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Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 13/2024, de 15 de Outubro

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Sumário

Prescrevem no prazo de 5 anos, por aplicação analógica do art. 310.º/e) do C. Civil, as rendas do locatário no contrato de locação financeira.

Texto do documento

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 13/2024



Processo 2218/18.0T8CHV-A.G1.S1

Revista ampliada

ACORDAM, EM PLENO DAS SECÇÕES CÍVEIS, NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I - Relatório

Por apenso aos autos de execução comum n.º 1218/8.0..., movidos pelo Banco Comercial Português, S. A. contra a Sociedade Imobiliária da Capital S. A., veio esta deduzir oposição por embargos, nos quais, para o que aqui interessa, invocou:

- a prescrição das rendas e dos respetivos juros de mora, nos termos do art. 310.º/b) e e) do C. Civil, uma vez que, ainda que tenha sido celebrado o contrato de locação financeira, tendo ocorrido o incumprimento a 10.11.2005 e não tendo ocorrido qualquer causa de interrupção e de suspensão da prescrição, a mesma ocorreu a 10.11.2010, muito antes da instauração da ação executiva a 12.12.2018.

- A prescrição de juros, nos termos do art. 310.º/d) do C. Civil.”

O Banco embargado apresentou contestação, alegando;

- Em relação à prescrição das rendas:

Não se aplica o prazo de prescrição de 5 anos do art. 310.º/b) do C. Civil, face à diferença de regime das rendas do contrato de locação dos arts. 1022.º ss do C. Civil e das rendas do contrato de locação financeira;

Não se aplica o prazo de prescrição de 5 anos do art. 310.º/e) do C. Civil, uma vez que este se refere ao contrato de mútuo, que é muito diferente do contrato de locação financeira;

O prazo ordinário de prescrição de 20 anos, previsto no artigo 309.º do C. Civil, ainda não se encontra decorrido, quer se conte o prazo desde 10.11.2005, data aposta na livrança, quer se conte o prazo desde 01.07.2005, quando a locatária não pagou a 18.ª renda devida e que veio a originar a resolução do contrato e posterior preenchimento da livrança caução;

De qualquer forma, o Banco Exequente manifestou judicialmente a sua intenção de exercer os seus direitos antes de intentar a presente execução, nomeadamente tendo intentado a providência cautelar para restituição dos bens locados e apresentado reclamação de créditos no processo de insolvência da Garagem....

- Em relação à prescrição dos juros:

O prazo de prescrição aplicável às rendas do contrato de locação e respetivos juros não é de 5 anos mas é de 20 anos.

- A hipoteca assegura o crédito e os acessórios registados - juros, despesas e cláusula penal; e, como a embargante não é devedora originária, os juros de mais de três anos estão excluídos da garantia hipotecária pelo que, no que à embargante diz respeito, devem ser calculados os juros relativos a 3 anos, decorridos desde 10.11.2005 (data aposta na livrança) até 10.11.2008, sendo a taxa de juro calculada nos termos acordados pelas partes na escritura (5,25 % acrescida da cláusula penal, legalmente fixada em 3 %).

Findos os articulados, foi realizada audiência prévia, onde foi proferido despacho saneador - que declarou a instância regular, estado em que se mantém - e despacho a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova.

Realizada a audiência final, a Exma. Juíza proferiu sentença a julgar parcialmente procedentes os embargos, nos seguintes termos:

“[...] decide-se julgar parcialmente procedentes os presentes embargos de executado na medida em que, no que concerne aos juros, os mesmos devem ser calculados relativos a 3 anos, decorridos desde 10.11.2005 (data aposta na livrança) até 10.11.2008, sendo certo que a taxa de juro é calculada nos termos acordados pelas partes na escritura, ou seja, 5,25 % acrescida da cláusula penal (legalmente fixada em 3 %). [...]”

Inconformada com tal decisão, interpôs a executada/embargante recurso de apelação, tendo-se, por Acórdão da Relação do Guimarães, proferido em 27/04/2023, concedido provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida, julgando-se procedentes os embargos e declarando-se extinta a instância executiva.

Agora inconformado o Banco exequente/embargado, interpõe o presente recurso de revista, visando a revogação do Acórdão da Relação e a sua substituição por decisão que repristine o decidido na sentença da 1.ª Instância.

Terminou a sua alegação com conclusões em que refere:

[...]

1 - No acórdão recorrido cometeram-se erros na aplicação da matéria de direito, no que concerne à aplicação do prazo prescricional das rendas referentes aos contratos de locação financeira.

2 - Considerou o Tribunal da Relação de Guimarães, por interpretação atualista e extensiva, que o crédito pelo incumprimento de pagamento de rendas do contrato de locação financeira prescreve no prazo de 5 anos, nos termos do art. 310.º/, alínea e) do C. Civil, o que a Recorrente considera ser um erro na interpretação do direito.

3 - Entendeu o Tribunal, no acórdão recorrido, que deve ser este o prazo prescricional aplicável, fundamentando que o espírito da norma é a proteção do devedor, que à mercê do Credor durante o prazo de 20 anos, poderia ser levado à ruína financeira pelo vencimento de juros.

4 - Perigo inexistente in casu, já que a Executada Recorrida não é devedora originária, mas apenas proprietária de imóvel hipotecado ao Banco Recorrente, dado como garantia do cumprimento do contrato de locação financeira.

5 - Face à qualidade em que a Executada recorrida intervém, apenas lhe é exigível o capital em dívida acrescido dos juros que se venceram durante 3 anos após a resolução contratual, nos termos do artigo 693.º, n.º 2 do CCiv.

6 - Questão evidenciada pelo tribunal, em 1.ª instância.

7 - Entendeu o tribunal a quo, que o contrato de locação financeira, por gerar uma obrigação de pagamento de rendas que correspondem a quotas de amortização do capital previamente investido pela locadora para financiar o bem locado e a futura e possível compra final pelo locatário (caso o locatário exerça esse direito e mediante o pagamento, após as rendas, do valor residual), pagáveis com juros remuneratórios integrados nas mesmas, preenche-se o núcleo da previsão normativa da alínea e) do art. 310.º do C. Civil.

8 - Tal consideração coloca em causa toda a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que há mais de 20 anos tem decidido pela aplicação do prazo prescricional de 20 anos, previsto no art. 309.º do CCiv.

9 - As “rendas” relativas ao contrato de locação financeira são todos os encargos - custos, juros, riscos do crédito, margem de lucro do locador e outras despesas - que representam uma obrigação única, embora possa ser paga por forma repartida por tempo certo.

10 - Logo, à obrigação de as pagar, não se aplica o regime de prescrição quinquenal previsto pelo artigo 310.º, alíneas b) e d), do Código Civil, mas o regime do prazo geral de prescrição, na falta de lei especial que disponha de forma diferente.

11 - A Tribunal a quo fez uma errada interpretação do direito, motivo pelo qual, nos termos do art. 674.º, n.º 1, alínea a) e b) do CPC, deverá ser revogada a decisão recorrida.

[...]”

A executada/embargante não respondeu.

Distribuídos os autos neste STJ, foi proposto ao Exmo. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que o julgamento da presente revista fosse feito de modo ampliado, com a intervenção do Pleno das Secções Cíveis, por se “perspetivar a prolação de acórdão em que há a possibilidade de fazer vencimento solução jurídica oposta à jurisprudência que vem sendo seguida neste Supremo” e tal “se revelar necessário e conveniente para assegurar a uniformidade da jurisprudência”.

Tendo o Exmo. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, por decisão de 16/01/2024, determinado que o julgamento da presente revista se faça pelo Pleno das Secções Cíveis, de acordo com o disposto no art. 686.º do CPC.

O Ministério Público emitiu o seu parecer no sentido da revista ser julgada improcedente e de se fixar a seguinte jurisprudência: "correspondendo as rendas da locação financeira a verdadeiras quotas de amortização do capital, aplica-se-lhes o prazo de prescrição de 5 anos previsto na alínea e) do art. 310.º do C. Civil".

Obtidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.

II - Fundamentação de Facto:

As Instâncias deram como provados os seguintes factos:

1.1 - O Banco exequente exerce a atividade bancária.

1.2 - No exercício da sua atividade e a pedido da sociedade G..., L.da, no dia 08.01.2004, o exequente celebrou com ela uma escritura de hipoteca, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzida

Através de tal escritura, a sociedade referida:

- Declarou ser a dona e legítima possuidora do prédio urbano composto por casa de cave, rés-do-chão e andar, com a superfície coberta de cento e três metros quadrados, sito na Avenida... e Rua..., freguesia de..., concelho de..., inscrito na matriz sob o artigo...63 e descrito na Conservatória do Registo Predial de... sob o n.º ...48.

- Dar de hipoteca ao exequente o prédio urbano em causa, para garantia do bom cumprimento do contrato de leasing mobiliário n.º ...36 a celebrar entre ambas as partes (a sociedade na qualidade de locatária e o exequente na qualidade de locador) e até ao montante máximo de € 236.250,00 e dos correspondentes juros remuneratórios à taxa de 5,25 %, acrescida de 4 % a título de cláusula penal, ascendendo o montante máximo de capital e acessórios à quantia de € 311.259,38.

1.3 - O contrato de leasing mobiliário foi celebrado entre as partes e a referida hipoteca foi constituída a favor do exequente e registada na respetiva informação predial, pela Ap.... de 2004/09/02 e garantido por essa hipoteca.

1.4 - O contrato de locação financeira mobiliária n.º ...36 em causa nos autos tem por objeto diverso equipamento, o qual foi adquirido pelo Banco à sociedade M..., L.da com o intuito de o dar de locação à sociedade Locatária, sendo certo que o referido equipamento foi entregue à locatária.

Nos termos do aludido contrato:

1.4.1 - Ficou acordado que:

- o prazo de duração foi fixado em 60 meses;

- o número de rendas acordado foi de 60, a pagar mensalmente, vencendo-se ao dia 1 de cada mês;

- todas as rendas estavam indexadas à Euribor a 1 mês, estando a renda inicial e subsequentes à data do início do contrato fixadas em, respetivamente, 26.249,83€ +IVA (a 1.ª renda) e 4.474,07 +IVA (as restantes 59);

- o valor residual acordado foi de 5.249,97 €.

1.4.2 - Definiu-se, ainda, nomeadamente:

a) Nas condições particulares:

- Nas cláusulas 4 e 6 que o preço dos bens e o valor global da locação correspondiam ao valor de € 262 498, 30.

- Na cláusula 8.1. que "As rendas são calculadas com base na Taxa de Juro Nominal e nas condições determinadas na cláusula seguinte."

b) No art. 11.º das condições gerais sobre o incumprimento e a resolução do contrato definiu-se:

"1 - Para além dos demais casos de resolução decorrentes da lei e do presente contrato, este poderá ser resolvido em caso de incumprimento de qualquer uma das obrigações do Locatário se este, interpelado para o efeito, por carta registada, não suprir a sua falta no prazo de dez dias a contar da data de emissão daquela notificação. [...]

5 - A resolução do Contrato não exonera o Locatário do dever de cumprimento de todas as obrigações que à data se encontram vencidas, e confere ao Locador, para além de conservar as rendas vencidas e pagas, o direito de receber do Locatário, a título de indemnização por perdas e danos, uma importância igual a 20 % da soma das rendas vincendas com o valor residual, sempre sem prejuízo, porém, do direito à reparação integral do maior dano.".

1.5 - Tal contrato de leasing mobiliário foi incumprido pela Locatária em 01/07/2005, quando esta deixou de proceder ao pagamento das rendas contratadas, mais concretamente a renda 18.º e as subsequentes.

1.6 - Em virtude do incumprimento do contrato por parte da Locatária e ao abrigo dos poderes que lhe tinham sido conferidos pelo pacto de preenchimento, o Banco exequente:

a) Declarou, por carta registada recebida pela locatária a 07.11.2005, resolver o contrato de locação financeira, ter preenchido a livrança pelo valor da dívida global de € 58.094, 49, advertindo-a para pagamento no prazo de 8 dias, sob pena de instauração de ação judicial, nos seguintes termos: [...]

b) Procedeu ao preenchimento da livrança caução pelo valor em dívida - 58.094,49 € - tendo-lhe aposto como data de vencimento o dia 10.11.2005 e apresentada a livrança a pagamento a mesma não foi paga, nem então nem posteriormente até à presente data.

1.7 - O Banco Exequente manifestou judicialmente a sua intenção de exercer os seus direitos antes de intentar a presente execução, nomeadamente tendo intentado a providência cautelar para restituição dos bens locados e apresentou reclamação de créditos no processo de insolvência da Garagem....

1.8 - O imóvel em questão foi adquirido por um terceiro - a Sociedade..., S. A. (cf. Ap.... de 2005/05/24), ora Embargante.

1.9 - Os autos executivos foram instaurados em 15/12/2018

III - Fundamentação de Direito

Está unicamente em causa e sob discussão na presente revista a questão do prazo de prescrição das rendas do locatário no contrato de locação financeira.

Estando-se nuns embargos de executado, cumpre começar por mencionar que foi decidido na sentença que o título executivo é a escritura de hipoteca apresentada com o requerimento executivo, escritura essa complementada, nos termos do art. 707.º do CPC, com o contrato de locação financeira também apresentado, ou seja, o título executivo da execução a que os presentes embargos foram opostos não é livrança, também apresentada pelo exequente, o que significa - é apenas o que aqui se visa consignar - que a questão sob discussão não tem uma qualquer vertente cambiária que importe enfrentar e apreciar.

Efetuado tal esclarecimento, passando a enunciar os termos da divergência sobre a única questão sob discussão, temos:

A 1.ª Instância entendeu que às rendas do locatário financeiro é aplicável, nos termos do art. 309.º do C. Civil, o prazo ordinário de 20 anos; diferentemente,

O Acórdão recorrido entendeu que prescrevem no prazo de 5 anos, nos termos (e por interpretação atualista e extensiva) do art. 310.º/e) do C. Civil, as rendas da locação financeira.

Pretendendo o Banco recorrente que seja repristinado o decidido pela 1.ª Instância.

Vejamos:

Como está abundantemente mencionado nos autos1, a jurisprudência deste Supremo vem decidindo ser aplicável à prescrição das rendas da locação financeira o prazo ordinário de 20 anos: vem-se entendendo que as alíneas b) e e) do art. 310.º do C. Civil não são aplicáveis à locação financeira, com o que se afasta a aplicação do prazo quinquenal e se considera aplicável o prazo ordinário de 20 anos do art. 309.º do C. Civil.

E porque é que se vem afastando a aplicação da alínea b) do art. 310.º do C. Civil?

Por - dizendo-se em tal alínea b) que “prescrevem no prazo de cinco anos as rendas e alugueres devidos pelo locatário, ainda que pagas de uma só vez” - não estarmos, na locação financeira, perante um “mero” contrato de locação.

Efetivamente, de acordo com a noção do art. 1022.º do C. Civil, “locação é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa mediante retribuição”; e segundo a noção do art. 1.º do DL 149/95, de 24 de Junho, “locação financeira é o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o preço acordado, por um preço determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios fixados.”

