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Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 3/2021, de 16 de Agosto

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Sumário

Quando o administrador da insolvência do promitente vendedor optar pela recusa do cumprimento de contrato-promessa de compra e venda, o promitente comprador tem direito a ser ressarcido pelo valor correspondente à prestação efetuada, nos termos dos artigos 106.º, n.º 2, 104.º, n.º 5, e 102.º, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março

Texto do documento

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 3/2021

Sumário: Quando o administrador da insolvência do promitente vendedor optar pela recusa do cumprimento de contrato-promessa de compra e venda, o promitente comprador tem direito a ser ressarcido pelo valor correspondente à prestação efetuada, nos termos dos artigos 106.º, n.º 2, 104.º, n.º 5, e 102.º, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei 53/2004, de 18 de março.

Processo 872/10.0TYVNG-B.P1.S1-A (Recurso para Uniformização de Jurisprudência)

***

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça no pleno das Secções Cíveis - art. 688 do CPC.

1 - Na sequência da sentença que declarou a Sociedade Santos & Pereira da Silva - Sociedade de Construções, Lda. em estado de insolvência, sentença que transitou em julgado, veio a Sra. Administradora da Insolvência apresentar a lista dos créditos a que se refere o artigo 129, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE), tendo sido apresentadas várias impugnações, nomeadamente a do ora recorrente AA e da sua mulher BB.

2 - Após efetivação da audiência de julgamento em 1.ª Instância, foi proferida sentença (em 04.05.2018) decidindo, no que ao presente recurso releva:

"- Declaro verificado o crédito de AA e BB no montante de 10.000 (euro) e qualifico-o como garantido".

A mesma sentença procedeu à graduação dos créditos e, no que ao presente recurso releva, decidiu:

"- Procedo à graduação dos créditos verificados, nos seguintes termos (por referência ao auto de apreensão a fls. 21-29 do apenso A):

i)- Quanto ao imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial da ...sob o n.º 13...2/200l1 009-A (verba n.º 9):

2º) - O crédito garantido (por direito de retenção) de AA e BB".

3 - Desta decisão recorreram AA e BB impugnando a matéria de facto fixada, tendo o Tribunal da Relação ...(por acórdão de 07-06- 2018) julgado procedente a apelação, alterando a matéria de facto [dando como provada a matéria da alínea a) referente à factualidade não provada, do seguinte teor: "Os impugnados AA e BB entregaram à Insolvente outras quantias para além da indicada em 6), como reforço do sinal, no total de 52.900,00(euro)"], alterando parcialmente a sentença (na parte em que decidiu "declaro verificado o crédito de AA e BB no montante de 10.000 (euro) e qualifico-o como garantido"), declarando "verificado o crédito de AA e BB no montante de 125.800,00(euro)" e qualificando-o como garantido.

4 - Inconformada recorreu de revista a credora CONSULTEAM - Consultores de Gestão, Lda., sendo proferido o Acórdão recorrido, com a seguinte decisão:

"Acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em julgar a revista parcialmente procedente, alterando o acórdão recorrido apenas quanto ao montante do crédito a reconhecer aos Recorridos AA e BB, que se fixa no valor de 62.900,00(euro) (sessenta e dois mil e novecentos euros)".

5 - Irresignado com a decisão do Acórdão, o credor AA veio interpor o presente recurso para o Pleno do Supremo Tribunal de Justiça com vista à uniformização de jurisprudência, nos termos do art. 688 e seguintes do Código de Processo Civil, invocando como fundamento a contradição entre o Acórdão recorrido e o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 09-07-2014, proferido no Processo 1206/11.2TBLSD-H.P1.S1 (que a fls. 7 identifica de forma incorreta).

6 - Apresentou as seguintes conclusões:

"I - Embora os Tribunais sejam livres de seguirem a Jurisprudência que julguem mais adequada, deve seguir-se a filosofia do Acórdão Uniformizador acolhido com o n.º 4/2014, salvo se forem aduzidos novos argumentos, não considerados na decisão que fixou a Jurisprudência ou que, considerando a legislação no seu todo a Jurisprudência já se encontra ultrapassada.

II - O não acatamento da Jurisprudência fixada em A.U.J. e argumentação jurídica que lhe serve de base, representa uma quebra injustificada do valor da Segurança jurídica e das legítimas expectativas dos interessados e causa danos na celeridade processual e eficácia dos Tribunais.

