relativa ao edifício em questão, resulta que a fração “R” se destina ao comércio, e comporta um lugar de garagem, porém, a planta entregue pela A. junto da CM de Gondomar, menciona pelo menos 4 (quatro) lugares de garagem pertencentes à fração “R”-Factos:
25 e 26 da matéria de facto provada.
f) O espaço em questãoArrumo “A5”-representa uma unidade distinta, independente e isolada, com acesso único e próprio e direto a zona comum do edifício, tem cerca de 21m2. A entrada faz-se por uma única porta, que fecha e abre com chave, tem três janelas e interiormente apresenta as paredes e teto pintados e o pavimento revestido a linóleoFactos:
16, 17 e 18 da matéria de facto provada.
g) Por documento particular, datado de 20/10/1993, intitulado “contrato promessa de compra e venda”, DD, na qualidade de “promitente vendedora” e AA, aqui R/R/Recorrida, na qualidade de “promitente compradora”, declararam, respetivamente, prometer vender e comprar, “a fração autónoma, designada pelas letras EF, com tudo o que a compõe correspondente a uma habitação no sexto andar direito traseiras, com arrumo no sétimo andar do mesmo prédio e lugar de garagem, com entrada pelo número..., da Rua 1 do prédio em regime de propriedade horizontal, inscrito na matriz urbana sob o artigo..64 e descrito sob o número..07 e fls. 122 do livro 8-9”, pelo preço de 8.500.000$00 (oito milhões e quinhentos mil escudos) Facto:
27 da matéria de facto provada.
h) Posteriormente, por escritura pública de compra e venda celebrada em 9 de Novembro de 1993, a referida DD e marido EE declararam vender à Ré AA, a fração autónoma designada pelas letras “EF”, correspondente a uma habitação no sexto andar direito traseiras com entrada pelo n.º ... da Rua 1, mais se referindo que o prédio estava descrito no registo predial sob o número..07, mostrando-se tal aquisição registada a favor da Ré:
, Facto:
28 e 29 da matéria de facto provada.
i) A R/Recorrida entrou de imediato na posse do imóvel na data da outorga da referida escritura, Facto:
30 da matéria de facto provada.
1-Na mesma data e ato, foram entregues à R/Recorrida pelos vendedores, as chaves da habitação, as chaves do anexo “A5” existente no 7.º Andar e as chaves de acesso às garagens, Facto:
31 da matéria de facto provada.
j) A anterior proprietária já ocupava os arrumos “A5” e o lugar de garagem “16” ou “X16”, desde data não concretamente apurada, Facto:
32 da matéria de facto provada.
k) Aquando da celebração do contrato promessa/escritura de compra e venda, foi transmitido à R/Recorrida pelos vendedores que o lugar de garagem e anexos estavam em fase final de licenciamento por parte do construtor, junto da Câmara Municipal de Gondomar, Facto:
33 da matéria de facto provada.
l) A R/Recorrida pagou por duas vezes às administrações do Condomínio (à época) as substituições dos portões de garagem, cujas chaves lhe foram sempre entregues quando eram substituídos, Facto:
34 da matéria de facto provada.
m) A R/Recorrida já pintou, pelo menos duas vezes, os anexos, e, sempre limpou o seu lugar de garagem, desde a data da sobredita aquisição que guarda o seu carro, guarda e conserva os seus haveres, abre e fecha a porta dos arrumos e garagem. Mantendo sempre na sua posse a chave dos arrumos, Facto:
35, 36, 37 e 38 da matéria de facto provada.
n) A R/Recorrida pagou sempre uma quota de 10,00€ para a comparticipação do seguro de responsabilidade civil relativamente aos seus arrumos, Facto:
39 da matéria de facto provada.
o) A anterior proprietária já pagava a luz elétrica dos arrumos, Facto:
40 da matéria de facto provada.
p) Pelo menos a partir de 29/11/1993, o contrato junto da EDP passou a estar em nome da R/Recorrida, que passou a assumir tal pagamento, o que sucedeu pelo menos até janeiro de 2010, Facto:
41 da matéria de facto provada.
q) Os atos descritos foram e são praticados à luz do dia, sendo do conhecimento de todos os condóminos e das pessoas das suas relações, Facto:
42 da matéria de facto provada.
r) Sempre a R/R/Recorrida agiu na certeza de que, com tais atos, não violava direitos de quem quer que fosse, Facto:
43 da matéria de facto provada.
s) E de que se tratava, da sua legítima proprietária, Facto:
44 da matéria de facto provada.
t) A presente ação foi intentada a 7/3/2019 e a R/R/Recorrida citada no dia 12/3/2019, Facto:
49 da matéria de facto provada.
IV. A questão a tratar restringe-se a questões de direito, nomeadamente quanto à possibilidade de a R/Recorrida poder adquirir por usucapião a propriedade do espaço de arrumos que se encontra na sua posse há mais de 26 anos, tendo presente a data de citação da Ré nos presentes autos.
A) Da não aplicabilidade da presunção registal do artigo 7.º CRP V. Não resulta provado nenhum facto anterior a 2019, altura em que a A/Recorrente, decidiu “aparecer” no edifício..., do qual se possa extrair o seu direito de propriedade sobre um lugar de arrumos “A5” existente no 7.º andar do Edifício..., com entrada pelo n.º ... da Rua 1 em Fânzeres-Gondomar.
VI.A presunção registal, não poderá funcionar, conhecendo-se as inúmeras irregularidades constantes do próprio registo predial, bem como da caderneta predial e ainda, da escritura de propriedade horizontal.
VII. i) Da Caderneta Predial, constam relativamente à fração “J ”
:
11 lugares de garagem na cave, 12 lugares de arrumos no 4.º Andar e 14 lugares no 7.º andar;
ii) Do Registo Predial, constam relativamente à fração “J ”
:
onze lugares de garagem na cave, vinte e cinco lugares de arrumos no 5.º andar e quarenta e quatro lugares no 7.º andar, iii) constam ainda, 8 frações, (DK onze lugares de garagem na cave, vinte e cinco lugares de arrumos no 5.º andar e quarenta e quatro lugares no 7.º andar, iii) constam ainda, 8 frações, (DK; onze lugares de garagem na cave, vinte e cinco lugares de arrumos no 5.º andar e quarenta e quatro lugares no 7.º andar, iii) constam ainda, 8 frações, (DK onze lugares de garagem na cave, vinte e cinco lugares de arrumos no 5.º andar e quarenta e quatro lugares no 7.º andar, iii) constam ainda, 8 frações, (DK;
DL;
DM;
DN;
DO;
DP; e DT DP; e DT;
DJ) que não existem fisicamente !!!
iv) Da escritura de propriedade horizontal relativa ao edifício em questão, resulta que a fração “R” se destina ao comércio, e comporta um lugar de garagem.
v) Porém, a planta entregue pela A. junto da CM de Gondomar, menciona pelo menos 4 (quatro) lugares de garagem pertencentes à fração “R”.
Qual documento representa a verdade? VIII. Das licenças de habitabilidade emitidas, não constam as frações “J”, “O” e “R”
;
IX. Nos termos do artigo 7.º do CRP,
O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define
», não existe, no domínio dessa presunção uma qualquer proibição de ilisãopelo que não oferece dúvida que estamos perante uma presunção ilidível (“ juris tantum”).
X. Da factualidade apurada, deve deste modo, considerar-se ilidida qualquer presunção de propriedade emergente do registo predial com base numa mera
prova do contrário
»(como se extrai dos factos provados).
B) Da aplicabilidade do instituto da Usucapião.
XI. A autora nunca impugnou os verdadeiros factos dos quais se pode extrair a usucapião da R/Recorrida relativamente ao espaço de arrumos, o que se por mais não fosse, sempre seria de reconhecer a favor desta tal modalidade de aquisição originária da propriedade.
XII. De acordo com entendimento jurisprudencial deste tribunal superior, a condição de unanimidade dos condóminos exigida por lei para modificação do título constitutivo da propriedade horizontal, de acordo com o artigo 1419.º n.º 1 do Código Civil só vigora se essa alteração se processar por via negocial.
XIII. O espaço em questão, representa uma unidade distinta, independente e isolada, com acesso único e próprio e direto a zona comum do edifício, nada impedindo a alteração do título da propriedade horizontal seja decretada por sentença judicial.
XIV. A R/Recorrida, atuou ao longo destes últimos 25 (vinte cinco) anos, quer como beneficiária do direito-o chamado “animus domini”, quer ainda com o “animus possidendi”.
XV. O descrito poder de facto, constante da matéria de facto provada, sobre o lugar de arrumos deve permitir, pois, à reconvinte a sua aquisição por usucapião.
XVI. Os pontos 16,17 e 18 da matéria de facto provada, estão em perfeito alinhamento e consonância com o artigo 1415.º do CC quando neste se lê:
“ só podem ser objeto de propriedade horizontal as frações autónomas que, além de constituírem unidades independentes, sejam distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública”, XVII. Diz o artigo 1251.º do CC que a posse é “o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”.
XVIII. Ora, a posse é suscetível de conduzir, em certas condições, à aquisição (aquisição originária) de direitos reais, maxime do direito de propriedade.
XIX. A posse da R/Recorrida, foi exercida à vista de todos, mantida por mais de 25 anos, sem violência e de boafé, ou seja, não titulada, de boa fé, pacífica e pública, convicção de que não lesavam os direitos fosse de quem fosse.
