Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2025
Processo: 4839/21.5T8FNC-A.L1.S1
Revista Ampliada.
ACORDAM, EM PLENO DAS SECÇÕES CÍVEIS,
NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
I - Relatório
A Caixa Geral de Depósitos, S.A. instaurou execução para pagamento de quantia certa, com processo ordinário, contra AA, BB e CC, fundando-se para tanto numa livrança avalizada pelos executados, no valor de € 56.758,77, com data de vencimento de 28/05/2021.
Alegou que aquela livrança, que lhe foi entregue “subscrita em branco”, foi por si preenchida, quanto a tal valor e data, em «cumprimento» da «convenção de preenchimento» anteriormente celebrada e respeitante à utilização de um cartão de crédito, emitido a favor da Euronetworks, Soluções de Informática Gerais e Personalizadas, L.da, sendo que nos termos daquela «convenção», em caso de incumprimento, a CGD estava autorizada a preencher a livrança «pelo valor correspondente ao total das responsabilidades decorrentes da utilização do cartão, nomeadamente capital, juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas e quaisquer encargos», conforme procedeu no caso.
O executado AA, citado, deduziu os presentes embargos.
Alegou, em síntese, que o crédito cujo pagamento está a ser reclamado pela exequente não foi por si utilizado, dele não tendo, pois, beneficiado.
Referiu também que, por carta de 14/04/2009, solicitou à embargada o cancelamento do cartão de crédito que possuía e entregou-o àquela, sendo que à data a conta bancária estava saldada e a livrança respeitava exclusivamente à utilização daquele cartão entregue, ao passo que o crédito em causa refere-se a um outro cartão cujo contrato data de 31/03/2010, termos em que concluiu que o preenchimento da livrança em causa foi abusivo.
A Exequente contestou.
Alegou que o cartão de crédito em causa foi atribuído à referida Euronetworks e que esta o utilizou, sendo a obrigação do embargante, enquanto avalista, cumprir o que a avalizada incumpriu.
Referiu também que o citado cartão de crédito não foi cancelado e que o respetivo contrato manteve eficácia após 14/04/2009, tendo a embargada declarado por diversas vezes ao embargante que não prescindia do aval por ele prestado enquanto responsável por dívidas contraídas pela Euronetworks, muito embora ele tenha deixado de ser sócio daquela sociedade comercial, subscritora da livrança em causa.
Concluiu pela improcedência dos embargos de executado.
Findos os articulados, foi dispensada a audiência prévia e proferido despacho saneador - que declarou a instância regular, estado em que se mantém - e despacho a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova.
Realizada a audiência final, o Exmo. Juiz proferiu sentença a julgar improcedentes os presentes embargos de executado.
Inconformado com tal decisão, interpôs o executado/embargante recurso de apelação, tendo-se, por Acórdão da Relação de Lisboa, proferido em 22/06/2023, concedido provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida, julgando-se procedentes os embargos e declarando-se extinta a instância executiva.
Agora inconformado o Banco exequente/embargado, interpõe o presente recurso de revista, visando a revogação do Acórdão da Relação e a sua substituição por decisão que repristine o decidido na sentença da 1.ª Instância.
Terminou a sua alegação com conclusões em que refere:
[...]
I) O douto Acórdão recorrido, proferido nos autos em 22.06.2023, a fls…, em suma, julgou procedente o recurso de Apelação que tinha sido interposto pelo Executado AA da douta sentença, proferida nos autos em 18.01.2023, a fls..., pelo que revogou a mesma e, em consequência, julgou procedentes os Embargos de Executado e extinta a execução.
II) Contudo, salvo o devido e merecido respeito, que é muito, afigura-se à aqui Recorrente CGD que o doutamente decidido, a fls…, enferma de errada aplicação de Direito, não tendo sido considerados todos os elementos constantes dos autos.
III) Desde logo, a considerar-se ser possível a desvinculação unilateral do avalista, que não é, mas que aqui se concebe por mera hipótese de raciocínio, sem com tal conceder ou transigir, a verdade é que, no caso dos autos inexistiu qualquer pretensa denúncia válida e eficaz por parte do Embargante, como resulta dos factos dados como provados pelas instâncias, pelo que o entendimento do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, salvo o devido e merecido respeito, que é muito, não pode prevalecer.
IV) O produto bancário “cartão caixaworks” não foi revogado, caducado, resolvido ou denunciado com a mera entrega do “cartão - plástico” por parte do embargante.
V) Com efeito, o que resulta dos factos provados n.º’s 16, 17, 18 e 19 é que apenas foi “cancelado” o cartão - plástico, respeitante ao mesmo produto bancário e à mesma “conta - controlo”, pelo que, ao invés do concluído no douto Acórdão recorrido, não existiu qualquer aceitação de substituição do Recorrido por parte da Caixa Geral de Depósitos, S. A.
VI) O certo é que na carta datada de 14.04.2009 o embargante solicita a substituição dos avales e responsabilidades por si assinados, o que, como é bom de ver, não consubstancia uma qualquer declaração resolutiva válida e eficaz - neste sentido, Jurisprudência supra citada.
VII) E, por outro lado, a tal carta, datada de 14.04.2009, respondeu a Exequente CGD, por carta com a ref.ª ...99 de 03.06.2009, ponto 20 da matéria de facto dada como provada, nos termos da qual comunicou ao Embargante que «(...) concluímos não estarem actualmente reunidas as condições para prescindir do seu aval e do da sua esposa (...) nas responsabilidades que a empresa Euronetworks (...) apresenta no grupo Caixa Geral de Depósitos», posição reiterada por cartas datadas de 27.05.2010, de 12.11.2014, de 07.08.2020 e de 03.11.2020, e por email de 02.07.2020.
VIII) Do teor da correspondência junta aos autos, confessada pelo Avalista, resulta que a CGD sempre comunicou, reiteradamente, sublinhe-se, ao Embargante que não aceita o seu pedido de desvinculação do aval prestado.
IX) Inexiste, assim, qualquer pretensa denúncia válida e eficaz, pelo que o não houve qualquer desvinculação do avalista, aqui recorrido.
X) Em todo o caso, sem com tal conceder ou transigir, a verdade a tese a que se alude no douto Acórdão recorrido, de eventual desvinculação unilateral do avalista, não encontra suporte no Direito Cartular, inexistindo qualquer disposição legal que suporte tal tese.
XI) A perda da sua qualidade de sócio não determina, ipso facto, a extinção da sua qualidade de avalista.
XII) Facto esse que o Embargante tem perfeita consciência, porquanto apenas solicita a sua desvinculação, a qual, de resto, não mereceu qualquer aceitação por parte da Embargada.
XIII) A lei Uniforme sobre letras e livranças (LULL) não admite a desvinculação unilateral do avalista das obrigações cambiárias que, por esse aval, assumiu. É sempre indispensável a autorização do beneficiário do aval, aqui a CGD, que como resulta dos factos provados n.º’s 20 e 21, inexistiu.
XIV) E, sendo a “denúncia” é um acto jurídico unilateral, relativamente a terceiros, não criam obrigações salvo se os destinatários as aceitarem - cf. Doutrina supra citada.
XV) Sendo que a CGD não aceitou qualquer pretensa denúncia.
XVI) Por Acórdão de Uniformização de Jurisprudência deste Colendo Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2013, publicado no Diário da República, 1.ª série - n.º 14 - 21 de Janeiro de 2013, págs., 433 e segts., foi fixada a Jurisprudência no seguinte sentido: «Tendo o aval sido prestado de forma irrestrita e ilimitada, não é admissível a sua denúncia por parte do avalista, sócio de uma sociedade a favor de quem aquele foi prestado, em contrato em que a mesma é interessada, ainda que entretanto, venha a ceder a sua participação social na sociedade avalizada», Acórdão esse que é totalmente aplicável ao caso em apreço, ao invés do que resulta do decidido no douto Acórdão recorrido.
XVII) Tal entendimento jurisprudencial foi igualmente recebido de um modo, em geral, favorável na comunidade jurídica portuguesa, cf. Doutrina supra citada, e proferidas decisões em igual sentido, nomeadamente a referida nas presentes alegações.
XVIII) A dictomia a que se alude no douto Acórdão recorrido (livrança completa/aval geral) não é susceptível de afastar o atento o entendimento jurisprudencial fixado no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 4/2013.
XIX) Situando-se o presente caso na área das relações jurídicas cartulares, seria nesse campo que teria de existir uma norma que permitisse tal acto de denúncia, o que não é o caso.
XX) A Lei Uniforme sobre Letras e Livranças não impede actos de denúncia se previstos em estipulação pelas partes, mas se e só se, estipulados no seu próprio contexto, o que, de resto, é bem compreensível.
XXI) De facto, a rigorosíssima literalidade de qualquer título cambiário é obstáculo a isso. Quando muito poderia figurar no pacto de preenchimento. Mas não tendo sido estipulada essa possibilidade de denúncia, a mesma inexiste.
XXII) O douto Acórdão recorrido pretende aplicar ao aval regras estabelecidas para a fiança (como, de resto, resulta da Doutrina aí citada) quando, afinal de contas, a Jurisprudência aplicável, como se viu, tem tal denúncia como ilegal, como, de resto, sucedeu no AUJ citado.
XXIII) A afirmação de que é possível denunciar o aval em circunstâncias como as do presente processo viola, pois, frontalmente o referido AUJ n.º 4/2013, razão mais do que bastante para revogar o douto Acórdão recorrido.
XXIV) Note-se que, a CGD deu à execução um título de crédito, Livrança, cujos caracteres de (i) literalidade, (ii) abstracção e (ii) autonomia, sobre os quais incidiu já vastíssima Doutrina e Jurisprudência, permitem concluir que a Livrança tem um valor próprio, maxime, valendo por si mesma - cf. Doutrina supra citada.
XXV) Daí que, após o vencimento da Livrança, sem que a mesma tenha sido paga, como foi invocado pela Exequente, e não foi impugnado pelo Embargante, antes confessado por este, pode o legítimo portador instaurar a respectiva acção executiva para cobrança integral do seu crédito, contra os devedores, como a CGD fez.
XXVI) E tendo o Embargante confessado a veracidade e genuinidade da livrança dada à execução, é manifesto o integral e pleno incumprimento da obrigação a que este está vinculado nos termos do artigo 32.º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças.
XXVII) Assim, as questões suscitadas por parte do Embargante, seja por que prisma se coloque a questão, nunca serão susceptíveis de colocar em crise a exequibilidade do título dado à execução (livrança, vencida e não paga).
XXVIII) O aval diverge da fiança, com a qual não se confunde - cf. Jurisprudência supra citada.
XXIX) No caso dos autos não há qualquer indeterminação da livrança dada à execução.
XXX) O aval dos autos não corresponde a uma qualquer “relação contratual duradoura celebrada por tempo indeterminado”.
XXXI) O pacto de preenchimento dos autos não estabelece qualquer prazo pelo qual deve ser preenchida a livrança entregue em branco, pelo que, é direito potestativo do portador preencher a livrança com uma qualquer data de vencimento ulterior ao momento do alegado incumprimento da subscritora, o que a CGD fez - neste sentido Jurisprudência supra citada.
XXXII) Por isso, não poderia o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa afirmar que «não podia era ter deixado decorrer o tempo, mais de 12 anos, para depois preencher a livrança e exigir do Executado/Avalista o pagamento da quantia nela aposta».
XXXIII) Em suma, a tese da denúncia unilateral do avalista, em circunstâncias como as do presente processo, não é admissível (pois viola frontalmente o referido AUJ n.º 4/2013) e, por outro lado, não houve, in casu, qualquer pretensa desvinculação do avalista (atento o teor material da carta datada de 14.04.2009), pelo que, inexiste qualquer pretenso preenchimento abusivo da livrança dada à execução.
XXXIV) Face ao exposto, e salvo o devido e merecido respeito, que é muito, mal andou o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa quando conclui no sentido inverso, impondo-se, por isso, a revogação do aí decidido.
XXXV) O douto Acórdão recorrido fez, assim, menos correcta interpretação e aplicação da Lei, violando, designadamente, as normas constantes dos art.º’s 17.º, 30.º, 32.º e 77.º da LULL, 762.º, n.º 1 do CC e 703.º, n.º 1, alínea c) do CPC. [...]”
O executado/embargante respondeu, sustentando que o acórdão recorrido não violou qualquer norma substantiva, pelo que deve ser mantido nos seus precisos termos.
Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:
“[...]
A. A declaração negocial tendente à extinção do contrato de cartão bancário - por revogação, caducidade, resolução ou denúncia -, ainda que imperfeitamente expressa, opera a extinção desse contrato, ainda que se mantenha o contrato de conta, com efeitos imediatos ou, no limite, no termo do prazo de um mês a contar da comunicação ao destinatário, o que, neste caso, ocorreu em 16/04/2009 (artigos 217.º, 236 e 239.º do Código Civil).
B. Extinto o contrato de cartão e saldado o crédito dele emergente, extinguem-se, por consequência, as garantias a ele associadas, in casu, a livrança e respectivo pacto de preenchimento.
C. No âmbito das relações imediatas, como é o caso dos presentes autos, não valem os princípios cambiários da literalidade e abstração (acórdãos do STJ de 16-06-2009/Proc. 344/05.5TBBGC-A.S1, Fonseca Ramos, e de 10-07-2008/Proc. 08B2107, Salvador da Costa).
D. O aval não está associado a contas bancárias, mas a operações de crédito.
E. A livrança em branco não vale como livrança, sujeita ao regime da Lei Uniforme relativa às Letras e Livranças antes do preenchimento regular do título, conforme decorre claramente do artigo 76,º § I, da LULL.
F. A livrança em branco só surge como título cambiário com o respetivo preenchimento. E o aval conferido numa letra em branco não é um aval cambiário, embora determine para quem assina o aval um vínculo jurídico.