III - O promitente comprador do imóvel para sua habitação é um consumidor que tem proteção Constitucional- arts. 60 e 65.

IV - O artigo 106 n.º 2 do CIRE apenas tem aplicação aos contratos promessa com eficácia obrigacional, mas sem tradição da coisa ao promitente comprador.

V - No caso dum contrato promessa, sem eficácia real mas com tradição da coisa, em que o promitente comprador é um consumidor, a recusa do A.I. em cumprir esse contrato, confere-lhe o direito ao sinal em dobro.

VI - Devendo ser proferido, na esteira do A.UJ. n.º 4/2014, Acórdão Uniformizador no sentido que:

No âmbito duma insolvência não tendo sido cumprido um contrato promessa de compra e venda de imóvel destinado a habitação por recusa do Administrador de insolvência, em que o promitente comprador é um consumidor que tinha prestado um sinal e ocorrera a "traditio" da coisa, goza do direito de retenção e tem direito ao sinal em dobro, nos termos do n." 2 do art. 442 do C.C..

Termos em que, por erro de interpretação e aplicação do disposto no Acórdão Uniformizador n.º 4/2014, artigos 60 e 65 da C.R.P., n.º 2 do art. 106 e 104 n.º 1 do CIRE, art. 755 n.º 1 al. f), 799 n.º 1 e 442 n.º 2 todos do C.C. deve o Acórdão ser revogado e substituído pelo Acórdão Uniformizador que reconheça ao Recorrente o valor do sinal em dobro".

7 - Contra-alegou a credora CONSULTEAM - Consultores de Gestão, Lda., concluindo nos seguintes termos:

"1. Ficou definitivamente assente pelo Acórdão proferido no âmbito do recurso de Revista que que contrato promessa em causa nos presentes autos se mantinha em vigor à data de declaração de insolvência da promitente vendedora, subsistindo todos os seus efeitos jurídicos, não tendo ocorrido incumprimento definitivo.

2 - Assim sendo, os promitentes compradores terão que fazer valer os seus direitos no quadro do instituto dos "Efeitos sobre os negócios em curso", nos termos previstos no art. 102 n.º 3 do CIRE, aplicável ex-vi do art. 106 n.º 2 e 104 n.º 5 do CIRE, e não nos termos previstos no art. 442 do Código Civil, como seria norma.

3 - Ao administrador de insolvência foi conferido um direito de escolha ou de opção - o direito de dar ou recusar cumprimento aos contratos - que aquele deve exercer sempre em função dos interesses da massa insolvente e que se enquadra perfeitamente no quadro das suas funções típicas do administrador de insolvência, sendo um direito potestativo.

4 - Ainda que se admita que houve tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, a favor dos promitentes compradores, ao contrato promessa não foi atribuída eficácia real, ficando afastada a aplicabilidade da norma do n.º 1 do art. 106 do CIRE.

5 - A Administradora de Insolvência optou pelo não cumprimento do contrato promessa, tendo procedido à apreensão da fração objeto do contrato promessa a favor da massa insolvente e, posteriormente, à sua venda em sede de liquidação do ativo.

6 - Sendo tal recusa lícita, legítima e adequada aos fins do processo de insolvência, face ao disposto no artigo 106 do CIRE, ao direito potestativo de recusa de cumprimento dos negócios em curso.

7 - Será de aplicar o disposto no n.º 2 do art. 106 do CIRE que, ainda que indiretamente, remete para as regras gerais quanto aos efeitos da recusa de cumprimento do contrato pelo administrador de insolvência (cf. art. 104 n.º 5 e 102 n.º 3 do CIRE).

8 - Os promitentes compradores não têm direito à indemnização correspondente ao sinal em dobro, por falharem os pressupostos da ilicitude e da culpa, plasmados no art. 442 n.º 2 do Código Civil; têm apenas um direito de crédito, qualificado como crédito sobre a insolvência, calculado com base na diferença de valor entre as prestações.

9 - O Acórdão fundamento foi inexoravelmente condicionado pela doutrina perfilhada pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 4/2014 de 20.03.2014.

10 - É inaceitável que seja conferida força vinculativa às alegadas premissas da decisão de uniformização tendo em consideração que nem os Acórdãos de Uniformização de Jurisprudência gozam de força vinculativa quanto à questão, a não ser no âmbito do processo em que são proferidos (art. 4, n.º 1, da LOSJ).