XX. Desde a celebração do contrato de compra e venda que a R/Recorrida, ocupa exclusivamente o espaço, tal e qual o já faziam os anteriores proprietários.
XXI. De acordo com o artigo 1287.º do Código Civil, a posse do direito de propriedade mantida por certo lapso de tempo, faculta, ao possuidor a aquisição do direitopor usucapião, XXII. E, o artigo 1296.º refere que, tratando-se de imóveis e não sendo a posse violenta, oculta nem de má fé, o lapso de tempo exigido para a usucapião é de quinze anos.
XXIII. É, pois, inegável, que a R/Recorrida exerce a posse por tempo suficiente para adquirir, tendo presente que recebeu as chaves e ocupou as frações, em 09-11-1993 ou seja, mais de vinte anos.
XXIV. Significa isto, que mesmo que qualificando a posse como de má fé, ela terá durado tempo suficiente para que se tenha produzido a aquisição (cf. artigo 1296.º, 2.ª parte, do CC).
XXV. Concatenando toda a matéria de facto provada e a forma como foi configurada a presente ação, deve-se concluir que quarenta anos depois da construção e venda dos imoveis, a A/Recorrente, procura agora beneficiar da “confusão” que provocou aquando da construção do Edifício..., reinterpretando e afeiçoando aos seus interesses atuais em vez de corrigir os resultados da sua conduta irregular pretérita.
XXVI. Dai que, o instituto da usucapião permita reestabelecer o equilíbrio das posições jurídicas, fazendo corresponder a titularidade de direito à titularidade de facto.
XXVII. Mostram-se cumpridos os requisitos impostos pelo artigo 1415.º do CC impõe para a autonomização de frações, bem como os requisitos da posse, configurando-se assim, a aquisição por usucapião, XXVIII. Implicando deste modo que a R/Recorrida, tenha adquirido o direito de propriedade sobre a mencionada fração.
XXIX. Porém, em sentido contrário, se pronunciou o douto acórdão da Relação do Porto, do qual aqui se recorre, “ atendendo a que o artigo 1419.º, n.º 1, do CC só admite a modificação através de escritura pública ou documento particular autenticado e, sobretudo, do acordo de todos os condóminos, [...] deixando ainda dito que. “ na formulação expressa no artigo 1287.º do Código Civil:
ao definir a usucapião, previu que esta forma de aquisição originária não pode ser invocada quando exista “disposição em contrário”, previsão que nos transporta inequivocamente para os casos em que o reconhecimento desse título contende com lei expressa”.
XXX. Com o respeito devidoque é muito, o argumento perde definitivamente força perante o disposto no artigo 1417.º, n.º 1, do Código Civil, onde expressamente se prevê que, a propriedade horizontal seja constituída por usucapião.
XXXI. Se a usucapião tem aptidão para constituir a propriedade horizontal, também terá de ter aptidão para simplesmente modificar os termos em que foi constituída a propriedade horizontal.
XXXII. A causa de constituição deve poder, por maioria de razão, ser causa de modificação, tanto mais que se trata de modificação meramente jurídica ou formal (a modificação física preexiste.
XXXIII. Seja como for, o que está aqui verdadeiramente em causa não é uma modificação do título constitutivo por decisão judicial, limitando-se a decisão judicial a reconhecer (certificar) a aquisição e sendo a causa desta, como se viu, a usucapião.
XXXIV. Acresce, que sendo possível, como é, o direito de aquisição por usucapião de frações autónomas quando o prédio está absolutamente indiviso, de forma natural deverá ser concebível quando já se verifica a divisão, como no presente caso.
XXXV. O aparente conflito, entre as normas dos artigos 1417.º, n.º 1, e 1419.º, n.º 1, do CC deve ser resolvido por via da interpretação restritiva da segunda. Nesta linha de raciocínio, as exigências impostas por ela valerão “in totum” mas somente para as hipóteses em que a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal é feita por negócio jurídico.
XXXVI. A letra da lei autoriza, aliás, esta interpretação, não resultando dela, em rigor, que o título constitutivo só possa ser modificado naqueles termos.
XXXVII. A ratio do artigo 1419.º, n.º 1, do CC, pretende que as modificações do título constitutivo sejam tanto quanto possível ponderadas e conciliadoras dos interesses, porventura conflituantes, de todos os condóminos, impedindoas sempre que sejam sem ou contra o voto de algum dos condóminos, porém unicamente as que sejam levadas a cabo no âmbito da liberdade negocial.
XXXVIII. A solução que se propugna para o caso concreto não constitui uma originalidade ou uma novidade na jurisprudência nem sequer neste Supremo Tribunal.
XXXIX. Repare-se que, não obstante perante o caso da aquisição, por parte do condomínio, de espaço correspondente, no título constitutivo), já se sustentou no Acórdão de 11 de Outubro de 2005, Proc. 2377/05:
“[o] artigo 1419, n.º 1, do CC-segundo o qual o título constitutivo da propriedade horizontal pode ser modificado por escritura pública com o acordo de todos os condóminosnão constitui óbice a que por decisão judicial se reconheça que o Condomínio adquiriu por usucapião uma fração autónoma do prédio, alterando nessa medida o título, passando a anterior fração autónoma a ser um bem comum”.
XL. Com efeito, afigura-se legalmente viável a intervenção do tribunal para dirimir uma tal questão, porquanto a todo o direito háde corresponder uma ação destinada a fazêlo reconhecer em juízo.
XLI. Por fim, o Acórdão também deste Supremo Tribunal de 16 de Dezembro de 2010, Proc. 1727/07.1TVLSB.L1.S1, em que se entendeu que, “ (...) provado que os autores, ao longo de mais de vinte anos, exerceram uma posse própria e exclusiva sobre uma divisão do prédio, que designaram por cave frente, que não se encontra descrita como fração autónoma no respetivo título de constituição da propriedade horizontal, o Tribunal decidiu corretamente, ao reconhecer a propriedade dos autores sobre o descrito espaço.”
XLII. Resulta do exposto, que o Tribunal recorrido não decidiu bem quando concedeu tutela jurídica à posição da A/Recorrente, e, consequentemente, deixou decair a pretensão da R/Recorrida.
XLIII. E deste modo, ao decidir como decidiu, violou o Venerando Tribunal da Relação do Porto o disposto nos arts. 2.º e 7.º do Código de Registo Predial, e dos artigos 1287.º, 1288.º, 1414.º, 1415.º, 1417.º, 1418.º, 1419.º e 1422-A todos do Código Civil.
Nestes termos, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente, ser o douto acórdão recorrido revogado, sendo substituído por outro que contemple as conclusões atrás aduzidas, tudo com as legais consequências.
A recorrida contraalegou, pugnando pela improcedência da revista.
Foi requerido ao Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo do art. 686.º/2, do CPCivil, que o julgamento do recurso se fizesse na forma ampliada, com intervenção do pleno das secções cíveis, o que foi deferido.
O Ministério Público emitiu parecer no qual concluiu pela improcedência do presente recurso de revista, devendo ser fixada jurisprudência com o seguinte sentido:
I-A usucapião não pode ser invocada se o seu reconhecimento colidir com normas legais de natureza imperativa, de acordo com o preceituado no artigo 1287.º, do C. Civil.
II-O regime da propriedade horizontal impede a aquisição por usucapião do direito de propriedade sobre parte fisicamente individualizada de uma fração autónoma cuja aquisição se mostra registada a favor de terceiro.
Colhidos os vistos, cumpre deliberar.
***
Constitui objecto da presente revista ampliada saber se um condómino pode adquirir, por usucapião, a titularidade do direito real de propriedade de um espaço de arrumos de um prédio, constituído em propriedade horizontal.
Parte-se da resposta a esta questão, para saber se aproveita à autora a presunção de propriedade derivada do registo predial.
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São os seguintes os enunciados de dados de facto considerados assentes nas instâncias:
1-Encontra-se registada a favor da Autora, desde 20/8/1982, a propriedade da fracção autónoma denominada pela letra “J”, do prédio em propriedade horizontal sito na Rua 2 n.º ... a ... e Rua 1 n.º ... a ..., da união de freguesias de Fânzeres e São Pedro da Cova, concelho de Gondomar, descrita na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º ...-J, e inscrita na matriz predial urbana sob o n.º ..92 da união de freguesias de Fânzeres e S. Pedro da Cova, concelho de Gondomar.
2-Consta da descrição registral relativa à aludida fração que a mesma é composta de estabelecimento comercial, 11 lugares de garagem na cave, 25 de arrumos no 5.º andar e 44 no 7.º andar.
3-Por outro lado, da caderneta predial relativa à mesma fração consta que é composta por estabelecimento destinado a comércio no rés-do-chão, 11 lugares de garagem, 12 lugares de arrumos no 4.º andar e 14 lugares no 7.º andar.
4-Os arrumos denominados pelas letras “A1”, “A2”, “A3”, “A4”, “A5”, “A6”, “A7” e “A8” têm entrada pelo n.º ... do prédio já identificado.
5-Situando-se no 7.º andar do mesmo prédio.
6-Na referida entrada apenas existem os referidos 8 arrumos, para um total de 36 fogos.
7-A A. entrou em contacto com as Administrações de Condomínio, solicitando apoio quanto à identificação das pessoas que utilizavam os aludidos lugares de arrumos.
8-As Administrações de Condomínio, em concreto a da entrada n.º ... da Rua 1, entendendo que o assunto ultrapassava as suas funções e obrigações, preferiu não identificar qualquer ocupante, informando até que desconhecia quem ocupava qualquer arrumo, sabendo ainda assim que os mesmos eram usados.