G. O avalista AA, aqui Recorrido, em 30/03/2009, cedeu a outrem a sua participação social na Euronetworks e, por carta datada de 14/04/2009, comunicou tal cedência à aqui Recorrente, documentando-a, e solicitou a esta a sua substituição no contrato de garantia «pelos atuais sócios» da Euronetworks, entregando o cartão de crédito associado ao referido financiamento, o qual foi aceite pela Recorrida.
H. O facto provado n.º 16, espelha bem que a Exequente/Recorrente, através da sua colaboradora DD, ao referir-se expressamente a «extinguir o aval» sabia perfeitamente o que pretendiam os avalistas AA e EE, sendo que a carta de 16/04/2009, atentas as circunstâncias que a envolveram, não poderá ter outro sentido que não o de provocar a extinção do vínculo de aval.
I. Contudo, se dúvida houvesse quanto ao sentido da declaração negocial de denúncia ou resolução do vínculo de aval ela dissipou-se com a carta de 30/11/2011, em que os Executados AA e EE comunicaram à aqui Recorrente, na «qualidade de avalistas», que denunciavam «a obrigação de aval em livranças nos contratos» celebrados com a aqui Recorrente, conforme documento de fls. 10 verso do Apenso B.
J. Note-se que a circunstância da denúncia operar em 14.04.2009 ou 30.11.2011 é irrelevante para o desfecho do caso, tal como concluiu o TRL, pois, como consta na sentença de 1.º instância, proferida no apenso B, e a Recorrida expressamente assume nas páginas 36 e 37 das suas alegações de recurso, em «30 de novembro de 2011 [...] não havia qualquer montante em dívida».
K. A denúncia, e bem assim a resolução, enquanto declaração unilateral receptícia, não carece que autorização ou aceitação da contraparte para produzir os seus efeitos, produzindo-os inclusive contra a vontade expressa desta.
L. Entender o contrário, seria desvirtuar a natureza da livrança-caução ou livrança-garantia, revestindo-lhe sem mais o caráter de título de crédito conferindo ao Banco a faculdade de preencher a letra em violação do pacto de preenchimento, após denúncia exercida em data em que inexistia incumprimento contratual.
M. Em função da factualidade apurada importa entender que o Executado, enquanto avalista, denunciou válida e eficazmente o contrato de garantia e respetivo aval que conferiu à livrança exequenda.
N. É de prima importância notar que, perante tal denúncia, a Exequente poderia ter também denunciado o contrato de crédito ou, se assim o entendesse, celebrado novo contrato de garantia, com nova livrança subscrita pela Euronetwork e avalizada pelo novo sócio desta, com novo pacto de preenchimento.
O. Não o tendo feito corre por sua conta as consequências daí decorrentes.
P. A jurisprudência do AUJ n.º 4/2013 é inaplicável ao presente caso, se interpretada como abarcando o aval aposto em livrança em branco.
Q. O AUJ 4/2013 reporta-se tão-só ao aval relativo a letra ou livrança completa, com todos os seus elementos preenchidos, enquanto negócio cambiário, situação que no caso do aval geral apenas sucederá com o incumprimento do contrato de financiamento por parte da sociedade,
R. Um avalista de livrança que cede a sua participação social e se desliga da vida societária pode válida e eficazmente desvincular-se do pacto de preenchimento subjacente à emissão desse título em branco.
S. Desde logo, a exigência de que um sócio-gerente de uma sociedade avalize a livrança que garante o bom cumprimento de determinado negócio por ela efectuado tem como pressuposto aquela sua qualidade, o que é válido tanto para o que assume essa responsabilidade acrescida como para quem dela beneficia. Na verdade, não fosse tal nexo, nem ao credor do título cambiário ocorreria fazer tal exigência nem o avalista aceitaria a mesma.
T. É facto que no caso em apreço tal faculdade de resolução não consta expressamente no pacto de preenchimento, desconhecendo o embargante, sem culpa, se a mesma consta do contrato de cartão de crédito.
U. Mas é de entender que a mesma deverá ser reconhecida, por integração do conteúdo negocial dos referidos contratos, em conformidade com o disposto no artigo 239.º do Código Civil.
V. Por certo, quer por força do princípio da boa-fé quer apelando àquela vontade conjectural, não pode sobrar nenhuma dúvida em afirmar que sendo a qualidade de sócio e gerente da sociedade avalizada sempre pressuposto que as partes consideraram essencial à vinculação daquele como avalista da livrança em branco, estará implícito um acordo de que o referido aval apenas abarcará as responsabilidades assumidas pela sociedade enquanto o avalista mantiver a referida qualidade. Tal só não sucederá em situações excepcionais que, como tal, deverão essas sim ser expressamente previstas no acordo de preenchimento.
W. O aval vale apenas para as obrigações constituídas quando o avalista exercia funções e/ou era sócio da sua avalizada.
X. Tendo a livrança-caução ou livrança-garantia sido emitida sem data de vencimento, no âmbito de uma relação duradoura e, assim, não podendo valer como título de crédito, o avalista que, entretanto, cedeu a sua posição de sócio na sociedade subscritora da livrança pode valida e eficazmente denunciar o aval geral desde que à data se mostrem saldadas as dívidas da sociedade relativamente ao Banco.
Y. Assim, atenta a natureza do contrato em pauta (cartão de crédito) - acontecendo o mesmo nos casos de contas caucionadas -, mormente ao facto de o montante da dívida só ser determinado a posteriori, mediante a concreta utilização do cartão, não é legítimo pretender validar a obrigação decorrente do preenchimento da livrança em relação a um avalista que deixou de ter a qualidade pressuposta no pacto de preenchimento há mais de 12 anos (abril de 2009 a outubro de 2021), não tendo nenhum controle, nem sequer conhecimento, sobre os montantes que nesse lapso de tempo foram utilizados pela sociedade avalizada.
Z. Sendo certo que quer a perda da qualidade de sócio quer a manifestação da vontade de fazer cessar o pacto de preenchimento, foram inequivocamente comunicadas à exequente em março de 2009, repetidos em 14 de abril desse ano, e reiterados em 30 de novembro de 2011, afigurando-se fácil a interpretação, nos termos do artigo 236.º do Código Civil, no sentido de que a referida manifestação de vontade se dirigiu efectivamente ao pacto de preenchimento e à respectiva vinculação para aval, isto é, à livrança ainda em branco.
AA. De realçar, neste conspecto, que a resolução - e bem assim a denúncia -, enquanto declaração unilateral receptícia, não carece que autorização ou aceitação do declaratário para produzir os seus efeitos, produzindo-os inclusive contra a vontade expressa deste. Assim, a matéria dos pontos 20.º e 21.º dos factos provados é totalmente inócua, inábil a evitar a válida e eficaz resolução do pacto de preenchimento e respectiva vinculação para aval, pelo que será de considerar lícita a revogação operada.
BB. O montante titulado pela referida livrança exequenda é, pois, inexigível aos executados AA e EE.
CC. De resto, cremos ser inquestionável que a conduta da embargada sempre integrará uma actuação manifestamente abusiva do seu pretenso direito, nos termos do artigo 334.º do Código Civil.
DD. O acórdão recorrido não merece qualquer censura. [...]”
*
Distribuídos os autos neste STJ, foi proposto ao Exmo. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que o julgamento da presente revista fosse feito de modo ampliado, com a intervenção do Pleno das Seções Cíveis, por se perspetivar a prolação, na presente revista, de Acórdão que considere não aplicável a jurisprudência uniformizada pelo AUJ 4/2013 à “vinculação para aval” e tal se revelar necessário e conveniente para assegurar a uniformidade da jurisprudência.
Tendo o Exmo. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, por decisão de 19/02/2024, determinado que o julgamento da presente revista se faça pelo Pleno das Seções Cíveis, de acordo com o disposto no art. 686.º do CPC.
O Ministério Público emitiu o seu parecer no sentido da revista ser julgada improcedente, mantendo-se o acórdão recorrido.
Obtidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.
*
II - Fundamentação de Facto
As Instâncias deram como provados os seguintes factos:
1 - No dia 21 de outubro de 2021, foi apresentada à execução ordinária n.º 4839/21.5..., de que os presentes embargos são apenso, uma livrança, que aqui se dá por integralmente reproduzida (dela constando como data de emissão o dia 07/09/2007, como data de vencimento o dia 28/05/2021 e a importância de € 56.758,77).
2 - Na livrança consta como subscritora a sociedade E..., L.da, e a assinatura dos seus legais representantes à data da sua emissão;
3 - No verso consta, precedida da expressão “Bom para aval ao subscritor”, a assinatura do Executado/Embargante aposta pelo seu próprio punho;
4 - A livrança foi assinada em branco e, posteriormente, preenchida pela Exequente;
5 - A autorização concedida pelo Executado à Exequente para preencher a livrança foi efetuada nos moldes vertidos no documento 1, junto com o requerimento executivo, que aqui se dá por integralmente reproduzido;
6 - Trata-se de documento assinado pelo Executado/Embargante, cuja assinatura foi aposta pelo seu próprio punho;
7 - Esse documento encontra-se dirigido à Exequente e tem como “Assunto: Cartão Caixa Works; Entrega de Livrança em Branco”;
8 - No seu texto consta: “Ex.mos Senhores,
Tal como solicitado, em complemento do contrato de atribuição e utilização do cartão em título, vimos pela presente carta proposta entregar à Caixa Geral de Depósitos, S. A. (CGD), uma livrança com montante e vencimento em branco, devidamente datada, por nós subscrita e avalizada pelo(a)(s) avalista(s) abaixo assinado(a)(s)”, destinada a titular e assegurar o pagamento de todas as responsabilidades decorrentes da utilização do referido cartão e de acordo com as respectivas Condições Gerais de Utilização.
Pela presente carta, ainda, autorizamos a CGD a preencher a sobredita livrança, quando tal se mostre necessário, a juízo da própria CGD, tendo em conta, nomeadamente o seguinte:
a) A data de vencimento será fixada pela CGD quando, em caso de incumprimento das obrigações assumidas, a CGD decida preencher a livrança;
b) A importância da livrança corresponderá ao total das responsabilidades decorrentes da utilização do cartão, nomeadamente em capital, juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas e quaisquer encargos, incluindo os fiscais relativos à própria livrança;
c) A CGD poderá inserir cláusula “sem protesto” e definir o local de pagamento.
A livrança não constitui novação do crédito, pelo que se mantêm as respectivas condições, incluindo as garantias.
EM ANEXO: LIVRANÇA EM BRANCO»;
9 - O documento encontra-se datado de 18 de setembro de 2007 e a assinatura dos subscritores está reconhecida presencialmente por advogado como sendo as dos legais representantes da sociedade E..., L.da;
10 - O Executado/Embargante assinou, pois, o documento na parte dos subscritores, em nome da sociedade, e na parte dos avalistas em nome próprio;
11 - A livrança em anexo a este documento tem aposto o número...00;
12 - O produto bancário “Cartão Caixa Works” consistia na atribuição, neste caso, à sociedade E..., L.da, de um valor máximo para usar a seu bel-prazer, com pagamentos acrescidos de juros remuneratórios nos moldes contratualizados;
13 - No fundo, funcionava em moldes similares a uma conta corrente caucionada;
14 - Uma das formas de utilizar esse valor da conta mãe consistia no cartão, o chamado plástico, ao qual se encontrava associada uma conta cartão, na qual se discriminava os movimentos efetuados pelo cartão que usava o saldo da conta mãe;
15 - À data da cessão de quotas do Executado para terceiro e de deixar de ser o legal representante da sociedade subscritora da livrança, a conta cartão e a conta mãe não tinham nenhum saldo em dívida, não se encontrando usado qualquer valor;
16 - Antes da cessão de quotas, a Exequente, através de FF, informou o Executado/Embargante que a cessão de quotas não era o procedimento adequado para extinguir o aval por si prestado e que o Banco poderia recusar libertá-lo dessa posição de avalista;
17 - Todavia, o Executado, ainda assim, resolveu proceder à cessão de quotas;
18 - A 16 de abril de 2009, o Executado entregou nas instalações da Exequente, o documento n.º 1, junto com a petição inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzido, bem como o cartão de plástico;
19 - Nesse documento consta:
«Na sequência da nossa reunião e carta do dia 09 de Março 2009 (em anexo), foi efectuado no dia 30 de Março 2009 o contrato de transmissão de quota da sociedade Euronetworks e entregue cópia do registo comercial na vossa instituição pelos actuais sócios (cópia em anexo);
Neste sentido e visto que neste momento o documento solicitado (registo comercial) foi entregue, solicito a substituição dos avais e responsabilidades assinados por mim pelo dos actuais sócios, pois deixei de exercer qualquer função e controlo de gestão na Euronetworks.»;
20 - Esse documento teve como resposta a carta de fls. 17 verso, que aqui se dá por integralmente reproduzida, na qual foi comunicado ao Embargante «não estarem, actualmente, reunidas as condições para prescindir do seu aval e o da sua esposa (BB)»;
21 - O que foi reiterado por carta de fls. 18, 18 verso, e-mail de fls. 19, que aqui se dão por integralmente reproduzidos;
22 - A 31 de março de 2010, o novo sócio da Euronetworks formulou proposta de cartão respeitante ao mencionado produto e conta mãe, tendo-lhe sido concedido tal plástico.
*
III - Fundamentação de Direito
A exequente/CGD deu à execução uma livrança (com vencimento em 28/05/2021), não se discutindo que a CGD é a pessoa a quem, segundo a livrança, a quantia inserta na mesma deve ser paga e que o executado AA, aqui embargante, deu o seu aval à subscritora (a sociedade E..., L.da) de tal livrança, mais exatamente, não se discute que haja colocado a sua assinatura na face posterior de tal livrança após a expressão “bom para aval ao subscritor”.
“O dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada”, assim o dispõe o art. 32.º/§ 1.º da LU (ao caso aplicável, ex vi art. 77.º da LU), sendo que a pessoa afiançada é, no caso, “responsável da mesma forma que o aceitante de uma letra” (cf. art. 78.º da LU), pelo que, face à literalidade caraterística das obrigações cartulares, o executado/embargante garante o pagamento da livrança, ou seja, garante o crédito cambiário que emerge da livrança a favor da exequente/CGD.
