Paulo Jorge Martins da Nóbrega, actualmente preso à ordem do processo comum n.° 98/90 da 2.ª Secção do 2.° Juízo do Funchal, interpôs o presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, ao abrigo do artigo 437.° do Código de Processo Penal, com os seguintes fundamentos:
Por acórdão deste Supremo Tribunal de 26 de Fevereiro de 1992, proferido em recurso interposto naquele processo da comarca do Funchal, foi o recorrente condenado na pena de 17 anos de prisão de 1 500 000$ de multa pela comissão de um crime de tráfico agravado de estupefacientes, dos artigos 23.°, n.° 1, e 27.° do Decreto-Lei n.° 430/83, de 13 de Dezembro.
Na decisão da 1.ª instância o recorrente havia sido condenado com base apenas na prática do crime do artigo 23.°, n.° 1, daquele diploma, e a alteração da qualificação jurídica feita por esta instância baseou-se no entendimento expresso de que não correspondia a alteração substancial de factos descritos na acusação a simples modificação do enquadramento jurídico dos mesmos factos.
Sucede, no entanto, que essa posição interpretativa da lei, assumida pelo mesmo acórdão, se encontra em oposição com o Acórdão deste Supremo de 18 de Janeiro de 1991, no processo n.° 41 379 (in Colectânea de Jurisprudência, 1991, I, 5), bem como com o Acórdão, igualmente deste Supremo, de 5 de Julho de 1991, no processo n.° 41 644 (in Colectânea, 1991, III, 29), uma vez que, em ambos, se terá entendido que a condenação por crime diverso do constante da acusação, ainda que baseada nos factos aí descritos, traduz uma alteração substancial da acusação, só admissível com as formalidades previstas pelo artigo 359.° do Código de Processo Penal.
Em virtude de o recorrente ter indicado dois acórdãos em oposição com o acórdão recorrido, foi o mesmo convidado a indicar qual considerava como o acórdão fundamento, pelo que acabou por indicar o que foi proferido em 18 de Janeiro de 1991, no processo n.° 41 379.
Foi proferido acórdão preliminar no sentido da verificação da invocada oposição de julgados.
Foram oportunamente apresentadas alegações, em que:
a) O recorrente defende dever ser proferido acórdão com força obrigatória geral no sentido de que «deve ser fixada jurisprudência no sentido da proibição de condenação por uma circunstância modificativa não prevista na acusação ou pronúncia, ainda que a factualidade respectiva ali se encontre narrada», por a expressão utilizada na alínea f) do artigo 1.° do Código de Processo Penal dever ser entendida como referida a um sentido teleológico, correspondente ao propósito de proibir «a imputação de outro crime, ou a agravação dos limites máximos da pena abstractamente aplicável»;
b) O Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto, depois de se referir à conveniência de se firmar jurisprudência sobre o problema prévio de ser ou não possível, no domínio do actual Código de Processo Penal, relativamente à questão de se saber se a decisão preliminar sobre oposição de acórdãos pode ou não ser revista no acórdão final, sustenta que este último, no caso concreto, deve ser formulado nos seguintes moldes:
Não constitui alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, para os fins dos artigos 1.°, alínea f), 120.°, 284.°, n.° 1, 303.°, n.° 3, 309.°, n.° 2, 359.°, números 1 e 2, e 379.°, alínea b), do Código de Processo Penal, a simples alteração da sua qualificação jurídica, mesmo que para crime mais grave.
Foram corridos os vistos devidos.
Questão prévia suscitada pelo Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto sobre a possibilidade de reapreciação dos pressupostos da decisão preliminar sobre a oposição de acórdãos.
A decisão proferida no sentido da existência da oposição de acórdãos não é vinculativa e deve, por isso, ser reapreciada pelo plenário, como resulta do que se passa a expor e tendo-se em atenção que a referida questão prévia acaba por se desdobrar em dois aspectos complementares, que são os seguintes:
a) Possibilidade ou não de o plenário do Tribunal vir a entender diferentemente do acórdão preliminar que julgou verificada a oposição de acórdãos e mandou prosseguir os autos;
b) Possibilidade ou não de o mesmo Tribunal vir a adoptar solução diversa das duas opostas que dão origem ao pedido de uniformização da jurisprudência, por aquela dever ser considerada como a mais consentânea com a correcta aplicação da lei e a uma melhor interpretação das respectivas letra e espírito.
Passemos, por conseguinte, a apreciá-los:
a) Possibilidade de o plenário reapreciar o problema da existência da oposição de acórdãos Pelo Código de Processo Penal de 1929, o recurso para fixação de jurisprudência seria interposto, processado e julgado como idêntico recurso em processo civil (§ único do artigo 668.°), o que significava que o Supremo, ao apreciar a final o recurso, não estava impedido de decidir em contrário do acórdão preliminar que julgara verificar-se a invocada oposição de acórdãos (artigo 766.°, n.° 3, do Código de Processo Civil).
No Código de Processo Penal actual nada se refere sobre essa matéria, e, sabido como é, que ele se encontra dominado pelo princípio da auto-suficiência do processo penal, com recurso às normas do processo civil apenas quando as mesmas se harmonizem com aquele, poderia ser-se levado a concluir que o mencionado acórdão preliminar sobre a existência da oposição de acórdãos formaria caso julgado, impeditivo da reapreciação posterior de tal problema.
Não parece, no entanto, que assim deva ser.
É que o referido acórdão preliminar mais não é do que uma decisão inicial, indispensável para o prosseguimento do recurso, mas que não tem virtualidade intrínseca para vincular os restantes juízes que são chamados a apreciar o objecto do recurso, como se vai ver.