9-Em data não concretamente apurada, a A. procedeu à afixação de comunicado, com data aposta de 19/12/2018, nas portas dos aludidos arrumos (que corresponde ao doc. 4 junto com a p.i.), com o seguinte teor:
“A Habiserve Construções, Norte, L.da, na qualidade de proprietária da fração letra “J” [...] da qual fazem parte integrante os espaços de arrumono 7.º andar, com entrada pelo n.º ..., para notificar V. Exa.-que se encontram a ser ocupados de forma não legitimada, vem com o presente comunicado solicitar a V. Exa. para no prazo de cinco (5) dias, contados da afixação do presente comunicado, entrar em contacto, no sentido de proceder ao arrendamento do espaço, conforme acreditamos ser do interesse de V. Exa.
Caso não pretenda arrendar o espaço, deverá proceder à entrega do mesmo livre de pessoas e bens, até ao limite do prazo indicado supra, abstendo-se de usar aquele ou qualquer outro espaço propriedade da empresa. Mais acrescento, que todos os espaços de arrumo, de todas as entradas, tanto no 4.º como no 7.º andares do prédio são em exclusivo propriedade da Habiserve Construções Norte, Lda. [...] É intenção regularizar as ocupações verificadas de forma extrajudicial e por acordo, tal como aconteceu com os espaços de estacionamento na cave, no entanto, ultrapassada a data indicadaquer para contacto no sentido do arrendamento do espaço ou entrega do mesmocaso se verifique a manutenção da situação ou ausência de notícias da sua parte, não deixaremos de deitar mão a todos os meios legais ao nosso alcance para alcançar a desocupação do espaço, algo que acreditamos não ser do interesse de V. Exa., como não é do interesse desta empresa.”
10-Ultrapassado o prazo concedido, nenhuma pessoa entrou em contacto com a A.
11-A A. fez-se representar na Assembleia Geral de Condóminos que teve lugar no dia 25 de janeiro de 2019, através de dois advogados do seu departamento jurídico, Dr. FF e Dr.ª GG.
12-A presença dos representantes da A. criou um enorme alvoroço na Assembleia.
13-Alguns dos presentes opuseram-se à presença da A., inclusive a R.
14-No prédio em questão, existe uma Administração de Condomíniocom diferentes NIPCpara cada uma das entradas habitacionais (num total de quatro) e outra para o Centro Comercial.
15-A A. tentou entrar em contacto com a R. para tratar da situação do arrumo “A5”, no entanto, por esta foilhe dito que tinha pago o preço pelo arrumo ao anterior proprietário do apartamento onde reside e que iria consultar um advogado para saber como proceder.
16-O espaço em questãoArrumo “A5”-representa uma unidade distinta, independente e isolada, com acesso único e próprio e direto a zona comum do edifício.
17-Tem cerca de 21m2.
18-A entrada faz-se por uma única porta, que fecha e abre com chave, tem três janelas e interiormente apresenta as paredes e teto pintados e o pavimento revestido a linóleo.
19-A A. remeteu à R. carta subscrita por mandatário e datada de 9 de outubro de 2018 e validamente rececionada pela mesma em 12 de outubro de 2018, onde se dizia que “encontrando-se o veículo de V. Exa.-de marca BMW e matrícula V1-e cuja propriedade foi verificada junto da Conservatória do Registo Automóvel, na data da presente notificação, e desde há largos meses, parqueado indevidamente no lugar de estacionamento denominado/identificado na parede por “X-16”, verificando-se essa situação de ocupação há vários meses, para o interpelar para no prazo máximo de cinco (5) dias desocupar o espaço, retirando do mesmo todos os bens que lhe pertençam e deixando-o devoluto de pessoas e bens. [...] Ultrapassada a data indicada supra e sem necessidade de qualquer outro aviso, caso se verifique a manutenção da situação verificada, intentaremos a competente ação judicial para desocupação do local, reivindicação da posse e ressarcimento dos danos pela ocupação ilegal. Cumpre também a presente informar, que todos os espaços indicados supraincluindo o que V. Exa. ocupa há diversos meses sem qualquer contrapartida-se encontram disponíveis para arrendamento, como será, certamente, do seu interesse.”
20-A R. reuniu com a representante da A.-Dra. GG-a 14 de dezembro de 2018, nas instalações da empresa.
21-Nesta data, a A. acordou com a R. a cedência do gozo a esta última, a troco do pagamento de uma contrapartida mensal de € 25, do lugar de estacionamento designado como “16” ou “X16”, identificado como fazendo parte da fração “R”, pelo prazo certo de 1 ano, com início em 1 de dezembro de 2018.
22-No mesmo dia de 14 de dezembro de 2018, foi entregue à R. um comando de acesso ao local, na medida em que a A. procedeu à alteração do mecanismo de fecho do portão existente.
23-Ainda no mesmo dia, a R. entregou à A. a quantia de € 50,00, em numerário, para pagamento das rendas de dezembro de 2018 e janeiro de 2019.
24-Depois, apenas procedeu ao pagamento de mais uma renda mensal, por transferência bancária, relativa ao mês de fevereiro de 2019.
25-Da escritura de propriedade horizontal relativa ao edifício em questão, resulta que a fração “R” se destina ao comércio, e comporta um lugar de garagem.
26-Porém, a planta entregue pela A. junto da CM de Gondomar, menciona pelo menos 4 (quatro) lugares de garagem pertencentes à fração “R”.
27-Por documento particular datado de 20/10/1993, intitulado “contrato promessa de compra e venda”, DD, na qualidade de “promitente vendedora” e AA, aqui R., na qualidade de “promitente compradora”, declararam, respetivamente, prometer vender e comprar, “a fração autónoma, designada pelas letras EF, com tudo o que a compõe correspondente a uma habitação no sexto andar direito traseiras, com arrumo no sétimo andar do mesmo prédio e lugar de garagem com entrada pelo número..., da Rua 1 do prédio em regime de propriedade horizontal sito no gaveto das Rua 1 n.os ...-...-...-...-...-... e ... e Rua 2, n.os ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ..., freguesia de Fânzeres-concelho de Gondomar, inscrito na matriz urbana sob o artigo..64 e descrito sob o número..07 e fls. 122 do livro 8-9”, pelo preço de 8.500.000$00 (oito milhões e quinhentos mil escudos).
28-Posteriormente, por escritura pública de compra e venda celebrada em 9 de Novembro de 1993, a referida DD e marido EE declararam vender à Ré AA, a fração autónoma designada pelas letras “EF”, correspondente a uma habitação no sexto andar direito traseiras com entrada pelo n.º ... da Rua 1, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua 1 n.os ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e Rua 2, n.os ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ... da freguesia de Fânzeres, concelho de Gondomar, inscrita na matriz sob o artigo..64-EF, mais se referindo que o prédio estava descrito no registo predial sob o número..07.
29-Mostrando-se tal aquisição registada a favor da R.
30-A R. entrou de imediato na posse do imóvel na data da outorga da referida escritura.
31-Na mesma data e ato, foram entregues à R. pelos Vendedores, as chaves da habitação, as chaves do anexo “A5” existente no 7.º Andar e as chaves de acesso às garagens.
32-A anterior proprietária já ocupava os arrumos “A5” e o lugar de garagem “16” ou “X16”, desde data não concretamente apurada.
33-Aquando da celebração do contrato promessa/escritura de compra e venda, foi transmitido à R. pelos Vendedores que o lugar de garagem e anexos estavam em fase final de licenciamento por parte do construtor, junto da Câmara Municipal de Gondomar.
34-A R. pagou por duas vezes às administrações do Condomínio (à época) as substituições dos portões de garagem, cujas chaves lhe foram sempre entregues quando eram substituídos.
35-A R. já pintou, pelo menos duas vezes, os anexos.
36-E, sempre limpou o seu lugar de garagem.
37-Desde a data da sobredita aquisição que guarda o seu carro, guarda e conserva os seus haveres, abre e fecha a porta dos arrumos e garagem.
38-Mantendo sempre na sua posse a chave dos arrumos.
39-A R. pagou sempre uma quota de 10,00€ para a comparticipação do seguro de responsabilidade civil relativamente aos seus arrumos, 40-A anterior proprietária já pagava a luz elétrica dos arrumos.
41-Pelo menos a partir de 29/11/1993, o contrato junto da EDP passou a estar em nome da R., que passou a assumir tal pagamento, o que sucedeu pelo menos até janeiro de 2010.
42-Os atos descritos foram e são praticados à luz do dia, sendo do conhecimento de todos os condóminos e das pessoas das suas relações.
43-Sempre a R. agiu na certeza de que, com tais atos, não violava direitos de quem quer que fosse.
44-E de que se tratava, da sua legítima proprietária.
45-A Câmara Municipal de Gondomar, indeferiu, inicialmente, a emissão das licenças de habitabilidade, à A. (à data BB e CC Lda.) pelo seguinte motivo:
“A compartimentação e o número dos arrumos no último piso não corresponde ao que foi aprovado; há diminuição no número de lugares de garagem, em favor da fração R; a propriedade horizontal não corresponde ao nível da cave e rés-do-chão e arrumos ao projecto aprovado, e, a rede de saneamento não foi executada de acordo com o aprovado”.
46-As licenças de habitabilidade viriam a ser emitidas unicamente em 18 de dezembro de 1992.
47-Das licenças de habitabilidade emitidas, não constam as frações “J”, “O” e “R”.
