I - Relatório
Júlio Neves & Santos, L.da, recorreu para o tribunal pleno do acórdão deste Tribunal de 20 de Outubro de 1988, em que se decidiu que o disposto no artigo 51.°, n.° 1, do Código de Processo Civil, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.° 242/85, de 9 de Julho, não tem efeito retroactivo nem permite «atribuir força executiva a título que a não tinha à face da lei vigente ao tempo da instauração da execução», tendo por isso concluído pela procedência dos embargos de executado e pela extinção da execução.Invocou-se ter sido defendida solução oposta no Acórdão, também deste Tribunal, de 18 de Fevereiro de 1986, publicado no Boletim, n.° 354, p. 467.
No acórdão a fls. 19 e seguintes, reconheceu-se a existência da invocada oposição.
Em alegação, a recorrente defende a exequibilidade do título.
A recorrida não alegou.
O Ministério Público emitiu douto parecer no sentido de se lavrar assento com a seguinte formulação:
O artigo 51.°, n.° 1, do Código de Processo Civil, com a redacção dada pelo Decreto-Lei n.° 242/85, de 9 de Julho, é aplicável às acções pendentes à data da sua entrada em vigor, devendo porém o autor ser responsável pelas custas do processado indevido.
II - Questão preliminar
Um dos requisitos essenciais de recurso para o tribunal pleno é o de a «mesma questão fundamental de direito» ter sido objecto de «soluções opostas» (artigo 763.°, n.° 1, do Código de Processo Civil).Pelo artigo 51.°, n.° 1, desse Código, na redacção anterior ao Decreto-Lei n.° 242/85, a exequibilidade das letras, livranças e cheques dependia de a assinatura do devedor estar reconhecida por notário, quando o montante da dívida constante do título excedesse o da alçada da Relação; com a redacção dada por esse diploma, que entrou em vigor em 1 de Outubro de 1985, deixou de se exigir o reconhecimento notarial, qualquer que seja o montante dos títulos.
No acórdão fundamento, de 18 de Fevereiro de 1986, discutia-se a identidade do título executivo (uma escritura pública ou livranças e letra de câmbio) e, tendo-se concluído pelas segundas, decidiu-se que elas gozavam de exequibilidade, apesar da falta de reconhecimento notarial e de o citado Decreto-Lei n.° 242/85, de 9 de Julho, ter entrado em vigor já depois de instaurada a execução, cujo prosseguimento se ordenou.
O acórdão recorrido, por sua vez, foi proferido em embargos de executado, deduzidos com fundamento em inexequibilidade de cheque sem reconhecimento da assinatura do devedor, e não se teve como aplicável a nova redacção do citado artigo 51.°, n.° 1, também entrado em vigor na pendência dos embargos, que foram julgados procedentes.
As simples divergências de pormenor (livranças e letra e discussão nos próprios autos da execução, num caso; cheque e dedução de embargos de executado, no outro) não excluem a identidade da situação de facto, normalmente exigida para que possa haver «soluções opostas», pois o citado artigo 51.°, n.° 1, reporta-se a qualquer desses títulos de crédito e a dedução dos embargos em nada interfere com a natureza da questão suscitada.
Não subsistem dúvidas sobre os demais requisitos do presente recurso, tal como se decidiu no acórdão a fls. 19 e seguintes, que se dá aqui como reproduzido.
III - Mérito do recurso
A questão fundamental de direito a que respeita o presente conflito de jurisprudência consiste em determinar se o artigo 51.°, n.° 1, do Código de Processo Civil na redacção dada pelo Decreto-Lei n.° 242/85, de 7 de Julho, que dispensa o reconhecimento notarial da assinatura do devedor nas letras, livranças e cheques, como títulos executivos, é de aplicação imediata, mesmo em execução instaurada no domínio da anterior redacção dessa norma, na qual se exigia tal reconhecimento para os títulos de montante superior ao da alçada da Relação (como se decidiu no acórdão fundamento), ou, pelo contrário, se é de excluir essa aplicação (como se decidiu no acórdão recorrido).Desde já se adianta que é de seguir a primeira orientação, não se justificando sequer longas considerações.
O citado artigo 51.°, n.° 1, é uma típica norma de direito processual. Para além de incluída no Código de Processo Civil, ela não interfere com a validade e força probatória dos títulos de crédito nem com o conteúdo ou substância dos direitos subjectivos por eles conferidos, o que é regulado pela lei substantiva, mas apenas com o modo de realização ou tutela desses direitos, o que é próprio da lei processual.