Por um lado, seria atentatório da unidade do sistema jurídico que o recurso para obtenção do mesmo resultado - a fixação da jurisprudência, com efeitos vinculativos para os restantes tribunais - estivesse sujeito a regimes distintos quanto ao valor da decisão inicial que estabelece a existência de oposição de acórdãos sobre o mesmo ponto de direito, consoante se tratasse de divergências entre acórdãos cíveis ou sociais, ou entre acórdãos tirados em matéria criminal, tanto mais que, nesta última, com alguma frequência, os tribunais são chamados a pronunciar-se sobre matérias de natureza exclusivamente civil, como, por exemplo, a que respeita a indemnizações por factos ilícitos.
Por outro lado, verifica-se fazer parte do sistema jurídico em geral, e do sistema do processo penal em particular, a estruturação de um esquema legal segundo o qual a generalidade das decisões interlocutórias desse tipo não faz caso julgado.
É assim, com efeito, que é modificável pelo Tribunal a decisão do presidente de um tribunal superior que mande admitir um recurso não admitido pela 1.ª instância (artigo 405°, n.° 4, do Código de Processo Penal), tal como é modificável pelo tribunal de recurso a qualificação jurídica dos factos feita pelo tribunal recorrido (mesmo quando se entenda que, nesse caso, o primeiro não poderá aumentar a punição imposta por este se se não tiver pedido o respectivo agravamento), e, quanto ao processo civil, que é modificável, no saneador, a posição assumida pelo Tribunal, no despacho liminar, sobre a inexistência de vícios conducentes à ineptidão da petição inicial (artigo 479.°, n.° 2, do Código de Processo Civil).
Trata-se, em todas as situações apontadas, de decisões preliminares, de natureza interlocutória, cujas únicas finalidades são as de permitir a apreciação global do objecto do recurso pelo tribunal competente, quando aquelas sejam no sentido do prosseguimento dos autos, e a de impedir, então de maneira definitiva, tal apreciação quando as mesmas tenham o sentido oposto e delas não caiba, legalmente, recurso.
Por tais razões, não pode deixar de se entender que a matéria constante do acórdão preliminar, que julgou verificada uma dada oposição de julgados, continua a ter de ser reapreciado pelo plenário quando ele se pronunciar sobre o sentido a dar à pretendida uniformização da jurisprudência.
Foi esta, de resto, a jurisprudência seguida por este Supremo, no primeiro caso em que o mesmo foi chamado a pronunciar-se sobre idêntica questão prévia (Acórdão, com força obrigatória geral, de 6 de Maio de 1992, proferido no processo n.° 42 317, sobre o conhecimento oficioso ou não das nulidades processuais penais, no Diário da República, 1.ª série A, n.° 180, de 6 de Agosto de 1992).
Mais delicada, no entanto, é a segunda das indicadas questões prévias, que se passa a focar.
b) Possibilidade de a solução uniformizadora da jurisprudência ser diferente da de qualquer dos acórdãos em conflito É princípio geral do nosso sistema jurídico que o Supremo Tribunal de Justiça, porque não pode, em via de recurso nos campos penal e processual, proceder à análise da matéria de facto e apenas tem competência para discutir os aspectos de interpretação e aplicação do direito, se encontra limitado, no âmbito dos seus poderes de apreciação, pelos limites da questão, tal como a mesma foi definida pelos recorrentes.
E são, sem dúvida, expressão desse princípio a regra da proibição da reformatio in pejus e a da possibilitação, em determinadas circunstâncias, da anulação de um julgamento e reenvio do processo (num autêntico sistema de cassação), quando lhe não seja possível extrair conclusões seguras a partir dos dados de facto definitivamente apurados pela ou pelas instâncias.
Por tal motivo, poder-se-ia ser levado a concluir que, num recurso para fixação de jurisprudência, o mesmo Tribunal estaria limitado a dizer qual das duas posições em conflito se configurava como a correcta, relativamente a um certo ponto de interpretação da lei.
Na realidade, porém, a solução deverá ser diferente, como se vai ver.
A limitação do campo de apreciação do Supremo respeita tão-somente à matéria de facto, mas não abrange os aspectos de definição interpretativa e aplicativa do direito, uma vez que estes constituem, precisamente, a sua função primordial (resolver, de modo definitivo, no aspecto jurídico, uma questão relativamente à qual não existe acordo dos intervenientes processuais), como resulta, entre outros, dos artigos 433.° e 440.° do Código de Processo Penal.
E, precisamente porque tem essa função de definir e interpretar o direito concretamente aplicável a uma específica situação de facto, não é teoricamente admissível uma limitação dos seus poderes de fixação jurídica, impeditiva de uma correcta interpretação da lei.
Basta pensar, por exemplo, nas hipóteses em que a divergência entre os dois acórdãos em oposição se traduza em um deles ter entendido que determinada situação de facto é enquadrável numa certa previsão legal (por hipótese, no furto, ou nas ofensas corporais) e o outro ter decidido que ela é enquadrável noutra previsão da lei (na burla, ou na coacção, respectivamente), e se chegar à conclusão, na fixação do correcto sentido da lei, de que a situação em apreço não é punível, por se não verificarem os respectivos elementos típicos, ou que deve ser enquadrada numa diferente figura criminal (abuso de confiança, ou falsificação, ou injúrias, também respectivamente).