Assim, tal como na “mera” locação, existe, na locação financeira, a obrigação de ceder o gozo temporário de uma coisa, gozo que é retribuído e que pode ser exigido pela contraparte, continuando, tal como na “mera” locação, o locador financeiro a ser proprietário da coisa, todavia, confrontando o regime legal dos dois contratos, temos “a mais” - e a descaraterizar a locação financeira como “mera locação” - que o objeto do contrato, na locação financeira, é adquirido ou construído por indicação do locatário (que escolhe o bem de acordo com as suas necessidades e assume o risco económico da sua utilização), enquanto, na “mera” locação, é o locador que escolhe o bem (de acordo com o seu interesse económico e o mantém em estado de funcionamento, assumindo os riscos inerentes); que, na locação financeira, é o locatário que suporta o risco de perecimento da coisa (art. 15.º do DL 149/95), enquanto, na “mera” locação, tal risco corre por conta do locador; que, na locação financeira, o dever de conservar e reparar a coisa incumbe ao locatário (art. 10.º do DL 149/95), enquanto, na “mera” locação tal dever pertence ao locador; que, na locação financeira, há uma obrigação remuneratória única do devedor, correspondente, “grosso modo”, ao custo do bem e juros, com prestações “fracionadas” no tempo, enquanto na “mera” locação as rendas são prestações periódicas, correspondentes a períodos sucessivos, dependentes da duração do contrato, pelo que, desaparecido o bem, desaparece a obrigação; e que, na locação financeira, o locatário pode adquirir a coisa decorrido o prazo acordado (o que não acontece na “mera” locação).

Daí o expendido:

- no Ac. STJ de 11.12.2003, proferido no processo 1572/03, em que se refere que “enquanto as rendas do contrato de locação constituem obrigações periódicas, reiteradas ou com trato sucessivo, as rendas da locação financeira integram, por sua vez, obrigação de prestação, em si mesma, unitária, na medida em que o seu objeto se encontra pré-fixado, e tão só dividida ou fracionada quanto ao seu cumprimento”, não podendo, por conseguinte, “as rendas da locação financeira equiparar-se às rendas locatícias comuns para o efeito da aplicação do art. 310, al. b), C. Civ.”;

- no Ac. STJ de 17.03.2005, proferido no processo 4059/04, em que se refere que “o contrato de locação definido pelo artigo 1.022.º do Código Civil e o contrato de locação financeira definido pelo artigo 1.º Decreto-Lei 149/95, de 24 de Junho, não têm natureza jurídica idêntica”, compreendendo “as “rendas” relativas ao contrato de locação financeira todos os encargos - custos, juros, riscos do crédito, margem de lucro do locador e outras despesas - que representam uma obrigação única, embora possa ser paga por forma repartida por tempo certo”, pelo que “à obrigação de as pagar, não se aplica o regime de prescrição quinquenal previsto pelo artigo 310.º, alíneas b), do Código Civil”;

- no Ac. STJ de 12.01.2010, proferido no processo 2843/06.2TVLSB.S1, em que se refere que “as rendas no contrato comercial de locação financeira não representam, apenas, a contrapartida da utilização de um bem locado, antes relevam, na sua composição, o valor decorrente da amortização do capital investido, isto é, o custo do bem, a gestão e os riscos próprios e inerentes da dita operação financeira”, enquanto “no contrato de locação civil (art. 1022.º do CC), as rendas constituem obrigações periódicas, reiteradas ou com trato sucessivo” (ao invés da locação financeira, em que “as rendas reconduzem-se a uma única prestação, pois que o seu objeto se encontra pré-fixado e apenas é fracionado quanto ao seu cumprimento”).

Enfim, como se começou por referir, vem-se afastando a aplicação da alínea b) do art. 310.º do C. Civil por tal alínea - a sua letra - se referir tão só às rendas e alugueres devidos no âmbito da “mera” locação, não sendo a locação financeira juridicamente configurável como um “mero” negócio de locação.

E porque é que se vem afastando a aplicação da alínea e) do art. 310.º do C. Civil?

Por - dizendo-se em tal alínea e) que “prescrevem no prazo de cinco anos as quotas de amortização do capital pagáveis com os juros” - não estarmos, na locação financeira, perante um contrato de mútuo.

De facto, como refere Leite Campos2, “a caracterização do contrato de locação financeira, como de qualquer outro contrato, tem de assentar na sua estrutura jurídica, na sua regulamentação legal e em não quaisquer outros aspetos, sejam financeiros, económicos ou contabilísticos”, ou seja, não deve misturar-se a função financeira - o surgimento da locação financeira como instrumento financeiro e o papel meramente financeiro que o locador normalmente desempenha - com as suas características jurídicas (estruturais), pretendendo classificá-lo financeiramente e não juridicamente.

A locação financeira - acrescenta-se - é um dos instrumentos de que os empresários ou as famílias dispõem para financiar a “aquisição” de bens, mas não pode confundir-se o fim, financeiro, com o instrumento jurídico utilizado para o prosseguir: a aquisição do bem por parte do locador é instrumental à sua concessão em locação financeira, à realização do financiamento - a locação financeira financia o uso e a possível aquisição do bem - porém, o locador não empresta qualquer soma ao locatário (nem é o próprio locatário a adquirir e pagar o bem diretamente ao locador)

É certo, como também refere Leite Campos, “que o financiamento é o “encargo” principal do locador. [...]” Mas “[...] o financiamento inicial ligado a esta operação tem lugar na esfera do locador que só obtém resultados externos através da cedência do uso do bem adquirido com esse financiamento. [...] No contrato de locação financeira a entrega da propriedade do bem é substituída pela concessão do seu uso, o que descaracteriza ainda mais aquele contrato em relação ao tipo mútuo, mesmo perante a sugestiva ideia de mútuo da coisa.”

Enfim, como se sustentou no Ac. STJ de 13/10/2022, proferido no processo 2.518/19.2T80ER-A.L1.S1, “ainda que deva admitir-se que a natureza económica das rendas da locação financeira leva a que elas juridicamente estejam muito mais perto das prestações de uma dívida (no sentido do art. 781.º do Código Civil) do que das rendas da locação comum, a semelhança funcional (económica ou financeira) entre o contrato de locação financeira e o contrato de mútuo é compatível com dissemelhanças estruturais (jurídicas) - daí que da semelhança funcional entre o contrato de locação financeira e o contrato de mútuo não deve deduzir-se, sem mais, a aplicação da alínea e) do art. 310.º do Código Civil ao contrato de locação financeira.

Mas, isto exposto - e sem prejuízo, concorda-se, da locação financeira não ser juridicamente configurável como um mero negócio de locação e das dissemelhanças estruturais/jurídicas entre a locação financeira e o mútuo que também não permitem afirmar que a locação financeira é juridicamente configurável como um mútuo - quer-nos parecer que a determinação do sentido do art. 310.º do C. Civil, tendo em vista a sua aplicação (ou não) à locação financeira, não se pode ficar por aqui.

A “solução” sobre a aplicação (ou não) do art. 310.º do C. Civil não tem de decorrer do enquadramento dogmático do contrato de locação financeira, no que, aliás, não há uma teoria que suscite consenso.

É relativamente fácil excluir a sua configuração como um mero contrato de locação - por as rendas não se limitarem a retribuir o mero gozo da coisa; por as cláusulas de vencimento antecipado que envolvem a perda do benefício do prazo não serem compatíveis com a disciplina da locação; por causa das regras de exoneração do locador financeiro pelos vícios do bem locado - ou como um mero contrato de mútuo - a sociedade de locação financeira não concede um crédito ao locatário para que este compre a coisa e a integre no seu património - sendo que, a partir daqui, tudo se torna mais discutível.

Já houve quem visse as rendas da locação como parcelas do preço e a locação financeira como uma venda a prestações com reserva de propriedade (e entrega antecipada da coisa), mas, contra tal configuração, pode ser dito que a aquisição da propriedade pelo locatário é meramente eventual e que a mesma, a concretizar-se, impõe uma ulterior manifestação de vontade e a conclusão de um novo negócio (enquanto na compra e venda a prestações a transmissão da propriedade opera automaticamente com o pagamento da última prestação).

