Acórdão n.° 748/93 - Processo n.° 109/93
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A questão
1 - O Procurador-Geral da República, ao abrigo do disposto no artigo 281.°, números 1, alínea a), e n.° 2, alínea e), da Constituição, veio requerer que o Tribunal Constitucional aprecie e declare, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade das normas constantes das primeiras partes da alínea c) do artigo 3.° do Decreto-Lei n.° 319-A/76, de 3 de Maio (Lei Eleitoral do Presidente da República), da alínea c) do n.° 1 do artigo 2.° da Lei n.° 14/79, de 16 de Maio (Lei Eleitoral para a Assembleia da República), da alínea c) do artigo 2.° do Decreto-Lei n.° 267/80, de 8 de Agosto (Lei Eleitoral da Assembleia Legislativa Regional dos Açores), da alínea c) do artigo 3.° do Decreto-Lei n.° 701-B/76, de 29 de Setembro (Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais), e ainda da norma constante do n.° 1 do artigo 29.° da Lei n.° 69/78, de 3 de Novembro (Lei do Recenseamento Eleitoral), nos termos e com os fundamentos seguintes:1.° Entre os direitos constitucionais de participação política insere-se o direito de sufrágio, que consiste no direito de participar em eleições, no direito de votar, e que, por força do princípio da universalidade do sufrágio, assiste a todos os cidadãos;
2.° O direito de sufrágio, directo e universal, envolve o direito ao recenseamento eleitoral, previsto, aliás, no artigo 116.°, n.° 2, da Constituição;
3.° O artigo 30.°, n.° 4, da Constituição estabelece que «nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos», sendo certo que, no caso das normas das leis eleitorais atrás referenciadas, na parte em que ligam automaticamente a incapacidade eleitoral activa à condenação definitiva a pena de prisão por crime doloso (ou por crime doloso infamante), enquanto durar a expiação da respectiva pena, aquele efeito aparece associado tanto à natureza dos crimes praticados (crimes dolosos ou crimes dolosos infamantes) como à natureza da pena aplicada (pena de prisão);
4.° No entanto, atenta a vastidão dos crimes em causa, deverá considerar-se como relevante na determinação da incapacidade a natureza da pena aplicada - pena de prisão -, e tanto assim que a incapacidade eleitoral activa subsiste enquanto durar a execução da pena;
5.° Deste modo, mesmo quando se considere que aquele preceito constitucional apenas veda a ligação automática da perda de direitos civis, profissionais ou políticos à condenação em certas penas, sempre se há-de concluir que tal comando constitucional é violado pelas normas das leis eleitorais sobre incapacidade que anteriormente foram identificadas;
6.° Por outro lado, a norma do artigo 29.°, n.° 1, da Lei n.° 69/78, apresentando-se como condição de exequibilidade daqueles preceitos, com os quais mantém uma manifesta relação instrumental, não pode deixar de se haver como violadora da mesma disposição constitucional.
2 - Nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 54.° e 55.°, n.° 3, da Lei do Tribunal Constitucional, foram notificados o Presidente da Assembleia da República e o Primeiro-Ministro para, na qualidade de representantes dos órgãos autores das normas - o primeiro, relativamente às Leis números 14/79 e 69/78, e o segundo, relativamente aos outros diplomas -, responderam no sentido que por conveniente houvessem.
O Presidente da Assembleia da República veio oferecer o merecimento dos autos e juntar os números do Diário da Assembleia da República relativos à discussão e aprovação daquelas leis, enquanto o Primeiro-Ministro não produziu qualquer resposta.
Cabe agora apreciar e decidir.