11 - Até porque na situação em que recaiu o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 4/2014 não estava em causa saber se o credor tinha direito ao sinal em singelo ou em dobro.

12 - Do confronto do n.º 1 com o n.º 2 do artigo 106 do CIRE resulta, que o legislador quis tão só distinguir os casos em que a recusa do Administrador da Insolvência em cumprir o contrato é ilegítima (contratos-promessa com eficácia real, acompanhados da tradição da coisa) das situações em que tal recusa é legitima (contratos-promessa com eficácia real sem haver tradição da coisa e todos os contratos-promessa com eficácia obrigacional, com ou sem traditio).

13 - O elemento histórico reforça esta ideia, na medida em que o CIRE veio alterar o paradigma anterior do CPEREF, no que respeita aos efeitos da declaração de insolvência sobre os negócios em curso.

14 - O legislador de 2004 afastou o regime previsto no artigo 164-A n.º 1 do CPEREF, segundo o qual o contrato-promessa sem eficácia real que se encontrasse por cumprir à data da declaração de falência extinguia-se com esta e, sendo o falido o promitente-vendedor, dava lugar à restituição em dobro do sinal recebido, como dívida da massa falida.

15 - Assim, as consequências da recusa, legitima, do Administrador da Insolvência em cumprir o contrato-promessa com eficácia meramente obrigacional são as que resultam da conjugação do artigo 119 n.os 1 e 2, com o artigo 106 n.º 2, o qual remete para o artigo 104 n.º 5, que, por seu turno, remete para o artigo 102 n.º 3 al. c), do CIRE.

16 - Por todo o exposto, o Acórdão proferido no âmbito do recurso de Revista fez uma correta aplicação do direito, ao apoiar a decisão nos artigos 119 n.os 1 e 2 com o artigo 106 n.º 2, o qual remete para o artigo 104 n.º 5, que por sua vez remete para o artigo 102.º n.º 3 alínea c) do CIRE.

Termos em que deve ser proferido Acórdão Uniformizador no sentido que:

No âmbito de uma insolvência, não tendo ocorrido incumprimento definitivo do contrato promessa de compra e venda de imóvel à data da declaração de insolvência, os direitos do promitente comprador perante a recusa de cumprimento pelo Administrador de Insolvência são os que resultam das disposições conjugadas dos artigos 106, n.º 2, 104, n.º 5 e 102, n.º 3 c) do CIRE.

8 - O Recurso para Uniformização de Jurisprudência foi liminarmente admitido por despacho de fls. 73 a 81, no mesmo se referindo:

"Confrontando as referidas decisões evidencia-se:

1. ambas tiveram por objeto apreciar o montante do crédito do promitente- comprador (em ação de reclamação de créditos apensa ao processo de insolvência da promitente-vendedora) por referência ao sinal prestado, não tendo ocorrido incumprimento definitivo do contrato-promessa antes da declaração de insolvência da sociedade promitente-vendedora;

2. ambas tiveram por realidade fáctica a subsumir juridicamente a recusa do administrador da insolvência em cumprir os respetivos contratos-promessa de imóvel, sem eficácia real e em que ocorreu entrega do imóvel ao promitente-comprador:

3. ambas reconduziram a solução da questão das consequências do não cumprimento do contrato-promessa ao quadro legal composto pelas seguintes normas: artigos 442. n.º 2, do Código Civil, 102 e 106, n.os 1 e 2, do CIRE;

4. o acórdão recorrido concluiu que os direitos do credor promitente-comprador perante a recusa (lícita) por parte do administrador da insolvência em não cumprir o contrato não podem ser encontrados por aplicação do regime do n.º 2 do artigo 442 do Código Civil, mas no âmbito do CIRE, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 106, n.º 2, 104, n.º 5 e 102, n.º 3, alínea c); consequentemente fixou o montante do crédito no valor do sinal prestado;

5. o acórdão fundamento concluiu que os direitos do credor promitente-comprador perante a recusa por parte do administrador da insolvência em não cumprir o contrato não podiam ser encontrados nos termos das disposições conjugadas dos artigos 106, n.º 2, 104, n.º 5 e 102, n.º 3. alínea c), do CIRE, mas no regime do n.º 2 do artigo 442 do Código Civil, pelo que determinou o montante do crédito no valor do dobro do sinal prestado.