48-A R. sofre de patologias do foro oncológico.
49-A presente ação foi intentada a 7/3/2019 e a R. citada no dia 12/3/2019.
50-O valor de quota do condomínio mensal cobrada pela Administração de Condomínio em relação a cada um dos arrumos é de € 10,00 (dez euros).
51-Na Assembleia de Condóminos de 03/11/2012, a R. votou favoravelmente a cobrança de dívida ao condomínio da A..
52-A R. nunca pagou IMI nem qualquer quota de condomínio relativa à fração “J” ou ao espaço de arrumo A5.
***
1-Concretização do objecto da revista
Pode suceder que, na vivência do condomínio, um dos condóminos comece a utilizar uma parte de um prédio que, aparentemente, não é afectada a nenhum deles.
Em tais casos, pode colocar-se a questão de saber se, amadurecido no tempo o uso exclusivo, é possível esta actuação conduzir à aquisição do direito de propriedade sobre aquela parte.
Um conceito jurídico fundamental nesta situação é a usucapião, figura que o artigo 1417.º 1 do Código Civil prevê, como meio de constituição da propriedade horizontal (serão deste código os artigos ulteriormente citados sem menção de diferente fonte).
O caso sujeito, centra-se na usucapião, por parte da ré, de um espaço de arrumos de um prédio, já constituído em propriedade horizontal, que a autora considera integrar a sua fracção.
Esta situação, distingue-se da usucapião como forma de constituição da propriedade horizontal, na qual
são todos os condóminos que têm de actuar sobre o prédio, por eles parcelado em fracções susceptíveis de corresponderem às exigências da sua utilização em regime de propriedade horizontal, como se efectivamente este regime estivesse regularmente constituído, usando, pois, cada um a sua fracção autónoma com exclusão dos demais [...] e actuando pela mesma forma por que actuariam como se fossem cotitulares de um direito de propriedade horizontal regularmente constituído sobre o prédio
»(cf. Rui Miller, A Propriedade Horizontal no código civil, Almedina, Coimbra, 1998:
96/97; cf. também Ana Taveira da Fonseca,
Comentário ao artigo 1417.º
», Comentário ao Código Civil, Direito das Coisas, Universidade Católica, Lisboa, 410).
***
2-Da usucapião dos arrumos A5 e do seu funcionamento
Vejamos se o espaço de arrumos A5 pode ser considerado coisa própria da ré, por o ter adquirido por usucapião.
O esboço legal do instituto da usucapião é-nos dado pelo artigo 1287.º:
pelo facto da posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais, mantida por certo lapso de tempo, adquirem-se coisas.
Na base desta forma de aquisição do direito real, a título originário, além das mesmas exigências que justificam a tutela da posse, a saber, a defesa da paz pública, o valor da continuidade e a protecção da confiança, está a filosofia do legislador a propósito da propriedade produtiva que o leva a preferir ao formal titular do direito aquele que faz um uso efectivo do bem (cf. José Dias Ferreira, Código Civil Portuguez, Annotado, Segunda Edição, vol. I, Imprensa da Universidade, Coimbra, 1894:
359, Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, 2.ª ed., Principia, Estoril, 2020:
489 e António Menezes Cordeiro, Código Civil Comentado, IVDireito das Coisas, Almedina, Coimbra, 2024:
263).
Para que se efective a ajuizada usucapião no condomínio, exige-se que o condómino demonstre que a posse por ele realizada de uma parte do condomínio é pública, isto é reconhecível pelos outros, e pacífica, ou seja, exclusiva, sem oposição de quem quer que seja.
Como explica Henrique Mesquita,
para conduzir à usucapião, a posse tem de revestir sempre dois caracteres:
tem de ser pública e pacífica (artigos 1293.º al. a), 1297.º e 1300.º, 1)
», sendo que
os restantes caracteres que a posse pode revestir (ser de boa ou má fé, titulada ou não titulada e estar ou não inscrita no registo) influem apenas no prazo necessário à usucapião
»(Direitos Reais, Sumários das Lições ao Curso de 1966-1967, Coimbra:
112).
Não está, todavia, pacificada a ideia de que é possível adquirir por usucapião a titularidade do direito real de propriedade de uma parte de um prédio, em regime de propriedade horizontal.
Na verdade, uma forte corrente jurisprudencial responde de forma negativa a essa possibilidade.
Constituem exemplos dessa corrente os seguintes arestos:
a) Do Supremo Tribunal de Justiça:
i) 13.12.2007, Proc. 07A3023;
ii) 20.10.2011, Proc. 369/2002;
iii) 4.10.2018, Proc. 4080/16;
iv) 06.12.2018, Proc. 8250/15.
b) Do Tribunal da Relação de Lisboa:
v) 08.05.1990, BMJ 397.º:
556;
vi) 20.12.2022, Proc. 405/20;
vii) 05.12.2024, Proc. 11115/19.
c) Do Tribunal da Relação do Porto:
viii) 13.09.2016, Proc. 21444/10.
d) Do Tribunal da Relação de Coimbra:
ix) 23.10.2012, Proc. 16/11;
x) 08.05.2018, Proc. 1483/16
e) Do Tribunal da Relação de Guimarães:
xi) 15.04.2021, Proc. 3120/19 (com voto de vencido).
Na doutrina, acompanham esta posição António Pereira da Costa,
Loteamento, acessão e usucapião:
encontros e desencontros
», Revista do Centro de Estudos de direito do Ordenamento, Urbanismo e Ambiente, 11, (2003):
91, Fernando Pereira Rodrigues, Usucapião, Constituição originária de direitos através da posse, Almedina, Coimbra, 2008:
16, Salazar Casanova,
Usucapião, acessão industrial e construção clandestina
», A Interação do Direito Administrativo com o Direito Civil, CEJ, Lisboa, 2016:
73;
Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, 4.ª ed., Principia, Parede, 2020:
494, Pedro Eiró e Miguel Carmo Mota, Comentário ao Código Civil, Direito das Coisas, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2021:
94/95 e Armando Triunfante, Lições de Direitos Reais, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2024:
306.
Esta orientação desenvolve um raciocínio assente, no essencial, nos seguintes 4 pontos:
1.º Os condóminos são proprietários exclusivos das fracções autónomas e comproprietários das partes comuns (artigo 1420.º). Por isso, as partes comuns de um condomínio não podem ser objeto de apropriação individual, porque a posse não é exclusiva.
2.º O princípio da especialidade ou da individualização implica, entre outras manifestações, que os direitos reais só nascem se o respectivo objecto existir separado ou autonomizado de outras coisas (Rui Pinto Duarte, Curso…, 4.ª ed., op. cit:
45, Orlando de Carvalho, Direito das Coisas, Coimbra Editora, Coimbra, 2012:
1663; também José Oliveira Ascensão, Direito Civil, Reais, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1983:
561 e José Alberto Vieira, Direitos Reais, Coimbra Editora, Coimbra, 2008:
214 ss. e autores aí citados).
Incidindo a propriedade unitariamente sobre a totalidade da coisa que constitui o seu objecto, neste caso as fracções autónomas e as zonas comuns, não podem estas coisas, não destacadas, ser objecto de aquisição originária.
3.º A par do instituto da usucapião, de natureza privatística, há no nosso ordenamento jurídico disposições de natureza jurídicoadministrativa, portanto de direito público, de carácter imperativo, que disciplinam o ordenamento do território e condicionam as operações de loteamento, as obras de urbanização e os actos dos particulares relativamente a bens imóveis.
Isto mesmo reflecte a proposição normativa do 1287.ºque, ao definir a usucapião, preceitua que esta forma de aquisição originária não pode ser invocada quando exista
disposição em contrário
», previsão que remete para os casos em que o reconhecimento desse título contende com lei expressa.
Constituem casos em que está expressamente vedada a aquisição por usucapião:
i) Os bens do domínio público do Estado, por não serem susceptíveis de apropriação individual (artigo 202.º, 2):
ii) O artigo 6.º, 3, da Lei 75/17, de 17-8, que, relativamente a terrenos baldios, preceitua que
encontram-se fora do comércio jurídico, não podendo, no todo ou em parte, ser objeto de apropriação por terceiros por qualquer forma ou título, incluindo por usucapião
».
Considera-se igualmente abrangidos pelo referido sintagma, os seguintes casos:
iii) Situações que se enquadram nos artigos 45.º do Regime de Reconversão das Áreas Urbanas de Génese Ilegal (Lei 91/95, de 2 de Setembro);
iv) Situações referidas no 49.º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (DL n.º 555/99, de 16 de Dezembro).
Não obstante o artigo 1287.º excluir a usucapião quando haja
disposição em contrário
», o seu âmbito de aplicação é mais vasto, não sendo de excluir a usucapião apenas quando uma disposição legal o determine, devendo sêlo também quando ofenda princípios do direito público
Reforça-se este argumento com a convocação da unidade do sistema jurídico, elemento essencial da interpretação da lei (art. 9.º/1).
Como se lê no acórdão do STJ de 26.1.2016, Proc. 5434/09,
os tribunais judiciais não podem [...] manter-se como espaços de aplicação exclusiva do direito civil, ignorando as intersecções deste com o direito do urbanismo, sendo cada vez mais urgente, face à natureza imperativa e aos interesses públicos que este último prossegue, abandonar o estado de unicidade nas relações entre ambos estes ramos do direito
».