II - A fundamentação
1 - A Constituição inscreve na parte I «Direitos e deveres fundamentais», título II «Direitos, liberdades e garantias», capítulo II «Direitos, liberdades e garantias de participação política», os direitos políticos ou de participação política, ou seja, os direitos dos indivíduos enquanto cidadãos, enquanto membros da sociedade politicamente organizada, entre os quais se elencam, além de outros, os direitos de participação na vida pública (artigo 48.°), o direito de sufrágio (artigo 49.°) e o direito de acesso a cargos públicos (artigo 50.°).O direito de sufrágio activo consiste no direito de participação em eleições, no direito de votar que, por força do princípio da universalidade do sufrágio, assiste a todos os cidadãos, estando excluído todo e qualquer sufrágio restrito em função de certos requisitos específicos (sexo, habilitações literárias, propriedade ou rendimentos, etc.). A universalidade do sufrágio não é mais do que a concretização dos princípios da generalidade e da igualdade que regem todos os direitos fundamentais (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., p. 269).
E, como logo decorre do disposto no artigo 116.°, n.° 2, da Constituição, o direito de sufrágio, directo e universal, envolve o direito ao recenseamento eleitoral, que é oficioso, obrigatório, permanente e único para todas as eleições por sufrágio directo e universal.
Ora, sendo irrecusável que o direito de sufrágio, quer na sua vertente activa (o direito de votar, de participar em eleições) quer na sua vertente passiva (o direito de ser eleito para qualquer cargo público), constitui um direito político, cabe averiguar se as normas das leis eleitorais questionadas, de cuja aplicação deriva automaticamente incapacidade eleitoral activa, entram em colisão com o artigo 30.°, n.° 4, da Constituição, que, dispondo sobre os limites das penas e das medidas de segurança, prescreve que «nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos».
Antes, porém, importa reter a formulação que foi dada a tais preceitos.
Vejamos, então.
Decreto-Lei n.° 319-A/76, de 3 de Maio (Lei Eleitoral do Presidente da República):
Artigo 3.°
Incapacidades eleitorais
Não são cidadãos eleitores:c) Os definitivamente condenados a pena de prisão por crime doloso infamante, enquanto não hajam expiado a respectiva pena, e os que se encontrem judicialmente privados dos seus direitos políticos;
Lei n.° 14/79, de 16 de Maio (Lei Eleitoral para a Assembleia da República):
Artigo 2.°
Incapacidades eleitorais activas
1 - Não gozam de capacidade eleitoral activa:c) Os definitivamente condenados a pena de prisão por crime doloso, enquanto não hajam expiado a respectiva pena, e os que se encontrem judicialmente privados dos seus direitos políticos;
Decreto-Lei n.° 267/80, de 8 de Agosto (Lei Eleitoral da Assembleia Legislativa Regional dos Açores):
Artigo 2.°
Incapacidades eleitorais activas
Não gozam de capacidade eleitoral activa:c) Os definitivamente condenados a pena de prisão por crime doloso, enquanto não hajam expiado a respectiva pena, e os que se encontrem judicialmente privados dos seus direitos políticos;
Decreto-Lei n.° 701-B/76, de 29 de Setembro (Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais):
Artigo 3.°
Incapacidade eleitoral
Não são eleitores:c) Os definitivamente condenados a pena de prisão por crime doloso infamante, enquanto não hajam expiado a respectiva pena, e os que se encontrem judicialmente privados dos seus direitos políticos;
Por seu turno, o dever de comunicação das condenações imposto aos juízos de direito, em ordem à eliminação de inscrições dos cadernos eleitorais, acha-se contemplado na norma, também impugnada, do artigo 29.°, n.° 1, da Lei n.° 69/78, de 3 de Novembro (Lei do Recenseamento Eleitoral):
Artigo 29.°
Informações relativas a interditos e condenados
1 - Para efeitos do disposto na alínea b) do n.° 1 do artigo 31.° [alínea e), na redacção dada a este preceito pela Lei n.° 81/88, de 20 de Julho], os juízos de direito e as auditorias dos tribunais militares no continente, nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira e em Macau enviam mensalmente, por intermédio das respectivas secretarias, à comissão recenseadora da freguesia da naturalidade, relação contendo os elementos de identificação referidos no artigo anterior dos cidadãos que, tendo completado 18 anos de idade, hajam sido objecto de sentença com trânsito em julgado que implique privação da capacidade eleitoral nos termos da respectiva lei.