Todas estas possíveis variações de interpretação resultam da circunstância de que o enquadramento jurídico-penal de uma dada conduta num certo tipo criminal pressupõe um esquema de raciocínio em que o silogismo judiciário se processa da seguinte forma:
Os factos apurados são enquadráveis em determinada previsão legal? Os mesmos factos não são enquadráveis em qualquer outra? Em caso afirmativo, qual ou quais têm a natureza de dominantes, ou absorventes do enquadramento na ou nas restantes? Silogismo este que, na prática, é traduzido expressamente apenas pela primeira das interrogações alinhadas, enquanto as restantes ficam formuladas de forma implícita.
E, posto o problema nestes termos, facilmente se verifica que, quando o Tribunal, ao fixar a jurisprudência, acabe por adoptar uma interpretação diferente das duas que estão na base do conflito mas susceptível de resultar da aplicação da lei aos factos concretos que lhes subjazem, não está, por qualquer forma, a exceder os seus poderes-deveres de proceder ao correcto enquadramento interpretativo de natureza jurisprudencial obrigatória, a que se encontra vinculado pelo instituto em que se funda, para proferir uma tal decisão.
Desta forma, e em função do que fica exposto, cabe, assim, voltar a determinar se, sobre a mesma questão de direito, e no domínio da mesma legislação, foram ou não proferidos dois acórdãos contraditórios.
Parece manifesta essa contradição, uma vez que:
No acórdão fundamento, proferido no processo n.° 41 379, se decidiu que o pedido de convolação de uma acusação pelo crime do artigo 23.° do Decreto-Lei n.° 430/83, de 13 de Dezembro (tráfico de estupefacientes), para o crime do artigo 27.° do mesmo diploma legal (tráfico agravado), corresponde a uma alteração substancial da mesma acusação, por ter como efeito a aplicabilidade de uma punição inscrita numa moldura penal mais grave, pelo que o seu deferimento só será possível através do recurso às regras especiais do artigo 359.°, n.° 2, do Código de Processo Penal;
No acórdão recorrido, de 26 de Fevereiro de 1992 (processo n.° 42 222), decidiu-se, pelo contrário, que, acusado o arguido pelo crime do mencionado artigo 23.° daquele decreto-lei, pode o Tribunal convolar e condená-lo pela comissão do crime do seu artigo 27.°, sem, com isso, se estar a proceder a uma alteração substancial da acusação, e, consequentemente, sem qualquer necessidade de recurso às mencionadas regras do artigo 359.° do Código de Processo Penal.
A identidade de situações apreciadas por forma tão oposta nos dois acórdãos só se não verifica relativamente a um ponto que se considera como não significativo, e que é o seguinte: enquanto no acórdão fundamento se decidiu que constituía a aludida alteração o pedido de alteração da qualificação jurídica dos factos para uma previsão mais grave, formulado pelo Ministério Público na fase do recurso, no acórdão recorrido entendeu-se que a aludida alteração se não verificava quando a convolação era feita no julgamento da 1.ª instância.
Em ambas as situações, porém, não tinha relevo, nem era objecto de apreciação, a questão da determinação do momento em que se poderia proceder ou não à mencionada convolação, pois o que se discutia, fundamentalmente, era se esta última correspondia ou não ao conceito de alteração substancial da acusação e estava ou não sujeita às regras desta, independentemente do momento processual em que ela se verificasse.
Daí que, repete-se, a falta de coincidência quanto a este aspecto restrito não permita concluir pela não verificação da oposição de julgados, respeitantes à apreciação da mesma questão de direito e no domínio das mesmas leis (o Decreto-Lei n.° 430/83 e o Código de Processo Penal de 1987).
Cumpre, desta forma, passar a apreciar o objecto deste recurso extraordinário, em ordem a poder ser fixada a correspondente jurisprudência.
Com essa finalidade, e antes de se proceder a uma mais desenvolvida apreciação do tema, parece conveniente efectuar a transcrição das passagens mais significativas dos dois acórdãos em oposição, na medida em que, nelas, se discutem já vários dos aspectos que se torna necessário ter em consideração na decisão final.
A isso se passa, portanto, a proceder.
No acórdão fundamento, decidiu-se, textualmente, o seguinte:
O pedido principal formulado pelo Ministério Público, no recurso, de ver os arguidos condenados pelo artigo 27.°, alínea g), do Decreto-Lei n.° 430/83 não tem viabilidade em face do novo Código de Processo Penal, diploma que rege o presente processo, como bem se evidencia na douta alegação do Ministério Público junto deste supremo Tribunal.
Contra os arguidos foi deduzida acusação pelo crime do artigo 23.°, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 430/83.
A condenação pelo artigo 27.° deste diploma implicaria a condenação por um crime que tem moldura penal com limites mais elevados que o crime do referido artigo 23.° Tratar-se-ia, sem dúvida, de uma alteração substancial;
assim, a condenação, neste processo, por tal crime do artigo 27.° só seria permitida após as formalidades do artigo 359.°, n.° 2, do Código de Processo Penal; de outro modo, a decisão incorreria na nulidade do artigo 379.°, alínea b), do mesmo diploma e violaria flagrantemente os direitos da defesa e o princípio do contraditório, olvidando o direito de o arguido se pronunciar sobre o tratamento jurídico de factos gravosos que lhe são imputados.
Será aqui oportuno recordar que o novo Código de Processo Penal, dando cumprimento ao reforço dos direitos de defesa dimanados da Constituição da República, fez abranger pelo princípio do contraditório não só a matéria de facto mas também o tratamento que a esta é dado para o efeito de a subsumir aos preceitos incriminadores [cf. máxime o artigo 61.°, n.° 1, alínea b), do Código de Processo Penal] e, de um modo geral, tudo o que possa afectar o arguido.