Na mesma linha de raciocínio, diz Luís Filipe Cravo
que a consolidação de uma situação de facto por via da invocação do instituto da usucapião só poderá ter lugar desde que satisfeitos os requisitos decorrentes do direito do urbanismo, face à natureza imperativa e aos interesses públicos que este último prossegue, sendo certo que as normas de cariz administrativo respeitantes ao fracionamento, ao loteamento e ao destaque de imóveis devem ser atendidas aquando do reconhecimento das formas de aquisição da propriedade, mormente da usucapião, posto que, sem isso, inexiste diálogo entre o direito civil e o direito do urbanismoou não é ela mais do que uma mera e vã proclamação!
Ademais, tal o exige o objetivo de aplicação uniforme e coerente do ordenamento jurídico como um todo
»(
Fracionamento da Propriedade:
será a usucapião um instituto em vias de extinção?
», Estudos em Comemoração dos 100 anos do Tribunal da Relação de Coimbra, Almedina, Coimbra, 2018:
142).
Ainda no mesmo sentido, Dinamene Santos destaca que as
regras jurídicas existentes [as do direito civil e as do direito do urbanismo] devem ser lidas em harmonia, e por isso sem distinguir entre as áreas ou ramos do direito em causa, pois que o fim último é a proteção da segurança imobiliária
».
Agrega-se a estas considerações, a menção ao artigo 1379.º quando sanciona os actos de fraccionamento de prédios rústicos em contravenção do disposto nos artigos 1376.º e 1378.º Tudo o exposto para se extrair a conclusão de que a usucapião deve ceder perante normas imperativas que, sucessivamente, têm vigorado em matéria de direito imobiliário e do urbanismo.
4.º A aquisição de parte não afectada em exclusivo a um dos condóminos por usucapião, por banda de um desses condóminos, implica modificação do título constitutivo da propriedade horizontal.
Ora o título constitutivo da propriedade horizontal só pode ser modificado, em regra, por escritura pública ou por documento particular autenticado, havendo acordo de todos os condóminos (artigos 1419.º 1 CC e 59.º e 60.º, 1 Código do Notariado).
Por isso, sem esse acordo, devidamente formalizado, não pode uma decisão judicial reconhecer a usucapião.
Em conclusão:
o tribunal não pode alterar o título constitutivo da propriedade horizontal em violação das normas legais em vigor, designadamente sem aprovação de todos os condóminos e sem documento comprovativo de que a alteração está de acordo com as leis e regulamentos em vigor na autarquia.
Não concordamos com esta argumentação, pelas seguintes ordens de razão:
1.ª O primeiro argumento é logicamente incoerente e assenta numa petição de princípio.
Se se afirma que um condómino não pode usucapir parte comum porque ele é já dono dela, dá-se como demonstrado o que é preciso demonstrar, isto é, que a compropriedade impede a usucapião.
2.ª O segundo argumento é igualmente frágil. O princípio da especialidade ou da individualização não é absoluto.
O regime da propriedade horizontal constitui uma das excepções a este princípio, uma vez que as respectivas configuração legal e natureza jurídica, permitem que se possa pôr em causa o princípio da unicidade, e admitir a usucapião de uma parte conexa com a fracção autónoma da coisa, isto é, sobre uma entidade material com autonomia.
3.ª Passemos agora à terceira ordem de argumentos.
Defende-se uma interpretação sistemática do artigo 1287.º designadamente quando ressalva a exclusão da usucapião feita por outras disposições.
Argumenta-se com a unidade do sistema jurídico, com a interacção do direito do urbanismo com o direito civil.
Não nos parece que este argumento tenha condições para prevalecer.
A interpretação, bem o sabemos, deve ter em conta
a unidade do sistema jurídico
»(artigo 9.º).
Uma regra não surge do nada, nem permanece isolada. Toda a regra é expressão de uma ordem global.
Por isso, como explica Oliveira Ascensão,
a interpretação não se faz isoladamente, atendendo por exemplo a um texto como se fosse válido fora do tempo e do espaço. Resulta pelo contrário da inserção desse texto num conjunto jurídico dado
»(O Direito, Introdução e Teoria Geral, Uma perspectiva LusoBrasileira, 10.ª ed., Almedina, Coimbra, 1997:
403/404).
As relações que se pretendem estabelecer entre as regras do direito administrativo e do direito civil têm
natureza remota
»(O. Ascensão, idem).
Não existe nenhuma incoerência entre admitir-se a usucapião de uma fracção de um prédio já constituído em propriedade horizontal e os comandos do ordenamento jurídico globalmente considerado.
Por outro lado, uma outra técnica argumentativa típica da interpretação sistemática faz apelo à presunção de que a linguagem legislativa tem consistência terminológica.
Trata-se, como diz Riccardo Guastini, daquela maneira de ver segundo a qual o legislador emprega qualquer termo ou sintagma sempre com o mesmo significado (L`interpretazione dei documenti normativi, Giuffrè, Milano, 2004:
170).
O sintagma
salvo disposição em contrário
» do artigo 1287.º não significa a ressalva das normas imperativas, em matéria urbanística, existentes no vasto campo do direito imobiliário e do urbanismo.No 1.º anteprojecto do Código Civil, sobre usucapião, da autoria de Pinto Coelho (BMJ n.º 88), o substantivo disposição estava adjectivado com o termo expressa (
salvo disposição expressa em contrário
»).
Só com o anteprojecto saído da 1.ª revisão ministerial o adjectivo foi suprimido, certamente por se ter considerado desnecessário e para uniformizar o segmento com os lugares paralelos constantes dos actuais artigos 123.º, 750.º, 1424.º,1, 1435.º, 4 e 1588.º Nenhum destes artigos ressalva norma que não esteja expressa e muito menos consente a chamada de limitações normativas puramente de sistema.
Quer o artigo 1424.º, 1, quer o artigo 1435.º, 4, respectivamente sobre o critério de repartição dos encargos comuns do condomínio e sobre a duração do mandato do administrador, ressalvam a existência, no título constitutivo da propriedade horizontal, no regulamento, ou ainda o que for fixado em deliberação dos condóminos, de regras especiais. Só na falta destas se aplica a regra em questão.
Os restantes três artigos ressalvam outras disposições expressas do código, não fazendo sentido equacionar outras ressalvas que não sejam de fonte legislativa ou concordatária.
A incapacidade de gozo dos menores está excepcionada pelo artigo 127.º;
1; a solução do conflito entre privilégios mobiliários especiais e direitos de terceiro constante do artigo 750.º encontra excepção no que concerne ao privilégio especial por despesas de justiça previsto no artigo 746.º; a excepção ao artigo 1588.º quanto ao regime aplicável aos efeitos civis do casamento católico ser o do código, só hoje persiste no artigo 1625.º
Para que a interpretação do artigo 1287.º possa ter em conta, como deve, a unidade do sistema jurídico (artigo 9.º, 1),o sintagma em análise só pode referir-se a ressalvas expressas, tais como as que constam, por exemplo, da Lei dos Baldios, do artigo 55.º do Código do Direito de Autor (Lei 45/85, de 17 de Setembro o
direito de autor não pode ser adquirido por usucapião
») e do artigo 19.º do Regime Jurídico do Património Imobiliário Público (Decreto-Lei 280/2007, de 7 de Agosto:
Os imóveis do domínio público não são susceptíveis de aquisição por usucapião
»).
Com ressalva do que decorre do disposto no artigo 1421.º, 1, no nosso ordenamento não há norma expressa que proíba a aquisição por usucapião de determinados elementos de um prédio constituído em propriedade horizontal.
O artigo 1293.º apenas exclui da usucapião as servidões prediais e os direitos de uso e de habitação.
Não estando em causa, no caso vertente, nenhuma operação de loteamente urbano ou urbanística, com o sentido constante do artigo 2.º, alíneas i) e j), do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (RJUE), nenhuma obra de urbanização ou obra particular, nem nenhum negócio jurídico de constituição ou transmissão de lotes, fica afastada a pertinência da referência aos regimes de Reconversão das Áreas Urbanas de Génese Ilegal ou do RJUE.
Um outro argumento levanos a afastar a afirmação de que a usucapião não pode permitir resultados que se mostrem impedidos por disposições legais.
Estamos a pensar nas situações em que a lei admite a aquisição de direitos, por usucapião, apesar de lei expressa que proíbe os comportamentos que lhe estão na base.
São os exemplos da aquisição de uma servidão de vistas em violação do artigo 1360.º, 1 ex artigo 1362.º e da aquisição de uma servidão de estilicídio em violação do artigo 1365.º, 1 ex artigo 1365.º, 2 (Armando Triunfante,
A usucapião e os seus efeitos; fixação temporal de efeito retroactivo da usucapião e normas imperativas A usucapião e os seus efeitos; fixação temporal de efeito retroactivo da usucapião e normas imperativas
», Edição Comemorativa do Cinquentenário do Código Civil, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2017:
492).
Por fim, não colhe a invocação de um interesse público para obstar à usucapião.
Há quem veja no instituto da propriedade horizontal a confluência de uma pluralidade de interesses:
interesses de todos os condóminos, interesses de todos os cidadãos (direito de habitação, saúde, higiene, bem estar, qualidade de vida, defesa do ambiente) interesses de toda a comunidade (urbanismo, planeamento, desenvolvimento sustentável).
Não cremos que estas considerações valham para todos os casos. Na aquisição de um espaço de arrumos, nos termos defendidos neste acórdão, estão em causa interesses essencialmente privados, dos condóminos entre si, não se descortinando que possam ser atingidos interesses públicos ou de carácter colectivo.