Daí, o “ecletismo” de teorias que veem a locação financeira como uma união de contratos - como um contrato nominado misto3, que contém elementos da compra e venda e da locação - ou como um contrato de crédito sui generis - na medida em que financia o uso e a possível aquisição do bem - ou ainda como um contrato de crédito com caraterísticas específicas4 - a função creditícia opera-se através da disponibilidade do bem e o locador financeiro permanece proprietário do bem apenas e só na medida dos seus objetivos: tendo em vista a restituição da coisa em caso de incumprimento da obrigação de reembolso do locatário financeiro.

Há que ter presente que a locação financeira (leasing) surgiu nos Estados Unidos nos anos 50 e foi introduzida na Europa uma década depois, sendo por isso natural que o legislador de 1966 não se lhe tenha referido explicitamente, pelo que, mais do que confrontar a natureza jurídica da locação financeira com as situações previstas nas alíneas b) e e) do art. 310.º do C. Civil, importa perscrutar o pensamento legislativo (e/ou o inerente critério valorativo) respeitante ao prazo quinquenal do C. Civil, a partir do que foi objetivamente vertido em tal art. 310.º do C. Civil.

Não sendo despiciendo precisar que não é por o diploma da Locação Financeira (quer o atual DL 149/95, com as sucessivas alterações até ao DL 30/2008, quer o anterior DL 171/79) não ter qualquer preceito sobre o prazo de prescrição das rendas do locatário financeiro que estamos, automaticamente, perante uma lacuna: é sabido que o direito comercial (e a Locação Financeira é um contrato comercial), como direito privado especial, é fragmentário e que está aberto ao recurso direto ao direito privado comum na disciplina das relações comerciais, dentro da ideia de que o direito civil é direito subsidiário em relação ao direito comercial (cf. art. 3.º do C. Comercial), o que significa que é precisamente no direito civil que tem que ser encontrada a regulamentação sobre os prazos de prescrição da relação jurídica comercial (locação financeira) em causa.

O que tudo concorre, sendo o direito civil aplicado subsidiariamente a um contrato com contornos jurídicos desconhecidos à época da elaboração do C. Civil de 1966, para não se afastar, tão só a partir do texto da lei e numa lógica jurídico-conceitual, a aplicação do art. 310.º do C. Civil à locação financeira.

Centremo-nos pois sobre a interpretação do art. 310.º do C. Civil (maxime das suas alíneas b) e e)):

Como resulta dos trabalhos preparatórios do atual C. Civil - e do que aí se refere sobre o que constava no art. 543.º do C. de Seabra e no Anteprojeto do Prof. Vaz Serra - estão em causa na alínea b) do art. 310.º do C. Civil, assim como nas alíneas a) e c), os créditos, periodicamente renováveis, que resultem de alguma das relações unitárias duradouras ali nomeadas, ou seja, os créditos resultantes da renda perpétua, da locação e da enfiteuse; existindo para outros créditos periodicamente renováveis, resultantes de outras relações unitárias duradouras, diferentes das indicadas nas alíneas a), b) e c), a alínea g) do art. 310.º do C. Civil, em que se dispõe que “prescrevem no prazo de 5 anos quaisquer outras prestações periodicamente renováveis”.

Curto prazo de prescrição de cinco anos que, para tais situações (de prestações periódicas renováveis), sempre foi, desde o C. de Seabra5, justificado como destinando-se a evitar a ruína do devedor, pela acumulação de pensões, rendas, alugueres, juros ou outras prestações periódicas: como referia o Prof. Manuel de Andrade6, com referência aos curtos prazos de prescrição de 5 anos do parágrafo 1.º do art. 543.º do C. de Seabra, “[...] a lei funda-se no intuito de evitar que o credor deixe acumular os seus créditos a ponto de ser mais tarde ao devedor excessivamente oneroso pagar”.

Sucedendo - trata-se de uma inovação do C. Civil de 1966 - que este alargou tal curto prazo de prescrição de cinco anos às “quotas de amortização de capital pagáveis com os juros”, por, segundo Vaz Serra, “[...] com os juros parece deverem prescrever as quotas de amortização, se deverem ser pagas com a adjunção de juros (Código alemão, parágrafo 197.º), pois, se assim não fosse, poderia dar-se uma acumulação de quotas ruinosa para o devedor, apesar de, com a estipulação de quotas de amortização, se ter pretendido suavizar o reembolso do capital e tratá-lo como juros”; por, ainda segundo Vaz Serra (in Revista Decana, 89.º/328), se justificar o prazo curto com o facto de “proteger o devedor contra a acumulação da sua dívida que, de dívida de anuidades, pagas com os seus rendimentos, se transformaria em dívida de capital suscetível de o arruinar, se o pagamento pudesse ser-lhe exigido de um golpe, ao cabo de um número demasiado de anos”.

O que levou o Acórdão deste Supremo de 29/9/2016 (proferido no processo 201/13.1TBMIR-A.C1.S1) a observar que o C. Civil de 1966 veio a considerar, no artigo 310.º/e), que a amortização fracionada do capital em dívida, quando realizada conjuntamente com o pagamento dos juros vencidos, originando uma prestação unitária e global, envolve a aplicabilidade a toda essa prestação do prazo quinquenal de prescrição, equiparando tal situação à das prestações periodicamente renováveis, “[...] ou seja, o legislador entendeu que, neste caso (das amortizações de capital pagas conjuntamente com os juros), o regime prescricional do débito parcelado ou fracionado de amortização do capital deveria ser absorvido pelo que inquestionavelmente vigora em sede da típica prestação periodicamente renovável de juros, devendo valer para todas as prestações sucessivas e globais, convencionadas pelas partes, quer para amortização do capital, quer para pagamento dos juros sucessivamente vencidos, o prazo curto de prescrição decorrente do referido art. 310.º”.

De tal sorte que a jurisprudência deste Supremo vem aplicando, sem divergências, o curto prazo de prescrição do art. 310.º/e) do C. Civil às prestações de reembolso de contratos de mútuo, prestações essas em que os juros estão integrados; aplicação essa extensiva ao caso das prestações serem declaradas antecipadamente vencidas, nos termos do art. 781.º do C. Civil (aqui, após alguma divergência, foi uniformizado tal entendimento pelo AUJ 6/2022, proferido no processo 1736/19.8T8AGD-B.P1.S1, publicado no DR 1.ª série de 22.09.2022) e ao caso do crédito resultar da resolução do contrato de mútuo (cf. Ac. STJ de 23.01.2020, proferido no processo 4518.17.8T8LOU-A.P1.S1; Ac STJ de 11/03/2020, proferido no processo 8563/15.0T8STB-A.E1.S1; e Ac. STJ 07/06/2021, proferido no processo 6261/19.4T8ALM-A.L1.S1)

Temos pois que a previsão do art. 310.º/e) do C. Civil abrange as hipóteses de obrigações pecuniárias, pagáveis em prestações sucessivas e que incorporem duas frações distintas: uma de capital e, outra, de juros, em proporção variável, a pagar conjuntamente, o que significa que a situação prevista no art. 310.º/e) do C. Civil pressupõe, em termos factuais, a individualização de um plano de amortização, assente numa distribuição, temporal e parcelar, do capital e dos juros correspondentes, a título de remuneração de capital.

Em síntese, subjacente à consagração desta prescrição de curto prazo está a estipulação, entre as partes, de um plano de reembolso gradual e ao longo do tempo do capital, que visa facilitar e agilizar o pagamento através do fracionamento da dívida em parcelas de capital, o que faz com que se passe a estar perante prestações que se vencem em certo e determinado tempo, levando consigo o perigo sério de acumulação de dívida.

Como refere Ana Filipa Morais Antunes7:

“[...] na situação prevista no art. 310.º/e) não estará em causa uma única obrigação pecuniária emergente de um contrato de financiamento, ainda que com pagamento diferido no tempo, a que caberia aplicar o prazo ordinário de prescrição, de 20 anos, mas sim, diversamente, uma hipótese distinta resultante do acordo entre credor e devedor e cristalizada num plano de amortização do capital e dos juros correspondentes, que, sendo composto por diversas prestações periódicas, impõe a aplicação de um prazo especial de prescrição de curta duração. O referido plano, reitera-se, obedece a um propósito de agilização do reembolso do crédito, facilitando a respetiva liquidação em prestações autónomas, de montante mais reduzido. Por outro lado, visa estimular a cobrança pontual dos montantes fracionados pelo credor, evitando o diferimento do exercício do direito de crédito para o termo do contrato, tendo por objeto a totalidade do montante da dívida.