2 - A norma do artigo 30.°, n.° 4, da Constituição foi introduzida pela Lei Constitucional n.° 1/82, de 30 de Setembro, e reza do modo seguinte:
Artigo 30.°
Limite das penas e das medidas de segurança
...........................................................................................................................
4 - Nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos.
O inspirador directo deste preceito foi Jorge Miranda, que havia proposto a consagração constitucional do princípio que nele se contém, no artigo 49.°, n.° 2, de um projecto de Constituição que apresentou em 1975, e no qual se dispunha que «nenhuma pena implica automaticamente a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos» (cf. Um Projecto de Constituição, Braga, 1975, p. 33).
E, posteriormente, aquele autor veio a integrar tal norma no projecto de revisão constitucional que fez publicar em 1980, do qual constituiu o artigo 31.°, n.° 4, justificando assim a solução aí proposta: «O novo n.° 4 tem por fonte o artigo 76.° do anteprojecto de parte geral do Código Penal, da autoria de Eduardo Correia (in Boletim do Ministério da Justiça, n.° 127, Julho de 1963). Já constava do meu projecto de Constituição de 1975 (artigo 49.°, n.° 2)» (cf. Um projecto de revisão constitucional, Coimbra, 1980, p. 35).
Sem qualquer alteração de redacção, foi esta proposta recebida no artigo 24.°, n.° 2, do projecto de lei de revisão constitucional n.° 1/II, apresentado pela Acção Social-Democrata Independente (ASDI), e no artigo 18.°, n.° 2, do projecto de lei de levisão constitucional n.° 4/II, apresentado pela Frente Republicana e Socialista (FRS), publicados no Diário da Assembleia da República, 2.ª série, respectivamente n.° 55, de 24 de Abril de 1981, p. 2291, e n.° 70, de 23 de Maio de 1981, p. 2992.
Muito embora no projecto de lei de revisão constitucional n.° 3/II, apresentado pelo Partido Comunista Português (PCP), fosse proposto o aditamento ao artigo 30.° da Constituição de um n.° 5, assim concebido: «As penas não poderão envolver como efeito necessário a perda de quaisquer direitos para além dos que delas expressamente decorram» (cf. Diário, citado, 2.ª série, n.° 69, de 22 de Maio de 1981, p. 2681), aquando do debate na Comissão Eventual para a Revisão Constitucional (CERC), o Deputado Vital Moreira, do PCP, anunciou a adesão por parte deste partido à proposta da FRS, havendo a tal respeito afirmado, nomeadamente:
É apenas para dizer que da discussão na subcomissão resultou que o objectivo proposto pela FRS e pela nossa proposta era, no fundo, o mesmo.
Tratava-se de inconstitucionalizar explicitamente, segundo o Código Penal actual, certo tipo de penas, independentemente da sua natureza, apenas decorrente da gravidade da pena de prisão que lhe compete, que implicaria, de imediato, como efeito secundário - sei lá!? -, a impossibilidade de exercer funções públicas, a perda de direitos políticos, etc.
Portanto, o gravame sobre qualquer pessoa por efeito de um crime será apenas aquele que decorre do tipo profundo desse crime, e não haver, automática e genericamente, efeitos secundários.
Nessa medida e na medida em que a redacção proposta pela FRS nos parece mais explícita quanto a este objectivo do que a nossa, nós, na discussão, acabámos por admitir a possibilidade de aderir à redacção proposta pela FRS em substituição da nossa.
