Acórdão do STA de 29 de Abril de 2025, no Processo n.º 1255/19.2BELRA ― Pleno da 2.ª Secção. Uniformiza a jurisprudência nos seguintes termos: O artigo 52.º, n.º 2, alínea b), do Código do IRS, na redação introduzida pelo artigo 2.º da Lei n.º 82-E/2014, de 31 de dezembro, deve ser interpretado no sentido de que a lei presume que o valor real da transmissão de ações ou outros valores mobiliários não cotados em bolsa é o que lhe corresponder, apurado com base no último balanço, ficando ressalvada tanto a possibilidade de a Administração Tributária considerar valor superior, quando considere fundadamente que é o valor real, como a possibilidade de o sujeito passivo demonstrar que o valor real é inferior ao ali previsto.
Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 4/2025
Acórdão do STA de 29 de Abril de 2025, no Processo 1255/19.2BELRA-Pleno da 2.ª Secção
Acordam no Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
Relatório 1.1-O MINISTÉRIO PÚBLICO, aqui representado pelo Ex.mo Senhor ProcuradorGeral Adjunto, tendo sido notificado do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 28 de fevereiro de 2024-que concedeu provimento ao recurso da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria que, por sua vez, tinha julgado procedente a impugnação judicial deduzida por AA, com o número de identificação fiscal ... 12 e com residência na Rua ..., ... Leiria, contra a liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares [IRS] relativa a ao ano de 2015, com o n.º ...54, de que resultou o montante a pagar de € 45.505,91-dele interpôs o presente recurso para uniformização de jurisprudência, ao abrigo do disposto no artigo 284.º, n.º 7, do Código de Procedimento e de Processo Tributário, invocando contradição entre aquele acórdão e o acórdão da mesma Secção de 22 de junho de 2022, tirado no processo 121/14.2BELRA.
Com a interposição do recurso apresentou alegações e formulou as seguintes conclusões:
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[...]
A-O presente recurso tem a sua razão de ser na oposição de julgados, a nosso ver, existente entre o Acórdão de 28.02.2024 (Proc. n.º 1255/19.2BELRA) e o Acórdão de 22.06.2022 (Proc. n.º 121/14.2BELRA) ambos deste Alto Tribunal.
B-Em ambos os Acórdãos está em causa a alienação de participações sociais pelos sujeitos passivos, entendendo a Autoridade Tributária que se verifica uma discrepância entre o valor declarado e o valor real das aludidas transmissões de quotas sociais.
C-No Acórdão relativo ao Proc. n.º 1255/19.2BELRA é entendido que, para aferir da existência de divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão de quotas sociais, a Autoridade Tributária pode socorrer-se da presunção prevista no citado n.º 3 do art. 52.º do CPPT.
D-Já no que concerne ao Acórdão proferido em sede do Proc. n.º 121/14.2BELRA, é entendido que o disposto no n.º 3 do art. 52.º do CPPT vem estabelecer um critério para quantificar a correção, não podendo servir para fundamentar a discrepância a que se refere o n.º 1 do mesmo art. 52.º do CPPT.
E-Neste caso, este Supremo Tribunal vem dizer que à AT competirá alegar factos, indícios, que, de acordo com as regras da experiência, lhe permitam duvidar do valor declarado. O que não pode (segundo este aresto) é sustentar a dúvida com base no critério de correção fixado pelo legislador no mencionado n.º 3 do art. 52.º do CPPT.
F-A ser assim, deparamonos com duas posições antagónicas sobre a mesma questão fundamental de Direito num contexto de similitude factual.
G-No presente caso, estão preenchidos os requisitos de admissibilidade do Recurso, impostos pelo artigo 152.º do CPTA quanto à contradição da mesma questão fundamental de Direito, o que pressupõe “identidade essencial quanto à matéria litigiosa”, conforme Acórdão do S.T.J. de 02.02.2017, proferido no proc. 4902/14.9T2SNT.LI.SI-A.
H-Está assim em causa a aplicação de forma diversa dos mesmos preceitos legais em situações fácticas substancialmente idênticas.
I-O Ministério Público vem agora reiterar a posição assumida no seu parecer de 15.12.2023 exarado no âmbito do Proc. n.º 1255/19.2BELRA.
J-Temos para nós que, da leitura do n.º 1 e do próprio artigo 52.º do CIRS, no seu todo, não resulta qualquer limitação e, muito menos, eventuais critérios que a AT tenha de utilizar para fundamentar a divergência entre o valor declarado e o valor real de transmissão, nada impedindo que, para tal, se faça uso do critério constante do n.º 3 do citado art. 52.º do CIRS. Pedido:
Termos em que, se assim for entendido, deverá o presente Recurso para Uniformização de Jurisprudência ser admitido por se mostrar verificada contradição entre os mencionados doutos Acórdãos deste Supremo Tribunal devendo, em consequência, ser proferida Decisão Uniformizadora no sentido expresso no Acórdão proferido no Proc n.º 1255/19.2BELRA.
»
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O recurso foi liminarmente admitido pelo Ex.mo Senhor Conselheiro Relator que, de imediato, ordenou que os autos fossem remetidos à distribuição no Pleno da Secção do Contencioso Tributário.
Após a distribuição, foi ordenado o cumprimento do artigo 282.º, n.º 3 do Código de Procedimento e de Processo Tributário.
O Recorrido apresentou contraalegações e formulou as seguintes conclusões.
A)-Constitui jurisprudência uniforme deste Tribunal que a verificação da mesma questão fundamental de direito, enquanto pressuposto do presente recurso para uniformização de jurisprudência, exige o cumprimento cumulativo dos seguintes critérios:
-situação de facto substancialmente idêntica das decisões em confronto,-identidade da questão de direito sobre que recaíram as decisões em confronto,-não ter havido alteração substancial da regulamentação jurídica;
-que tenha sido perfilhada, nos dois arestos, solução oposta e-a oposição deve decorrer de decisões expressas.