Assim, ainda que os factos, abstraindo da tramitação processual, possam ser enquadrados no referido artigo 27.°, certo é, no entanto, que, em atenção à tramitação seguida no presente processo, essa possibilidade está, in casu, excluída.
Improcede, nestes termos e neste aspecto, o recurso interposto pelo Ministério Público.
E o acórdão recorrido, por seu lado, decidiu:
Recurso do arguido Paulo Jorge (convolação não permitida) Defende o recorrente que o Tribunal colectivo, ao condená-lo, bem como a outros co-arguidos, por crimes que não constavam da acusação, procedeu a uma proibida convolação da matéria acusada, geradora de nulidade do decidido.
Este ponto do recurso, ainda que só por ele invocado, afectará, no caso de provimento, os restantes co-arguidos e poderá conduzir a uma anulação do decidido, pelo que, para além de respeitar ao recurso que cronologicamente deve ser apreciado em primeiro lugar, tem de ser também objecto de análise prioritária, uma vez que os restantes recursos têm natureza estritamente pessoal, relacionada com quem os interpôs.
A matéria relacionada com a referida convolação é a seguinte:
Os arguidos estavam acusados e pronunciados pela comissão de vários crimes de tráfico de estupefacientes, do artigo 23.°, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 430/83, e o Tribunal colectivo entendeu que a factualidade provada era enquadrável na previsão do crime agravado de tráfico de estupefacientes, previsto pelas disposições combinadas dos artigos 23.°, n.° 1, e 27.° do mesmo diploma.
Defende o recorrente que, ao decidir assim, o Tribunal violou o disposto no artigo 359.° do Código de Processo Penal, por ter procedido a uma alteração substancial dos factos descritos na acusação do que resultaria a nulidade do decidido, nos termos do artigo 379.° do mesmo Código.
Não tem, porém, razão.
O artigo 359.° acima referido proíbe a consideração, na decisão, e salvo acordo do Ministério Público, do arguido e do assistente, de uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, e determina que, em tal caso, o Tribunal deverá determinar a extracção de certidão para instauração do adequado procedimento criminal.
Mas não é alteração substancial de factos a simples diferença de enquadramento jurídico das condutas descritas na acusação, como nos parece óbvio.
É certo que, quanto a este ponto, no Acórdão deste Supremo de 16 de Janeiro de 1991, in Colectânea, 1991, I, 5, se decidiu que «a condenação por crime diverso do constante da acusação, ainda que baseada nos factos aí descritos, se traduz em alteração substancial da acusação, que só pode ser permitida com as formalidades do artigo 359.°, n.° 2» e que, no Acórdão de 5 de Junho de 1991, in Colectânea, 1991, III, 29, se decidiu «ser alteração não substancial a condenação, por cumplicidade de arguido acusado por autoria, e alteração substancial a condenação, por crime continuado, de arguido acusado pela prática de um só crime», mas parece-nos que o que resulta da lei não será bem isso.
Com efeito, quer o artigo 359.° quer o artigo 379.° fazem referência clara a «alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia» e a «condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver», e, em qualquer dos casos, sempre que se não verifique o condicionalismo dos artigos 338.° e 339.° do Código.
Tal referência cuidadosa e nitidamente intencional do legislador ao termo «factos» é demonstrativa de que aquele quis adoptar um regime análogo ao que resultava do artigo 447.° do Código anterior, segundo o qual o juiz poderia «condenar por infracção diversa daquela pela qual o arguido tivesse sido condenado, ainda que mais grave, desde que os seus elementos constitutivos constassem do despacho de pronúncia ou equivalente».
É que a ideia fundamental é, em ambos os casos, a mesma, expressa, de resto, igualmente nos princípios gerais do processo civil: a determinação do direito, ou enquadramento jurídico dos factos apurados, por constituir o cerne da função judicial, não está sujeita a limitações decorrentes de um errado enquadramento feito pelas partes ou pessoas interessadas no processo, sob pena de total desvirtuamento dessa função, e de, inclusivamente, incumprimento do disposto nos artigos 205.° a 207.° da Constituição, tal como eles se mostram esclarecidos e interpretados pelos artigos 3.° e 4.° da Lei n.° 21/85 (Estatuto dos Magistrados Judiciais), de 30 de Julho.
A submissão, ao princípio do contraditório, da audiência do julgamento e dos actos instrutórios indicados pela lei, estipulada pelo artigo 32.°, n.° 5, da Constituição, tem os limites reais e práticos que resultam da consideração como um todo das normas acima referidas e do desenvolvimento dos princípios fundamentais sobre o âmbito e limites da função de julgar.
E nem sequer se pode dizer que o arguido, pronunciado por um determinado enquadramento jurídico dos factos que lhe são imputados, pode ficar surpreendido e em situação de desfavor perante um diverso enquadramento, feito mais tarde, no momento próprio para a respectiva qualificação final, porque aquilo que é vedado modificar, sem sua autorização, é tão-somente a narração dos factos reputados como ilícitos.
É quanto a tais factos, efectivamente, que ele tem de se defender, primariamente, pois só numa segunda fase lógica lhe é possível dizer que, mesmo que tais factos correspondam à realidade, não se pode ou não se deve proceder ao respectivo enquadramento jurídico nos moldes propostos pela acusação, em virtude de deverem ter um diverso tratamento ou de, inclusivamente, não poderem ser considerados como ilícitos.
De resto, é a aceitação destes princípios que faz com que se tenha sempre entendido que, por exemplo, a prova de uma legítima defesa, ou de um estado de provocação, em relação ao arguido, mesmo que os não tenha alegado, não constitui uma alteração substancial dos «factos» descritos na acusação ou na pronúncia que implique o cumprimento dos citados artigos 338.° e 339.° do Código de Processo Penal.