4.ª Vejamos agora o quarto grupo de argumentos.
A questão que ora se coloca consiste em saber se a aquisição, por parte de um dos condóminos de um determinado espaço físico que, à luz do título, não aparenta pertencer a nenhum dos condóminos, pode ser justificada pela usucapião, sendo que tal aquisição conduziria a uma alteração efectiva da propriedade horizontal, constituída sobre o prédio.
Argumenta-se, como vimos, que não:
a usucapião implica a modificação do título e tal alteração só pode fazer-se mediante acordo de todos os condóminos ex artigo 1419.º, 1.
A resposta quanto a nós deve ser, ao invés, afirmativa. Vejamos.
Manuel Henrique Mesquita explica que
o objectivo daquele preceito é apenas impedir que a posição relativa de cada condómino seja alterada por via negocial, sem o seu consentimento.
Sempre que isso não esteja em causa, já não há motivo para impedir a modificação do título
»(A propriedade horizontal no Código Civil Português, separata da Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano XXIII, n.os 1-2-3-4, Coimbra, 1978:
41 e A. Crespo Couto,
Alteração da propriedade horizontal por usucapião:
sim ou não?
», Propriedade Horizontal, II Jornadas, (coord. Margarida Costa Andrade, Madalena Teixeira e Teresa Santos, Gestlegal, Estoril, 2024:
49).
Acrescenta Henrique Mesquita
que nos casos em que um condómino adquira por usucapião parte de uma fracção autónoma ou de uma coisa comum (incluindo, por exemplo, na sua fracção parte de um pátio ou jardim anexo ao edifício:
cf. o art. 141,º, n.º 1, al. a)), também terá de haver alteração do título constitutivo e ninguém sustentará, por certo, que esta alteração só pode ser feita com o acordo de todos os condóminos
».
Sob uma diferente perspectiva, também Durval Ferreira chega a uma conclusão afirmativa.
Durval Ferreira toma posição neste debate, a partir da procura de uma justificação razoável para que, através da usucapião, o novo direito adquirido possa aniquilar o direito do não possuidor e prevalecer inclusive sobre leis do ordenamento do território (
Posse e UsucapiãoLoteamentos e Destaques Clandestinos
», Scientia Juridica, T. LII, 2003:
91 ss; reproduzido em Posse e Usucapião, 3.ª ed., Almedina, Coimbra 2008 e ulteriormente em Posse e Usucapião, 2.ª ed., Vida Económica, Porto, 2022, que aqui citamos).
Este autor encontra essa justificação no próprio instituto da posse, que é agnóstica, isto é, a eventual ilicitude ou imoralidade do apoderamento são irrelevantes, a falta de título, a má fé ou a ilicitude apenas são qualidades de posse, mas não impedem a usucapião; a característica da posse/usucapião Este autor encontra essa justificação no próprio instituto da posse, que é agnóstica, isto é, a eventual ilicitude ou imoralidade do apoderamento são irrelevantes, a falta de título, a má fé ou a ilicitude apenas são qualidades de posse, mas não impedem a usucapião; a característica da posse/usucapião
postula, de per se, que a posse que se invoque, se configura um senhorio de facto, à imagem de um direito de gozo, e pelo tempo necessário para se adquirir por usucapião, seja, por si, causa bastante da aquisição por usucapião do direito aparente
»(23); sendo este o sentido normativo da posse então permite-se que o possuidor invoque a usucapião sem que seja relevante e impeditiva a contraalegação de qualquer vício que se funde
na relação jurídica verdadeira
»,
como por hipótese, tal imóvel ter tido origem num destaque, num loteamento ou num parcelamento de prédio rústico, que, nessa dimensão, contraria as respectivas leis de ordenamento do território
»(24); o direito que se adquire por usucapião é originário e novo e retrotrai-se ao início da posse, não tendo antecedentes, só tem consequentes;
ao direito adquirido por usucapião não serão oponíveis vícios do direito anterior
»(25).
Na sequência, Durval Ferreira conclui:
é da essência normativa do usucapião, à face do direito constituído, que tal institutocomo a posse, que o origina-é agnóstico. Como resulta do art. 1287.º do Código Civil; é da essência normativa do usucapião, à face do direito constituído, que tal institutocomo a posse, que o origina-é agnóstico. Como resulta do art. 1287.º do Código Civil; da razão de ser e função do interesse público da sua introdução; é da essência normativa do usucapião, à face do direito constituído, que tal institutocomo a posse, que o origina-é agnóstico. Como resulta do art. 1287.º do Código Civil; é da essência normativa do usucapião, à face do direito constituído, que tal institutocomo a posse, que o origina-é agnóstico. Como resulta do art. 1287.º do Código Civil; da razão de ser e função do interesse público da sua introdução; e dos referidos arts. 1294.º e 1298.º que doutro modo seriam ininteligíveis.
Consequentemente, face ao direito constituído, o autor conclui que os regimes jurídicos da posse/usucapião, por um lado, e das diversas Leis sobre Ordenamento do Território, por outro, não são, entre si contundentes e têm campos de aplicação diferentes, sendo as respectivas normas perfeitamente autónomas, relevantes e harmoniosas entre si, sem qualquer recíproca exclusão; assim, verificados Consequentemente, face ao direito constituído, o autor conclui que os regimes jurídicos da posse/usucapião, por um lado, e das diversas Leis sobre Ordenamento do Território, por outro, não são, entre si contundentes e têm campos de aplicação diferentes, sendo as respectivas normas perfeitamente autónomas, relevantes e harmoniosas entre si, sem qualquer recíproca exclusão; assim, verificados
os pressupostos específicos da invocação da posse/usucapião, sobre o respectivo objecto material surgirá, originariamente e legalmente, o respectivo direito de propriedade, quanto à sua
existência
» etitularidade
» do respectivo possuidor. E, sem que a tal se oponham asleis do ordenamento do território
»(12).
Esta orientação tem sido acolhida por um sector significativo da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que aqui acompanhamos.
O acórdão de 06.04.2017, Proc. 1578/11, que cita um outro acórdão do Supremo, de 27-6-2006, in CJ/STJ, Tomo 2/2006:
133, sustenta que
a usucapião serve também, além do mais, para
legalizar
» situações de facto ilegais mantidas durante longos períodos de tempo [...] inclusive até a apropriação ilegítima ou ilícita de uma coisa.
O acórdão de 19-12-2018, Proc. 6115/08, o qual se apoia, por sua vez, nos acórdãos de 11.18.2005, Proc. 2377/05, de 19.10.2006, Proc. 05B2272, de 16.12.2010, Proc. 1727/07, admite, por argumento de maioria de razão, que a usucapião tem, não só aptidão para constituir a propriedade horizontal nos termos do artigo 1417.º, n.º 1, mas também aptidão para modificar os termos em que foi constituída a propriedade horizontal.
Neste acórdão interroga-se:
se a usucapião tem aptidão para constituir a propriedade horizontal, como é possível negar-se que tenha aptidão para simplesmente modificar os termos em que foi constituída a propriedade horizontal? A causa de constituição deve poder, a fortiori (a maiori ad minus), ser causa de modificação, tanto mais que se trata de modificação meramente jurídica ou formal (a modificação física preexiste)
»Na justificação desta resposta, o arresto continua:
acredita-se que o aparente conflito entre as normas dos artigos 1417.º, n.º 1, e 1419.º, n.º 1, do CC deve ser resolvido por via da interpretação restritiva da segunda. Nesta linha de raciocínio, as exigências impostas por ela valerão in totum mas somente para as hipóteses em que a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal é feita por negócio jurídico. Quando esteja em causa, ao abrigo da primeira norma, uma das demais fontes de constituição/modificação da propriedade horizontal (usucapião, decisão administrativa ou decisão judicial), deverá entender-se que a norma não é aplicável.
A letra da lei autoriza, aliás, esta interpretação, não resultando dela, em rigor, que o título constitutivo só possa ser modificado naqueles termos.
Atentando, depois, na ratio do artigo 1419.º, n.º 1, do CC, facilmente se percebe que aquilo que o legislador pretendeu assegurar através das exigências de (certa) solenidade e da unanimidade foi que as modificações do título constitutivo sejam tanto quanto possível ponderadas e conciliadoras dos interesses, porventura conflituantes, de todos os condóminos, impedindoas sempre que sejam sem ou contra o voto de algum dos condóminos. A utilidade do preceito reduz-se, assim, às modificações que sejam levadas a cabo no âmbito da liberdade negocial, inexistindo (este) motivo para que se estenda às restantes
».
Não se esgota, nos acórdãos citados, a jurisprudência dos nossos tribunais superiores favorável à tese ora perfilhada.
No acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27.01.1994, Proc. 0079232, por exemplo, deliberou-se que
o disposto no n.º 1 do artigo 1419.º do CC não impede que um condómino adquira por usucapião parte de uma fracção autónoma ou de uma coisa comum, ainda que sem o acordo de todos os condóminos
».
Por sua vez, no acórdão de 25.05.2010 Proc. 1727/07, do mesmo Tribunal, afirmou-se:
o ius probandi dos condóminos consagrado no artigo 1419, n.º 1 do CC respeita tãosó à modificação que seja levada a cabo por via negocial, mas já não é de considerar quando subjacente à modificação do título estiver a integração na titularidade exclusiva de um qualquer condómino, de uma parte presuntivamente comum do prédio, pois a regra em causa não pode impedir e evitar tal forma de aquisição da propriedade
».