B)-Da comparação da situação concreta tratada no acórdão recorrido e no acórdão fundamento verifica-se que são idênticas pois resultam de:
-mais valias mobiliárias de venda de participações sociais,-o valor de venda foi inferior ao valor que resultaria do balanço e-os serviços de inspeção utilizaram os n.º 1, 2 e 3 do artigo 52.º do CIRS para liquidar o IRS que resulta da venda de participações sociais tendo por base a diferença entre o valor correspondente ao balanço e o valor declarado, ou seja, encontra-se cumprido o requisito da identidade substancial da situação de facto tratada quer no processo 1255/19 quer no processo 0121/14.
C)-A questão de direito tratada quer no acórdão recorrido quer no acórdão fundamento diz respeito à interpretação e aplicação do artigo 52.º do CIRS, ou seja, encontra-se cumprido o requisito da identidade da questão de direito tratada quer no processo 1255/19, quer no processo 0121/14.
D)-Tal como consta nos doutos acórdãos proferidos no processo 0121/14 e 12555/19, quer em 2007 quer em 2015, a redação dos n.º 1, 2 e 3 era a seguinte:
“1-Quando a Autoridade Tributária e Aduaneira considere fundadamente que possa existir divergência entre o valor declarado e o valor real da trans missão, tem a faculdade de proceder à respetiva determinação.
2-Se a divergência referida no número anterior recair sobre o valor de alienação de ações ou outros valores mobiliários, presume-se que:
a) Estando cotados em bolsa de valores, o valor de alienação é o da respetiva cotação à data da transmissão ou, em caso de desconhecimento desta, o da maior cotação no ano a que a mesma se reporta;
b) Não estando cotados em bolsa de valores, o valor de alienação é o que lhe corresponder, apurado com base no último balanço.
3-Quando se trate de quotas, presume-se que o valor de alienação é o que àquelas corresponda, apurado com base no último balanço.” ou seja, encontra-se cumprido o requisito da não existência duma alteração substancial da regulamentação jurídica tratada, quer no processo 1255/19, quer no processo 0121/14.
E)-No processo 1255/19 foi entendido que os n.º 1, 2 e 3 do artigo 52.º do CIRS constituem um texto comunicável entre si, ou seja, resultando do valor do balanço um valor superior ao valor declarado da participação social, a Autoridade Tributária fica habilitada a corrigir a mais valia mobiliária enquanto no processo 0121/14.2BELRA foi entendido que o n.º 1 do CIRS constitui a primeira fase do procedimento de correção da mais valia mobiliária e só depois de cumprida esta fase, é possível passar à fase da quantificação do valor, mediante a aplicação do regime dos n.º 2 e 3 do artigo 52.º do CIRS, ou seja, encontra se cumprido o requisito de ter sido perfilhada solução jurídica oposta no processo 1255/19 e no processo 0121/14.
F)-De tudo o exposto resulta que, relativamente à interpretação e aplicação dos n.º 1, 2 e 3 do artigo 52.º do CIRS, quer no processo 1255/19, quer no processo 0121/14, ocorre uma oposição expressa quanto ao citado regime legal do artigo 52.º do CIRS, ou seja, encontra-se cumprido o requisito da oposição decorre de decisões expressas.
G)-Em conclusão, ocorrendo no processo 1255/19 e no processo 0121/14, uma situação de facto substancialmente idêntica, a identidade da questão de direito, não ter havido alteração substancial da regulamentação jurídica, ter sido perfilhada solução jurídica oposta e a oposição decorre de decisões expressas, encontra-se cumprido o pressuposto do presente recurso para uniformização de jurisprudência e que consiste na verificação da mesma questão fundamental de direito.
H)-A redação dos n.º 1, 2 e 3 do artigo 52.º do CIRS, à data dos factos, é a seguinte:
“1-Quando a Autoridade Tributária e Aduaneira considere fundadamente que possa existir divergência entre o valor declarado e o valor real da trans missão, tem a faculdade de proceder à respetiva determinação.
2-Se a divergência referida no número anterior recair sobre o valor de alienação de ações ou outros valores mobiliários, presume-se que:
a) Estando cotados em bolsa de valores, o valor de alienação é o da respetiva cotação à data da transmissão ou, em caso de desconhecimento desta, o da maior cotação no ano a que a mesma se reporta;
b) Não estando cotados em bolsa de valores, o valor de alienação é o que lhe corresponder, apurado com base no último balanço.
3-Quando se trate de quotas, presume-se que o valor de alienação é o que àquelas corresponda, apurado com base no último balanço.”
I)-O objeto do presente recurso consiste em fixar o sentido e a forma de aplicação dos n.º 1, 2 e 3 do artigo 52.º do CIRS, sendo que, no processo 1255/19 foi entendido que os n.º 1, 2 e 3 do artigo 52.º do CIRS constituem um texto comunicável entre si, ou seja, resultando do valor do balanço um valor superior ao valor declarado da participação social, a Autoridade Tributária fica habilitada a corrigir a mais valia mobiliária, enquanto no processo 0121/14 foi entendido que o n.º 1 do CIRS constitui a primeira fase do procedimento de correção da mais valia mobiliária e só depois de cumprida esta fase, é possível passar à fase da quantificação do valor, mediante a aplicação do regime dos n.º 2 e 3 do artigo 52.º do CIRS.
J)-No entendimento do ora recorrido, a interpretação e aplicação dos n.º 1, 2 e 3 do artigo 52.º do CIRS terá de ter em conta os seguintes pressupostos, a saber:
L)-Em primeiro lugar, do texto do n.º 1 do artigo 52.º do CIRS resulta que “quando a Autoridade Tributária e Aduaneira considere fundadamente que possa existir divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão, tem a faculdade de proceder à respetiva determinação”, ou seja, de acordo com o n.º 1 do artigo 52.º do CIRS a faculdade conferida à Autoridade Tributária e Aduaneira de corrigir o valor declarado duma transmissão mobiliária está de pendente e sujeita a uma decisão previamente fundamentada, por parte da AT.