E isso porque a qualificação dos dados de facto que conduzem à existência de tais figuras é um mero problema de aplicação do direito, não enquadrável na figura da «alteração substancial dos factos» contemplada pelos artigos 359.° e 379.° acima referidos.
No caso dos autos, o Tribunal, a partir da matéria acusada que se provou em julgamento, extraiu consequências jurídicas (nomeadamente o respectivo enquadramento jurídico-penal) diversas das que constavam da acusação, por força da simples interpretação e aplicação da lei, mas sempre dentro dos limites fixados pelas disposições constitucionais e estatutárias acima indicadas.
A convolação a que procedeu, portanto, e no puro plano abstracto, não enferma de qualquer vício processual justificativo da anulação do julgamento, contrariamente ao pretendido pelo recorrente.
Improcede, desta forma, quanto a este ponto, o recurso do arguido Paulo Jorge. A nossa legislação processual penal, no propósito de evitar que os arguidos possam ser vítimas de uma atrabiliária modificação do objecto da acusação, e na esteira de uma longa evolução jurídico-doutrinária, adoptou, desde há longos anos, o princípio da submissão da lei de processo penal à regra da chamada proibição da reformatio in pejus.
Ao fazê-lo, no entanto, acabou por definir o âmbito dessa proibição em moldes diversamente estruturados consoante as diversas leis que se foram sucedendo, o que se compreende perfeitamente se se tiver em atenção que o princípio filosófico da non reformatio in pejus é susceptível de abarcar uma realidade mais ou menos ampla, em função do maior ou menor relevo que o legislador queira dar aos aspectos de justiça formal ou aos de justiça substancial na apreciação da infracção criminal, aos aspectos de defesa e segurança do cidadão, como tal, ou aos de defesa e segurança da sociedade, etc., tudo dentro da procura do adequado equilíbrio entre a satisfação das diferentes necessidades resultantes da vivência em sociedade, muitas vezes contraditórias entre si.
É esta realidade que tem de ser tida em consideração ao proceder-se à análise do problema dos presentes autos.
Com efeito, o legislador do Código de Processo Penal pretendeu consignar neste diploma um regime específico de defesa da segurança do cidadão que seja arguido num processo criminal, regime este que pode ser sintetizado através da indicação dos seguintes cinco aspectos:
1) É «alteração substancial dos factos» «aquela que tiver como efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis» [artigo 1.°, alínea f), do Código de Processo Penal];
2) Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, e a verificação da sua existência determina ou a obrigatoriedade de abertura de inquérito quanto a eles, se ocorrer na fase do encerramento da instrução (artigo 303.°, n.° 3 do Código), ou a sua equiparação a denúncia ao Ministério Público, para que ele proceda pelos novos factos, quando ocorra na fase do julgamento e quando este magistrado, o arguido e o assistente estejam de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, desde que estes não determinem a incompetência do tribunal (artigo 359.°, números 1 e 2, do mesmo diploma);
3) A infracção das regras respeitantes à proibição da tomada em consideração de uma alteração substancial dos factos acusados (ou constantes da pronúncia) conduz à anulabilidade da pronúncia, quando se verifique nesta peça processual (artigo 309.°, n.° 2, do mesmo Código), ou à nulidade da sentença, quando se verifique na decisão final [artigo 379.°, alínea b), desse diploma] , nulidade esta que, por não incluída na previsão do artigo 119.° do aludido Código, deverá ser considerada como sanável e dependente de arguição (artigo 120.° do mesmo);
4) Relativamente a crimes públicos e semipúblicos, o assistente só pode acusar por factos que não importem uma alteração substancial dos que constam da acusação do Ministério Público (artigo 284.°, n.° 1);
5) A verificação, em julgamento, da existência de uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, e com relevo para a decisão da causa, implica unicamente a possibilidade de concessão de prazo ao arguido para preparação da defesa quanto a tal alteração e desde que ela não resulte da matéria que por ele já tenha sido alegada (artigo 358.° do referido Código).
Sucede, no entanto, que a integração, no nosso sistema jurídico, deste regime que o legislador pretendeu consignar, suscita diversas dificuldades que obrigam a que a leitura das disposições acabadas de referir tenha de ser feita com relativa cautela e não o possa ser de modo linear, com o predomínio absoluto da regra constante daquela alínea f) do artigo 1.° do Código de Processo Penal, como parece ter sido a filosofia de base do acórdão fundamento, como se passa a demonstrar.
A aplicação literal da mencionada alínea f) poderia conduzir a que se viesse defender, como no acórdão fundamento, que uma simples alteração da qualificação jurídica dos factos acusados (entendimento de que os aludidos factos, e apenas esses, desacompanhados de quaisquer outros, se enquadrariam, não na figura criminal acusada, mas noutra, submetida a um regime punitivo mais grave) corresponderia a uma alteração substancial dos factos descritos na acusação, e, como tal, só seria válida se nela concordassem o Ministério Público, o arguido e o assistente, o que implicaria que, na falta desse acordo, houvesse lugar à aplicação da regra da ficção da denúncia dos factos àquele magistrado, para instauração do adequado procedimento criminal, com a consequência de, necessariamente, se dever absolver o arguido da comissão do ilícito acusado, na medida em que os factos cometidos seriam enquadráveis num diferente e mais grave ilícito penal.
Simplesmente, quando assim se entendesse, estar-se-ia, pura e simplesmente, a violar os claros preceitos dos números 4 e 5 do artigo 29.° da Constituição, que se passam a transcrever:
4 - Ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido.