Nesse mesmo debate, o Deputado Costa Andrade, do PSD, solicitou um esclarecimento sobre o sentido e alcance da proposta, nos termos seguintes:
Penso que se pode interpretar correctamente o sentido dos proponentes se se entender que o legislador ordinário pode, a propósito de cada crime, dizer que «este» crime tem, além da pena, «estes» efeitos secundários. Portanto, o que aqui se recusa é apenas o carácter automático, não é verdade? Por parte dos restantes membros da Comissão foi confirmado ser esse, efectivamente, o entendimento correcto daquele texto [cf., sobre o debate na CERC, Diário, citado, 2.ª série, n.° 6, 2.° suplemento, de 28 de Outubro de 1981, pp. 70-(53) e 70-(54)].
O Plenário da Assembleia da República veio a aprovar aquela proposta por unanimidade e sem discussão prévia. Em tal oportunidade, o Deputado Nunes de Almeida, do PS, proferiu a seguinte declaração de voto:
Uma brevíssima declaração de voto para salientar a importância que teve para nós a aprovação deste n.° 4 que constava do nosso projecto e que vem obviar algumas disposições, ainda hoje vigentes na nossa lei penal, de extraordinária violência, como eram as que envolviam, como efeitos necessários de certas penas, a perda de alguns direitos. Designadamente, e como exemplo, lembro o caso de certas infracções criminais cometidas por funcionários públicos, muitas delas com grandes atenuantes que envolviam necessariamente e como efeito acessório a demissão.
Estes casos são, assim, banidos da nossa ordem e eu gostaria de chamar a atenção para este facto na medida em que se trata de um aperfeiçoamento efectivo da nossa legislação em matéria penal. [Cf. Diário, citado, 1.ª série, n.° 101, de 11 de Junho de 1982, pp. 4176 e 4177.] 3 - Mas, pese embora a contribuição resultante dos projectos de Jorge Miranda, deve dizer-se, como este, aliás, expressamente reconhece, que a fonte daquele preceito há-de encontrar-se no artigo 76.° do anteprojecto da parte geral do Código Penal da autoria de Eduardo Correia.
Esta disposição prescrevia que «nenhuma pena implica automaticamente a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos», passando depois para o Código Penal (artigo 65.°) aprovado pelo Decreto-Lei n.° 400/82, de 23 de Setembro, isto é, em data anterior àquela em que veio a ser publicada a Lei n.° 1/82, de 30 de Setembro, se bem que só haja começado a vigorar em 1 de Janeiro de 1983.
O autor do projecto sustentou que ela constitua um corolário da chamada «teoria unitária da pena», a qual rejeita que se liguem automaticamente certos efeitos a certas espécies de penas, como acontecia então em relação às penas maiores (cf. Actas da Comissão Revisora do Código Penal - Parte Geral, vol. II, separata do Boletim do Ministério da Justiça, 1986, pp. 96 e segs.).
Como se extrai destas actas, se bem que Ferrer Correia e Guardado Lopes hajam acompanhado o projecto relativamente ao sentido nele atribuído àquela disposição, já José Osório e Maia Gonçalves dele dissentiram, inquirindo este último se tal norma proibiria também a associação automática de certos efeitos a determinados crimes (e já não a penas).
Eduardo Correia esclareceu o alcance do projecto nos termos seguintes:
[...] é claro que certos crimes podem implicar, automaticamente, certos efeitos; isso, porém, nada tem que ver com o problema que agora se discute e que se traduz em ligar ou não ligar de forma automática [...] certos efeitos a determinadas penas. Tudo está, pois, nisto: pode-se ligar certos efeitos a certos crimes - embora mesmo aqui nunca seja demasiada a cautela e parcimónia de que na parte especial se fizer uso.
O artigo 76.° do projecto acabou por ser aprovado por maioria de votos dos membros que integravam a respectiva comissão.
4 - Ora, a norma do artigo 30.°, n.° 4, da Constituição (como, aliás, a norma do artigo 65.° do Código Penal na qual se fundou) tem vindo a ser objecto de duas interpretações divergentes: a) uma sustenta que ela apenas proíbe que a condenação em certa pena (principal) implique a perda de quaisquer direitos profissionais, civis ou políticos, mas admite que esta perda se siga necessariamente à condenação pela prática de certo crime; b) outra atribui um âmbito mais amplo à proibição constitucional, entendendo que ela obsta sempre à existência de penas acessórias automáticas - quer sejam concebidas como consequência da condenação em determinada pena (principal), quer sejam concebidas como consequência da condenação pela prática de determinado crime.