Por sua vez, do texto dos n.º 2 e 3 do artigo 52.º do CIRS-“2-Se a divergência referida no número anterior recair sobre o valor de alienação de ações ou outros valores mobiliários, presume-se que:
a) Estando cotados em bolsa de valores, o valor de alienação é o da respetiva cotação à data da transmissão ou, em caso de desconhecimento desta, o da maior cotação no ano a que a mesma se reporta;
b) Não estando cotados em bolsa de valores, o valor de alienação é o que lhe corresponder, apurado com base no último balanço.
3-Quando se trate de quotas, presume-se que o valor de alienação é o que àquelas corresponda, apurado com base no último balanço.” resulta que o critério do valor da cotação em bolsa ou do valor do balanço é aplicado como critério da fixação do valor real da transmissão mobiliária, desde que esteja previamente fundamentada por parte da AT, a comprovação da diferença entre o valor declarado e o valor de mercado.
M)-Em segundo lugar, na interpretação do artigo 52.º do CIRS importa ter em conta o seu enquadramento sistemático no próprio Código do IRS, o qual se subdivide em oito capítulos, sendo que do enquadramento sistemático do artigo 52.º no Código do IRS resulta que o mesmo faz parte do capítulo II, o qual se subdivide em dez seções, sendo que do enquadramento sistemático do artigo 52.º no Código do IRS resulta que o mesmo faz parte da secção VI do capítulo II, secção VI esta que se subdivide nos seguintes artigos e epígrafes:
42.º-Deduções, 43.º-Mais-valias, 44.º-Valor de realização, 45.º-Valor de aquisição a título gratuito, 46.º-Valor de aquisição a título oneroso de bens imóveis, 47.º-Equiparação ao valor de aquisição, 48.º-Valor de aquisição a título oneroso de partes sociais e de outros valores mobiliários, 49.º-Valor de aquisição a título oneroso de outros bens e direitos, 50.º-Correção monetária, 51.º-Despesas e encargos e 52.º-Divergência de valores.
N)-Ora, tendo em conta os diversos assuntos regulados nos artigos 42.º a 52.º da secção VI sob a epígrafe “Incrementos patrimoniais”, secção esta integrada no capítulo II sob a epígrafe “Determinação do rendimento coletável” verifica-se que o artigo 52.º trata especificamente das situações em que ocorram divergências de valores declarados, em sede de incrementos patrimoniais, os quais incluem, nomeadamente, as maisvalias mobiliárias e imobiliárias.
O)-Neste contexto e sendo o artigo 52.º uma norma específica que confere à AT o direito de corrigir o valor de quaisquer incrementos patrimoniais não faz sentido entendêla como uma norma comunicável, pois, por um lado, interpretar os n.º 1, 2 e 3 do artigo 52.º do CIRS no sentido de que a divergência do valor declarado comparativamente ao valor do balanço constitui fundamento e critério da correção da mais valia mobiliária reconduz-se a uma aplicação contraditória e antagónica da referida norma, na medida em que, para as situações de divergência de valores mobiliários confere-se um direito subjetivo da AT poder corrigir valores relativos a participações sociais enquanto que, nas demais situações de incrementos patrimoniais, a AT teria de fundamentar a divergência entre o valor declarado e o de mercado, pois nesses casos não tem balanço nem cotação em bolsa para se socorrer para aplicar o artigo 52.º do CIRS.
P)-Por outro lado, estando expressamente previsto no n.º 2 do artigo 44.º do CIRS (“2-Nos casos das alíneas a), b) e f) do número anterior, tratando-se de direitos reais sobre bens imóveis, prevalecerão, quando superiores, os valores por que os bens houverem sido considerados para efeitos de liquidação de imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis ou, não havendo lugar a esta liquidação, os que devessem ser, caso fosse devida), uma regra específica de utilização do valor patrimonial, quando superior ao valor declarado, para efeitos de tributação da mais valia imobiliária, sempre se dirá que, caso fosse vontade expressa do legislador aplicar a regra da prevalência do valor do balanço ou da cotação da ação sobre o valor declarado, teria também incluído expressamente, no referido n.º 2 do artigo 44.º, para efeitos de tributação da mais valia mobiliária.
Q)-Em terceiro lugar, constitui um princípio fundamental do direito tributário segundo o qual “presumem-se verdadeiras e de boafé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os da dos e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal, sem prejuízo dos demais requisitos de que depende a dedutibilidade dos gastos” tal como assim está previsto no n.º 1 do artigo 75.º da LGT e por sua vez, recai sobre a AT a obrigação de fundamentação, em todos os atos por si praticados, tal co mo assim resulta do n.º 1 do artigo 77.º da LGT em cuja norma se escreve:
“1-A decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária.”
R)-Deste modo, interpretar os n.º 1, 2 e 3 do artigo 52.º da LGT de forma a conferir o direito da AT efetuar correções às mais valias mobiliárias, mediante o fundamento e o critério do valor declarado ser inferior ao valor da cotação em bolsa ou do valor do último balanço, reconduz-se a uma desaplicação quer do n.º 1 do artigo 75 quer do n.º 1 do artigo 77.º, ambos da LGT, o que se afigura de todo incoerente e contraditório, pois desta forma não seria respeitado o princípio da unidade do sistema jurídico fiscal.
S)-Neste contexto conclui-se que a interpretação do artigo 52.º do CIRS adotada no douto acórdão proferido no processo 0121/14.2BELRA é que deve rá ser adotada no douto acórdão uniformizador de jurisprudência.
Termos em que deve o presente recurso ser admitido, vindo a final a ser proferido douto acórdão uniformizador de jurisprudência, no sentido já adotado no processo 0121/14.2BELRA, e em consequência revogado o douto acórdão proferido no processo em epígrafe e anulada a liquidação do IRS de 2015.