Constituirão, assim, indícios reveladores da existência de quotas de amortização de capital pagáveis com juros: em 1.º lugar, a circunstância de nos encontrarmos perante quotas integradas por duas frações - uma de capital e outra de juros, a pagar conjuntamente; em 2.º lugar, o facto de serem acordadas prestações periódicas, isto é, várias obrigações distintas, embora todas emergentes do mesmo vínculo fundamental, de que nascem sucessivamente, e que se vencerão uma após outra.

A vontade das partes deverá, pois, ser atendida, não se podendo desconsiderar a referida intenção comum de agilizar a amortização do capital e o pagamento dos juros correspondentes. Caberá, pois, nessa eventualidade, reconhecer a existência de várias prestações pecuniárias, com prazos de vencimento autónomos, cada qual sujeita a um prazo prescricional privativo, de 5 anos. [...]”

Sendo repetidamente apresentada, para submeter as prestações de reembolso dos contratos de mútuo ao curto prazo de prescrição quinquenal do art. 310.º/e) do C. Civil, a seguinte argumentação (cf. Ac. deste STJ de 23-01-2020, proferido no Processo 4518/17.8T8LOU-A.P1.S1):

- a obrigação unitária, compartimentada num mútuo e respetivos juros, converte-se numa prestação mensal fracionada da quantia global;

- estando em causa uma obrigação de valor predeterminado cujo cumprimento, por acordo das partes, foi fracionado ou parcelado, a dívida será amortizada na medida em que se processe o seu cumprimento;

- o acordo pelo qual se “compartimenta” a obrigação de restituição do capital é um acordo de amortização e cada uma das prestações em que a obrigação de restituição se “compartimenta” é uma quota de amortização;

- em consequência, cada uma das prestações mensais devidas pelo mutuário é uma quota de amortização do capital no sentido do art. 310.º, alínea e), do Código Civil.

E sendo estes os contributos “históricos” e literais, quer-nos parecer que os mesmos apontam, em termos racionais/teleológicos e sistemáticos, para que se deva estender a alínea e) do art. 309.º do C. Civil - e o prazo quinquenal de prescrição - à relação jurídica sub-judice, mais exatamente, às rendas devidas pelo locatário financeiro.

Como já se referiu e o próprio nomen iuris indica, a locação financeira cumpre uma função de financiamento: é essencialmente - embora não só, na medida em que propicia o gozo do bem e a possibilidade de aquisição pelo locatário se este assim o entender - um negócio de crédito e garantia, na medida em que, como forma de tutela do crédito concedido, o locador financeiro mantém no seu património a propriedade do bem locado (propriedade essa que só lhe interessa como instrumento de garantia do seu crédito, o que explica, em termos de regime, o já referido sobre o disposto nos artigos 12.º, 14.º e 15.º do DL 149/95).

“Sendo certo que a locação é o facto ou o hábito que esta modalidade de crédito veste para se apresentar ao mercado, não menos certo é que a figura é, substancialmente, uma modalidade de crédito (latu sensu), pelo que o facto só é utilizado enquanto compatível com esta natureza” 8

Em consequência, as rendas da locação financeira compreendem, numa parte, a amortização do “capital” despendido pelo locador financeiro na obtenção da coisa escolhida pelo locatário financeiro e, noutra parte, a remuneração da cedência de tal “capital” por um determinado período de tempo (para além de outras despesas que o locador financeiro tenha tido que efetuar, assim como eventuais comissões administrativas); correspondendo assim o “capital” ao preço pago pelo locador financeiro na compra do bem e a remuneração aos juros, que são pré-calculados e incluídos nas rendas (consistindo o lucro do locador financeiro na inclusão, nos juros cobrados, de um adicional a uma taxa base); e sucedendo típica e generalizadamente que a soma total das rendas, adicionada à verba pouco significativa reservada para o chamado valor residual9, corresponde e realiza a amortização integral do “capital”.

Temos pois que o termo “rendas” - referido na alínea a) do art. 10.º/1 e no art. 19.º do DL 140/95 - tem um conteúdo, uma função e uma finalidade diversos dos que lhe estão associados nos art. 1038.º/al. a) e 1039.º do C. Civil: a “renda” não representa, na locação financeira, a simples contrapartida da concessão do gozo da coisa, antes representando (o pagamento do valor global das “rendas”) o reembolso da soma mutuada pelo locador, que assume a veste de um financiador, ainda que o negócio assuma caraterísticas especiais.

Sendo assim, à prestação do locador financeiro - de adquirir a coisa e de conceder o seu gozo - corresponde uma dívida do locatário financeiro equivalente ao custo do bem para o locatário, acrescido de juros e outros encargos; e esta dívida única do locatário financeiro existe desde a celebração do contrato, embora o seu reembolso seja fracionado: trata-se, pois, a prestação global do locatário financeiro - a obrigação de pagar as rendas, constante do referido art. 10.º/1/a) do DL 140/95 - de uma obrigação de prestação “fracionada” quanto ao cumprimento, mas unitária em si mesma, na medida em que o objeto da prestação se encontra pré-fixado sem dependência da duração da relação contratual (o que explica que a falta de cumprimento de uma das “frações” implique o vencimento imediato das restantes - cf. artigo 781.º do Código Civil).

Em resumo, enquanto na “mera” locação as rendas são prestações periódicas, correspondentes a períodos sucessivos, ligados e dependentes da duração do contrato, em termos de, desaparecido o bem, desaparecer a obrigação do locatário, na locação financeira há uma obrigação única do devedor, correspondente, “grosso modo”, ao custo do bem, aos juros e outros encargos, com prestações “fracionadas” no tempo.

Em substância, na locação financeira é igual/semelhante ao contrato de mútuo, ou seja, também as rendas da locação financeira são prestações de uma única dívida cujo reembolso foi fracionado por acordo das partes; podendo o argumentário supra referido, a propósito da inclusão do contrato de mútuo na alínea e) do art. 310.º/e) do C. Civil, ser repetido para a locação financeira:

- a obrigação global unitária do locatário financeiro, compreendendo o custo do bem, os juros e outros encargos, converte-se numa prestação mensal que é uma fração da quantia global/unitária;

- estando em causa uma obrigação de valor predeterminado cujo cumprimento, por acordo das partes, foi fracionado ou parcelado, a dívida será amortizada (e extinta) na medida em que se processe o seu cumprimento;

- pelo que o acordo das partes através do qual se “compartimenta” a obrigação de pagamento da quantia global/unitária é um acordo de amortização e cada uma das prestações em que a obrigação de pagamento se “compartimenta” é uma quota de amortização;

- e, sendo assim, cada uma das prestações mensais devidas pelo locatário financeiro é uma quota de amortização do capital/quantia global em dívida, no sentido do art. 310.º/e) do Código Civil.

Não estamos, como é evidente, perante prestações periodicamente renováveis (ligadas ao tempo da duração contratual), mas a estas prestações referem-se as alíneas a), b), c) e g) do art. 310.º do C. Civil, sendo que, no caso, trata-se de considerar aplicável a alínea e) do art. 310.º do C. Civil, em que se equiparou - por explícita opção legislativa, em 1966, num alargamento em relação ao que já antes constava do art. 543.º do C. de Seabra - às prestações periodicamente renováveis, a amortização fracionada do capital em dívida, quando realizada conjuntamente com o pagamento dos juros vencidos, originando uma prestação unitária e global, situação que, de acordo a referida alínea e) do art. 310.º do C. Civil, envolve a aplicabilidade a toda essa prestação do prazo quinquenal de prescrição.