5 - Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime. Uma vez que, ao proceder-se àquela absolvição, e ao mandar-se instaurar novo processo para apuramento da nova qualificação do crime que, na aparência, teria sido cometido pelo arguido, se estaria a tomar uma atitude por força da qual este último viria a ser julgado duas vezes pelo mesmo crime.
É que, na verdade o conceito de «mesmo crime», utilizado pela lei, tem tradicionalmente o sentido de enquadramento jurídico de um certo conjunto de factos e actos do agente, como se pode ver pelo seguinte excerto de um acórdão deste Supremo Tribunal, de que foi relator o dos presentes autos:
O Código de Processo Penal vigente, ao contrário do anterior, não regulou os efeitos do caso julgado penal, por, como tem sido várias vezes referido, se ter entendido que tal matéria correspondia ao desenvolvimento de regras gerais cujo lugar de regulamentação não seria esse diploma legal, e, sim, a própria lei penal substantiva.
A omissão da referida regulamentação coloca, desde logo, no entanto, um problema delicado, o qual é o de se saber se as regras gerais do valor do caso julgado serão as consignadas na lei processual civil para os casos cíveis, ou se, pelo contrário, serão aquelas que uma longa evolução histórica no campo da defesa dos direitos humanos acabou por fazer considerar como específicas dos julgamentos de natureza penal, e, como tais, substancialmente distintas em muitos pontos das que se aplicam aos casos cíveis.
Na verdade, em termos de processo civil, o caso julgado verifica-se quando já foi proferida decisão de que não cabe recurso ordinário e se pretende que seja proferida uma nova sobre o mesmo tema, válida para as mesmas partes, e com os mesmos fundamentos (as identidades de sujeitos, de pedido e de causa de pedir, expressamente indicados no artigo 498.° do Código de Processo Civil), ao passo que, em termos de processo penal, o conceito tradicional é diverso, pois, de acordo com o nosso sistema processual, não existe uma realidade que possa ser adequadamente configurada como «as partes do processo», o pedido é o de aplicação de uma sanção penal em virtude da comissão de um facto criminalmente punível, conjugado com o da declaração da inexistência, no caso concreto, de obstáculos às respectivas ilicitude e culpabilidade do agente, e a causa de pedir é a circunstância de se configurar que o agente terá tido uma conduta susceptível de gerar uma sanção de natureza penal.
Precisamente por isso, acabou a doutrina por estabelecer aquilo que mais tarde veio a ser consagrado em diplomas legislativos como o anterior Código de Processo Penal, que a identidade da causa de pedir e do pedido, em matéria penal, abrangia as situações em que a decisão definitiva anterior tinha declarado:
a) Que os factos constantes do processo não constituíam infracção;
b) Que a acção penal se tinha extinguido quanto a todos os agentes;
c) Que não havia prova suficiente de qualquer elemento da infracção;
d) Que o arguido não tinha praticado os actos de que era acusado;
e) Que o arguido não era responsável por esses actos;
f) Que a acção penal se extinguira quanto a um dado arguido;
g) Que não havia provas da prática, pelo arguido, dos actos imputados;
h) Que certa infracção criminal havia sido cometida por determinadas pessoas; e, simultaneamente, veio a mesma doutrina a estabelecer os efeitos dos casos julgados sobre os pontos atrás indicados e respectiva amplitude no campo processual penal e no campo processual civil.
Em harmonia com os ensinamentos dessa mesma doutrina, o Código de Processo Penal de 1929, como se referiu, incluiu no seu articulado a correspondente matéria, nos artigos 148.° a 154.°, que se passam a transcrever, dado o interesse de que se revestem para se apurar de forma mais ou menos ordenada o conjunto de conclusões a que doutrinariamente se havia chegado:
Artigo 148.°
Caso julgado absolutório
Se em um processo penal se decidir, por acórdão, sentença ou despacho com trânsito em julgado, que os factos constantes dos autos não constituem infracção, ou que a acção penal se extinguiu quanto a todos os agentes, não poderá propor-se nova acção penal pelos mesmos factos contra pessoa alguma.§ único. Se o tribunal julgar por decisão com trânsito em julgado que não há prova bastante de qualquer elemento da infracção, não poderá prosseguir o processo penal com a mesma prova contra qualquer arguido.
Artigo 149.°
Caso julgado absolutório pessoal
Quando, por acórdão, sentença ou despacho, com trânsito em julgado, se tenha decidido que um arguido não praticou certos factos, que por eles não é responsável ou que a respectiva acção penal se extinguiu, não poderá contra ele propor-se nova acção penal por infracção constituída, no todo ou em parte, por esses factos, ainda que se lhe atribua comparticipação de diversa natureza.[Note-se que, em relação a este artigo, veio a ser proferido, em 9 de Novembro de 1977, um assento do Supremo Tribunal de Justiça, publicado no Diário da República, de 27 de Dezembro do mesmo ano, em que se fixou a doutrina de que, «absolvido definitivamente o condutor de um veículo da acusação criminal contra ele deduzida por se reconhecer que não teve culpa, a matéria desta não pode ser reapreciada no recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, restrito à decisão cível da acção exercida conjuntamente com a respectiva acção penal nos termos do artigo 67.° do Código da Estrada».]
Artigo 150.°
Absolvição por falta de provas
Se um tribunal absolver um réu por falta de provas, não poderá contra ele propor-se nova acção penal por infracção, constituída no todo ou em parte pelos mesmos factos por que respondeu, ainda que se lhe atribua comparticipação de diversa natureza.