A primeira interpretação foi defendida por Mário Torres, «Suspensão e demissão de funcionários ou agentes como efeito de pronúncia ou condenações penais», Revista do Ministério Público, n.° 25, Janeiro-Março de 1986, pp. 119 e segs., e também pelo Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, parecer n.° 14/90, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 7 de Maio de 1991, e a segunda vem sendo perfilhada pela jurisprudência uniforme do Tribunal Constitucional e também por Figueiredo Dias, Direito Penal 2, parte geral, «As consequências jurídicas do crime», Coimbra, 1966, pp. 180 a 184.
Com efeito, este Tribunal tem-se pronunciado, reiteradamente, no sentido da inconstitucionalidade, por violação do disposto no artigo 30.°, n.° 4, de normas que impõem a perda de direitos como efeito necessário da condenação pela prática de certos crimes.
Assim aconteceu, nomeadamente, nos seguintes casos:
a) Nos Acórdãos números 16/84, 127/84, 310/85, 75/86 e 94/86, publicados, respectivamente, no Diário da República, 2.ª série, de 12 de Maio de 1984, 12 de Março de 1985, 11 de Abril, 12 de Junho e 18 de Junho de 1986, que julgaram inconstitucional a norma do artigo 37.°, n.° 1, do Código de Justiça Militar, que determinava que «a condenação de oficial ou sargento dos quadros permanentes ou de praças em situação equivalente por crime de ultraje à Bandeira Nacional, deserção, falsidade, infidelidade no serviço, furto, roubo, prevaricação, corrupção, burla e abuso de confiança produz a demissão, qualquer que seja a pena imposta»;
b) No Acórdão n.° 165/86, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 3 de Junho de 1986, que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, dessa mesma norma do n.° 1 do artigo 37.° do Código de Justiça Militar;
c) No Acórdão n.° 255/87, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 10 de Agosto de 1987, que julgou inconstitucional a norma do artigo 37.°, n.° 2, do Código de Justiça Militar, que estatua que «a condenação pelos mesmos crimes [os referidos no n.° 1] de oficial ou sargento dos quadros de complemento, bem como das praças graduadas em situação militar equivalente, produz a baixa de posto»;
d) No Acórdão n.° 282/86, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 11 de Novembro de 1986, que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do § único do artigo 160.° do Código da Contribuição Industrial, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 45 103, de 1 de Julho de 1963, que estipulava que ao técnico de contas julgado por determinadas transgressões fiscais seria cancelada a inscrição se a decisão viesse a ser condenatória, e da norma do § único do artigo 130.° do Código do Imposto de Transacções, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 47 066, de 1 de Julho de 1966, que dispunha similarmente;
e) No Acórdão n.° 284/89, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 12 de Junho de 1989, que julgou inconstitucional a norma constante do n.° 1 do artigo 18.° da Lei n.° 9/77/M, de 27 de Agosto, que proíbe a entrada nos casinos de Macau a indivíduos condenados pela prática dos crimes previstos nos artigos 14.° e 15.° da mesma lei;
f) No Acórdão n.° 224/90, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 8 de Agosto de 1990, que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas contidas nas alíneas a), b), c), d) e e) do n.° 2 do artigo 46.° do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 39 672, de 20 de Maio de 1954, que proibiam indivíduos condenados pela prática de determinados crimes de conduzirem veículos automóveis.
Em todas estas decisões se entendeu que o artigo 30.°, n.° 4, da Constituição impede que de uma condenação penal derive, automaticamente, a perda de direitos civis, profissionais ou políticos, mesmo nos casos em que a condenação tenha por referência a prática de determinados crimes.