Justificada a tese adoptada, vejamos, por fim, se se mostram preenchidos os requisitos de que a lei faz depender a aquisição originária da titularidade do direito real de propriedade por usucapião.
Lembremos as palavras de Menezes Cordeiro quando ensina, in:
A Posse:
Perspectivas Dogmáticas Actuais, Almedina, Coimbra, 1997:
129, que a usucapião assenta nos seguintes pressupostos.-uma posse;
-com certas características;
-sendo o direito a constituir usucapível;
-e mantida pelos prazos legais.
Para usucapir a lei exige uma posse, não uma mera detenção.
Diz o artigo 1251.º CC que a posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.
Na perspectiva daquele que tem vontade de adquirir um bem que não tem, pode definir-se a posse, conforme citações de Paula Costa e Silva, in:
´Posse ou Posses?, Coimbra Editora, Coimbra, 2004:
14/15, como
um poder de facto exercido sobre uma coisa que a pessoa ainda não adquiriu
»(Jaime Gouveia, Direitos Riais:
145) ou
o poder de facto exercido por uma pessoa sobre uma coisa, normalmente alheia ou pertencente a dono ignorado ou que não tem dono
»(Cunha Gonçalves, Da Propriedade e da Posse:
83) ou, ainda,
o poder que o homem exerce sobre as coisas de que se apoderou, mas que não lhe pertencem ainda em propriedade
»(Pires de Lima, Lições de direito civil, Direitos Reais:
62).
Este poder que o homem exerce sobre as coisas tem de se traduzir em factos, não bastando afirmações abstractas nem conclusões de direito.
A simples apreensão da coisa por uma pessoa não cria a posse; é preciso para isso a vontade (animus) que estabelece um laço entre elas. É o que resulta do artigo 1253.º, al. a).
Observam Pires de Lima/Antunes Varela que só através
de actos que incidem directa e materialmente sobre a coisa se pode adquirir a posse e nunca através de actos de disposição ou de administração
»(Código Civil, Anotado, Vol. III, op. cit:
27).
Se alguém, por exemplo, paga habitualmente a contribuição predial e outros encargos relativos a determinado imóvel, não adquire, através desses actos, a posse do prédio. Trata-se, com efeito, de actos que podem ser praticados por qualquer pessoa, não pressupondo uma relação de facto sobre a coisa
»(Idem).
Para conduzir à usucapião a posse tem de revestir sempre duas características, como já vimos acima:
ser pacífica e pública (artigos 1261.º, 1262.º e 1297.º).
Na propriedade horizontal, a fracção a usucapir tem de reunir as condições dos artigos 1414.º e 1415.º:
tem de constituir unidade independente, ser distinta e isolada das restantes e dispor de uma saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública.
Finalmente, nos termos do artigo 1296.º,
não havendo registo do título nem da mera posse, a usucapião só pode dar-se no termo de 15 anos, se a posse for de boa fé, e de vinte anos se for de má fé
».
Ora, no caso sujeito, prova-se que a recorrente
i) Adquiriu, em 9 de Novembro de 1993, a fração autónoma designada pelas letras EF, correspondente a uma habitação no sexto andar direito traseiras com entrada pelo n.º ... da Rua 1, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua 1 n.os ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e Rua 2, n.os ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ... da freguesia de Fânzeres, concelho de Gondomar, inscrita na matriz sob o artigo..64-EF (facto 28).
ii) Entrou de imediato na posse do imóvel na referida data (facto 30).
iii) Na mesma data, foram entregues à R. pelos Vendedores, as chaves da habitação e as chaves do anexo A5 existente no 7.º Andar (facto 31).
iv) A anterior proprietária já ocupava os arrumos A5 desde data não concretamente apurada (facto 32).
v) Já pintou, pelo menos duas vezes, os anexos (facto35).
vi) Desde a data da sobredita aquisição que conserva os seus haveres, abre e fecha a porta dos arrumos (facto 37).
vii) Mantendo sempre na sua posse a chave dos arrumos (facto 38).
viii) Os atos descritos foram e são praticados à luz do dia, sendo do conhecimento de todos os condóminos e das pessoas das suas relações (facto 42).
ix) Sempre a R. agiu na certeza de que, com tais atos, não violava direitos de quem quer que fosse (facto 43).
x) E de que se tratava, da sua legítima proprietária (facto 44).
Acresce que
xi) O espaço em questãoArrumo “A5”-representa uma unidade distinta, independente e isolada, com acesso único e próprio e direto a zona comum do edifício (facto 16).
xii) Tem cerca de 21m2 (facto 17).
xiii) A entrada faz-se por uma única porta, que fecha e abre com chave, tem três janelas e interiormente apresenta as paredes e teto pintados e o pavimento revestido a linóleo (facto 18).
Diante de tal factualidade conclui-se que a recorrente pôde usucapir a propriedade exclusiva dos arrumos A5, dado que possuiu animus domini, de modo exclusivo e incompatível com a possibilidade de facto do gozo por parte da autora e por tempo necessário à usucapião.
Dito de outro modo:
pode ser usucapido o direito de propriedade sobre a fracção A5, porque o senhorio de facto não é devido à mera abstenção da autora, mas resulta, pelo contrário, do exercício sobre a coisa dos poderes correspondentes aos de um proprietário exclusivo, manifestando a vontade de possuir uti dominus.
Na opinio iuris estrangeira, designadamente a italiana, espanhola e francesa, também se entende, sem oposição relevante, que a usucapião é possível, em situações semelhantes à dos autos, de aparente não afectação, segundo os títulos, de um autonomizado espaço, a um condómino em concreto (cf. Michela Cavallaro, Il Condominio negli edifíci, artt. 1117-1139, Giuffrè Editore, Milano, 2009:
80 ss, Alessandro Galati, Dell´usucapione, Giuffrè, Milano, 2013:
46, 83/84, 226 ss, e Roberto Triola, Il Condominio, 2.ª ed., Giuffre, Milano, 2024:
187, Ana Laura Cabezuelo Arenas, La Usucapión de Elementos Comunes en la Propriedad Horizontal, Reus Editorial, Madrid, 2023, passim, et Stéphane Lelièvre,
La prescription acquisitive des parties communes. Conditions et mise en oeuvre pratique
», Actualité Juridique, Droit immobilier, 2024-2, consultado na Internet em 27.8.2025, que afirma peremptoriamente que
está adquirido, há longa data, que um compropietário pode tornar-se proprietário de uma parte comum, por prescrição
», citando nesse sentido os acórdãos do Cour Cassation, de 27.11.1985, 84.15.259, de 3.9.1991, 89.21.712, de 5.11.2005, 14.22.285, e de 11.7.2019. 18.17.771; veja-se também a recente ordinanza da Cassazione italiana n.º 26024, de 4 de Outubro de 2024, que entendeu que um condómino pode adquirir por usucapião um bem comum, ainda que esteja sujeito a uma servidão de passagem).
***
3-Da presunção derivada do registo
A autora pediu o reconhecimento da titularidade exclusiva do direito real de propriedade sobre um espaço de arrumos.
O primeiro grau julgou improcedente o pedido de reconhecimento da propriedade e procedente o da ré quanto aos arrumos.
O segundo grau, reapreciando a questão, não reconheceu a propriedade da ré sobre a fracção disputada e aplicou, a favor da autora, a presunção derivada do registo (artigo 7.º CRP.).
Agora, demonstrada a aquisição da propriedade por parte da autora, queda irremediavelmente afastada, por ilidida, essa pesunção.
***
A revista deve ser concedida. Vencida, a autora/recorrida suportará as custas devidas pelo recurso (artigo 527.º, 1 e 2 CPC).
***
Pelo exposto, acordam, em Pleno das Secções Cíveis, no Supremo Tribunal de Justiça, em:
a) julgar procedente a revista, e, consequentemente, em revogar o acórdão recorrido e repristinar a decisão do primeiro grau.
b) Fixar a Uniformização de Jurisprudência da seguinte forma:
Um condómino pode adquirir, por usucapião, um espaço de arrumos de um prédio, já constituído em propriedade horizontal, desde que a posse preencha os requisitos exigíveis para a usucapião e os arrumos tenham as características, físicas e estruturais, previstas nos artigos 1414.º e 1415.º do Código Civil *** Custas pela recorrida.
***
Após trânsito em julgado, remeta-se certidão do acórdão para publicação na 1.ª série do Diário da República, conforme o disposto no artigo 687.º, n.º 5, do CPC.
***
Lisboa 19.11.2025.-Luís Fernando dos Santos Correia de MendonçaAnabela Luna de CarvalhoOrlando Nascimento-Cristina T. CoelhoRui Machado e MouraCarlos Portela (vencido nos termos da declaração do Conselheiro Nélson B. Carneiro)-Arlindo OliveiraAntónio Pires RobaloMaria dos Prazeres Pizarro BelezaMaria Clara SottomayorMaria da Graça Trigo (com declaração de voto junta)-Pedro de Lima GonçalvesFátima Gomes-António Oliveira AbreuMaria João Vaz ToméNuno Manuel Pinto OliveiraJosé Maria Ferreira LopesAntónio Barateiro MartinsFernando Baptista de OliveiraLuís Filipe Castelo Branco do Espírito SantoAna Paula LoboIsabel Salgado-Jorge LealEmídio Francisco SantosMaria do Rosário Gonçalves (vencida, subscrevendo o voto de vencido do Sr. Conselheiro Nélson Carneiro)-Henrique Antunesvencido, pelos fundamentos indicados na declaração do Sr. Juiz Conselheiro Nélson Borges CarneiroMaria de Deus Simão da Cruz Silva Damasceno Correia (vencida)-Graça Amaral (vencida nos termos da declaração do Senhor Conselheiro Nélson Borges Carneiro)-Maria Olinda Garcia (vencida nos termos da declaração do Conselheiro Nélson B. Carneiro)-António Moura de Magalhães (vencido nos termos da declaração do Conselheiro Nélson Borges Carneiro)-Mário António Mendes Serrano (vencido, em concordância com a declaração de voto do Conselheiro Nélson Borges Carneiro)-Nélson Borges Carneiro (junto declaração de vencido).