Sendo isto indiscutível - e não discutido pelo executado/embargante - vem este invocar, para se eximir ao pagamento da livrança, que, no dia 30/03/2009, transmitiu a quota que detinha na E..., L.da e que, em 16/04/2009, “solicito[u] a substituição dos avais e responsabilidades assinadas [...], pois deixei de exercer qualquer função e controlo de gestão na Euronetworks”.
Perante tal invocação, estará em causa - estando-se, como resulta dos factos, perante um “aval” aposto em título cambiário em branco - saber/dizer se o subscritor de um título em branco, sendo tal subscrição destinada a valer como aval cambiário uma vez preenchida a livrança, se pode, e em que termos, desvincular unilateralmente da garantia dada ao subscrever em branco a livrança (ou a letra).
Questão esta a que a 1.ª Instância respondeu negativamente, julgando os embargos improcedentes; e a que o acórdão recorrido respondeu afirmativamente, revogando a sentença e julgando os embargos procedentes.
Admitiu o acórdão recorrido que a concreta questão colocada convoca a jurisprudência uniformizada pelo AUJ 4/2013 - segundo o qual “tendo o aval sido prestado de forma irrestrita e ilimitada, não é admissível a sua denúncia por parte do avalista, sócio de uma sociedade a favor de quem aquele foi prestado, em contrato em que a mesma é interessada, ainda que, entretanto, venha a ceder a sua participação social na sociedade avalizada” - porém, tendo procedido à “interpretação” de tal jurisprudência uniformizada, considerou que a mesma só pode valer em relação ao “aval completo” (e não, como é o caso dos autos/revista, em relação “à subscrição para aval”) e, por tal razão, não aplicou o AUJ 4/2013.
Muito em síntese, entendeu-se no acórdão recorrido que o aval prestado sobre uma livrança (ou letra) em branco - o chamado “aval em branco”, com o sentido da assinatura aposta no título em branco e que se destina a valer como aval cambiário uma vez preenchido o título - não está sujeito à mesma disciplina que o aval aposto num título completo (na medida em que a subscrição e entrega do título em branco não constituem ainda uma vinculação cambiária), razão pela qual não pode ser aplicado ao “aval” aposto sobre um título cambiário em branco, o regime decorrente da jurisprudência uniformizada pelo AUJ 4/2013 (válida e aplicável, segundo o acórdão recorrido, a um aval prestado sobre um título preenchido e completo).
É esta distinção - entre aval completo e “vinculação para aval” em livrança (ou letra) em branco - que afasta, segundo o acórdão recorrido, a aplicação do AUJ 4/2013, passando a ser relativamente “à vinculação para aval” (e não em relação ao aval) que pode/deve ser colocada a questão de saber se é possível a desvinculação unilateral, a qual, ainda segundo o acórdão recorrido, é livre se a “vinculação para aval” tiver sido assumida sem fixação de prazo (na medida em que as vinculações contatuais não podem ser indefinidas ou perpétuas).
Que dizer?
Há que começar por reconhecer e afirmar a identidade dos quadros factuais, ou seja, quer as factualidades subjacentes aos dois acórdãos (recorrido e fundamento) em confronto no AUJ 4/2013, quer a factualidade subjacente aos presentes autos, respeitam não a um aval aposto em título completo, mas, antes, a um “aval” aposto em título em branco, dando-se o caso de estar identicamente em causa, nos três acórdãos, a desvinculação unilateral do vínculo assim, “em branco”, assumido.
No acórdão deste STJ de 02/12/2008 (acórdão-fundamento, no AUJ 4/2013), uma sociedade recorrera a uma abertura de crédito revolving, tendo o contrato de crédito com o banco sido celebrado por 6 meses, automaticamente renovável, sendo que, por ocasião da celebração de tal contrato de crédito, a sociedade subscreveu uma livrança em branco, avalizada pelos sócios da sociedade; posteriormente, em 2001, um dos sócios cedeu a quota que tinha na sociedade e renunciou à gerência da mesma, após o que remeteu uma carta ao banco a solicitar que “o meu aval, bem como o da minha esposa, sejam retirados nas livranças da firma”, vindo a suceder que, em 2005, o banco comunicou a tal ex-sócio que resolvera o contrato de crédito celebrado com a sociedade e que procederia ao preenchimento da livrança com o montante da responsabilidade da sociedade no contrato de crédito.
No acórdão deste STJ de 10/05/2011 (acórdão recorrido, no AUJ 4/2013), temos que, em 2006, para garantia de um empréstimo bancário concedido a uma sociedade, esta entregou ao banco duas livranças em branco subscritas pela sociedade e com o “aval” de sócios; um ano depois, em 2007, um dos sócios cedeu quotas correspondentes a 35 % do capital social, tendo, nessa sequência, escrito ao banco, solicitando que retirasse o seu aval das operações financeiras consubstanciadas pelas linhas de crédito que estavam em renovação, vindo a suceder que o banco não atendeu à comunicação de tal ex-sócio e preencheu as livranças, em 2009, numa ocasião em que as linhas de crédito tinham sido objeto de renovação no período de tempo entre a comunicação do ex-sócio e o preenchimento das livranças.
Nos presentes autos, temos que, destinada a assegurar o pagamento de todas as responsabilidades decorrentes da utilização do “Cartão Caixa Works” (de acordo com as respetivas Condições Gerais de Utilização e incluindo as responsabilidades decorrentes de capital, juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas e quaisquer encargos, incluindo os fiscais relativos à própria livrança), “cartão” esse que funciona em moldes similares a uma conta corrente caucionada, foi entregue, em 18/09/2007, à CGD uma livrança com montante e vencimento em branco, subscrita pela sociedade Euronetworks, contraparte da CGD no contrato de utilização do referido “cartão”, e avalizada, entre outros, pelo ora embargante; vindo o ora embargante, em 16/04/2009, numa ocasião em que “a conta cartão e a conta mãe não tinham nenhum saldo em dívida, não se encontrando usado qualquer valor”, a entregar, nas instalações da CGD, o documento respeitante à transmissão da sua quota na sociedade Euronetworks, efetuada em 30/03/2009, “solicit[ando] a substituição dos avais e responsabilidades assinados por mim pelo dos atuais sócios, pois deixei de exercer qualquer função e controlo de gestão na Euronetworks”; vindo a suceder que a CGD não “aceitou” tal solicitação do ora embargante e preencheu a livrança pelo valor de € 56.758,77 (montante da responsabilidade da Euronetworks no “cartão”) e apôs-lhe como vencimento a data de 28/05/2021 (dando a livrança, assim preenchida, à presente execução, que instaurou, em 21/10/2021, contra, entre outros, o ora embargante).
Sendo pois para tal quadro factual (idêntico nos três processos/acórdãos) que o AUJ 4/2013, de 11/12/2012, estabeleceu, em função das específicas características cambiárias do aval, que não é admissível a sua denúncia, ainda que, sendo o avalista sócio da sociedade avalizada, venha, entretanto, a ceder a sua participação social na sociedade avalizada.
Entendeu o AUJ 4/2013, no percurso para a solução da questão fundamental de direito, não distinguir entre o aval cambiário prestado em título completo e o “aval em branco” (entendendo-se por “aval em branco”, repete-se, a assinatura aposta no título em branco e que se destina a valer como aval cambiário uma vez preenchido o título1), tratando o tal “quadro factual idêntico” como aval cambiário prestado em título completo.
Em consequência, entendeu o AUJ 4/2013 resolver a fundamental questão de direito, da desvinculação unilateral do vínculo assumido, a partir da especificidade do aval cambiário, acabando assim a considerar - porque era em relação a tal precisa factualidade subjacente que raciocinava de direito - que o título em branco já incorpora vinculações cambiárias e que o chamado “avalista em branco” é já - antes do preenchimento do título - um obrigado cambiário e o dito aval uma vinculação cambiária.
Sendo assim - caso se entenda, em sentido diverso, que o título em branco não incorpora ainda vinculações cambiárias e que, sendo assim, o chamado “avalista em branco” não é, antes do preenchimento do título, um obrigado cambiário e o dito “aval” uma vinculação cambiária - não parece que se possa dizer que é apenas por “mera interpretação” que o AUJ 4/2013 não é aplicável a um caso como o vertente, em que, repete-se, o quadro factual é idêntico ao dos acórdãos em confronto no AUJ 4/2013: efetivamente, seguindo-se tal diverso entendimento, efetuar-se-á um percurso jurídico que é diferente - se não mesmo oposto - do seguido no AUJ 4/2013, pelo que se mostra necessário e conveniente, a fim de evitar equívocos e a fim de assegurar harmonia e uniformidade na aplicação da jurisprudência, que o Pleno das Secções Cíveis se pronuncie de novo sobre a questão fundamental de direito, comum aos três processos/acórdãos.
Pronúncia que começa por saber/dizer se o aval em livrança em branco - mais exatamente, como vimos referindo, a assinatura aposta em livrança em branco e que se destina a valer como aval cambiário uma vez preenchida a livrança2 - constitui/incorpora já uma vinculação cambiária.
Vejamos, então:
O aval - a declaração de aval - corresponde a um negócio jurídico unilateral não recetício através do qual o avalista assume a obrigação de garantir o pagamento de uma letra (art. 30.º/§ I da LU) ou de uma livrança (art. 77.º da LU), ou seja, consiste numa obrigação inscrita numa letra ou livrança pela qual um sujeito garante o cumprimento de outra obrigação, constante também do título.
Implica assim, sendo formais os negócios jurídicos cambiários, a existência de um documento que se apresente com os elementos essenciais à existência de uma letra ou de uma livrança, elementos esses recortados nos arts. 1.º, 2.º, 75.º e 76.º da LU, dos quais decorre que a letra e a livrança devem conter, como elementos essenciais, a quantia a pagar, a data de emissão e a época de vencimento (a letra e a livrança em que não se indique a época de pagamento será considerada pagável à vista e a apresentação a pagamento deve ser feita no prazo de um ano após a data de emissão - art. 34.º/§ 1 e 77.º da LU), o que significa que não há letra ou livrança sem esses elementos essenciais e, claro, enquanto não houver letra ou livrança, também não haverá, por definição, aval e a respetiva obrigação/vinculação cambiária.
E tendo de constar (ou ser extraível) da letra ou livrança uma época de vencimento, também significa, estando associado ao vencimento um prazo de prescrição (cf. arts. 70.º e 77.º da LU), que a duração do aval (como de qualquer outra obrigação cartular) está delimitada no tempo - que o aval é, por natureza, uma vinculação circunscrita no tempo.
É nesta linha de raciocínio que tem de ser entendido o disposto no art. 76.º da LU, segundo qual “o escrito em que faltar algum dos requisitos indicados no artigo anterior não produzirá efeito como livrança, salvo nos casos determinados nas alíneas seguintes”; e que vem sendo entendido pela doutrina dominante 3 que a livrança em branco não vale como livrança4, sujeita ao regime da LU, antes do preenchimento regular do título.
Efetivamente:
Segundo Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, III, p. 134:
“[...] não há qualquer contradição entre os preceitos dos artigos 1.º e 2.º e o do art. 10.º De acordo com os artigos 1.º e 2.º, não pode produzir efeitos como letra o escrito a que falte qualquer dos requisitos apontados na lei como essenciais. Simplesmente, nenhum destes textos determina o momento em que a letra deve apresentar-se integrada por todos os seus elementos essenciais. Esta questão é resolvida pelo art. 10.º, por ele ficamos a saber que, para tal efeito, o momento decisivo não é o da emissão da letra, mas sim o do vencimento”. E ainda: “[...] pode, deste modo, uma letra ser emitida em branco; é óbvio, porém, que a obrigação que incorpora só poderá efetivar-se desde que no momento do vencimento o título se encontre preenchido. Se o preenchimento se não fizer antes do vencimento, então o escrito não produzirá efeito como letra, de harmonia com os arts. 1.º e 2.º”
Segundo Oliveira Ascensão, Direito Comercial, III, Títulos de Crédito, pág. 115/7:
“a letra em branco continua a não produzir efeitos como letra”: a letra “só surge como título cambiário com o preenchimento”
Segundo Evaristo Mendes, Aval prestado por sócios de sociedades por quotas e anónimas e perda da qualidade de sócio, pág. 2/3:
“A declaração de aval aposta por um sócio num documento de livrança emitido em branco pela sociedade a que pertence não é juridicamente um aval, mas um pré-aval, donde decorre uma vinculação jurídica preliminar, pré-cambiária, cartularmente incompleta, estando naturalmente sujeita a regras diferentes das que regem o aval cambiário.”
Mas, como é evidente, subscrever uma letra ou livrança em branco e entregá-la assim subscrita a alguém, não constituirá um ato desprovido de efeitos e vínculos jurídicos: o subscritor em branco fica sujeito/exposto à produção de uma consequência - a constituição da obrigação cambiária - na sua esfera jurídica por mero efeito do preenchimento do título assinado em branco, ou seja, com a entrega duma livrança em branco ao credor, os que a subscreveram ficam sujeitos a que o credor preencha o documento, passando a produzir efeitos como título de crédito, ganhando, então, as vinculações - do emitente e do avalista - a natureza de vinculações cambiárias, mas, é o que importa acentuar, antes de tal preenchimento, as situações jurídicas decorrentes da subscrição em branco não são ainda cambiárias (e pode mesmo acontecer que nunca o venham a ser, como sucede no caso do título vir a ser devolvido em razão do cumprimento do contrato subjacente à obrigação do emitente).