Entendimento idêntico tem sido sustentado por Figueiredo Dias, segundo o qual «os efeitos automaticamente ligados por lei a certos crimes supõem naturalmente a condenação - são inevitavelmente "efeitos de condenação' - e a consequente aplicação de uma pena; tornam-se assim em efeitos de pena e serão então abrangidos pelo teor literal do artigo 65.°, caso em que as duas regulamentações [artigos 65.° e 69.°, n.° 2, do Código Penal] se apresentarão insanavelmente contraditórios. Ao que acresce, com maior importância ainda, que deste modo se ligam automaticamente à condenação - e ainda que não directamente por mor da pena, mas do crime - efeitos penais tão estigmatizantes, dessocializadores e criminógenos como os efeitos das penas verdadeiras e próprias. A justificação político-criminal básica do artigo 65.° acaba deste modo por ser posta em causa pelo artigo 69.°, n.° 2, podendo inclusivamente a constitucionalidade deste preceito perante o artigo 30.°, n.° 4, da Constituição ser fundadamente questionada» (cf. ob. cit., loc. cit.).
Recorde-se que, nos termos do artigo 69.°, n.° 2, do Código Penal, a prática de certos crimes pode corresponder, por força da lei, à verificação de certas incapacidades no âmbito do exercício dos direitos políticos e civis, e que o artigo 65.° do mesmo Código dispõe de uma formulação integralmente coincidente com a do artigo 30.°, n.° 4, da Constituição.
5 - Uma primeira leitura daquele preceito constitucional poderá sugerir que nele se veda tão-somente a perda de direitos civis, profissionais e políticos como efeito necessário de certas penas, e não já a perda automática desses mesmos direitos por via da condenação por determinados crimes.
Todavia, semelhante entendimento parte de uma acepção restrita do conceito de «efeito das penas» o qual, no nosso direito positivo anterior ao actual Código Penal, assumia uma dimensão lata em termos de «indiferentemente se pode assim denominá-los efeitos das penas ou efeitos da condenação penal» (cf. Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal, vol. II, 1961, p. 181).
Este conceito amplo, correspondente ao seu sentido corrente, terá estado presente no debate na CERC e no Plenário da Assembleia da República, como de algum modo se pode extrair das intervenções aí produzidas pelos Deputados Vital Moreira, Costa Andrade e Nunes de Almeida (cf. supra, II, n.° 2).
Com aquele preceito constitucional pretendeu-se proibir que, em resultado de quaisquer condenações penais, se produzissem de modo automático, pura e simplesmente ope legis, efeitos que envolvessem a perda de direitos civis, profissionais e políticos, e pretendeu-se que assim fosse porque, em qualquer caso, essa produção de efeitos, meramente mecanicista, não atenderia afinal aos princípios da culpa, da necessidade e da jurisdicionalidade, princípios esses de todo em todo inafastáveis de uma Constituição que tem como um dos referentes imediatos a dignidade da pessoa humana (cf. artigo 1.°).
6 - No caso das leis eleitorais questionadas, na parte em que ligam automaticamente a incapacidade eleitoral activa à condenação definitiva em pena de prisão por crime doloso (ou por crime doloso infamante), enquanto durar a expiação da respectiva pena, o efeito necessário a que se reporta o artigo 30.°, n.° 4, no entendimento do Procurador-Geral da República, «aparece associado tanto à natureza dos crimes praticados (crimes dolosos ou crimes dolosos infamantes) como à natureza da pena aplicada (pena de prisão), devendo, no entanto, atenta a vastidão dos crimes em causa, considerar-se como relevante na determinação da incapacidade a natureza da pena aplicada - pena de prisão -, e tanto assim que a incapacidade subsiste enquanto durar a execução da pena».
E, por outro lado, ainda segundo o requerente, «mesmo considerando como mais correcta a interpretação do n.° 4 do artigo 30.° da Constituição como vedando apenas a ligação automática da perda de direitos civis, profissionais ou políticos à condenação em certas penas, há que concluir que, no caso, tal comando constitucional é violado pelas normas das leis eleitorais sobre incapacidades, atrás identificadas».