Artigo 151.°
Abstenção de acusar e despronúncia
Se um arguido não tiver sido pronunciado ou for despronunciado por decisão com trânsito em julgado, por falta de provas, ou se, em relação a ele e pelo mesmo motivo, tiver sido proferida decisão com trânsito em julgado, equivalente à da não pronúncia, não poderá contra ele prosseguir o processo com a mesma prova.
Artigo 152.°
Caso julgado sobre questão prejudicial não penal
No caso previsto no artigo 3.° deste Código (existência de questão prejudicial não penal que imponha a suspensão do processo penal) a decisão proferida pelo respectivo tribunal constituirá caso julgado relativamente à questão que nele tenha sido julgada definitivamente, para a acção penal que dessa decisão ficou dependente.
Artigo 153.°
Efeitos do caso julgado penal condenatório
A condenação definitiva proferida na acção penal constituirá caso julgado, quanto à existência e qualificação do facto punível e quanto à determinação dos seus agentes, mesmo nas acções não penais em que se discutam direitos que dependam da existência da infracção.
Artigo 154.°
Efeitos da sentença penal absolutória em acção não penal
A sentença absolutória, proferida em matéria penal e com trânsito em julgado, constituirá nas acções não penais simples presunção legal da inexistência dos factos que constituem a infracção, ou de que os arguidos a não praticaram, conforme o que se tenha julgado, presunção que pode ser ilidida por prova em contrário.
A simples indicação dos princípios expressos e que vieram a ser traduzidos pela sua inclusão no anterior Código mostra de forma suficientemente clara que existem diferenças fundamentais entre a aplicação das regras que tradicionalmente se consideram como respeitantes à figura do caso julgado penal e as que se aplicam ao direito civil.
Na verdade, e por exemplo, a mesma situação de um réu ser absolvido por falta de provas levaria, como se viu, segundo as regras do processo penal, a que se não pudesse propor contra ele nova acção penal por infracção constituída, no todo ou em parte, pelos mesmos factos por que responde, ainda que se lhe atribuísse comparticipação de diversa natureza, mas conduziria, segundo as regras do processo civil, à solução de ser admissível a renovação da acção penal contra ele se se lhe viesse a atribuir comparticipação de diferente natureza, uma vez que a causa de pedir deveria ser considerada como distinta da da anterior acção em que ele fora absolvido.
Daí que haja que concluir que os princípios que regem o caso julgado penal e que, repete-se, são produto de uma longa e elaborada evolução, resultante da consideração do especial melindre da defesa dos direitos humanos, se não articulem adequadamente com as regras do caso julgado cível, o que implica que estas últimas não possam ser aplicadas, nos termos do artigo 4.° do Código de Processo Penal.
Há, por isso, que recorrer aos princípios gerais do processo penal, os quais são os já referidos e que se encontravam consignados na legislação anterior, uma vez que a não inclusão de regras específicas sobre o caso julgado no actual Código não teve como causa o querer o legislador aplicar as regras próprias do processo civil e sim reservar para a lei substantiva penal a respectiva definição, como já se frisou.
Entende-se, por tal motivo, e uma vez que a lei penal ainda não regulamentou os efeitos do caso julgado penal, que se têm de considerar como ainda em vigor as disposições regulamentadoras do tema que constavam do anterior Código de Processo Penal, na medida em que traduzem os princípios gerais do direito penal vigente entre nós.
Como consequência de uma tal conclusão surge uma outra, de especial interesse para a hipótese dos autos, e que é a de que se deve igualmente considerar em vigor o mencionado assento do Supremo Tribunal de Justiça acima referido.
Esta solução, de resto, entronca numa longa tradição jurídica, quer internacional, quer nacional, como se pode ver, quanto a esta última, pelas seguintes leis antigas do nosso direito:
Lei de D. Dinis, de 23 de Abril de 1345 (Ordenações de D. Duarte, p. 211):
Formação do caso julgado em todas as sentenças, quer interlocutórias, quer definitivas, dadas pelos Sobrejuízes ou pelos Ouvidores, salvo se tiverem sido dadas por falsos testemunhos, ou por falsos instrumentos, ou por falsas cartas, ou por outra maneira em que a sentença seja nenhuma (e ainda quando El-Rei veja primeiramente todo o feito ou o mandar ver e achar nele um erro tal que deva ser corrigido.
Lei de D. Dinis, de 21 de Fevereiro de 1322 (Ordenações Afonsinas, V, título CI, p. 359):
Se algum homem, daqui em diante, for por sentença quite e livre da justiça por El-Rei, ou pelos Ouvidores da sua Corte em qualquer caso de morte, que dali em diante, pois por sentença é livre, nenhum outro não seja tido de lho acoimar.
Ordenações Manuelinas, V, título LXXIII, p. 225:
Se algum for livre por nossa sentença, ou de nossos Julgadores, em qualquer caso que merecesse pena corporal, daí em diante, pois é livre por sentença, não seja mais acusado pelo dito caso, salvo sendo achado que ele se livrou ou foi livre por falsa prova ou por conluio algum que ele ou outrem por ele houvesse feito na primeira acusação, porque em tais casos poderá outra vez ser acusado e será preso desde que for provado que se livrou por conluio ou falsa prova.
Ordenações Filipinas, V, título CXXX, p. 1304:
Se algum for livre por sentença nossa, ou de nossos Julgadores em qualquer caso por que é posta pena corporal, não seja daí em diante mais acusado, salvo sendo achado que foi livre por falsa prova, ou por conluio que ele tivesse feito na primeira acusação, porque nestes casos poderá outra vez ser acusado, e será preso, desde que for provado que se livrou por conluio ou falsa prova.