»
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Com dispensa dos vistos legais, atento o disposto do n.º 1 do artigo 92.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, cumpre decidir, em conferência, no Pleno da Secção.
2.1-No acórdão recorrido, foram relevados os seguintes factos, que tinham sido dados como assentes em primeira instância (e de que não transcrevemos a parte inserida em formato de imagem):
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2.2-O acórdão fundamento relevou a seguinte matéria de facto (de que omitimos a transcrição do relatório de inspeção tributária):
«
(...)
A)-Em 27/02/2007 no Cartório Notarial..., em Porto de Mós, foi realizada escritura de cessão de quotas na qual BB e esposa CC, ele divide a quota de que é titular na sociedade comercial por quotas com a firma “A..., LDA de valor nominal de € 49.879, em duas novas quotas de € 24.939,90 e € 24.939,89 que cede pelo valor nominal a DD e a EE, respetivamente, renunciando à gerência que vinha exercendo na sociedade.-(cf. fls 43 a 45 dos autos).
B)-Em 27/02/2008, os Impugnantes procederam à entrega junto da Autoridade Tributária e Aduaneira da declaração de rendimentos modelo 3, respeitante ao ano de 2007 composta pelos anexos A e H.-(facto que se extrai do documento de fls 29 a 41 dos autos).
C)-Em 12/12/2011, os Serviços de Inspeção tributária da Direção de Finanças de Leiria, elaboraram relatório final do procedimento de inspeção realizado aos Impugnantes respeitante ao ano de 2007, no qual consta, designadamente, o seguinte:
[segue-se a transcrição de parte do relatório de inspeção tributária]
(cf. fls. 31 a 41 dos autos).
D)-Com data de 17/01/2011 foi endereçado aos Impugnantes ofício de notificação do teor do relatório descrito da alínea precedente.-(cf. fls. 28 dos autos).
E)-Em 26/01/2012 a Autoridade Tributária e Aduaneira emitiu em nome dos Impugnantes a liquidação adicional de IRS n.º ...58 com rendimento global no valor de € 24.189,90, e “Imposto relativo a tributações autónomas” no montante de € 29.678,57, apurando imposto a pagar no montante de € 34.141,16.-(cf. fls. 68 dos autos).
F)-Com a mesma data a Autoridade tributária e Aduaneira emitiu em nome dos Impugnantes a demonstração da liquidação de juros do IRS do ano de 2007, na quantia de € 4.397,30.-(cf. doc. de fls. 69 dos autos).
G)-Ainda na mesma data a Autoridade tributária e Aduaneira emitiu em nome dos Impugnantes, demonstração do acerto de contas do IRS do ano de 207 e respetiva nota de cobrança no montante de € 34.075,87, com datalimite de pagamento de 05/03/2012.-(cf. doc. de fls. 72 dos autos).
H)-Em 27/02/2012 os Impugnantes efetuaram o pagamento da liquidação adicional de IRS do ano de 2007 referida na alínea anterior.-(cf. fls. 72 e 73 dos autos).
I)-Em 25/06/2012 deu entrada no Serviço de Finanças de Porto de Mós reclamação graciosa do ato de liquidação de IRS referido na alínea que antecede.-(cf. processo de reclamação graciosa apenso).
J)-Em 26/07/2012 o Chefe de Divisão de Justiça Tributária da Direção de Finanças de Leiria proferiu decisão de indeferimento da reclamação graciosa referida na alínea anterior.-(cf. fls. 29 do processo de reclamação graciosa apenso).
K)-Na mesma data a Direção de Finanças de Leiria remeteu ao Impugnante, mediante correio registado com aviso de receção, o ofício n.º ...39, de notificação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, rececionado em 27/07/2012.-(cf. fls. 26 a 28 do processo de reclamação graciosa apenso).
L)-Em 14/08/2012 deu entrada no Serviço de Finanças de Porto de Mós recurso hierárquico da decisão de indeferimento da reclamação graciosa.-(cf. fls. 2 e 3 do recurso hierárquico apenso).
M)-Em 04/10/2013 a Diretora de Serviços de IRS proferiu decisão de deferimento parcial do recurso hierárquico referido na alínea que antecede com os fundamentos cujo teor é o que consta da informação de fls. 20 a 27 dos autos.
N)-Em 29/01/2014 deu entrada neste Tribunal a petição inicial da presente impugnação judicial.-(cf. fls. 2 do processo em suporte físico).
***
3-Dos fundamentos de Direito
3.1-O presente recurso foi interposto ao abrigo do disposto no artigo 284.º, n.º 7, do Código de Procedimento e de Processo Tributário, tem por fundamento a oposição entre acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo e tem por finalidade a uniformização de jurisprudência.
Esta modalidade de recurso pressupõe, desde logo, que exista contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão indicado como fundamento quanto à
«
mesma questão fundamental de direito
»
-n.º 1 do referido dispositivo legal.
Sendo que, para haver contradição quanto à
«
mesma questão fundamental de direito
» é necessário que sejam substancialmente idênticas as questões apreciadas nos dois acórdãos em confronto e contraditórias as respostas que a elas foram dadas.
E para que as questões apreciadas nos acórdãos em confronto possam ser consideradas
«
substancialmente idênticas
» é necessário, além do mais, que os factos subjacentes possam ser subsumidos às mesmas normas legais e não tenha havido, entretanto, alteração relevante no respetivo regime jurídico.
Vejamos, então, se estão reunidos os pressupostos para o conhecimento do mérito do recurso.
3.2-Resulta da análise de ambos os acórdãos que foi neles apreciada a questão de saber se, para os efeitos do disposto no artigo 52.º do Código do IRS (na redação que resultou da republicação do Código do IRS pela Lei 82-E/2014, de 31 de dezembro), a Administração Tributária podia fundamentar a divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão de valores mobiliários não cotados em bolsa no facto de o valor declarado divergir do valor apurado com base no último balanço.