Relevou, do ponto de vista do legislador, repete-se, o facto de o reembolso da dívida ter sido objeto de um plano de amortizações, composto por diversas quotas, que compreendem uma parcela de capital e uma parcela de juros remuneratórios; e a tutela dos interesses do devedor que viu o pagamento facilitado pela suavização do reembolso da quantia global em dívida (pelo fracionamento da dívida global em parcelas), impondo-se/exigindo-se que o credor não seja negligente a promover, no prazo de 5 anos, o exercício dos seus direitos (releva, do ponto de vista do legislador, a necessidade de combater a inércia do credor na cobrança dos créditos e de evitar a acumulação das prestações para o devedor).

Tudo decorre de, no contrato de locação financeira, o plano de amortizações convolar a dívida global/unitária numa série de prestações por um lapso de tempo significativo, correspondendo as rendas, como na amortização dum financiamento/mútuo, a prestações pré-fixadas e fracionadas no tempo, compostas por capital, juros e outros encargos; dando-se o caso - fechando o raciocínio e voltando ao que se começou por referir - que é isto, repete-se, que é dito/invocado (como resulta dos extratos dos 3 acórdãos no início referidos) para afastar a aplicação da alínea b) do art. 310.º do C. Civil às rendas da locação financeira, ou seja, concorda-se com tal “afastamento”, mas são também as “razões” que são invocadas para levar a tal “afastamento” que apontam para a aplicação da alínea e) do art. 310.º do C. Civil às rendas da locação financeira.

Acompanha-se pois o Acórdão da Relação recorrido, quando no mesmo se refere que “ [...] a obrigação de pagamento pelo locatário corresponde substantivamente a uma amortização de capital pagável com juros, uma vez que as rendas que o locatário se obriga a pagar ao locador não são determinadas pelo valor do uso da coisa, nem pelo simples valor da compra, mas são determinadas pelo valor do capital investido pelo locador financeiro na aquisição do bem a locar (no imediato) e a vender no final (caso o locatário exerça esse direito e mediante o pagamento, após as rendas, do valor residual), que será sucessivamente amortizado durante a locação, e por taxas de juro remuneratórias da operação financeira. [...]. Assim, ainda que este contrato de locação financeira tenha um regime jurídico que integre características de vários contratos [...], ao gerar uma obrigação de pagamento de rendas que correspondem substancialmente a verdadeiras quotas de amortização do capital previamente investido pela locadora para financiar o bem locado e a futura e possível compra final pelo locatário (caso o locatário exerça esse direito e mediante o pagamento, após as rendas, do valor residual), pagáveis com juros remuneratórios integrados nas mesmas, preenche o núcleo da previsão normativa da alínea e) do art. 310.º do C. Civil, que assinala como essenciais estas características da obrigação, independentemente dos contratos que as originam e da dissemelhança jurídica que os possa distinguir. [...]”

De facto, ainda que a locação financeira não esteja incluída na letra e não faça parte da “história” da alínea e) do art. 310.º do C. Civil, não pode deixar de admitir-se, em termos racionais/teleológicos e sistemáticos, que a situação da locação financeira deve ser considerada compreendida em tal alínea e); mais exatamente - não sendo sempre fácil, na dinâmica de aplicação do direito, distinguir entre a interpretação e a integração do direito, ou seja, entre a interpretação extensiva e a analogia - inclinamo-nos, no caso, para considerar que é por analogia que as rendas da locação financeira devem ser consideradas como compreendidas em tal alínea e).

Pelo seguinte:

É usual referir-se que a interpretação extensiva se limita a estender a aplicação da norma a casos não previstos pela sua letra, mas compreendidos pelo seu espírito; enquanto a integração/analogia leva a aplicar a norma a situações que nem sequer são abrangidas pelo seu espírito.

Mas também se refere que a lei pode ter um valor diferente do que foi pensado pelos seus autores - mais que a mens legislatoris conta a mens legis - e que, com o andar dos tempos, a lei se vai afastando da sua origem e pode ganhar um mais amplo horizonte de aplicação, estendendo-se a relações diversas das originariamente contempladas.

Aliás, a interpretação extensiva - em que se alarga o texto da lei, fazendo corresponder a letra da lei ao espírito da lei - assume normalmente a forma de extensão teleológica, na medida em que se diz que a lei impõe a sua aplicação a casos que não são diretamente abrangidos pela letra da lei, mas que são abrangidos pela finalidade da mesma: utilizam-se, para fundamentar a interpretação extensiva, argumentos de identidade de razão e de maioria de razão (se a lei estabelece um certo regime para certas situações, tem forçosamente de abranger aquelas outras situações que, com idênticos ou mais fortes motivos, justificam o mesmo regime).

Sucedendo que, em termos próximos, também é dito que “[...] a mais importante das categorias das “lacunas na lei” são as “lacunas teleológicas” [...], a determinar em face do escopo visado pelo legislador, ou seja, em face de uma ratio legis de uma norma ou da teleologia imanente e a um complexo normativo.” 10

Enfim, apreendida a razão de ser da lei (ratio legis), o fim visado pelo legislador ao elaborar a norma, a “valoração” ou ponderação dos interesses que a norma regula, fica o intérprete habilitado a definir o seu exato alcance e a estender a sua estatuição, ou por interpretação extensiva ou por analogia, a outras situações.

Num caso, diz-se que apenas se estende o texto da lei ao espírito da lei e que por isso não se trata de analogia; no outro, diz-se que se procede à “aplicação dum princípio jurídico que a lei põe para certo facto a outro facto não regulado, mas semelhante, sob o aspeto jurídico, ao primeiro.” 11

“A analogia aplica-se quando um caso não é contemplado por uma disposição da lei, enquanto a interpretação extensiva pressupõe que o caso já está compreendido na regulamentação jurídica, entrando no sentido de uma disposição, se bem que fuja à sua letra.

A interpretação extensiva não faz mais do que reconstruir a vontade legislativa já existente, para uma relação que só por inexata formulação dessa vontade parece excluída. [...]

A interpretação extensiva revela o sentido daquilo que o legislador realmente queria e pensava; a analogia tem a ver com casos em que o legislador não pensou e vai descobrir uma norma nova inspirando-se na regulamentação de casos análogos: a primeira completa a letra a outra o pensamento da lei [...]”12

Ora, ao considerar-se que as rendas da locação financeira devem ser incluídas na estatuição da alínea e) do art. 310.º do C. Civil, é mais a isto - completar o pensamento da lei - que é feito.

Referiu-se acima que não é por o diploma da Locação Financeira não ter qualquer preceito sobre o prazo de prescrição das rendas do locatário financeiro que estamos, automaticamente, perante uma lacuna, porém, convocado o direito subsidiário aplicável, constatamos a ausência de uma previsão que explicitamente contemple a estrutura jurídica da locação financeira e, ao mesmo tempo, constatamos que é extraível dum caso paralelo/semelhante regulado (a alínea e) do art. 309.º do C. Civil) um princípio e uma disciplina jurídica aplicável às rendas da locação financeira: e isto é a analogia, que serve tanto para determinar a existência de uma lacuna como para o preenchimento da mesma.

“Analogia é harmónica igualdade, proporção e paralelismo entre relações semelhantes [...] é uma aplicação correspondente dum princípio ou dum complexo de princípios a casos juridicamente semelhantes” 13.

A alínea e) do art. 310.º do C. Civil, como acima se expôs, estabelece, como disciplina/princípio, um prazo quinquenal de prescrição para obrigações pecuniárias em que o credor e o devedor acordam num plano de amortização, da obrigação global e dos juros correspondentes, em diversas prestações/obrigações distintas, que se vencem, ao longo do tempo acordado, uma após outra.

É certo que o texto da alínea e) do art. 310.º do C. Civil e o respetivo pensamento legislativo se ficam pelo mútuo e pelo contrato de financiamento, porém, a racionalidade/teleologia da norma postula que situações semelhantes - em que também haja, como acontece na locação financeira, um plano/quotas de amortização que integram capital e juros - devem ter igual regulamentação.