Daí que seja referido por J. G. Pinto Coelho (das Letras I, pág. 121) que “a emissão ou a assinatura dum título em branco determinam, pois, para o signatário um vínculo jurídico, mas não propriamente a constituição desde logo da obrigação cambiária” 5; referindo, em idêntico sentido, Paulo Sendim (Letra de Câmbio, I, pág. 234) que “a letra em branco, porque é incompleta, está em formação para vir, sendo preenchida, a tornar-se letra”; e, ainda no mesmo sentido, refere Carolina Cunha (Letras e Livranças, Paradigmas atuais e recompreensão de um regime, pág. 637; e Aval e Insolvência, pág. 21) que a subscrição e entrega do título em branco “representam, metaforicamente, o embrião da vinculação cambiária, isto é, constituem a primeira etapa de uma fattispecie completa que, uma vez reunidos todos os elementos, desembocará na constituição da obrigação cambiária.”
Temos pois que o “aval” prestado numa livrança em branco - mais exatamente, não é demais repeti-lo, a “vinculação para aval”, a assinatura aposta em título em branco e que se destina a valer como aval cambiário uma vez preenchido o título - não é ainda um verdadeiro aval (e uma obrigação cambiária) e por isso não pode estar sujeito à mesma disciplina dum aval aposto num título completo, o que significa que a questão da desvinculação unilateral dum “aval” prestado numa livrança em branco não pode ser resolvida a partir e com base nas específicas características das obrigações cambiárias, designadamente, a partir das obrigações que decorrem de todos os negócio cambiários terem como característica serem incondicionáveis (art. 1.º/2 da LU: “mandato puro e simples de pagar”; art. 75.º/2 da LU: “promessa pura e simples de pagar”) e se reportarem a uma quantia certa inscrita no próprio documento (art. 1.º/2 e 75.º/2 da LU).
Mas, aqui chegados, impõe-se observar que o que se acaba de referir - sobre os títulos de crédito (a letra e a livrança) estarem sujeitas a um estrito formalismo (justificado pelo interesse na circulação e pelo regime, particularmente grave, a que ficam sujeitas as vinculações cambiárias) e sobre o disposto nos referidos arts. 1.º, 2.º, 75.º e 76.º da LU a propósito da não produção de efeitos do título incompleto - não representa obstáculo à válida emissão de uma letra ou livrança em branco.
A aceitação da emissão de letra ou livrança em branco conheceu reservas e resistências da doutrina - não se pode olvidar a gravidade e os perigos da subscrição em branco6 - porém, na Conferência final (a de Genebra) foi acordado aquele que viria a ser o texto do art. 10.º da LU7, que estabelece, pelo menos implicitamente, a admissibilidade do mecanismo da letra/livrança em branco.
Aliás, na prática, a emissão e entrega de letras e livranças em branco, como garantia, é abundantemente utilizada e reconhece-se que tal utilização corresponde a interesses legítimos, designadamente, nos casos em que, por força do negócio subjacente, todos os elementos que devem constar do título não estão ainda determinados na data em que se dá a subscrição e entrega.
Mas, claro, do ponto de vista dos interesses, a posição ocupada pelo avalista de um título completo e a posição ocupada pelo “avalista” de um título em branco são diversas: o primeiro sabe, de antemão, quanto poderá ter de pagar (e não mais) e a partir de que dia o terá que o fazer (e a partir daqui sabe, dentro do limite temporal fixado pelas regras da prescrição cambiária, até quanto o pagamento lhe poderá ser exigido); já o segundo não sabe por que quantia irá responder (embora possa ter uma ideia aproximada), nem até quando lhe será exigido o pagamento (podendo, no limite, vir a ser incomodado muitos anos depois da subscrição do título).
Daí que a LU, admitindo implicitamente a letra/livrança em branco, submeta a letra ou livrança em branco a um regime próprio, de que o art. 10.º da LU (e no caso da livrança o art. 77.º/II da LU) é o preceito crucial.
Assim, a partir da interpretação do art. 10.º da LU, “[...] parte da doutrina e da jurisprudência afirma que a admissibilidade de títulos em branco depende da existência de um ato pelo qual os subscritores do documento incompleto (que pelo complemento vão ficar obrigados cartulares) atribuem ao beneficiário dos vínculos poderes de preenchimento e de formação da letra ou livrança. Outra parte dos autores e da jurisprudência entende que não é necessário esse ato atributivo de poderes, afirmando-se em alguns setores que esses poderes resultam da própria lei uniforme.
Há, qualquer que seja a perspetiva que se adote sobre a fonte do poder de preenchimento, um inegável pressuposto do preenchimento: a existência, na esfera de algum sujeito, de um poder de preenchimento (independentemente da fonte dele).
Esse poder deve ser atribuído por aqueles que se vinculam “em branco” mediante um pacto. [...]” 8
Ou seja, a letra/livrança, em que se assume uma vinculação destinada a vir a ser uma vinculação cartular, tem de ser acompanhada de um acordo que exprima a vontade desse obrigado quanto aos termos em que o outro sujeito pode completar a letra ou livrança, que defina de antemão os termos possíveis desse preenchimento; para o que se argumenta que a tutela do subscritor em branco só se realiza eficazmente se se exigir que se fixem paralelamente à emissão do título incompleto os termos em que hão de ser preenchidos os elementos em falta (o montante e a data de vencimento), impedindo-se assim o preenchimento arbitrário.
Como acrescenta Cassiano dos Santos9, a propósito do regime traçado pelo art. 10.º da LU para a letra e livrança em branco, “[...] se um preceito estabelece que o documento tem que ter determinados elementos, cuja falta está associada à não produção de efeitos (nulidade ou até inexistência) como letra ou livrança e se, mais adiante, no mesmo diploma, outro preceito admite implicitamente que haja documentos que os não contenham, e se este preceito faz alusão a «acordos realizados», forçoso é concluir que a interpretação mais próxima da letra da lei e que melhor harmoniza os preceitos é aquela pela qual se conclui que a letra ou a livrança podem excecionalmente (atento o que se exige nos arts. 1.º, 2.º, 75.º e 76.º) não conter algum ou algum destes elementos, desde que paralela e complementarmente exista o acordo referido no segundo artigo (10.º da LU) - isto é, um outro documento que estabeleça por acordo o modo porque deve ser preenchido o título e que permita integrá-lo com os elementos essenciais à produção de efeitos. Sem ser assim - sendo outro o entendimento - o art. 10.º comportaria uma forte exceção ao regime legal do rigoroso formalismo em matéria de letras e livranças [...]”.
Sendo diferentes a posição ocupada pelo avalista de um título completo e a posição ocupada pelo “avalista” de um título em branco, justifica-se que a LU os submeta a regimes diferentes e que o regime do avalista em branco “remeta inapelavelmente para a vontade que o avalista em branco manifestou aquando da subscrição da letra e que o acordo de preenchimento tipicamente recolhe [...], sob pena de se deixar o avalista que subscreveu o título em branco ao inteiro arbítrio de um credor-portador indigno de tutela, que, rompendo (de má fé ou em falta grave) com os critérios fixados no acordo de preenchimento (acordo que ele próprio normalmente celebrou [...] e corresponde à hipótese hoje em dia sociologicamente típica), completa e aciona o título fora da situação por tal acordo coberta” 10.
O que também significa que à “vinculação em branco” não se aplicará o regime da incondicionalidade das vinculações cambiárias (decorrente dos arts. 1.º/2 e 75.º/2 da LU), uma vez que, “na estrita medida em que consiga fazer a prova admitida pelo art. 10.º da LU, podemos dizer que o subscritor em branco se vincula “cambiariamente” em termos condicionais: apenas “se”, “quando” e por “quanto” estiver previsto no acordo de preenchimento. Esta prova tende a estar altamente facilitada nos casos [...] que correspondem ao paradigma típico da utilização de títulos em branco: a livrança não circulou, manteve-se nas mãos do credor e portador originário, com quem foi justamente celebrado o acordo de preenchimento e que veio, mais tarde, a efetuar o próprio preenchimento” 11.
Em síntese, antes de preenchida a letra/livrança, o “aval” (o “saque”, o “aceite”, o “endosso”, a “emissão da livrança”) não existe enquanto negócio jurídico cambiário, existindo “apenas” a vinculação cambiária em estado embrionário (através da assinatura aposta na letra/livrança) e a vinculação jurídica constante do essencial acordo/pacto de preenchimento a que alude o art. 10.º da LU12 e o inerente poder fáctico de o portador da letra/livrança a poder vir a preencher13.
Daí que, sendo a vinculação do avalista em branco pré-cambiária - o título só se forma com o preenchimento do documento com os seus elementos essenciais, só aí surgindo as obrigações cambiárias - a questão de saber se um sócio (da sociedade que emitiu o documento) que subscreveu o documento em branco (subscrição destinada a valer como aval cambiário) se pode desvincular unilateralmente, até ao preenchimento do título, não possa/deva encontrar a sua solução no regime das obrigações cartulares/cambiárias.
Quer consideremos, com a doutrina tradicional, que as obrigações cambiárias resultantes das letras/livranças se caracterizam pela incorporação do direito no título, pela literalidade, pela independência reciproca, pela autonomia e pela abstração (com tudo o que tais “fórmulas condensadas” significam), quer consideremos, com a doutrina mais recente14, que o que caracteriza os negócios jurídicos cambiários é tão só a sua natureza constitutiva, incondicionabilidade e não-indicação da causa, temos sempre que os negócios cambiários se esgotam em puros efeitos de direito (ou seja, que não contêm a indicação da causa, que os seus efeitos jurídicos se produzem com abstração da sua causa15) e que tais efeitos não podem ser submetidos a uma qualquer condição (como resulta do art. 1.º/2 da LU para o saque, que tem uma função matricial no direito cambiário; do art. 12.º/1 para o endosso, que, na sua função de transmissão do direito, deve ser puro e simples; e do art. 26.º/1 para o aceite, que também é puro e simples), o que significa que circunstâncias exteriores ao título não podem ser invocadas para, como causas resolutivas, extinguir o aval (como qualquer outra obrigação cartular), pelo menos no plano das relações mediatas, que é onde as caraterísticas da literalidade e da abstração funcionam em pleno (cf. art. 17.º da LU).
E do mesmo modo, sendo, como já se referiu, as obrigações cambiárias vinculações circunscritas e delimitadas no tempo, também ficam as mesmas fora do campo de aplicação da denúncia, que é o modo típico de desvinculação nas relações contratuais duradouras celebradas por tempo indeterminado.
Ora, é tudo isto - não constituindo, repete-se, as vinculações em branco obrigações cambiárias - que não é transponível e aplicável às “subscrições em branco”.
Existindo uma subscrição com vista a aval, o vínculo da subscrição se vir a tornar em aval aquando do complemento do título é assumido no acordo/pacto de preenchimento (em que o subscritor aceita o preenchimento em determinados termos), pelo que será em relação a tal vínculo16 - acordo/pacto de preenchimento - que deve ser colocada a questão da possível desvinculação unilateral até ao preenchimento do título, seja por denúncia seja por resolução.
Acordo/pacto de preenchimento, de uma letra ou livrança, que é um negócio jurídico bilateral e mesmo, com frequência, quando consta das condições gerais do contrato de financiamento e é assinado por todos os subscritores do título emitido em branco, plurilateral.
E, caso esse “vínculo” haja sido assumido sem prazo, vale a regra geral da livre denunciabilidade; e, ao invés, se foi assumido com prazo, o “prometido avalista” fica vinculado por todo esse tempo, sem prejuízo de poder atuar sobre a eventual prorrogação ou renovação dele, evitando desse modo uma vinculação indefinida, tanto mais injustificada se e quando se destine a subsistir em circunstâncias em que o “prometido avalista” já não tem qualquer poder de controlo sobre o desenvolvimento da relação subjacente (de financiamento à entidade emissora do título).
Ao invés, a perda, por parte do “prometido avalista”, da sua qualidade de sócio da sociedade financiada e subscritora (também em branco), não poderá ser considerada, via de regra, justa causa de resolução.
Mais detalhadamente:
É hoje pacificamente reconhecido, na doutrina e na jurisprudência, o princípio da inadmissibilidade de vinculações perpétuas ou de duração indefinida, entendendo-se que a assunção de vínculos sem prazo, para ser válida, tem subjacente a possibilidade de tais vínculos poderem ser extintos a todo o tempo, extinção essa que se faz por denúncia, a qual não necessita de uma específica causa justificativa.
“O fundamento material desta denunciabilidade “ad nutum” é a tutela da liberdade dos sujeitos que seria comprometida por um vínculo demasiadamente duradouro. Por isso, tal poder de denúncia existe mesmo na falta de norma jurídica ou cláusula contratual explícita.
Cremos ser esta uma solução decorrente da impossibilidade de se admitirem vínculos contratuais ou obrigacionais de caráter perpétuo, eterno ou excessivamente duradouro. Uma tal vinculação ou “servidão” eterna ou excessivamente duradoura violaria a ordem pública, pelo que os negócios de duração indeterminada ou ilimitada só não serão nulos, por força do art. 280.º se estiverem sujeitos ao regime de livre denunciabilidade ou denunciabilidade ad nutum.” 17
Ou seja, o princípio da vinculatividade contratual, consagrado no art. 406.º do C. Civil, não prejudica o direito de livre denúncia dos contratos de duração indeterminada, devendo considerar-se contrário à ordem pública, pela intolerável restrição à liberdade dos sujeitos que isso acarretaria, um contrato que estabelecesse vínculos perpétuos18: a faculdade de livre denúncia dos contratos por tempo indeterminado19 é a forma de obviar a uma inadmissível limitação à liberdade das pessoas, o que, doutra forma (a constituição de vínculos perpétuos), seria contrário à ordem pública.
Denúncia que corresponde ao exercício dum direito potestativo que se exerce livre, imotivada e discricionariamente - ad libitum ou ad nutum - através de uma declaração unilateral dirigida à outra parte e que, sendo assim, só se torna eficaz quando é levada ao conhecimento da contraparte ou chega ao seu poder em condições de ser conhecida (declaração recipienda ou receptícia - art. 224.º do C. Civil); denúncia que tem eficácia ex nunc, que deve ser exteriorizada de modo claro e inequívoco, para que não restem dúvidas no espírito do destinatário acerca da sua precisa intenção, mas que, como qualquer outra declaração negocial (trata-se de um negócio jurídico unilateral), pode ser expressa ou tácita (art. 217.º do C. Civil) e que é incondicionável, irrevogável e indivisível.