O acórdão fundamento apreciou essa questão numa situação em que o sujeito passivo tinha declarado alienar uma quota pelo seu valor nominal (€ 49.879,79) e o valor que lhe corresponderia, apurado pelo último balanço, ascendia a € 425.557,84.
O acórdão recorrido apreciou essa questão numa situação em que o sujeito passivo tinha declarado alienar ações de uma sociedade (não cotadas em bolsa) pelo valor de € 30.000,00 (sendo o seu valor nominal de € 15.000,00) e que o valor que lhe corresponderia, apurado pelo último balanço, ascendia a € 330.028,36.
Assim, os dois acórdãos em confronto apreciaram a questão de direito enunciada em circunstâncias de facto, que, para o efeito, devem ser consideradas substancialmente idênticas.
Com efeito, o que está em causa, no fundo, é saber se o facto de o valor declarado de transmissão ser nove ou dez vezes inferior ao valor de balanço constitui razão bastante para suportar a conclusão de que o valor declarado de transmissão era inferior ao valor real.
É verdade que, num dos casos, estava em causa a alienação de quotas sociais e, no outro, a alienação de ações (não cotadas em bolsa).
Tem-se entendido, no entanto, que não devem relevar para este efeito as particularidades do caso que não sejam suscetíveis de interferir com a solução jurídica.
Ora, a lei trata as transmissões de quotas e de ações não cotadas em bolsa da mesma forma para este efeito. Porque as sujeita ao mesmo regime jurídico (que deriva de lhes ser aplicável a mesma norma ou normas diferentes com conteúdo material idêntico).
Deve, assim, entender-se que os acórdãos em confronto apreciaram a mesma questão fundamental de direito.
E deram resposta divergente a essa questão.
No acórdão fundamento, foi entendido que a Administração Tributária não podia fundamentar a conclusão de que existia divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão no facto de existir divergência entre o valor declarado e o valor do capital social inscrito no (último) balanço.
E que, por isso, não cumpriu o ónus que sobre si impendia.
No acórdão recorrido, foi entendido que a Administração Tributária podia fundar a prova da divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão na diferença de valores entre aquele e o resultante do último balanço.
E que, em tal circunstância, caberia ao sujeito passivo provar que o valor declarado da venda de partes sociais correspondia ao preço efetivamente praticado na transação.
Sem surpresaface a diferentes interpretações da mesma normaos acórdãos em confronto chegaram a soluções completamente distintas.
Assim, o acórdão fundamento concluiu que era ilegal corrigir o valor da transmissão da participação social apenas com base no facto de o valor declarado divergir do valor do balanço. Tendo, por isso, decidido revogar a sentença que assim não o tinha entendido.
Pelo seu lado, o acórdão recorrido concluiu que a Administração podia fundar a divergência entre o valor declarado e o valor real na diferença entre aquele valor e o do último balanço. Tendo, por isso, decidido também revogar a sentença respetiva, que assim o não havia entendido.
Assim, e porque também não existe jurisprudência uniformizadora sobre a matéria, importa avançar, desde já, para o conhecimento do mérito do recurso.
O que se fará no ponto seguinte.
3.3-A atual redação do artigo 52.º do Código do IRS foi, como se disse já, introduzida pelo artigo 2.º da Lei 82-E/2014, de 31 de dezembro, que procedeu a uma
«
reforma da tributação das pessoas singulares
»
, ademais orientada
.
É manifesto que, com a alteração do n.º 1 do preceito, o legislador não pretendeu mais do que proceder a uma atualização terminológica. Estando concluído o processo de extinção da DireçãoGeral dos Impostos, DireçãoGeral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo e DireçãoGeral de Informática e Apoio aos Serviços Tributários e Aduaneiros e consequente fusão na Autoridade Tributária e Aduaneira, aproveitou-se para incorporar a atual designação do organismo com competência para administrar este imposto.
Já a alteração introduzida nos seus n.os 2 e 3 serviu para o legislador substituir a expressão
«
atender-se-á às seguintes regras
» pela expressão
.
O sentido aparente desta substituição é o de que se pretendeu instituir uma presunção legal ou estabelecer que está subjacente ao comando legal a formulação de uma presunção.
Na verdade, se o legislador altera a redação de uma norma apenas para introduzir a expressão
, deve entender-se, à partida, que pretendeu servir-se da nomenclatura correspondente.
Ora, as normas que instituem (verdadeiras) presunções são as que permitem deduzir um facto desconhecido a partir de um facto conhecido e, assim, dispensar a prova do facto que se desconhece. Nos procedimentos com estrutura inquisitória, servem para dispensar a entidade que decide do ónus de averiguação daquele facto, pelo que são regras de instrução.
Distinguem-se das normas que distribuem o ónus probatório que, nos procedimentos com estrutura inquisitória, têm uma função muito distinta:
servem para resolver uma situação de incerteza acerca de qualquer ponto de facto depois de consultadas as provas, decidir como se fosse conhecido que o mesmo ocorreu ou não ocorreu. Pelo que operam a jusante da instrução. São regras de decisão [sobre esta matéria, pode ver-se MANUEL DE ANDRADE, in
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Noções Elementares de Processo Civil
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, Coimbra Editora 1993, pág. 198];
Assim, ao estabelecer que, em caso de divergência de valores de ações ou de outros valores mobiliários, se presume que o valor de alienação é o que lhe corresponder, apurado com base no último balanço, o legislador de 2014 só poderia estar a pretender dispensar a entidade que decide do ónus de averiguação desse facto, cabendo ao sujeito passivo explicar a discrepância apontada.
Os demais elementos da interpretação apontam no mesmo sentido.
Desde logo, o elemento sistemático.
Porque em lugares paralelos do sistema se recorre a técnica presuntiva semelhante.