As mesmas Ordenações, nos restantes parágrafos dos referidos títulos, porém, permitiam que, nos crimes de morte, o arguido absolvido com o fundamento da falta de citação dos parentes do falecido que devessem intervir no processo, pudesse ser novamente submetido a julgamento, a requerimento dos parentes não citados ou mal citados, embora com recurso a diversas cautelas de ordem processual.
Desta forma, e em função do que fica dito, não se pode aceitar como válida a apontada tese de que, quando o tribunal, em julgamento, considere haver lugar a uma requalificação jurídica dos factos acusados e provados que conduza ao enquadramento numa figura criminal diversa da acusada, terá de proceder a uma absolvição quanto ao crime acusado, e se terá de proceder a uma nova instrução, relativamente ao enquadramento jurídico dos factos que já anteriormente haviam sido apurados no processo.
Mas, se essa solução é proibida pela Constituição, serão teoricamente possíveis duas outras:
A de que, em tal caso, o Tribunal deveria sobrestar na decisão, por forma a aguardar a futura acusação, feita em harmonia com a nova qualificação da matéria objecto do julgamento, e a de que, na hipótese em causa, se não verifica a aplicabilidade dos comandos respeitantes à proibição da consideração de factos que correspondam a uma alteração substancial da acusação, precisamente porque a matéria de enquadramento jurídico-penal dos mesmos factos é exclusivamente de direito e, como tal, não está abrangida pelas disposições respeitantes à fórmula legal de «alteração substancial dos factos descritos na acusação».
A primeira das apontadas soluções enferma, desde logo, do vício de criar uma situação de litispendência (existência de dois processos simultâneos para apreciação da mesma matéria), que todo o sistema jurídico rejeita, por conduzir à maior incerteza, e por poder vir a traduzir-se numa violação, directa ou encapotada, da garantia essencial de defesa do cidadão, consignada no referido n.° 5 do artigo 29.° da Constituição.
Não pode, por tal motivo, ser aceite.
E é o reconhecimento implícito desta verdade que leva a que a evolução jurisprudencial deste Supremo apontada pelo Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto no seu douto parecer tenha sido no caminho de se considerar como mais correcto o entendimento que foi adoptado pelo acórdão recorrido, como de resto, nos dá conta o Ex.mo Conselheiro Maia Gonçalves, na última edição do seu Código de Processo Penal.
Nessa medida, fica unicamente como admissível a última das atrás indicadas soluções, adoptada pelo acórdão recorrido, e de que foi relator o do presente processo.
Por tal motivo, e nessa parte, o mesmo deve ser mantido.
Em consequência da assunção da posição que se acaba de expor, passa a ter acuidade um problema que já tem sido suscitado neste Supremo Tribunal, com entendimentos diversos, mas que, por não constituir objecto do presente recurso de fixação de jurisprudência, não pode ser nele decidido, e que é o de se determinar se o tribunal, ao proceder em julgamento (em 1.ª instância ou por via de recurso) a uma requalificação dos factos constantes da acusação ou da pronúncia (ou do anterior julgamento sob recurso), de molde a enquadrá-los numa figural criminal mais grave do que a inicialmente considerada, pode ou não aplicar uma pena superior à que caberia ao crime por cuja comissão o arguido foi acusado ou pronunciado, ou, mesmo, condenado (no indicado caso de recurso), especialmente se a agravação da medida da punição não tiver sido pedida no julgamento ou no recurso, por tal situação dever ser ou não subsumível à proibição da reformatio in pejus, constante do artigo 409 .° do Código de Processo Penal.
Note-se, no entanto, que, embora a matéria em causa não constitua objecto do recurso nestes autos, o recorrente teve a exacta noção da sua importância e não deixou de a aflorar nas suas alegações, quando defendeu que o sentido do acórdão a proferir deveria impedir a possibilidade de, mediante a requalificação jurídica dos factos constantes da acusação ou da pronúncia, se obter uma agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
Nestes moldes, e em harmonia com o que fica indicado, negam provimento ao recurso, confirmam o acórdão recorrido e estabelecem, com efeitos obrigatórios, nos termos do preceituado nos artigos 437.° e seguintes do Código de Processo Penal, a seguinte doutrina:
Para os fins dos artigos 1.°, alínea f), 120.°, 284.°, n.° 1, 303.°, n.° 3, 309.°, n.° 2, 359.°, números 1 e 2, e 379.°, alínea b), do Código de Processo Penal, não constitui alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica (ou convolação), ainda que se traduza na submissão de tais factos a uma figura criminal mais grave.
O recorrente, por ter decaído, vai condenado em 10 UCs, e no mínimo de procuradoria.
Dê-se oportuno cumprimento ao disposto no artigo 444.° do Código de Processo Penal.
Lisboa, 27 de Janeiro de 1993. - Bernardo Guimarães Fisher de Sá Nogueira - José Henriques Ferreira Vidigal (conquanto não me sinta vinculado pelo que se discreteou fora do thema decidendum) - Manuel da Rosa Ferreira Dias - Armando Pinto Bastos (com declaração igual à do Sr. Conselheiro Ferreira Vidigal) - José António Correia de Oliveira Abranches Martins (com declaração igual à do Sr. Conselheiro Ferreira Vidigal) - Fernando Faria Pimentel Lopes de Melo - António Joaquim Coelho Ventura (com declaração igual à do Sr.
Conselheiro Ferreira Vidigal) - Jorge Celestino da Guerra Pires - António de Sousa Guedes - Fernando Alves Ribeiro - José António Lopes Cardoso Bastos (com declaração idêntica à do Sr. Conselheiro Ferreira Vidigal)