O que significa que, quando sujeitos se vinculam por um certo prazo, não tem lugar a denúncia; e que, quando tal faculdade pode ter lugar, é essencialmente livre, não necessitando, para ser exercida, de ser invocado um fundamento específico ou uma concreta motivação.
Daí que, como se antecipou, para que a “vinculação para aval” possa ser suscetível de denúncia seja tão só necessário que a mesma importe uma vinculação duradoura sem prazo definido; sendo que, para efeitos de denunciabilidade, são equivalentes a situação em que o contrato de crédito entre a sociedade e o banco tenha sido celebrado por tempo indeterminado e a situação em que o contrato tenha sido celebrado por tempo determinado, mas sendo automaticamente renovável e dependendo a não renovação exclusivamente das partes no contrato de crédito - ou seja, o banco credor e a sociedade financiada - com a consequente impotência do avalista em branco em conseguir evitar a continuação do contrato.
Concretizando, poderá haver desvinculação unilateral - denúncia - quando se está perante financiamentos bancários, como abertura de crédito simples ou em conta corrente, em que o fluxo financeiro que determina a dívida cambiariamente garantida depende das solicitações feitas pela sociedade a cada momento; mas tal desvinculação/denúncia já não poderá acontecer quando, por exemplo, a dívida garantida está previamente determinada, como acontece quando o título é avalizado em branco para garantia de um contrato de locação financeira ou de um simples mútuo bancário, casos em que o sócio-avalista conhece o montante máximo pelo qual pode ter de responder (montante que foi colocado à disposição da sociedade avalizada quando ainda ocupava a posição de sócio) e o prazo máximo do contrato subjacente celebrado pela sociedade avalizada, o que faz com que o sócio-avalista também conheça o lapso de tempo máximo por que lhe pode ser solicitado o pagamento do título que avalizou.
Por outro lado, tendo a denúncia, como se referiu, eficácia “ex nunc”, a desvinculação permitida ao sócio-avalista só será eficaz em relação à responsabilização por montantes solicitados pela sociedade após a cessão de quota, mais exatamente, após a desvinculação/denúncia produzir os seus efeitos.
E, passando à resolução (que não é privativa das vinculações sem prazo), a questão esta em saber se com fundamento específico na saída do sócio da sociedade (a favor de quem a “vinculação para aval” foi prestada) pode a “vinculação para aval” ser objeto de resolução.
Dito de outro modo, quando o avalista deixa de ter interesses na sociedade enquanto sócio, tendo sido o seu status de sócio que determinou a prestação do “aval em branco”, será que é inexigível a manutenção da sua vinculação como garante? Será que a sua saída de sócio legitima o rompimento resolutivo do vínculo pré-cambiário assumido pelo avalista em branco, enquanto sócio da sociedade emissora do título?
“[...] No contexto das sociedades por quotas, onde, dada a predominância de pequenas e médias empresas [...], assume particular relevo o elemento pessoal, é frequente os credores exigirem, como requisito sine qua non para a celebração de contratos com a sociedade, a prestação de garantias pessoais pelos sócios, cujos patrimónios passam, assim, a responder por algumas vicissitudes da atividade societária - o que vai dissolver, no plano económico, a separação estabelecida pelo benefício da responsabilidade limitada. É naturalmente possível identificar um interesse objetivo dos sócios em correr semelhante risco, na medida em que os contratos garantidos se apresentam como importantes para a prossecução da atividade social.
Mas é esta indissociável ligação entre a qualidade de sócio e a prestação da garantia que legitima a interrogação sobre o modo como a perda dessa qualidade poderá influenciar a (manutenção da) responsabilidade do garante. [...]
Em matéria de crédito, o ex-sócio continua a garantir a restituição das quantias correspondentes aos financiamentos recebidos pela sociedade até ao momento da saída (rectius, da produção dos efeitos da sua declaração de desvinculação). Mas fará sentido, do ponto do negócio jurídico em que acordou os termos do preenchimento do título que subscreveu em branco, mantê-lo vinculado a partir daí, e porventura durante (muitos) anos volvidos sobre o momento em que abandonou a sociedade? Será exigível, no horizonte negocial do pacto que firmou com o credor, que garanta a devolução de financiamentos societários cuja concessão não lhe foi dado apreciar, controlar ou sequer conhecer, e dos quais não beneficiou minimamente, perdida que foi a sua qualidade de sócio?” 20
Questão a que Carolina Cunha responde negativamente, ou seja, não é exigível que, em tal hipótese, o sócio cedente se mantenha vinculado, “inexigibilidade que remete para o instituto da resolução por justa causa: [...] não se trata, portanto, de uma resolução por incumprimento, cujo fundamento se busque no art. 801.º do C. Civil, mas de uma faculdade reconhecida ao sócio-gerente por integração do acordo de preenchimento segundo a vontade hipotética das partes e os ditames da boa fé impostos pelo art. 239.º do C. Civil”.
Em sentido próximo, sustenta Evaristo Mendes21 que “[...] os avales em apreciação são tipicamente prestados pelos sócios - em regra, sócios gerentes ou administradores - enquanto tais, na qualidade de membros da sociedade e, através dela, de beneficiários indiretos do financiamento que à mesma é concedido.
[...] A exigência dos avales explica-se, antes de mais, porque a IC financiadora quer comprometer os sócios com uma gestão e um comportamento da sua sociedade favoráveis ao cumprimento do contrato de financiamento. E é também em atenção à respetiva qualidade de sócios - a quem pertence o valor da sociedade e nessa medida beneficiam dos financiamentos a ela concedidos - que os mesmos aceitam presumivelmente envolver-se, cobrindo com a aposição da sua assinatura de avalistas no documento de livrança em branco, convertível em aval em caso de incumprimento [...].
Vindo tal qualidade de sócio a faltar, a cobertura das responsabilidades constituídas, à data da comunicação da saída, em princípio, não se discute. É para isso que serve, afinal, a livrança com os avales: para efetivar de maneira eficiente e melhorada tais responsabilidades, se vier a ocorrer um incumprimento contratual sério [...].
[...] Infere-se do que antecede que o princípio a reter deverá ser este: se um sócio sai da sociedade e a saída é comunicada a um financiador da sociedade, numa altura em que ainda não há uma livrança em sentido técnico, o financiador deve poder contar com a sua garantia para a dívida da sociedade existente, mas não com a cobertura de dívidas assumidas pela sociedade a partir dessa data. Se o financiador entende que, desse modo, a garantia se tornou insuficiente, colocando em perigo o recebimento do valor em dívida, pode, designadamente, pedir o reforço da mesma sob pena de cessar o financiamento e, em último recurso, de preencher a livrança e fazer valer os correspondentes direitos cambiários [...]”.
Porém, tendo em consideração a lei, a circunstância do “avalista em branco” ter deixado de ser sócio não preenche os pressupostos legais da resolução por incumprimento (do art. 801.º/2 do C. Civil) e/ou os pressupostos legais da resolução por alteração das circunstâncias (do art. 437.º do C. Civil): as circunstâncias, é certo, alteraram-se - o avalista perdeu a possibilidade de influenciar o comportamento da sociedade no cumprimento do contrato ou, pelo menos, de o controlar (a cessação da qualidade de sócio acarreta para o garante “riscos acrescidos e não domináveis”) - mas é certo também que a sua saída de sócio não era imprevisível e que o banco deu crédito à sociedade tendo em conta a garantia resultante do compromisso do sócio e que tal compromisso é, normalmente, um pressuposto do negócio22.
Restará assim a hipótese da circunstância (saída do sócio) se apresentar, por integração do acordo de preenchimento segundo a vontade hipotética das partes e os ditames da boa-fé, como justa causa (contratual) de resolução, o que, porém, a nosso ver, não se verificará na generalidade dos casos.
Como refere Cassiano Santos23, “ [...] deve entender-se que é imposta pela boa fé - e que se impõe mesmo a uma vontade hipotética noutro sentido - uma cláusula em que se permite a extinção por resolução do aval no caso de o avalista ter deixado de ser sócio da sociedade financiada e de esta, por si ou por outrem, oferecer uma garantia alternativa que dê “garantias bastantes à execução do contrato”. Por outras palavras, a terem previsto a hipótese e à luz da boa-fé mercantil [...], as partes não poderiam ter deixado de colocar como causa de extinção do aval a saída do avalista da sociedade subscritora e financiada, embora condicionada a que seja oferecida garantia substitutiva de idêntico valor [...]”.
Enfim, a possibilidade de resolução da “vinculação para aval”, à luz da boa fé na interpretação e integração do acordo de preenchimento será uma hipótese bastante excecional, uma vez que, na generalidade dos casos, o “avalista em branco” se limita a invocar a saída da sociedade e a pretender a pura e simples extinção da garantia, sem oferecer garantia substitutiva de idêntico valor (e, como acima se referiu, a saída do sócio da sociedade não constitui, face ao regime legal do incumprimento ou da alteração das circunstâncias, causa de resolução).
Em síntese conclusiva:
A desvinculação, em caso de vinculação para aval em título em branco, coloca-se e verifica-se em relação ao acordo/pacto de preenchimento respeitante ao título emitido em branco e produz efeitos no vínculo (extra-cartular) emergente de tal acordo/pacto de preenchimento e não na livrança; e tal desvinculação é possível por denúncia até ao preenchimento do título, desde que o vínculo a extinguir não tenha prazo (o que significa que o fundamento de tal denúncia é a ausência de prazo do vínculo e não a saída da sociedade por parte do sócio “avalista prometido”).
Exercida a faculdade de denúncia e produzidos os respetivos efeitos (que são meramente ex nunc), caso o título venha a ser completado com o montante de responsabilidades societárias posteriores, o que verdadeiramente temos - mais do que uma hipótese de preenchimento abusivo, porque contrário ao que resulta do pacto de preenchimento, subjetivamente alterado com a denúncia - é um preenchimento sem poderes, na medida em que a denúncia extinguiu os poderes de preenchimento em relação àquele que havia “avalizado em branco”, o que - preenchimento sem poderes - poderá ser invocado/oposto ao portador imediato.
Temos pois que para poder haver denúncia é essencial que o acordo/pacto de preenchimento não tenha prazo, o que - ausência de prazo - tanto pode resultar do próprio acordo/pacto de preenchimento como da própria relação fundamental (contrato de financiamento), sendo certo que, por regra, o acordo/pacto de preenchimento terá uma vigência em linha com o contrato de financiamento que justifica a relação de garantia, vinculando o “prometido avalista” por todo o prazo da relação fundamental.
E para os casos, relativamente comuns, em que os contratos subjacentes são celebrados com prazo e com uma cláusula de renovação ou prorrogação automática, por força da qual o contrato não caduca se, com certa antecedência face ao termo previsto, qualquer dos contraentes não declarar pretender que o contrato se extinga (o que, por força da referida interligação, se comunica ao acordo de preenchimento)?
Como já se referiu, a liberdade das partes não é conciliável com a perpetuidade dos vínculos contratuais, pelo que tem sempre de se aceitar a desvinculação incondicional duma das partes num contrato de execução continuada: uma vinculação eterna ou excessivamente duradoura violaria a ordem pública, pelo que, como também já se referiu, os negócios de duração indeterminada ou ilimitada só não são nulos, por força do art. 280.º do CC, por se considerar que ficam sujeitos ao regime da livre denunciabilidade ad nutum.
E é justamente aqui - nesta relação entre a estabilidade contratual resultante da autonomia privada e a proteção da liberdade de desvinculação em contratos de duração indeterminada - que surge a denúncia, como modo de cessação de vínculos obrigacionais duradouros, de vigência indeterminada ou de duração limitada que se renova automaticamente: a denúncia serve tanto para pôr termo a contratos com um período de vigência indeterminada ou ilimitada (denúncia própria e típica), como para evitar a sua renovação quando de duração limitada, hipótese esta, de oposição à renovação, que corresponde a uma denúncia atípica/indirecta (uma vez que implica a caducidade, funcionando a denúncia como um meio mediato de extinção do vínculo contratual).
Mas - é este o ponto - um contrato celebrado por determinado período de tempo, em que as partes estipulam que o contrato se prorrogará por sucessivos períodos, de igual ou de diferente duração, salvo se alguma delas comunicar à outra, com certa antecedência, que não deseja a prorrogação, pode/deve, para os presentes efeitos - para efeitos de denúncia - continuar a ser considerado como um contrato com um prazo de vigência limitado?
Decorrido o período inicial, que funciona como período mínimo de vigência do contrato, o mesmo passa, para os presentes efeitos, a ter que ser considerado como por tempo indeterminado, “até porque não será o decurso de qualquer prazo a fazê-lo cessar, antes a declaração de uma das partes, que não se sabe se e quando virá” 24, ou seja, a denúncia própria (imotivada ou ad nutum) vale tanto para as relações duradouras sem limite temporal estabelecido, como para aquelas em que exista (e se verifique) renovação automática, hipótese em que o contrato, por se renovar automaticamente, não tem um termo final definido.
Como refere Cassiano Santos 25, “[...] a cláusula de renovação ou prorrogação automática não pode ter como efeito tornar indefinida, na prática, a vinculação a que se submeteu - o efeito jurídico das estipulações contratuais não pode redundar numa vinculação indefinida ou perpétua do sócio.
A esta luz, e sempre atentas as circunstâncias do caso, o sentido a dar às estipulações (por interpretação ou, porventura, por integração) será por regra o de que o sujeito que se vinculou a ser avalista o fez para todo o prazo inicial do contrato e para todas as renovações ou prorrogações, mas que ele tem a faculdade de obstar a cada renovação ou prorrogação em relação a si. Por outras palavras, a produção de efeitos da renovação ou prorrogação em relação a si - e o consequente prolongamento da sua vinculação - não se pode dar contra a sua vontade, expressa ou tácita. [...]”