Assim, no caso das maisvalias prediais, a lei estabelece que o valor por que o bem tenha sido considerado para efeitos de liquidação de imposto municipal sobre imóveis prevalece, quando superior (ao declarado), ficando ressalvada a possibilidade de provar que o valor de realização é inferior ao ali previstover o artigo 44.º, n.os 2 e 5 do Código.
Ou seja, o legislador instituiu ali a presunção de que o valor real de venda é o que serviu de base à liquidação do IMT, admitindo prova em contrário.
Do mesmo modo, no caso das maisvalias prediais qualificáveis como rendimentos empresariais e profissionais, a lei manda considerar para efeitos da determinação do rendimento tributável o valor definitivo que servir de base à liquidação do IMT, sempre que o valor do contrato seja inferior. O que não prejudica a consideração de valor superior quando a Administração Tributária demonstre que é esse o valor efetivo da transação, nem a prova de que o valor de realização é inferior ao ali previstoartigo 31.º-A do Código.
Aliás, é a diferente localização sistemática da regra presuntiva que ajuda a perceber a verdadeira diferença de regime entre estes dois grupos de maisvalias (entre as maisvalias prediais e as de partes sociais).
No caso das maisvalias prediais, a presunção foi inserida em regra de incidência e, por isso, funciona como uma verdade interina (não pressupõe a prova de nenhum facto-base). E por isso é que é necessário recorrer ao procedimento próprio para fazer a prova do preço efetivo (o procedimento a que alude o artigo 139.º do Código do IRC).
No caso das maisvalias de partes sociais, a presunção foi inserida numa regra de determinação da matéria coletável, como decorre do artigo 65.º, n.º 2, do Código do IRS. Por isso, tem natureza intraprocedimental, constituindo o que alguma doutrina designa de presunção verdadeira (debruçando-se sobre a diferença entre verdades interinas e presunções verdadeiras pode ver-se LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, in
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Prova por Presunção no Direito Civil
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, Almedina 2013, 2.ª edição, páginas 105/106).
Assim, a presunção inserida nos n.os 2 e 3 do artigo 52.º em análise não serve para dispensar a Administração Tributária do dever de instrução (que, no caso, passa pela demonstração do facto-base), mas para alargar o dever de colaboração do sujeito passivo no próprio procedimento inspetivo, onerando-o com o dever de justificar a discrepância entre o valor de venda e o valor do balanço e demonstrar as respetivas razões.
Vejamos, agora, o elemento lógico. Parecenos uma solução lógica e adequada que em caso de divergência entre o valor pelo qual o sujeito passivo declara a venda e o valor que o mesmo sujeito passivo atribui ao bem vendido para efeitos de balanço, já não possa beneficiar da presunção de verdade que a lei atribui genericamente à sua declaração. Sobretudo quando a divergência é significativa, já que não é normal nem expectável que o bem seja vendido por valor muito inferior ao valor que o próprio lhe atribui. Por outro lado, a existirem razões objetivas para tal, é o sujeito passivo que está melhor colocado para as evidenciar.
E, finalmente, o elemento teleológico.
Como se disse já, estamos perante disposições de combate à evasão fiscal, que operam para prevenção de situações de simulação de valor. A natureza secreta ou oculta dos factospressupostos da simulação torna muito difícil a demonstração dos pressupostos de simulação, constituindo as presunções de valor, em casos devidamente delimitados, mecanismos adequados de combate a estas práticas e de salvaguarda da igualdade na tributação.
A posição que fez vencimento no acórdão fundamento vai no sentido de que os n.os 2 e 3 do Código devem ser conjugados com o seu n.º 1 e que da articulação entre eles deriva que o valor do capital do balanço só é chamado à colação depois de a Administração Tributária demonstrar a fundada divergência entre o valor real e o declarado.
Qualquer que seja a valia deste entendimento face à redação inicial do preceito julgamos que não se compatibiliza com a alteração introduzida em 2014 aos n.os 2 e 3. Na essência, porque lhe está subjacente a ideia de que estamos perante uma regra de decisão, a mobilizar em situações de non liquet, ou seja, quando se sabe que o valor declarado não é verdadeiro mas não se sabe qual é o valor verdadeiro.
Ora, este entendimento, se aplicado à nova redação, tira sentido à alteração, já que a única razão aparente para a introdução da expressão
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presume-se
» é precisamente a de contrapor à utilização daquela regra como uma regra de decisão.
Por outro lado, não podemos deixar de salientar que nos parece incongruente que numa norma que tem por finalidade combater práticas simulatórias, se adote uma solução legislativa que a condicione à partida, impedindo a valoração de um indicador de divergência tão relevante como é a discrepância entre o valor declarado e o valor escriturado contabilisticamente no balanço.
Sobretudo em situações como a dos autos (em que o valor declarado é nove ou dez vezes inferior ao valor de balanço). Trata-se de um facto que sugere fortemente que o valor declarado de transmissão é inferior ao valor real. E não se trata sequer de utilizar o critério de correção para justificar a correção, mas de relevar o grau de desproporção entre valores como indicador de que o valor real difere do declarado.
De qualquer modo, entendemos que a função do n.º 1 do artigo 52.º do Código do IRS não é-e nunca terá sido-a de delimitar os casos em que a administração pode desconsiderar o valor declarado nem a de impor um determinado procedimento ou uma especial fundamentação.
A função deste dispositivo é, tão só, a de devolver à administração o poder/dever de desconsiderar o valor declarado da transmissão mesmo quando este tenha sido atestado por oficial público.
O que sucede porque a sua redação remonta à data da aprovação do próprio Código. Na altura, vigorava ainda o artigo 37.º, parágrafo único, do Código de Processo das Contribuições e Impostos, no âmbito do qual se poderia questionar o poder de proceder à determinação do valor real dos bens transmitidos e corrigir a matéria tributável dele resultante, mesmo que não existisse declaração judicial de nulidade do negócio jurídico com fundamento na sua simulação.