Evidencia-se pois que perante identidade substancial do núcleo da factualidade a subsumir juridicamente (recusa por parte do administrador da insolvência de cumprimento do contrato promessa de compra e venda de imóvel, sem eficácia real e com traditio) os acórdãos em confronto, assentando numa mesma base normativa, enveredaram por soluções jurídicas opostas (quanto à aplicabilidade/inaplicabilidade do regime do artigo 442, n.º 2, do Código Civil, e do regime previsto nos artigos 106, n.º 2 e 102, n.º 3, alínea c), do CIRE) na resposta a dar à questão essencial para a solução dos respetivos casos a apreciar - extensão do direito de crédito do promitente-comprador em função do sinal prestado em consequência do não cumprimento, pelo administrador da insolvência, do contrato-promessa de compra e venda de imóvel, sem eficácia real em que tenha ocorrido entrega da coisa - uma vez que interpretaram de forma divergente o mesmo regime normativo (O acórdão-fundamento afasta a aplicação do regime do artigo 106 n.º 2, do CIRE, ao contrato-promessa sem eficácia real com tradição, entendendo que o mesmo apenas assume cabimento nos casos de contrato-promessa com efeito obrigacional e sem tradição, tendo subjacente que quando ocorra tradição da coisa objeto do contrato, a recusa de cumprimento por parte do administrador da insolvência envolve um incumprimento culposo, caindo por isso na previsão do n.º l do artigo 106 do CIRE, e consequentemente, no regime do artigo 442, n.º 2, do Código Civil.

Ao invés. o acórdão recorrido, na interpretação que faz do citado artigo 106 n.º 2, do CIRE, não encontra distinção entre contrato-promessa obrigacional com e sem tradição, porquanto em ambas as situações (não ocorrendo incumprimento definitivo do contrato antes da declaração da insolvência) a recusa de cumprimento pelo administrador da insolvência consubstancia uma opção lícita conferida por lei, pelo que os direitos do credor promitente-comprador não podem ser aferidos por aplicação do regime do n.º 2 do artigo 442 do Código Civil, que tem subjacente o dever de cumprimento).

[...]".

9 - Enunciando a questão a resolver, a mesma consiste em saber se num processo de insolvência em que o Administrador recusa o cumprimento de um contrato promessa de compra e venda, com efeito obrigacional, um credor com a qualidade de promitente comprador, que entregou um sinal e obteve a tradição da coisa objeto do negócio, tem direito ao sinal prestado em dobro ou, em singelo, isto é, se tem direito a ser ressarcido, apenas, pelo valor que resultar da aplicação das normas dos artigos 106, n.º 2, 104, n.º 5 e 102, n.º 3, do CIRE aprovado pelo Decreto-Lei 53/2004, de 18 de março, ou se há lugar à aplicação da norma geral do n.º 2 do art. 442 do Código Civil.

Saber se a recusa de cumprimento do contrato-promessa por parte do Administrador da Insolvência envolve um incumprimento culposo, sendo aplicável o regime do artigo 442, n.º 2, do Código Civil.

Ou se a recusa de cumprimento por parte Administrador da insolvência corresponde a uma opção legal e as consequências se extraem exclusivamente das normas do CIRE.

*

Confirmação da contradição jurisprudencial:

O artigo 688 do Código de Processo Civil estabelece, no seu n.º 1, como fundamento do Recurso para Uniformização de Jurisprudência que:

"As partes podem interpor recurso para o pleno das secções cíveis quando o Supremo Tribunal de Justiça proferir acórdão que esteja em contradição com outro anteriormente proferido pelo mesmo tribunal, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito".

Como refere o AUJ n.º 6/2019, de 19/9/2019, in D.R. n.º 211/2019, Série I de 2019-11-04, "Encerra, assim, como pressuposto substancial de admissibilidade deste recurso, a existência de uma contradição decisória entre dois acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, sendo que a enunciada contradição dos julgados não implica que os mesmos se revelem frontalmente opostos, mas antes que as soluções aí adotadas sejam diferentes entre si, ou seja, que não sejam as mesmas [neste sentido, Pinto Furtado, in, Recursos em Processo Civil (de acordo com o Código de Processo Civil de 2013), Quid Juris, página 141], importando, pois, que as decisões, e não os respetivos fundamentos, sejam atinentes à mesma questão de direito, e que haja sido objeto de tratamento e decisão, quer no Acórdão recorrido, quer no Acórdão fundamento, e, em todo o caso, que essa oposição seja afirmada e não subentendida, ou puramente implícita.