Não sendo despiciendo, a propósito da desvinculação unilateral (denúncia) em relação ao acordo/pacto de preenchimento, acrescentar ainda o seguinte:
Acabámos de sustentar que, no caso de a relação de negócios coberta pelo “aval em branco” ser uma relação duradoura, sem fixação de prazo ou com fixação de prazo renovável automaticamente, o avalista em branco pode, sem causa justificativa («ad nutum»), denunciar o “vínculo” assumido (circunscrevendo a sua responsabilidade à dívida existente nesse momento), o que, assim ditas as coisas, parece permitir ao prometido avalista que conserve a sua qualidade de sócio-gerente, de sócio ou mesmo só de gerente exercer, sem mais, em tal relação de negócios, a faculdade de denúncia.
As situações concretas são muito variadas e não é de afastar que tal possa legitimamente acontecer (que um sócio que mantém tais qualidades possa denunciar o “vínculo”), mas, naturalmente, o exercício da denúncia tem que ser conforme à boa-fé, levando em conta os motivos subjetivos do prometido avalista que assim procede e a legítima expectativa do credor/financiador, importando ter presente que o normal é o “aval” dever manter-se enquanto o “dador de aval” conservar a qualidade que detinha quando “deu” o aval, isto é, a qualidade de sócio, de sócio-gerente ou de gerente é um pressuposto negocial que, em princípio, de acordo com a boa fé (art. 762.º/2 do C. Civil), vincula o “avalista” a não denunciar o “vínculo” enquanto mantiver a qualidade de sócio, de sócio-gerente ou de gerente26.
Assim, quando a desvinculação ocorre no seguimento da saída de sócio do “avalista” (ou da saída de sócio e de gerente, caso fosse essa a sua dupla qualidade quando “deu” o aval), não haverá, via de regra, um exercício da denúncia contrário à boa-fé, importando neste ponto sublinhar, para que não haja equívocos interpretativos, que não se está a dizer que é a saída de sócio (ou de sócio-gerente) que fundamenta o exercido da denúncia pelo “avalista”, mas sim e apenas que a saída de sócio (ou de sócio-gerente) permite dizer que o exercício de denúncia foi conforme à boa-fé (que não houve abuso do direito de denúncia).
Podemos pois afirmar, em conclusão final, que o “aval” (rectius, vinculação para aval) prestado em livrança em branco é, desde que a vinculação assumida não tenha prazo ou, sendo por prazo renovável, decorrido o prazo inicial, suscetível de denúncia, por parte do prometido avalista que tenha deixado de ter a qualidade que detinha quando “deu” o seu aval, até ao preenchimento do título; denúncia que, porém, face à sua eficácia “ex nunc”, só produzirá efeitos para o futuro (ou seja, a desvinculação só será eficaz em relação a montantes solicitados após a desvinculação/denúncia produzir os seus efeitos, o que significa que a livrança pode ser completada e nela incluídos todos os créditos resultantes de operações celebradas até à produção de efeitos da denúncia: a denúncia extingue o acordo de preenchimento, mas não impede o preenchimento se os pressupostos deste tiverem ocorrido antes da extinção).
Entendimento este que não conduz a um resultado intolerável para os interesses do banco credor.
Para o banco credor a melhor solução é naturalmente aquela que mantém os “prometidos avalistas” vinculados, porém, a questão está em saber se tal solução merece acolhimento no confronto com os legítimos interesses dos “prometidos avalistas”, designadamente quando estes se vincularam para aval na sua veste de sócios da sociedade emissora da livrança e deixaram de ser sócios e quando o banco credor tem ao seu alcance mecanismos suficientes à defesa dos seus interesses.
Tendo a denúncia/desvinculação eficácia ex nunc e não ex tunc, mantém o banco as garantias relativamente ao crédito já concedido à sociedade; pelo que, projetando-se a perda de garantia sofrida com a desvinculação do “prometido avalista” apenas para o futuro, pode o banco credor invocar a reconfiguração da relação fundamental por forma a refletir a perda de garantia decorrente da desvinculação do “prometido avalista” (poderá invocar, para evitar a libertação de novas tranches pecuniárias, a exceção de não cumprimento, a resolução ou até a modificação do contrato de financiamento por alteração de circunstâncias) 27.
Se o não fizer, se desprezar as desvinculações manifestadas e conceder novos créditos à sociedade, sem ter o cuidado de exigir novas garantias, só poderá queixar-se de si próprio.
E não se diga que a defendida denúncia/desvinculação pode dar cobertura aos mais diversos comportamentos fraudulentos dos subscritores em branco: repete-se mais uma vez, a denúncia/desvinculação só produz efeitos para o futuro, isto é, o que conta, no que toca à garantia prestada através de aval em branco, é o momento em que se verifica o facto legitimador do preenchimento, pelo que, sendo este anterior à denúncia/desvinculação, não releva o momento em que o título venha a ser preenchido, o que significa, no âmbito de um contrato de abertura de crédito, que o subscritor em branco que se desvinculou continua responsável por todas as quantias solicitadas antes da denúncia produzir os seus efeitos.
O que não parece ser razoável é, no caso de avalistas sócios da sociedade emissora do título, permitir-se “que sujeitos que perderam a sua qualidade de sócios e se desligaram do funcionamento da sociedade possam vir a garantir com o seu património, muitos anos depois, financiamentos que não puderam conhecer nem controlar e de cujos efeitos em nada beneficiaram - quando esse conhecimento, controlo e benefício estiveram, justamente, na raiz da prestação da garantia” 28: não é razoável o banco pretender manter vinculados ex-sócios já alheados da sociedade, assim como também não é razoável a sociedade continuar a beneficiar da garantia de sócios que, entretanto, deixaram a sociedade.
E, aqui chegados, aplicando o que vimos de afirmar ao caso dos autos, temos - concorda-se com o acórdão recorrido - que estamos perante um caso em que a faculdade de denúncia do vínculo (extra-cambiário - acordo de preenchimento) não pode deixar de ser reconhecida ao aqui embargante.
O aqui embargante, não se discute, deu o seu “aval em branco” à sociedade subscritora da livrança, a sociedade Euronetworks (que, por sua vez, também “subscreveu em branco”); e tal “livrança garantia”, entregue em 18/09/2007 à embargada CGD, destinava-se, como consta do respetivo acordo de preenchimento (assinada pelo aqui embargante numa dupla veste: “em nome da sociedade e em nome próprio” - ponto 10 dos factos provados), a assegurar o pagamento de todas as responsabilidades decorrentes da utilização do “Cartão Caixa Works” (de acordo com as respetivas Condições Gerais de Utilização e incluindo as responsabilidades decorrentes de capital, juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas e quaisquer encargos, incluindo os fiscais relativos à própria livrança), “cartão” esse que funcionava em moldes similares a uma conta corrente caucionada; vindo o ora embargante, em 16/04/2009, numa ocasião em que “a conta cartão e a conta mãe não tinham nenhum saldo em dívida, não se encontrando usado qualquer valor”, a entregar, nas instalações da CGD, o documento respeitante à transmissão da sua quota na sociedade Euronetworks, efetuada em 30/03/2009, “solicit[ando] a substituição dos avais e responsabilidades assinados por mim pelo dos atuais sócios, pois deixei de exercer qualquer função e controlo de gestão na Euronetworks”.
Sendo a relação fundamental e garantida um contrato que “funcionava em moldes similares a uma conta corrente caucionada” (ponto 13 dos factos), estamos perante uma modalidade de abertura de crédito, contrato que, embora na praxis seja usualmente reduzida a escrito, é um contrato consensual, no sentido de não ser formal, o que não coloca qualquer problema de validade por o respetivo documento não se encontrar junto aos autos; efetivamente, interpelado para efetuar a sua junção, veio o exequente/embargado explicar que não “[...] localizou o contrato subjacente à livrança dada à execução, não obstante as pesquisas realizadas internamente [...]” (requerimento de 28/04/2022).
Sucedendo que, neste passo do raciocínio, o documento que formalizou a abertura de crédito celebrada apenas releva para perceber se o acordo/pacto de preenchimento tinha ou não prazo, em linha com o supra referido sobre o prazo do acordo/pacto de preenchimento “tanto poder resultar do próprio acordo/pacto de preenchimento como da própria relação fundamental (contrato de financiamento), sendo certo que, por regra, o acordo/pacto de preenchimento terá uma vigência em linha com o contrato de financiamento que justifica a relação de garantia, vinculando o “prometido avalista” por todo o prazo da relação fundamental.”
Contrato de abertura de crédito que é, quanto aos limites temporais, “tipicamente celebrado por um determinado prazo, prorrogável ou não. Mas nada impedirá que o seja por tempo indeterminado, podendo qualquer das partes denunciar o contrato a todo o tempo, com uma antecedência razoável, nos termos gerais dos direitos dos contratos” 29, ou seja, a partir das características da relação fundamental (contrato de financiamento), não conseguimos afirmar se o acordo/pacto de preenchimento tinha ou não prazo; mais exatamente, a partir da interligação entre o que, quanto aos limites temporais, caracteriza o contrato de financiamento e o acordo/pacto de preenchimento não conseguimos afirmar se este era sem prazo ou tinha prazo.
Com relevo para a existência ou não de prazo no acordo/pacto de preenchimento, observou-se no acórdão recorrido que, “em função da factualidade apurada, importa entender que o recorrente, enquanto avalista, denunciou válida e eficazmente o contrato de garantia e respetivo aval que conferiu à livrança exequenda, entendida tal denúncia como o modo típico de desvinculação nas relações contratuais duradouras celebradas por tempo indeterminado”, interpretação esta, por parte do Acórdão recorrido, de o recorrente se ter desvinculado de relações contratuais celebradas por tempo indeterminado, a que a exequente/recorrente nada contrapõe quanto ao que, no acórdão recorrido, se designa como “contrato de garantia”, dizendo inclusivamente que “o pacto de preenchimento dos autos não estabelece qualquer prazo pelo qual deve ser preenchida a livrança entregue em branco”.
Vem tudo isto a propósito de, como supra se expôs, a desvinculação por denúncia ser possível no caso de o vínculo (acordo/pacto de preenchimento) não ter prazo ou ser com prazo e com cláusula de renovação automática, decorrido o período inicial de vigência, o que significa que tais características do vínculo são elementos constitutivos do direito potestativo de denúncia exercido pelo executado/embargante, pelo que, muito evidentemente, é o executado/embargante que tem o ónus de provar (art. 342.º/1 do C. Civil) tais características do vínculo.
Características estas que, é certo, não foram devidamente trazidas aos autos, porém - dizendo o exequente/embargado que não juntou o contrato subjacente à livrança por não o ter localizado30, dizendo/interpretando o Acórdão recorrido que o executado/embargante se desvinculou de relações contratuais celebradas por tempo indeterminado e referindo a exequente/recorrente que o pacto de preenchimento dos autos não estabelece qualquer prazo - não repugnará respeitar a interpretação do Acórdão recorrido (“em função da factualidade apurada”, como lá se diz) e considerar que, no caso, o vínculo (acordo/pacto de preenchimento) não tinha prazo (o documento em que o embargante autoriza o preenchimento da livrança não contém, como resulta do ponto 8 dos factos, qualquer prazo e o contrato de abertura de crédito pode ser, como se mencionou, por tempo indeterminado).
Pelo que foi a faculdade de se desvincular de um acordo/pacto de preenchimento sem prazo que o embargante exerceu, quando, em 30/03/2009, no seguimento da sua saída de sócio, “solicitou a substituição dos avais e responsabilidades assinados por mim [...], pois deixei de exercer qualquer função e controlo de gestão na Euronetworks”.
É certo que na carta entregue à exequente/CGD (pontos 18 e 19 dos factos provados), o embargante não utilizou a palavra “denúncia”, porém, se é verdade que a denúncia deve ser exteriorizada de modo claro e inequívoco, para que não restem dúvidas no espírito do destinatário acerca da sua precisa intenção, é também certo que, como qualquer outra declaração negocial (trata-se de um negócio jurídico unilateral), pode/deve ser interpretada e, no caso, o pedido de substituição dos avales e a entrega do cartão de plástico (aliado ao invocado motivo de ter transmitido a quota e ter deixado de exercer qualquer função e controlo na gestão na Euronetworks - desnecessário, é certo, para a denúncia - mas significativo para perceber/deduzir o pretendido e para afastar o “abuso de direito” no exercício da desvinculação) são concludentes da desvinculação pretendida.
E, claro, levada tal carta - juridicamente, a denúncia do vínculo extra-cambiário - ao conhecimento da exequente/CGD, tornou-se a mesma eficaz e produziu os seus efeitos, sem ser necessária a sua aceitação (e mesmo, como foi o caso, com a oposição da exequente/CGD).
Pelo que - é mesmo a conclusão final - exercida a faculdade de denúncia e produzidos os respetivos efeitos (que são meramente ex nunc), a livrança não podia ser completada em relação ao ora embargante pelo montante de responsabilidades societárias posteriores, como foi o caso (à data da desvinculação, não havia saldo em dívida no contrato subjacente - facto 15; e os documentos juntos revelam que a utilização da abertura de crédito não se iniciou antes de Maio de 2010); e tendo sido completada (pelo montante de € 56.758,77, com a data de vencimento de 28/05/2021 e dada à execução em 21/10/2021), foi em relação ao embargante preenchida sem poderes, na medida em que a produção de efeitos da denúncia extinguiu os poderes de preenchimento em relação ao embargante (que havia “avalizado em branco”), o que - preenchimento sem poderes - poderá ser invocado/oposto ao portador imediato, como é aqui o executado/CGD, conduzindo à procedência dos embargos.
É quanto basta para julgar a revista improcedente.
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IV - Decisão
Face ao exposto, acordam os Juízes que constituem o Pleno das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça em:
a) Confirmar o acórdão recorrido;
b) Estabelecer a seguinte uniformização:
“1 - A vinculação para aval prestada em livrança em branco é, desde que assumida sem prazo ou por prazo renovável, decorrido o prazo inicial, suscetível de denúncia, pelo vinculado para aval que tenha deixado de ser sócio ou sócio-gerente da avalizada, até ao preenchimento do título.