****
Revista ampliada 916/19.0T8GDM.P1.S1-Declaração de voto Votei a decisão do presente acórdão pelas seguintes razões (que não correspondem inteiramente à fundamentação do acórdão):
• Mantenho inalterada a posição que venho defendendo segundo a qual a aquisição por usucapião não prevalece sobre normas legais imperativas;
• Admito, porém, flexibilizar, até certo ponto, posição anteriormente seguida (designadamente, no acórdão deste Supremo Tribunal de 06.12.2018 (proc. n.º 8250/15.9T8VNF.G1.S1), aceitando que a usucapião possa operar num caso como o dos autos no qual, a meu ver:
(i) está em causa a aquisição de uma parcela fisicamente separada de uma fracção autónoma de prédio constituído em propriedade horizontal;
(ii) não foi demonstrada a violação de qualquer norma legal imperativa.-Maria da Graça Trigo.
****
Revista ampliada n.º 916/19.0T8GDM.P1.S1 Declaração de voto Com o devido respeito, penso que está em causa a aquisição originária por usucapião, pela Ré/Reconvinte, do direito de propriedade sobre um espaço devidamente individualizado, id est, uma parcela fisicamente separada ou independente (arrumo “A5”) de uma fração autónoma (denominada pela letra “J”) de prédio constituído em propriedade horizontal, e não sobre uma parte comum do mesmo. Creio que esta consideraçãoque, em minha opinião, é a que encontra ressonância na factualidade assenteafasta dificuldades de natureza adjetiva ou substantiva no que à (i)legitimidade respeitaem virtude de os restantes condóminos não intervirem na ação-, assim como eventuais óbices à posse de parte comum por condómino/comproprietário (in)suscetível de conduzir à usucapião. Por último, a ausência de demonstração de violação de norma legal imperativa evitou a necessidade de ulteriores ponderações.-Maria João Vaz Tomé.
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Voto de vencido O presente recurso tem como questão essencial saber se é viável reconhecer a aquisição originária, pela ré/reconvinte, do direito de propriedade incidente sobre um espaço que, nos autos, é designado como “arrumo A5”, o qual integra outra fração.
A fração autónoma denominada pela letra “J”, do prédio em propriedade horizontal sito na Rua 2 n.º ... a ... e Rua 1 n.º ... a ..., mostra-se registada a favor da recorrida e, integra, na sua composição, o arrumo denominado pela letra “A5”.
É o que resulta da concatenação do teor dessa descrição (factos provados n.os 1 e 2) e do conteúdo da inscrição matricial atinente àquele imóvel (facto provado n.º 3), com a localização espacial do arrumo “A5” (factos provados n.os 4 e 5).
Acresce dizer que a recorrente não elidiu a presunção decorrente do registo, como lhe competia, de que o registo definitivo faz presumir que o direito existe e pertence ao titular inscrito.
Porém, tal espaço integrante da fração autónoma que se encontra registada a favor da autora, tem vindo, não obstante, a ser, desde 1993, continuamente usado pela ré, com um “animus” correspondente ao exercício de faculdades típicas do direito de propriedade.
A usucapião é um modo de aquisição originário do direito de propriedade (art. 1316.º, do CCivil).
Porém, o reconhecimento da usucapião, como forma de aquisição originária de direitos reais, é impedido quando exista “disposição em contrário”, abarcando os casos em que a usucapião se sobrepõe a um regime imperativo (art. 1287.º do CCivil).
Temos, pois, que a contrariedade a normas impositivas (mormente, de índole urbanística) que determinam a nulidade de atos jurídicos que contra elas atentem é erigida como um inultrapassável óbice ao reconhecimento da aquisição do direito de propriedade por usucapião, que decorre, do segmento “salvo disposição em contrário”, contido no art. 1287.º do CCivil.
A usucapião que se pretenda invocar em contravenção de normas imperativas não se pode considerar eficaz sempre que estas tenham em vista, imediatamente, a tutela de interesses predominantemente públicos. As regras urbanísticas encontram-se, em geral, em tal condiçãoJOSÉ GONZÁLEZ, Usucapião e fracionamento de prédios rústicos”, Revista do Ministério Público, n.º 148 (outubro-dezembro de 2016), p. 37.
Assim, as normas imperativas vigentes no regime da propriedade horizontal inserem-se nesta categoria de normas imperativas que devem prevalecer sobre a usucapião.
A fração autónoma denominada pela letra “J”, é composta de estabelecimento comercial, 11 lugares de garagem na cave, 25 de arrumos no 5.º andar e 44 no 7.º andar, entre os quais, o arrumo denominado pela letra “A5”, localizado no 7.º andar do mesmo prédio (factos provados n.os 1, 2, 4 e 5).
Temos, pois, que os arrumos são uma parte componente da fração autónoma, e não uma unidade independente, não podendo formar por si, uma unidade independente.
Isto porque, como os arrumos estão destinados a ter uma ligação com os espaços principais, no caso com a fração autónoma, não pode ser considerado como uma unidade independente.
Não basta, pois, a ocupação de uma parte componente da fração, no caso, os arrumos, para se considerar que se efetivou um fracionamento.
A aquisição do arrumo denominado pela letra “A5”, por usucapião, implicaria a divisão da fração autónoma denominada pela letra “J”, em duas frações autónomas (uma para o arrumo “A5” e outra para o remanescente da fração), e a consequente modificação do título constitutivo da propriedade horizontal.
Ora, a divisão de quaisquer frações depende de autorização do título constitutivo ou de deliberação da assembleia de condóminos aprovada sem oposição (art. 1422.º-A/3, do CCivil).
Não tendo a fração “J” sido dividida em duas frações autónomas, o arrumo letra “A5” não pode ser adquirido por usucapião, por ser parte componente da mesma (Na propriedade horizontal, o direito de propriedade exclusiva só se pode exercer sobre frações autónomas, perfeitamente individualizadas no título constitutivo e não sobre partes delas, pelo que estando a garagem e arrecadação inserida fisicamente no espaço que é pertença dos RR. (fração “A”), não pode ela operar enquanto a situação de indivisibilidade se mantiver, o que só poderia vir a acontecer se entretanto se tivesse tornado possível a alteração do título constitutivo da propriedade horizontalAc. STJustiça de 2018-12-06).
Mas, mesmo que tal não se entendesse, para haver uma modificação do título constitutivo da propriedade horizontal (o que no caso ocorreria com a divisão da fração “J” em duas frações), o mesmo teria que ser feito por escritura pública ou por documento particular autenticado, havendo acordo de todos os condóminos (art. 1419.º/1, do CCivil).
Mostra-se, assim, irrelevante a consideração das características físicas do arrumo e a constatação da existência de um exercício prolongado de uma posse formal sobre o dito arrumo, pois enquanto se mantiver a integração do arrumo “A5” na fração autónoma denominada pela letra “J”, a posse exercida revela-se inidónea para adquirir por usucapião.
Em conclusão:
À luz das normas legais imperativas que enformam o regime da propriedade horizontal, nomeadamente, os artigos 1419.º/1, e 1422.º-A/3, ambos do Código Civil, não é admissível, fora das hipóteses aí previstas, a aquisição por usucapião do direito de propriedade sobre um espaço devidamente individualizado, integrante de uma fração autónoma registada a favor de terceiro, ainda que estejam reunidos os demais requisitos de que depende aquela aquisição originária.-Nelson Borges Carneiro (relator vencido).
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Anexos
- Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/6389673.dre.pdf .
Ligações deste documento
Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):
-
1985-09-17 -
Lei
45/85 -
Assembleia da República
Altera o Decreto Lei 63/85, de 14 de Março que aprova o Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos. Republicado em anexo.
-
1995-09-02 -
Lei
91/95 -
Assembleia da República
ESTABELECE O REGIME EXCEPCIONAL PARA A RECONVERSÃO URBANÍSTICA DAS ÁREAS URBANAS DE GENESE ILEGAL (Áreas clandestinas). DEFINE OS PRINCÍPIOS GERAIS DO PROCESSO DE RECONVERSÃO URBANÍSTICA DAS REFERIDAS ÁREAS. DISPOE SOBRE O REGIME DA ADMINISTRAÇÃO DOS PRÉDIOS INTEGRADOS NA AUGI, DEFININDO, PARA O EFEITO, AS COMPETENCIAS E O FUNCIONAMENTO DA ASSEMBLEIA DE PROPRIETÁRIOS OU COMPROPRIETARIOS E DA COMISSAO DE ADMINISTRAÇÃO DAQUELES PRÉDIOS. DEFINE OS MECANISMOS CONDUCENTES A RECONVERSÃO POR INICIATIVA DOS PARTICU (...)
-
2007-08-07 -
Decreto-Lei
280/2007 -
Ministério das Finanças e da Administração Pública
No uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 10/2007, de 6 de Março, estabelece o regime jurídico do património imobiliário público.
Aviso
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