Nos termos do art. 10.º/1 do C. Civil o julgador deverá aplicar (por analogia) aos casos omissos as normas que diretamente contemplam casos análogos (e só na hipótese de não encontrar no sistema uma norma aplicável a casos análogos é que deverá proceder de acordo com o n.º 3 do mesmo artigo); e dois casos dizem-se análogos quando neles se verifique um conflito de interesses paralelo ou semelhante, de modo a que o critério valorativo adotado pelo legislador para compor esse conflito de interesses num dos casos seja por igual ou maioria de razão aplicável ao outro (art. 10.º/2).

Ora, também aqui, para a locação financeira, vale a justificação do prazo quinquenal de prescrição estabelecido pela alínea e) do art. 309.º do C. Civil, ou seja, está do mesmo modo em causa proteger o devedor contra a acumulação da sua dívida, paga em prestações (e assim suavizada), a qual, se pudesse ser-lhe exigida “ao cabo de um número demasiado de anos” o poderia arruinar; assim como combater a inércia do credor na cobrança dos créditos.

Enfim, também por uma razão de coerência normativa e valorativa da ordem jurídica ou de justiça relativa (princípio da igualdade: casos semelhantes ou conflitos de interesses semelhantes devem ter um tratamento semelhante), se justifica que, por aplicação analógica da alínea e) do art. 310.º do C. Civil, se submetam as rendas da locação financeira ao prazo prescricional de 5 anos: o princípio jurídico expresso na alínea e) do art. 310.º do C. Civil é extensível às prestações/rendas fracionadas (que incluem “capital” e juros) do contrato de locação financeira.

Aqui chegados, aplicando o que vimos de dizer ao caso dos autos/recurso:

A obrigação exequenda, garantida por hipoteca, decorre do incumprimento do contrato de locação financeira celebrado entre a exequente/recorrida/locadora financeira e a devedora originária/locatária financeira, incumprimento a que seguiu a resolução, declarada em 07/11/2005, do contrato de locação financeira e o preenchimento da livrança/caução, pelo valor de € 58.094,49 e com a data de vencimento o dia 10/11/2005.

Temos pois que, prescrevendo o crédito em dívida (integrado por rendas) no prazo de 5 anos, estava o mesmo prescrito, quando, em 15/12/2018, foi instaurada a presente execução.

Efetivamente, a partir da data em que a resolução se tornou eficaz (art. 224.º do C. Civil) - ou seja, 10/11/2005 - começou a correr o prazo da prescrição (cf. art. 306.º/1 do C. Civil) e “completada a prescrição, tem o beneficiário a faculdade de recusar o cumprimento da prestação” (cf. art. 304.º/1 do C. Civil), que foi exatamente o que a executada, ao invocar a prescrição nos presentes embargos14, fez.

Podendo ainda acrescentar-se que - como se uniformizou no AUJ 6/2022, de 30/06/2022, já referido - ocorrendo o vencimento antecipado das prestações (nos termos do art. 781.º do C. Civil), o prazo de prescrição de 5 anos se mantém, incidindo o seu termo a quo na data desse vencimento antecipado (em relação a todas as prestações assim vencidas); o mesmo sucedendo, mutatis mutandis, no caso do crédito resultar, como é o caso dos autos, da resolução do contrato (cf. Ac. STJ de 23.01.2020, de 11/03/2020 e de 07/06/2021, acima referidos), ou seja, quer o uso da faculdade prevista no art. 781.º do C. Civil, quer a resolução contratual, não alteram a natureza das obrigações (prestações fracionadas) inicialmente assumidas e o respetivo prazo prescricional de 5 anos, apenas alterando o momento da sua exigibilidade (cujo termo a quo passa a ser definido, como já se referiu, pelo art. 306.º/1 do C. Civil) 15.

É quanto basta para negar a presente revista.

IV - Decisão

Face ao exposto, acordam os Juízes que constituem o Pleno das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça em:

a) Confirmar o Acórdão recorrido;

b) Estabelecer a seguinte uniformização:

“Prescrevem no prazo de 5 anos, por aplicação analógica do art. 310.º/e) do C. Civil, as rendas do locatário no contrato de locação financeira.”

Custas, nas Instâncias e na presente Revista, pelo Banco exequente.

Notifique e oportunamente remeta certidão do acórdão para publicação na 1.ª série do Diário da República.

1 Cfr. Ac. STJ de 11.12.2003, proferido no processo 1572/03; Ac. STJ de 17.03.2005, proferido no processo 4059/04; Ac. STJ de 12.01.2010, proferido no processo 2843/06.2TVLSB.S1; Ac. STJ de 23.02.2010, proferido no processo 589/06.OTVPRT.P1; e Ac. STJ de 13.10.2022, proferido no processo 2518/19.2T80ER-A.L1.S1, todos disponíveis in ITIJ.

2 Locação Financeira e Locação, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 62 (2002), págs. 759-775.

3 Leite Campos, A locação financeira, p. 141.

4 Gravato de Morais, Manual da Locação Financeira, pág. 328 e ss

5 Em cujo art. 543.º se dispunha que prescreviam no prazo especial de 5 anos:

"1.º [...] pensões enphyteuticas, sub-enphyteuticas [...], rendas, alugueres, juros e quaisquer prestações vencidas que se costumam pagar em certos e determinados tempos;

2.º As pensões alimentícias vencidas;

3.º A obrigação de reparar prejuízos resultantes de delictos correcionais.".

6 Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 1983, pág. 452.

7 In “Algumas Questões sobre a Prescrição e Caducidade”, em Estudos de Homenagem ao Prof. Sérvulo Correia, pág. 47 e ss.

8 Januário Gomes, Contratos Comerciais, pág. 352.

9 No caso, como se vê do ponto 14.1 dos factos, o valor residual equivale ao valor de uma renda mensal.

10 Batista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, pág. 196.

11 Manuel de Andrade, Ensaio Sobre a Teoria da Interpretação das Leis, pág. 158.

12 Manuel de Andrade, Ensaio Sobre a Teoria da Interpretação das Leis, pág. 162/4.

13 Manuel de Andrade, Ensaio Sobre a Teoria da Interpretação das Leis, pág. 158/9.

14 O que - extinção da obrigação (ou, como alguns entendem, modificação da obrigação civil em obrigação natural) - se repercute, nos termos do art. 730.º/a) do C. Civil, na hipoteca.

15 Alteração que, naturalmente, também não ocorre por causa do que se refere na conclusão 4.ª (ou seja, por a executada ter adquirido o bem dado em hipoteca na insolvência da locatária financeira).

Lisboa, 12 de setembro de 2024. - António Barateiro Martins - Fernando Baptista de Oliveira - Luís Filipe Castelo Branco do Espírito Santo - Jorge Manuel Arcanjo - Nuno Ataíde das Neves - Ana Paula Lobo, com declaração de voto - Manuel José Aguiar Pereira - Isabel Manso Salgado - Jorge Leal - Emidio Francisco Santos - Nelson Borges Carneiro - Luís Fernando dos Santos Correia de Mendonça - Maria do Rosário Gonçalves - Paula Leal de Carvalho - Henrique Antunes - Maria de Deus Simão da Cruz Silva Damasceno Correia - Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza (com declaração) - Maria Clara Sottomayor - Maria da Graça Trigo - Fátima Gomes - António Oliveira Abreu - Maria João Vaz Tomé (com declaração de voto, aderindo às declarações dos Senhores Conselheiros Maria dos Prazeres Beleza e Nuno Pinto de Oliveira) - Nuno Manuel Pinto Oliveira (com declaração de voto) - António de Moura Magalhães - José Maria Ferreira Lopes - Graça Amaral (vencida parcialmente quanto à fundamentação nos termos da declaração da Conselheira Maria Olinda Garcia) - Maria Olinda Garcia (votei parcialmente vencida nos termos da declaração anexa) - Ricardo Alberto Santos Costa (Votei vencido, parcialmente, nos termos da Declaração que junto).