2 - A denúncia só produzirá efeitos para o futuro, ou seja, a desvinculação só será eficaz em relação a montantes que venham a ser solicitados após a denúncia produzir os seus efeitos.”
Custas, nas Instâncias e na presente Revista, pelo Banco exequente.
Notifique e oportunamente remeta certidão do acórdão para publicação na 1.ª série do Diário da República.
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Lisboa, 20 de novembro de 2024. - António Barateiro Martins (Relator) - Fernando Baptista - Luís Filipe Castelo Branco do Espírito Santo - Jorge Manuel Arcanjo Rodrigues - Nuno Ataíde das Neves - Ana Paula Lobo - Manuel José Aguiar Pereira - Isabel Maria Manso Salgado - Jorge Leal - Emídio Francisco Santos - Nelson Borges Carneiro - Luis Fernando dos Santos Correia de Mendonça - Maria do Rosário Gonçalves - Henrique Antunes - Maria de Deus Simão da Cruz Silva Damasceno Correia - Anabela Luna de Carvalho - Orlando dos Santos Nascimento - Rui Machado e Moura - Maria dos Prazeres Beleza (Revendo posição assumida no AUJ 4/2013) - Maria Clara Sottomayor - Maria da Graça Trigo - Fátima Gomes - Catarina Serra - António Oliveira Abreu - Maria João Vaz Tomé ( junto declaração de voto) - António Moura de Magalhães - José Maria Ferreira Lopes - Cristina Tavares Coelho (Votei parcialmente vencida conforme voto da Sra. Conselheira Graça Amaral) - Maria Teresa Leão Albuquerque (Vencida quanto à fundamentação nos termos da declaração da Senhora Conselheira Graça Amaral) - Graça Amaral (Vencida quanto à fundamentação nos termos da declaração que se junta) - Maria Olinda Garcia (Votei parcialmente vencida, nos termos da declaração junta) - Ricardo Alberto Santos Costa (Votei vencido, parcialmente, de acordo com a declaração de voto que junto).
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Processo 4839/21.5T8FNC-A.L1.S1 (Revista com julgamento ampliado)
Declaração de voto
Com todo o respeito, parece-me que a modalidade de desvinculação do acordo de preenchimento da livrança em branco, por parte do sócio - ou do sócio/gerente - pré-avalista que sai da sociedade, se aproxima mais da resolução por inexigibilidade do que da denúncia, uma vez que o seu fundamento reside na extinção da qualidade de sócio - ou de sócio/gerente - , e não tanto na interdição de vinculações perpétuas e na defesa da liberdade individual. Naturalmente que esse sócio continua a garantir as dívidas constituídas até à sua saída da sociedade, não sendo a resolução dotada de eficácia retroativa - a retroatividade não é, aliás, uma consequência forçosa da resolução. Cf. Evaristo Mendes, Aval prestado por sócios de sociedades por quotas e anónimas e perda da qualidade de sócio, disponível para consulta in https://www.evaristomendes.eu/ficheiros/Evaristo Mendes Aval prestado por socios de SQ Apontamento (final)eu.htm, pp. 22 e ss.; Carolina Cunha, Manual de Letras e Livranças, Coimbra, Almedina, 2016, pp. 210 e ss..
Lisboa, 2024.11.20. - Maria João Vaz Tomé.
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Declaração de voto
Não acompanho a fundamentação e o consequente segmento uniformizador porque entendo que o quadro fáctico é deficitário quanto a um aspecto decisivo para o enquadramento jurídico seguido na tese que fez vencimento: classificação do contrato garantido como tendo uma duração temporalmente ilimitada/prazo sucessivamente renovável.
Com efeito, segundo o que se percepciona do entendimento explanado no acórdão, a desvinculação da vida societária por parte do embargante decorrente da cessão de quotas, não constitui, em si mesmo, fundamento bastante para tal (nesse sentido refere-se no acórdão “para que não haja equívocos interpretativos, que não se está a dizer que é a saída de sócio (ou de sócio-gerente) que fundamenta o exercido da denúncia pelo “avalista”, mas sim e apenas que a saída de sócio (ou de sócio-gerente) permite dizer que o exercício de denúncia foi conforme à boa-fé (que não houve abuso do direito de denúncia)”.
Considero, pois, que a viabilidade da solução jurídica seguida pela tese que fez vencimento imporia que a matéria factual fixada pelas instâncias permitisse, sustentadamente, classificar o acordo/pacto de preenchimento como não tendo prazo ou com prazo e com cláusula de renovação automática, decorrido o período inicial de vigência, por tais características do vínculo consubstanciarem elementos constitutivos do direito potestativo de denúncia exercido pelo executado/embargante.
Com o devido respeito, para tal caracterização do vínculo mostra-se inútil o juízo conclusivo vertido no ponto n.º 13, sendo também inócuos os dados constantes dos pontos n.os 1, 8, 9 e 22, mesmo que conjugados com a falta de alegação da recorrente sobre o tema (o que, em si mesmo, é desprovido de relevância).
Entendo, pois, que a deficiência da factualidade essencial desautoriza que este tribunal, ao arrepio do comando contido no n.º 1 do artigo 682.º do Código de Processo Civil, labore sobre suposições que não encontram apoio na realidade fáctica fixada, ainda para mais quando se está perante matéria em revisitação de uma orientação jurisprudencial que tem sido seguida neste STJ.
Assim, face à factualidade fixada (cf. pontos n.os 18 e 19) e aos termos em que o executado sustenta a sua posição - desvinculação da sociedade garantida (a perda da qualidade de sócio e perda de poder influenciar a vida da sociedade) com inexistência de dívidas à data da desvinculação - a solução jurídica com maior cabimento será a que se compagina, no dizer de Carolina Cunha, com “a categoria jurídico-negocial da inexigibilidade” (desvinculação unilateral no âmbito do exercício de um direito de resolução traduzido na “faculdade reconhecida ao sócio-cedente por integração do acordo de preenchimento, segundo a vontade hipotética das partes e os ditames da boa fé impostos pelo art. 239.º CCiv”).
Este direito de desvinculação unilateral do pacto de preenchimento da livrança em branco pode ser enformado na figura da resolução com justa causa (com expressão normativa no artigo 30.º, alínea b), do DL 178/86, de 03-07, reportada ao regime jurídico do contrato de agência), ou na figura da desvinculação com justa causa (revogabilidade do mandato), com expressão normativa no artigo 1170.º, do Código Civil, nos termos da solução preconizada pela Senhora Conselheira Maria Olinda Garcia na sua declaração de voto.
Lisboa, 20 de Novembro de 2024. - Graça Amaral.
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Processo: 4839/21.5T8FNC-A.L1.S1 (Revista ampliada)
Declaração de voto
Não acompanho a fundamentação do acórdão no que respeita à figura jurídica que permite ao avalista desvincular-se dessa posição, no caso dos presentes autos e em casos equiparáveis, pois, a meu ver, em rigor, não se trata de uma hipótese de denúncia, mas sim de revogação do pacto de preenchimento. Efetivamente, apesar de existir expressiva doutrina tanto sobre a denúncia como sobre a resolução, enquanto meios de desvinculação do avalista neste tipo de hipótese, a meu ver a figura tecnicamente mais adequada é a da revogação do acordo com base em justa causa, convocando uma aplicação analógica do artigo 1170.º do CC (revogabilidade do mandato), que supletivamente se aplica, de forma ampla, aos contratos de prestação de serviços, nos termos do artigo 1156.º do CC. Dado não estar em causa um contrato de prestação de serviços, a aplicação de tal regime não será apenas supletiva, mas também analógica. Efetivamente, embora a autorização para preenchimento da livrança seja prestada, essencialmente, no interesse do credor (beneficiário do pacto de preenchimento), a ausência de qualquer dívida, no momento em que ocorre a cedência da participação social, e a devolução ao Banco do cartão que servia para movimentar a conta garantida, podem ser vistas como circunstâncias que integram uma hipótese de justa causa de desvinculação para efeitos de aplicação analógica do artigo 1170.º do CC, não existindo, nesse momento, qualquer interesse do banco que merecesse tutela normativa, pois o avalista, naquelas circunstâncias, deixa de ter qualquer possibilidade de influenciar a gestão da sociedade devedora.
Quanto ao segmento para uniformização de jurisprudência, entendo que tem um alcance muito amplo, pois vai para além do tipo de hipóteses discutidas nos presentes autos.
A meu ver, esse segmento deveria ser o seguinte:
«O sócio de uma sociedade que avaliza uma livrança em branco, sem prazo, em favor dessa sociedade, pode extinguir a relação subjacente, quando deixe de ser sócio ou gerente da avalizada antes do preenchimento do título, desde que, a essa data, não existam débitos garantidos pelo aval prestado».
Maria Olinda Garcia.
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Recurso de Revista em Julgamento Ampliado (arts. 686.º-687.º CPC)
Processo 4839/21.5T8FNC-A.L1.S1
Declaração de voto
Votei vencido, parcialmente:
i) quanto à fundamentação, na parcela relevente do cap. III, em que não se considera causa de resolução do “acordo de preenchimento” a perda da qualidade de sócio (e/ou de gerente) da sociedade financiada e subscritora da livrança em branco e se considera aplicável à extinção da vinculação para aval o princípio da denunciabilidade “ad nutum” dos contratos de duração indefinida ou indeterminada (“sem prazo” ou “duradouros”) ou de duração determinada mas renovável ou prorrogável com carácter automático - em síntese: “tal desvinculação é possível por denúncia até ao preenchimento do título, desde que o vínculo a extinguir não tenha prazo (o que significa que o fundamento de tal denúncia é a ausência de prazo do vínculo e não a saída da sociedade por parte do sócio “avalista prometido”)”;
ii) quanto à alínea b) do dispositivo decisório, na parcela correspondente do segmento de uniformização jurisprudencial que se sustenta na susceptibilidade de denúncia por parte do promitente “avalista” (até ao preenchimento do título) que tenha deixado de ser sócio ou/e gerente da sociedade avalizada;
sem prejuízo, portanto, da improcedência da revista e confirmação do acórdão recorrido (al. a) do dispositivo).
Exponho as razões essenciais da minha discordância, que se resume ao epílogo do fio condutor da argumentação traçada no acórdão agora proferido.
1 - O enfoque da solução a que se aspira em relação à desvinculação perante o “pacto” ou “acordo de preenchimento” de uma livrança “em branco” avalizada pelo sócio-promitente avalista, até ao momento do seu preenchimento, não se coloca - pelo menos a título principal - na duração indeterminada ou no carácter duradouro da vinculação para aval conferida por tal “acordo”. Mais ainda quando - como se julga ser o caso - a materialidade factual do caso concreto é insuficiente para ser base de argumentação escorada nesse sentido, correndo-se até o risco de se partir para a construção de presunções judiciais ou de facto, absolutamente vedadas na linha de actuação cognitiva imposta pelo art. 682.º do CPC.
2 - Para além da natureza ilíquida, futura e incerta da dívida correspondente à “relação fundamental”, sem prejuízo da emissão voluntária de um título objectivamente incompleto, para garantia do credor que fica em seu poder, a tutela que se atribui (ou não) prende-se nuclearmente com a circunstância de o promitente garante ter intervindo nesse “acordo” na qualidade e por causa da relação com a sociedade como sócio - e, ademais, gerente-administrador - e essas qualidades e relações - via partipação social e via gestão - serem o pressuposto da sua promessa de garantia da livrança, uma vez se vier a ser completa e vinculante em termos cambiários no futuro com o seu preenchimento (v. arts. 30.º, § 1.º, e 77.º, § 3.º, da LULL). O nó górdio da questão está na admissibilidade em operar, para determinadas circunstâncias, a desvinculação do “pacto” ou “acordo de preenchimento” celebrado, justamente aquelas em que a permanência como garante pré-cambiário se torna excessiva e irrazoável em face dos riscos abrangidos pela relação jurídica material que esteve na origem da subscrição do título cambiário “em branco” e, por tal facto, a faculdade de proceder ao preenchimento posterior da declaração cambiária incompleta pelo emitente-portador deixa de ser oponível à vontade de desvinculação jurídica, perante o desmerecimento da sua tutela em face do sujeito que “sai” do cosmos social e gestionário da sociedade.
3 - Nessas circunstâncias deverá ser considerada lícita a faculdade de resolução desse acordo por parte do promitente avalista, com base na invocação de uma causa de inexigibilidade superveniente, desde que atendível e não exercida abusivamente, de assunção de dívidas futuras por força do preenchimento da livrança originariamente “em branco”.
É o caso de uma cessão das participações sociais para o sócio que assim deixa de o ser na sociedade garantida, uma vez confrontado com um contrato de financiamento ou equiparável (trata-se aqui da subscrição de um cartão associado a conta bancária e ao seu “saldo”, movimentado como uma “conta corrente caucionada”), com entregas de montante variável e indeterminado à partida (ainda que limitado pela atribuição de “um valor máximo para usar”, “com pagamentos acrescidos de juros remuneratórios”), passando a ser a partir dessa cessão confrontado verdadeiramente com um aval omnibus (cf. factos provados 8., 10., 13. e 14.), desprovido que fica de uma posição de controlo em face do montante de vinculação. Ainda para mais será se a “saída” da composição de sócios da sociedade plural (ou de sócio único da sociedade unipessoal) é acompanhado pela renúncia à gerência (cf. facto provado 15., 1.ª parte), o que acresce decisivamente à total ausência de condições para conhecer o alcance da sua eventual responsabilidade; e, por fim, mais se acolherá tal pretensão se, no momento da cessão, não se verifica, em concreto, qualquer dívida associada (tanto na “conta cartão” como na “conta mãe”, “não se encontrando usado qualquer valor”) e se entrega o “cartão” com que se movimentava a conta bancária garantida (cf. factos provados 15., 2.ª parte, e 18., 2.ª parte).