Na verdade, a definição dos requisitos de um documento, para que possa valer como título executivo, está directamente relacionada com esse segundo aspecto, ou seja, com o meio processual adequado à defesa do direito material (cf. A. Castro, Acção Executiva..., p. 52).
A aplicação no tempo das leis processuais, na falta de regulamentação especial no Código de Processo Civil, deve basear-se nos princípios consignados no artigo 12.° do Código Civil.
Em particular no que respeita à forma de processo, a lei nova deve aplicar-se «para o futuro» n.° 1 do citado artigo 12.°), o que significa ser aplicável às acções intentadas depois da sua entrada em vigor, independentemente da lei vigente na data da constituição da relação jurídica material, ocorrendo, nessa medida, a aplicação imediata ou «retroactiva» da lei processual, justificada pela sua natureza publicística e instrumental.
A questão da aplicabilidade imediata da lei nova só poderá suscitar algumas dificuldades quanto às acções pendentes, devendo distinguir-se entre a «forma dos diversos actos», expressamente submetida a essa lei (artigo 142.° do Código de Processo Civil), e a forma ou espécie do processo, a qual deverá manter-se quando isso for indispensável para o aproveitamento dos actos já validamente praticados (cf. A. Varela e outros, Manual de Processo Civil, pp. 49 e 54, e M. Andrade, Noções..., p. 42).
No caso em apreciação, deveria ter sido intentada acção declarativa e não executiva, mas, na pendência desta, entrou em vigor uma nova lei, que permite o uso da segunda.
Tanto pelas regras enunciadas como pelo elementar princípio de economia processual, a execução instaurada deve prosseguir: não há qualquer obstáculo à aplicabilidade imediata da lei nova; a julgar-se extinta a execução, o exequente poderia intentar outra, imediatamente, o que redundaria em inutilização de processado tornado válido por essa lei.
Não relevam, em sentido contrário, os argumentos do acórdão recorrido, uma vez que a nova lei, com a dispensa do reconhecimento notarial da assinatura do devedor, não regula o efeito jurídico do acto de subscrição do título de crédito mas simples aspecto de natureza processual, e a questão das custas tem regras próprias, não sendo susceptível de influenciar o sentido da decisão.
Acresce que, mesmo quanto às leis substantivas que «apenas regulam o modo de realização judicial de um direito», é geralmente defendida a sua aplicação imediata (Baptista Machado, Sobre a Aplicação no Tempo do Novo Código Civil, p. 23, e Vaz Serra, Revisão de Legislação de Jurisprudência, ano 102.°, p. 189), e as custas devem ser repartidas de harmonia com o período em que «cada uma das partes [...] exerceu no processo uma actividade injustificada» (artigo 450.° do Código de Processo Civil).
Na formulação proposta pelo Ministério Público para o assento é incluída essa questão das custas, mas entende-se que o não deve ser por não ter havido sobre ela «soluções opostas», não fazendo assim parte do objecto do recurso.
Ainda sobre o acórdão recorrido, importa notar que nele se refere terem os embargos de executado sido deduzidos com dois fundamentos e ser uma das conclusões de alegação da recorrente a de, a reconhecer-se a inexequibilidade do título, deverem os embargos prosseguir «para discussão e julgamento dos demais fundamentos».
Porém, o acórdão da Relação «julgou improcedentes os embargos» e, apesar de se desconhecer se apreciou ou não outros fundamentos, além da inexequibilidade do título, não pode agora analisar-se qualquer outra questão, tanto por falta de elementos como por não ser objecto do presente recurso.
Revoga-se o acórdão recorrido, confirmando-se o da Relação. E formula-se o seguinte assento:
O artigo 51.°, n.° 1, do Código de Processo Civil, com a redacção dada pelo Decreto-Lei n.° 242/85, de 9 de Julho, é de aplicação imediata, mesmo em execuções pendentes.
Custas do recurso de revista e do presente pela ora recorrida, a executada.