Assim, o n.º 1 daquele artigo 52.º permite à Administração Tributária desconsiderar tanto o valor declarado como o valor do último balanço quando considere fundadamente que o valor real é superior.
Do exposto se conclui que deve ser uniformizada jurisprudência no sentido propugnado pelo acórdão recorrido.
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4-Conclusão
O artigo 52.º, n.º 2, alínea b), do Código do IRS, na redação introduzida pelo artigo 2.º da Lei 82-E/2014, de 31 de dezembro, deve ser interpretado no sentido de que a lei presume que o valor real da transmissão de ações ou outros valores mobiliários não cotados em bolsa é o que lhe corresponder, apurado com base no último balanço, ficando ressalvada tanto a possibilidade de a Administração Tributária considerar valor superior, quando considere fundadamente que é o valor real, como a possibilidade de o sujeito passivo demonstrar que o valor real é inferior ao ali previsto.
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5-Decisão
Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em tomar conhecimento do mérito do recurso e uniformizar jurisprudência nos termos sobreditos.
Sem custas, por delas estar isento o Ministério Público-artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do Regulamento das Custas Processuais.
Registe e notifique.
Lisboa, 29 de abril de 2025.-Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos (relator por vencimento)-Francisco António Pedrosa de Areal Rothes (vota vencido, acompanhando a declaração de voto da Senhora Conselheira Catarina Almeida e Sousa)-Dulce Manuel da Conceição NetoAníbal Augusto Ruivo FerrazGustavo André Simões Lopes CourinhaPaula Fernanda Cadilhe Ribeiro (com voto de vencida que junta)-Pedro Nuno Pinto VergueiroAnabela Ferreira Alves e Russo (vota vencida, acompanhando a declaração de voto da Senhora Conselheira Catarina Almeida e Sousa)-João Sérgio Feio Antunes RibeiroJorge Cortês-Catarina Almeida e Sousa (com voto de vencida que junta).
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Voto de vencida da Senhora Conselheira Paula Cadilhe Ribeiro Voto vencida. Teria votado o projeto de acórdão que ficou vencido e que uniformizava jurisprudência no sentido do acórdão fundamento, proferido por este Supremo Tribunal Administrativo, em 22/06/22, no processo 121/14.2BELRA, de que fui relatora.
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Voto de vencida da Senhora Conselheira Catarina Almeida e Sousa Vencida, enquanto relatora originária, e com o projeto de uniformizar jurisprudência no sentido do acórdão fundamento, proferido por este Supremo Tribunal Administrativo, em 22/06/22, no processo 121/14.2BELRA.
Em ambos os casos subjacentes aos dois acórdãos em confronto, a fundamentação da divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão assentou no apuramento com base no último balanço, com o valor da alienação a corresponder ao das participações sociais apurado com base no último balanço [cf. n.os 2.º, alínea b) e 3 do artigo 52.º do CIRS, (consoante se trate de ações não cotadas em bolsa ou de quotas].
O acórdão recorrido considerou esta atuação da ATA conforme à lei; o acórdão fundamento, ao invés, considerou que a ATA havia feito uma errada aplicação do disposto no artigo 52.º do CIRS.
Ora, tal como defendemos no nosso projeto, da leitura do teor integral do artigo 52.º do CIRS, na redação convocada, podemos concluir que o preceito está claramente dividido em duas diferentes partes.
Uma primeira, correspondente ao n.º 1, com um alcance geral, direcionada a todas as situações passíveis de gerar maisvalias (mobiliárias) e que sujeita a ATA, tendo em vista a determinação do valor de realização, à consideração fundada (“considere fundadamente”) de que “possa existir divergência entre o valor declarado e o valor de transmissão”-artigo 52.º, n.º 1 do CIRS.
Só após, cumprido este primeiro passo, é que o legislador prevê que se passe à seguinte etapa da norma, ou seja, aos n.os 2 e 3 do mesmo artigo 52.º, nos quais se estabelecem presunções quanto ao valor da alienação, para os casos de ações ou outros valores mobiliários cotados em bolsa de valores [n.º 2, alínea a)], para ações ou outros valores mobiliários não cotados em bolsa de valores [n.º 2, alínea b)] e, por fim, para o caso das quotas (n.º 3).
Ora, para que a ATA cumpra o disposto no n.º 1 do artigo 52.º do CIRS, o legislador exige a observância de requisitos aí previstos, os quais não podem alhear-se da exigência legalmente expressa de fundamentar a possibilidade de existir uma divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão.
Não oferece especiais dificuldades o alcance do sentido do termo “fundadamente” no contexto em que ele é usado na lei, pois, em matéria de fundamentação dos atos tributários ou em matéria tributária, a lei geral tributária (LGT), no seu artigo 77.º, é clara, desenvolvendo, de resto, nos termos constitucionalmente impostos, o direito dos administrados à fundamentação expressa e acessível dos atos que afetem direitos ou interesses legalmente protegidos (cf. artigo 268.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa).
Nas palavras de A. Lima Guerreiro (vide, Lei Geral Tributária, Anotada, Editora Rei dos Livros, pág. 337), convocando Vieira de Andrade, “o dever de fundamentação é a obrigação que a Administração Tributária tem de indicar as razões de facto e de direito determinantes dos seus actos, exteriorizando, assim, o procedimento de formação da vontade decisória”. No mesmo sentido, também Diogo Leite de Campos (vide, Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada. 4.ª edição, Lisboa, Encontro de Escrita, 2012, pág. 77), segundo o qual a fundamentação deve conter exposição dos seus elementos de facto e de direito. De igual modo, a jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores afirma reiteradamente que a fundamentação dos atos administrativos, em particular os tributários, deve ser suficiente, possibilitando ao contribuinte, um conhecimento concreto da motivação do ato, ou seja, das razões, de facto e de direito, que determinaram o órgão ou agente atuar como atuou.