4 - Se assim é, estamos perante a verificação de um risco anormal - porque imprevisível no momento da celebração do “pacto de preenchimento”, isto é, no momento em que as partes colocaram em cima da mesa os pressupostos para a negociação do contrato subjacente e a garantia do seu cumprimento através da emissão de livrança-garantia - e atípico, por não ser próprio numa sociedade por quotas (em abstracto, atendendo ao seu modelo legal supletivo). Ou seja, a perda da qualidade de sócio (e gerente, sendo sócio) de quem garante o cumprimento como sócio da sociedade garantida numa sociedade de natureza tendencialmente personalística e “fechada”, como é a sociedade por quotas (v., como princípios, a impossibilidade ou dificuldade de os sócios mudarem: arts. 228.º e 229.º do CSC), não é risco normal, previsível e típico.
Sem prejuízo.
Mesmo que fosse visto como previsível, a resolução é, ainda e sem mais, razoavelmente admissível se é de entender - como é, salvo melhor opinião - que a outra parte (a sociedade garantida) deveria aceitar que a convenção do “pacto de preenchimento” pelo sócio (e gerente) ficasse dependente da manutenção de tais qualidades (social e gestionária), entretanto alteradas, e, por isso, causadoras da perturbação do equilíbrio originariamente subjacente à prestação da garantia cambiária.
5 - Se assim é, estamos perante uma vinculação que, a manter-se, não encontra qualquer equivalência de correspectividade (como lesão em concreto a considerar) entre a oneração do promitente avalista e o benefício retirado - directamente pela sociedade subscritora e “financiada” (em sentido amplo), indirectamente pelos seus sócios e administradores, sempre em referência à prossecução da actividade correspondente ao objecto social -, rompendo de forma grosseira a boa fé objectiva que indissocia a relação das partes a um compromisso de equilíbrio, confiança e lealdade, que se perdeu (naturalmente tanto mais quanto mais anos se passam após a cessação dessas qualidades) com a evolução dessa relação assente na ligação entre as qualidades do garante e a prestação da garantia para incumprimento futuro da sociedade (art. 762.º, 2, CCiv.).
6 - As circunstâncias em que as partes «fundaram a decisão de contratar» foram objecto de uma alteração superveniente e relevante nos termos do art. 437.º, 1, do CCiv., sendo este o mecanismo legal, directo e seguro, que confere a resolubilidade do “acordo de preenchimento”.
A este resultado se chega sem abuso que se censure, pois não é abusivo invocar esta mudança do equilíbrio contratual, uma vez que não se encontra ilegitimidade na cessão de participações sociais (liberdade jurídico-patrimonial do sócio) nem qualquer motivação pré-ordenada ao prejuízo da sociedade. E a ele se chega sem necessidade de qualquer pré-aviso (inerente à denúncia) ao promitente garante - enquanto «parte lesada» -, que cessa a sua relação com a sociedade avalizada, como sócio e, ademais, como gerente (sendo obviamente um “lugar paralelo” o disposto no art. 198.º do CSC: a responsabilidade, convencionada e limitada, dos quotistas perante os credores sociais «abrange apenas as obrigações assumidas pela sociedade enquanto o sócio a ela pertencer e não se transmite por morte deste»).
Em síntese: a resolução justifica-se pelo facto de a conservação das qualidades de sócio e gerente ser verdadeiramente uma condição implícita que subordina a vinculação dos garantes avalistas, porque essencial ao sentido e ao resultado do “acordo de preenchimento”, concluindo-se que, se tal subordinação fosse sido proposta à sociedade garantida, esta teria aceite ou, pelo menos, deveria tê-la aceite de acordo com a boa fé, como depois a deve aceitar no momento da alteração superveniente.
Em suma: a aplicação do art. 437.º do CCiv. ao caso que nos ocupa, sendo uma disciplina oferecida para superar o direito estrito quando as condições fundamentais da negociação se desequilibram profundamente, está perfeitamente em consonância com a intenção jusnormativa de correcção e revisão que subjaz ao regime legal da alteração das circunstâncias.
7 - Para além disso, o regime do art. 437.º permite uma reacção tutelar do credor garantido com a livrança em branco, afectado, porque interessado e beneficiário, pela resolução do “pacto de preenchimento”: invocar a «modificação segundo juízos de equidade» nos termos do n.º 2 do art. 437.º Naturalmente, vista cum grano salis, uma modificação que, de forma bivalente, visará tanto a relação jurídica fundamental que está garantida (por ex., reconfigurando os volumes ou “plafonds” e juros relativos ao financiamento dos contratos existentes ou excepcionando-extinguindo os contratos celebrados e convencionando relação nova com outros termos e garantias), como o reflexo que se espraia sobre o “acordo de preenchimento” que legitima os poderes de completamento da livrança (por ex., associando a “entrada” como garantes dos novos sócios cessionários das quotas a novas “assinaturas” de garantia).
Note-se que, em concreto, o sócio, aqui executado, quando comunica a desvinculação à sociedade por força da transmissão quotista, solicita a substituição, na função de avalista, pelos “actuais sócios”, “pois deixei de exercer qualquer função e controlo de gestão”, exercendo com fundamento a faculdade prevista no art. 437.º, 1 («direito à resolução do contrato ou à modificação dele segundo juízos de equidade») e revelando que considera ser equitativa essa modificação subjectiva para efectiva tutela dos interesses da sociedade garantida (cf. factos provados 18. a 20.). Isto é, formulou com efeito uma “resolução-modificação” abrangida pelo art. 437.º do CCiv.
8 - Uma vez resolvido licitamente (válida e eficazmente, mesmo que com declaração tácita ou conhecimento da «vontade real», com efeitos “ex nunc”: arts. 434.º, 1, 2.ª parte (sem retroactividade atenta a «finalidade da resolução»), 436.º, 1, 217.º, 1, 236.º, 2, e 224.º, 1, CCiv.) esse “acordo de preenchimento”, sem oposição modificativa, o ex-sócio e ex-gerente garante deixa de responder por dívidas ulteriores à desvinculação; o preenchimento do título incompleto só pode aspirar, no que toca ao avalista, à satisfação do“quantum” de dívidas vencidas até à data da eficácia dessa desvinculação. Assim, (i) se não houver dívidas constituídas à data e (como deveria ser) não for eliminada (“riscada”) a assinatura do avalista pelo emitente-portador do título, ou (ii) se o montante que se inscreve no título for superior ao débito garantido até à desvinculação, o preenchimento torna-se “abusivo” pelo facto de ter sido completada a letra «contrariamente aos acordos realizados», nos termos dos arts. 10.º e 77.º, § 2.º, da LULL. Nestes casos, o avalista cambiário que resulta do preeenchimento do título pode opor-se irrestritamente nas “relações imediatas” à exigência de pagamento do (i) montante inscrito no título ou do (ii) montante superior à dívida garantida (excepção de preenchimento abusivo).
9 - Obiter dictum.
A solução que agora se oferece para tutela jurídica do promitente avalista não se confunde com a tutela que deve ser oferecida aos sócios (mesmo que não gerentes ou administradores) que permanecem na sociedade e que, decorrido um tempo significativo e razoável numa lógica de indeterminação tendencialmente perpétua, pretendam desvincular-se através da denúncia (agora sim) do acordo de preenchimento, activando-se para o efeito a observância de um prazo de pré-aviso em conformidade com essa denunciabilidade e - específica e decisivamente - a sindicação (não tanto do generalista art. 762.º, 2, do CCiv., como assinalado pelo acórdão agora proferido) do cumprimento do dever de lealdade (compatibilidade com o “interesse social”) do sócio para com a sociedade e perante os outros sócios, em face das condições envolventes ao interesse liberatório.
10 - O segmento de uniformização deveria verter a resolução extintiva, fundada no art. 437.º do CCiv., e a sua consequência nos exactos termos da factualidade (e só esta) objecto de reapreciação em revista quanto aos “embargos de executado”, o que igualmente redunda, como desfecho, na subsistência do acórdão recorrido.
STJ/Lisboa, 20/11/2024. - Ricardo Costa.
1 Explicita-se por a expressão “aval em branco” também ser utilizada para designar e aludir à situação, prevista no art. 31.º/§ 3.º da LU, em que não se indica a quem é dado o aval.
2 E quem diz livrança diz letra: a questão é a mesma.
3 Em sentido que poderemos considerar não coincidente com o dominante: Pereira de Almeida, Direito comercial, III, Títulos de crédito, AAFDL, pág. 152, para quem a letra em branco “é um verdadeiro título de crédito”, embora acrescente que os respetivos direitos não poderão ser exercidos sem que se verifiquem todos os requisitos do art. 2.º da LU; e Pedro Pais de Vasconcelos, in “Aval em branco”, Revista de Direito Comercial, pág. 383 e ss. e 388, para quem “o preenchimento deve ser entendido como mero pressuposto de eficácia, no que respeita à sua cobrabilidade”.
4 Fala-se normalmente em letra, mas a questão coloca-se do mesmo modo quanto à livrança.
5 Dizendo mesmo, a fls. 120, que é “anómala e absurda” a ideia de que, antes do preenchimento, já exista “uma verdadeira letra, se bem que por preencher”.
6 Nas palavras de Ferrer Correia (Lições de Direito Comercial, Vol. III, Letra de Câmbio, pág. 133), a emissão de letra em branco, só por si, “constitui um ato cuja gravidade se torna ocioso sublinhar”.
7 Não obstante, as desconfianças de muitos países sobre os abusos a que tal mecanismo poderia dar origem levaram à Reserva introduzida no Anexo II à Convenção de Genebra, permitindo-se assim que Estados Contratantes não adotassem o preceito do art. 10.º da LU.
8 Filipe Cassiano Santos, in “Aval, livrança em branco e denúncia ou resolução da vinculação”, comentário ao AUJ 4/2013, in RLJ, ano 142, pág. 334/5.
9 Local citado, pág. 336.
10 Carolina Cunha, “Cessão de quotas e aval”, Direito das sociedades em revista, março de 2013, ano 5, pág. 93.
11 Carolina Cunha, local citado, pág. 96.
12 Se não houvesse este “elemento” adicional capaz de permitir a determinação das obrigações cambiárias que surgem com o preenchimento completo do título, todo o negócio pré-cambiário até seria nulo nos termos do art. 280.º/1 do C. Civil.
13 O que leva Januário Gomes, in “O (in)sustentável peso do aval e, livrança em branco prestado por sócio de sociedade para garantia de crédito bancário revolving” (Cadernos de Direito Privado, n.º 43, 2013), a entender que estamos perante um contrato de garantia pessoal atípica que “engloba, complexivamente, o acordo ou autorização de preenchimento e o documento assinado em branco assinado pelo avalista”.
14 Carolina Cunha, Manual de Letras e Livranças, pág. 59 e ss..
15 Não é que os negócios cambiários não tenham causa, mas apenas que a mesma está fora do negócio cambiário, do título e da relação cartular (a causa, aliás, supõe um contexto económico-jurídico bilateral, o que não é o caso dos negócios jurídicos cambiários, que são negócios jurídicos unilaterais).
16 Ou, segundo Januário Gomes, local citado, pág. 43, “[...] o que é passível de denúncia, na medida em que tenha sido celebrado por tempo indeterminado, é esse contrato de garantia pessoal atípica”.
17 Carlos da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, pág. 623.
18 Ou, dito de outra forma, os negócios de duração indeterminada ou ilimitada só não serão nulos, por força do art. 280.º., na medida em que se entenda que estão sujeitos ao regime de livre denunciabilidade ou denunciabilidade ad nutum.
19 Sem prejuízo de em matéria de contrato de trabalho e de contrato de arrendamento existirem interesses sociais que justificam que a lei estabelece limites à regra da livre denúncia.
20 Carolina Cunha “Cessão de Quotas e Aval”, pág. 105/6.
21 “Aval prestado por sócios de sociedades por quotas e anónimas e perda da qualidade de sócio”, pág. 22 e ss.
22 Sem prejuízo de poder ser dito que as sociedades (por quotas e anónimas) são organizações produtivas de membros variáveis e o financiador não poder deixar de contar com a variabilidade do seu elemento pessoal e com a perda, por parte do sócio que sai, do interesse e do poder de influência que determinaram a sua decisão de prestar o aval e a correspondente exigência do mesmo.
23 Local citado, pág. 326
24 Pinto Monteiro, Contrato de Agência, 4.º ed., pág. 99 (anotação 4 ao art. 27.º).
25 Local citado, pág. 345.
Caso se mantenha apenas como gerente continua a determinar a gestão e o comportamento contratual da sociedade financiada, mantendo uma posição que lhe permite acompanhar e de algum modo controlar o endividamento global da sociedade financiada.
E pode, inclusivamente, o banco credor prever, no acordo de preenchimento, as consequências da desvinculação do “avalista” sobre o contrato principal.
28 Carolina Cunha, local citado, pág. 113.
29 Januário Gomes, Contratos Comerciais, pág. 326.
30 E o aqui embargante, que também o podia ter junto, deixou de ser sócio-gerente da contraparte da abertura de crédito (a sociedade financiada) em 30/03/2009, ou seja, quase 13 anos antes de ter sido citado para a execução.
118527303
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 1/2025, de 8 de Janeiro
- Corpo emitente: Supremo Tribunal de Justiça
- Fonte: Diário da República n.º 5/2025, Série I de 2025-01-08
- Data: 2025-01-08
- Documento na página oficial do DRE
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Sumário
«1 ― A vinculação para aval prestada em livrança em branco é, desde que assumida sem prazo ou por prazo renovável, decorrido o prazo inicial, suscetível de denúncia, pelo vinculado para aval que tenha deixado de ser sócio ou sócio-gerente da avalizada, até ao preenchimento do título. 2 ― A denúncia só produzirá efeitos para o futuro, ou seja, a desvinculação só será eficaz em relação a montantes que venham a ser solicitados após a denúncia produzir os seus efeitos.»
Texto do documento
Anexos
- Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/6029133.dre.pdf .
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