Lisboa, 10 de Novembro de 1993. - José Martins da Costa (com a seguinte declaração: pelo artigo 2.° do Código Civil, os assentos fixam «doutrina com força obrigatória geral»; apesar de, formalmente, serem, actos jurisdicionais, eles reconduzem-se, no aspecto material, a leis de natureza interpretativa, como geralmente se tem defendido; nessa medida, deve ter-se como inconstitucional o citado artigo 2.°, por violação do disposto no artigo 115.°, n.° 5, da Constituição; o mesmo artigo 2.° deve, aliás, considerar-se parcialmente revogado, em matéria criminal, pelo disposto nos artigos 445.°, n.° 1, e 447.°, n.° 2, do Código de Processo Penal) - Pais de Sousa - Ferreira da Silva - Miranda Gusmão - Araújo Ribeiro - Raul Mateus - Sá Couto - Costa Pereira - Dias Simão - José Magalhães - Sousa Guedes - Mora do Vale - Santos Monteiro - Ramos dos Santos - Abranches Martins - Guerra Pires - Alves Ribeiro - Zeferino Faria - Carlos Caldas - Faria de Sousa - Pereira Cardigos - Chichorro Rodrigues - Sá Ferreira - Silva Cancela - Teixeira do Carmo - Calixto Pires - Folque Gouveia - Machado Soares - Cardona Ferreira - Amado Gomes - Silva Reis - Cura Mariano - Sousa Macedo - Lopes de Melo - Ferreira Vidigal - Ferreira Dias - Pinto Bastos - Miguel Montenegro - Figueiredo de Sousa - Martins da Fonseca - Mário Noronha - Fernando Fabião - César Marques - Sá Nogueira - Sampaio da Silva - Dionísio de Pinho - Roger Lopes - Ramiro Vidigal - Coelho Ventura - Eduardo Martins - Costa Raposo - Correia de Sousa.
Declaração de voto
Os assentos - artigo 2.° do Código Civil - reconduzem-se a actos de natureza normativa, traduzindo verdadeiras normas jurídicas legislativas, revestidas de eficácia impositiva universal - cf. Castanheira Neves, O Instituto dos Assentos e a Função Jurídica dos Supremos Tribunais, pp. 292 e segs., e «Assento», in Polis, I, p. 419; Gomes Canotilho, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 124.°, p. 131.Ora, a função legislativa não compete aos tribunais - artigo 205.° da Constituição da República.
De contrário, o múnus judicial, ao ser chamado, através dos assentos, a exercer tal actividade, assumiria um carácter que está em aberta contradição com o sentido que lhe deverá corresponder no sistema político do Estado de direito dos nossos dias, baseado no princípio democrático da separação de funções, constitucionalmente consagrado no artigo 114.°, n.° 1: «Os órgãos de soberania devem observar a separação e a interdependência estabelecidas na Constituição» - cf. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5.ª ed., pp. 700 e segs.
Como decidiu a Comissão Constitucional, «haverá inconstitucionalidade - por violação da norma do artigo 114.°, n.° 1, ou do princípio constitucional da divisão e repartição de funções entre os diferentes órgãos de soberania - sempre que um órgão de soberania se atribua, fora dos casos em que a Constituição expressamente o permite ou impõe, competência para o exercício de funções que essencialmente são conferidas a outro diferente órgão» - cf. Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 8.°, 1980, p. 212.
Tal competência cabe à Assembleia da República e ao Governo - cf. os artigos 164.° e 201.° da Constituição da República Portuguesa.
E este será, supomos, o entendimento do Tribunal Constitucional.
Na verdade, ao declarar, como tem acontecido, a inconstitucionalidade de assentos, partiu da sua natureza normativa, como tudo decorre, designadamente, dos artigos 225.°, 277.° e 281.° da Constituição.
É nesta linha de entendimento que deve situar-se a correcta interpretação do artigo 115.°, n.° 5, da lei fundamental: «Nenhuma lei pode criar outra categoria de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos.» A doutrina mais autorizada é no sentido de que os assentos devem ser qualificados como lei interpretativa - cf. as indicações feitas no Código Civil Anotado, de A. Neto e H. Martins, 6.ª ed., p. 26.
Em oposição ao que vem de ser dito não pode invocar-se o artigo 122.°, n.° 1, alínea g), da Constituição.
É que este normativo, na lógica do sistema constitucional e no panorama legislativo actual, só pode referir-se à declaração de ilegalidade, com força obrigatória geral, dos regulamentos administrativos - artigo 66.°, n.° 1, da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos.
Em consequência, não votei o presente assento. - Ferreira da Silva