Portanto, e no que à previsão do n.º 1 do artigo 52.º do CIRS, na perspetiva que ora nos ocupa, diremos que é incontornável que a Administração Tributária avance, antes do mais, com factos, razões objetivas, indícios, suscetíveis de fundamentar a alegada divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão (ao menos, uma dúvida fundada de que o valor da realização declarado pelo sujeito passivo não corresponde ao valor pelo qual a transação realmente ocorreu). Apenas com este dever legal cumprido-repete-se-estará a ATA autorizada a avançar para os n.os 2 e 3 do artigo 52.º, conforme os casos. E foi este, no essencial, o percurso argumentativo acolhido no acórdão fundamento.
A este propósito, convoca-se André Salgado de Matos, que, em anotação ao artigo em apreciação (ainda na sua versão originária, correspondente ao artigo 50.º do CIRS), afirma:
“O n.º 1 exige que a DGCI considere fundadamente que existe divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão. Ou seja, não basta que o valor declarado seja inverosímil, improvável ou pouco usual, tem que existir prova de que não é o valor real.”-vide, Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), Anotado, com revisão de Rodrigo Queiroz e Melo, ed. Instituto Superior de Gestão, 1999, pág. 323.
No desiderato de cumprir o n.º 1 do artigo 52.º do CIRS, com as exigências de fundamentação (da divergência entre o valor declarado e o real) apontadas, pode a ATA lançar mão de diversas diligências que estão ao seu alcance no âmbito de um procedimento inspetivo, tais como a junção aos autos de documentos respeitantes a fluxos financeiros entre as partes envolvidas na compra e venda, o acesso a documentos bancários (que, aliás, na situação subjacente ao acórdão recorrido foi até sugerido pelo sujeito passivo em sede de inspeção, sem que os serviços inspetivos nisso tivessem visto qualquer utilidade), a obtenção de declarações do adquirente ou a comparação com vendas de ações e quotas em situações semelhantes (por idêntico sector de atividade, por exemplo).
Portanto, parecenos claro, como afirmou o acórdão fundamento, que o que a ATA não pode é invocar “o critério de correção previsto no n.º 3 do artigo 52.º [ou, acrescente-se, o do n.º 2, alínea b)] para justificar a divergência de valores”, pois o “disposto no n.º 3 do artigo 52.º do Código do IRS [ou o do n.º 2, alínea b)] não serve para justificar a correção, na medida em que estabelece o critério para quantificar a correção, e não o pressuposto de atuação (correção) da AT”. De acordo com o entendimento que perfilhamos, não sofre dúvidas que os referidos n.os 2, alínea b) e 3 do artigo 52.º do CIRS apenas se aplicam caso a ATA consiga demonstrar ou, pelo menos, levantar uma dúvida fundamentada de que o valor de realização declarado não corresponde ao efetivo valor da transmissão.
Em bom rigor, a não se entender assim, facilmente seria desvirtuado o objetivo do legislador ao impor à ATA especiais obrigações de fundamentar a possível existência de divergências.
Mais, aliás. Se assim não fosse, a própria estatuição do n.º 1 do artigo 52.º do CIRS sairia defraudada e com um conteúdo incontornavelmente inútil, já que a consequente presunção quantitativa, prevista nos n.os 2, alínea b) e 3 do artigo 52.º do CIRS (apuramento do valor de alienação com base no último balanço) seria simultaneamente fundamento bastante da divergência e medida da correção ao valor de alienação.
Dito de outro modo, se o legislador fiscal tivesse pretendido, singelamente, desconsiderar o valor declarado da transmissão por o mesmo se apresentar inferior ao que resultaria do valor das participações sociais apurado com base no último balanço, tê-lo-ia dito explicitamente, sem necessidade de uma previsão normativa como o artigo 52.º do CIRS que, como vimos, opera em duas fases distintas. E, a este propósito, importa não perder de vista que, na fixação do sentido e alcance da lei, determina o n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil, que “o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.
Temos, assim, que, quer o critério de quantificação da correção previsto no n.º 2, alínea b), quer o do n.º 3 do artigo 52.º do CIRS, são isso mesmo:
critérios de quantificação presuntiva do valor de alienação das participações sociais e, como presunções que são, são ilidíveis, admitindo sempre prova em contrário por parte do sujeito passivo (artigo 73.º da LGT).
Acresce, face a tudo o que ficou dito, que se trata de presunções que não operam automaticamente, ou seja, não dispensam a ATA de, num primeiro momento, considerar “fundadamente que possa existir divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão”.
É esta, estamos em crer, a melhor interpretação do artigo 52.º do CIRS, também por apelo ao disposto no n.º 1 do artigo 74.º da LGT, nos termos do qual o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque.
Foi assim, em face de todo o exposto, que, verificado o conflito de jurisprudência, defendemos a uniformização, quanto à interpretação e aplicação do artigo 52.º, n.os 1, 2, alínea b) e 3 do CIRS, na redação convocada em ambos os acórdãos em oposição, no sentido propugnado pelo acórdão fundamento, o que equivale a dizer que:
-Para efeitos do n.º 1 do artigo 52.º do CIRS, cabe à ATA indicar os factos e/ou indícios suscetíveis de fundamentar a possível existência de divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão de participações sociais (ações não cotadas em bolsa de valores e/ou quotas), não servindo para tal a convocação do critério de quantificação previsto nos n.os 2, alínea b) e 3 do mesmo artigo, que faz presumir que o valor de alienação é o que às ações ou quotas corresponda, apurado com base no último balanço. O disposto nos n.os 2, alínea b) e 3 corresponde apenas a um critério de quantificação da correção, o qual só será convocado após a verificação do pressuposto prévio, a fundada divergência, a que alude o n.º 1 do preceito.
Lisboa, 29 de abril de 2025.-Catarina Almeida e Sousa.
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