Na verdade, a incapacidade eleitoral assume um carácter «híbrido», visto que o efeito automático se liga tanto à natureza dos crimes praticados (crimes dolosos ou crimes dolosos infamantes) como à natureza da pena aplicada (pena de prisão). Deste modo, a natureza da pena aplicada assume um papel determinante na privação da capacidade eleitoral, o que, desde logo, mesmo na hipótese de se perfilhar uma interpretação restritiva do preceito constitucional, sempre havia de conduzir à inconstitucionalidade das normas geradoras daquela privação.
E assim sendo, independentemente de se atribuir àquela disposição uma ou outra das interpretações referidas, sempre as normas geradoras de incapacidade eleitoral activa hão-de ter-se por inconstitucionais.
7 - O Tribunal Constitucional teve já ensejo de se pronunciar em diversos acórdãos sobre a legitimidade constitucional do preceito do artigo 29.°, n.° 1, da Lei n.° 69/78, tendo considerado também, ainda que só reflexamente, algumas das normas eleitorais agora sindicadas.
E a jurisprudência definida a respeito de tal matéria (cf. os Acórdãos números 238/92 e 249/92, publicados no Diário da República, 2.ª série, de 16 de Novembro e de 27 de Outubro de 1992, respectivamente, e os Acórdãos números 298/92, 304/92 e 305/92, todos de 29 de Setembro de 1992, e 371/92, 372/92 e 373/92, todos de 26 de Novembro de 1992, ainda inéditos) sempre teve por violadora do artigo 30.°, n.° 4, da Constituição aquela norma da Lei do Recenseamento Eleitoral, enquanto impõe aos juízos de direito o dever de remeterem à comissão recenseadora competente relação contendo os elementos de identificação dos cidadãos que hajam sido objecto de sentença condenatória com trânsito em julgado que implique a privação da capacidade eleitoral, nos termos das pertinentes disposições do Decreto-Lei n.° 319-A/76, da Lei n.° 14/79 e do Decreto-Lei n.° 701-B/76.
Com efeito, tal norma, na medida em que se apresenta como condição de exequibilidade daqueles preceitos [e também do artigo 2.°, alínea c), do Decreto-Lei n.° 267/80], com os quais mantém uma manifesta relação instrumental, não pode deixar de se haver como violadora a mesma disposição constitucional.
III - A decisão
Nestes termos, decide-se declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade, por violação do artigo 30.°, n.° 4, da Constituição:a) Das normas constantes da alínea c) do artigo 3.° do Decreto-Lei n.° 319-A/76, de 3 de Maio (Lei Eleitoral do Presidente da República), da alínea c) do n.° 1 do artigo 2.° da Lei n.° 14/79, de 16 de Maio (Lei Eleitoral para a Assembleia da República), da alínea c) do artigo 2.° do Decreto-Lei n.° 267/80, de 8 de Agosto (Lei Eleitoral da Assembleia Legislativa Regional dos Açores), e da alínea c) do artigo 3.° do Decreto-Lei n.° 701-B/76, de 29 de Setembro (Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais), na parte em que estabelecem a incapacidade eleitoral activa dos definitivamente condenados a pena de prisão por crime doloso (ou por crime doloso infamante) enquanto não hajam expiado a respectiva pena;
b) Da norma constante do n.° 1 do artigo 29.° da Lei n.° 69/78, de 3 de Novembro (Lei do Recenseamento Eleitoral).
Lisboa, 23 de Novembro de 1993. - Antero Alves Monteiro Dinis - António Vitorino - Alberto Tavares da Costa - Guilherme da Fonseca - Bravo Serra - Maria da Assunção Esteves - Fernando Alves Correia - Vítor Nunes de Almeida - Armindo Ribeiro Mendes - Luís Nunes de Almeida - Messias Bento - José Manuel Cardoso da Costa