Declaração de voto - revista ampliada - proc. n.º 2218/18.0t8CHV-A.G1.S1

Votei favoravelmente o acórdão na versão que logrou vencimento. Todavia, entendo que, estando em causa o drástico encurtamento de um prazo da prescrição, pelo menos na forma como vinha sendo interpretado de forma particularmente consistente pelo Supremo Tribunal de Justiça, a decisão deveria sofrer uma delimitação temporal quanto aos seus efeitos.

Lisboa, 12 de Setembro de 2024. - Ana Paula Lobo.

Processo 2218/18.0T8CHV-A.G1.S1

Declaração

Votei favoravelmente o acórdão. Todavia, teria procedido como o Supremo Tribunal de Justiça fez no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência de 31 de Março de 2009, www.dgsi.pt, proc. n.º 07B4716, e excluído a aplicação ao caso concreto da doutrina que fez vencimento, tendo em conta a confiança que justificadamente merece uma orientação unânime e continuada da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça em sentido inverso. - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza.

PROCESSO 2218/18.0T8CHV-A.G1.S1

DECLARAÇÃO DE VOTO

Embora tenha votado o projecto, revendo posição anterior, entendi que deveria ter-se ponderado a possibilidade de excluir a aplicação da doutrina do presente acórdão ao caso sub judice e, em termos mais gerais, a todos os casos em que a quebra ou a ruptura com a jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça afectasse gravemente a confiança dos destinatários das normas legais.

A presente revista ampliada foi admitida por se verificar a possibilidade de ruptura com a anterior jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (cf. artigo 686.º do Código de Processo Civil). Entre 2003 e 2022, o Supremo Tribunal de Justiça pronunciou-se sempre, sem excepção, no sentido da aplicação às rendas devidas no contrato de locação financeira do prazo ordinário de prescrição de 20 anos. Ora, a possibilidade de uma ruptura com uma jurisprudência constante através de um acórdão proferido pelo Pleno das Secções Cíveis deve ter como correlato necessário a possibilidade de uma compressão dos seus efeitos - incluindo do seu efeito uniformizador 1.

O princípio da confiança enquanto decorrência do princípio do Estado de direito consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa exige uma certa constância da actuação do Estado, incluindo da actuação dos tribunais, a fim de se alcançar alguma estabilidade da ordem jurídica 2. O ponto é particularmente relevante na sucessão de prazos, designadamente de prescrição - se o artigo 297.º do Código Civil tem a especial preocupação de proteger a confiança em caso de sucessão de prazos fixados por quaisquer autoridades, incluindo pelos tribunais, deverá o Pleno das Secções Cíveis aplicar retroactivamente um prazo quatro vezes mais curto que aquele que correspondia à jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça?

Os factores desenvolvidos na jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a retroactividade das leis 3 poderiam e, na minha opinião, deveriam ter sido ponderados para limitar temporalmente os efeitos da decisão - a alínea e) do art. 310.º do Código Civil não deveria aplicar-se sem que decorresse um período razoável para que os particulares adaptassem o seu comportamento a uma nova jurisprudência, em ruptura com a anterior.

Lisboa, 12 de Setembro de 2024. - Nuno Manuel Pinto Oliveira.

1 Vide, por exemplo, Karl Larenz, Metodologia da ciência do direito (título original: Methodenlehre der Rechtswissenschaft), 3.ª ed., Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1995, pág. 671 - dando conta de que o Supremo Tribunal Federal alemão declarou possível aplicar, por analogia, a uma mudança de jurisprudência, os princípios que hão-de ter-se em conta no caso de leis retroactivas, “uma vez que tal analogia é obrigatória, dado o estado de coisas”.

2 Expressão do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 202/2014, de 3 de Março de 2014.

3 Vide, por todos, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 287/90, de 30 de Outubro.

(Revista ampliada)

Declaração de voto (vencimento parcial quanto à fundamentação):

Subscrevo o presente acórdão para uniformização de jurisprudência quanto ao entendimento de que o prazo de prescrição das rendas no contrato de locação financeira é de cinco anos. Porém, não comungo da perspetiva segundo a qual o fundamento desta solução se encontra na alínea e) do artigo 310.º do Código Civil. A meu ver, esse fundamento radica na alínea b) do referido artigo. Consequentemente, também não subscrevo a referência à alínea e) do artigo 310.º do Código Civil que consta do segmento uniformizador.

Independentemente da qualificação jurídica que se atribua ao contrato de locação financeira e dos aspetos de regime que o afastam do comum contrato de locação, no que respeita concretamente ao pagamento das rendas ou alugueres devidos pela cedência do gozo do bem (móvel ou imóvel) locado, este contrato apresenta mais afinidades normativas com a locação do que com um contrato que gera “quotas de amortização do capital pagáveis com os juros” [como previsto na alínea e) do artigo 310.º do CC], com acontece, por exemplo, no contrato de mútuo.

A aquisição do bem locado, pelo locatário financeiro, no final do tempo de duração do contrato, não é um efeito automático do decurso desse tempo, pois o locatário pode optar por não adquirir o bem (como, na prática, frequentemente acontece), decorrendo, desde logo, dos artigos 1.º e 7.º do RJCLF que o locatário tem essa faculdade.

Assim, a prestação pecuniária periodicamente paga pelo locatário financeiro não corresponde necessariamente a uma “amortização do capital pagável com os juros”. Esta função de amortização de capital é uma qualificação que só surgirá (em regra, no final do tempo de duração do contrato) quando for exercida a opção de compra. Se essa opção não for exercida, as prestações periodicamente pagas terão sido apenas a contrapartida do gozo temporário do bem locado, ou seja, apenas rendas (independentemente do modo como é composto o seu montante).

Nas hipóteses em que o contrato de locação financeira vem a ser antecipadamente extinto, nomeadamente por falta de pagamento das rendas pelo locatário financeiro, o contrato não chega a cumprir cabalmente a sua função última de financiamento do locatário para a aquisição de um bem.

Nestas hipóteses, o contrato acaba por cumprir, essencialmente, uma função de cedência temporário do gozo de um bem (função esta que não é descaraterizada pelo facto de, a montante, esse bem ter sido escolhido pelo locatário). E a contrapartida correspondente à cedência temporária do gozo de um bem designa-se como renda ou aluguer.

Assim, estando em causa, como está no caso concreto, uma hipótese de incumprimento do contrato, a designação tecnicamente mais correta para as prestações devidas é a de renda ou aluguer, e não de amortização de capital. Logo, a respetiva hipótese de prescrição deve ser a correspondente à alínea b) do artigo 310.º, por ser aquela a que respeita a falta de pagamento de renda ou aluguer.

Acresce que esta alínea não se reporta apenas à renda ou aluguer devidos no âmbito do contrato de locação (arrendamento ou aluguer). Reporta-se à renda ou aluguer em si mesmos, independentemente da qualificação do contrato (misto ou atípico) onde possam ser geradas. - Maria Olinda Garcia.

Recurso de Revista em Julgamento Ampliado (arts. 686.º-687.º CPC)

Processo 2218/18.0T8CHV-A.G1.S1

DECLARAÇÃO DE VOTO

Votei vencido, parcialmente: (i) quanto à fundamentação, na parcela relevante do cap. III; (ii) quanto à alínea b) do dispositivo decisório, na parcela correspondente do segmento de uniformização jurisprudencial que se sustenta na aplicação analógica da alínea e) do art. 310.º do CCiv.; subscrevendo a declaração de voto da Senhora Conselheira Maria Olinda Garcia: aplicação do prazo de prescrição de 5 anos fundado na alínea b) do art. 310.º do CCiv.

STJ/Lisboa, 12/9/2024. - Ricardo Costa.

118214595

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/5930134.dre.pdf .

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