Outrossim, é necessário que a questão de direito apreciada se revele decisiva para as soluções perfilhadas num e noutro acórdão, desconsiderando-se argumentos ou razões que não encerrem uma relevância determinante.

Por outro lado, exige-se, ao reconhecimento da contradição de julgados, a identidade substancial do núcleo essencial das situações de facto que suportam a aplicação, necessariamente diversa, dos mesmos normativos legais ou institutos jurídicos, sendo que as soluções em confronto, necessariamente divergentes, têm que ser encontradas no "domínio da mesma legislação", de acordo com a terminologia legal, ou seja, exige-se que se verifique a "identidade de disposição legal, ainda que de diplomas diferentes, e desde que, com a mudança de diploma, a disposição não tenha sofrido, com a sua integração no novo sistema, um alcance diferente, do que antes tinha" (neste sentido Pinto Furtado, ob. cit., página 142)".

Importa averiguar da contradição de julgados, entre o acórdão recorrido (proferido no processo de que este é apenso - 872/10.0TYVNG-B.P1.S1) e o acórdão fundamento (proferido no proc. 1206/11.2TBLSD-H.P1.S1). Isto porque o despacho do relator que admite o recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência e determina a remessa dos autos à distribuição não vincula o Pleno das Secções Cíveis, conforme art. 692, n.os 3 e 4, do CPC, pois o Pleno pode propender em sentido contrário ao acórdão da conferência que decida positivamente sobre a verificação dos pressupostos materiais e formais de que depende a admissão deste recurso extraordinário, então, por maioria de razão, está também o Pleno habilitado a divergir do entendimento professado pelo Relator no despacho a que alude o n.º 1 do mesmo preceito.

Analisados os acórdãos em confronto, afigura-se-nos verificarem-se os pressupostos da solicitada uniformização com base na apontada contradição.

A matéria de facto relevante é semelhante no acórdão recorrido e no acórdão fundamento, conforme enquadramento consignado na decisão liminar e a essa idêntica facticidade os acórdãos julgaram aplicar-se normas distintas, em clara oposição, entendendo o acórdão recorrido que devem ser aplicadas as normas do CIRE e o acórdão fundamento que deve ser aplicada a norma do Código Civil, donde resultaram decisões díspares: a daquele a reconhecer ao credor o direito somente ao prestado - a quantia a título de sinal, conforme art. 442 n.º 1 do Código Civil ("quando haja sinal, a coisa entregue deve ser imputada na prestação devida"); e a deste a reconhecer ao credor o direito ao dobro do prestado ("o dobro do que prestou", conforme redação do n.º 2 do art. 442 do CC).

O acórdão recorrido e o acórdão fundamento decidiram a mesma questão solvenda de modo divergente, mostrando-se, por isso, verificada a essencialidade da contradição.

Pelo que se conclui, na esteira da decisão liminar, que se encontram verificados os pressupostos substanciais para a admissibilidade do Recurso de Uniformização da Jurisprudência.

Pelo que há que dilucidar a questão já enunciada e que é:

Saber se a recusa de cumprimento do contrato-promessa por parte do Administrador da insolvência envolve um incumprimento culposo, sendo aplicável o regime do artigo 442, n.º 2, do Código Civil.

Ou se a recusa de cumprimento por parte Administrador da insolvência corresponde a uma opção legal e as consequências se extraem exclusivamente das normas do CIRE.

10 - Após cumprimento do disposto no n.º 1 do art. 687, ex vi art. 695, ambos do Código de Processo Civil, a Srª Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que "Em caso de recusa por parte do administrador de insolvência do cumprimento do contrato de promessa de compra e venda de um imóvel, sem eficácia real, e com traditio, (não existindo incumprimento definitivo do contrato promessa de compra e venda do imóvel por parte da parte vendedora antes da declaração da insolvência), o promitente comprador tem direito a um crédito no valor do sinal prestado, nos termos dos artigos 106.º n.º 1, 104.º n.º 5, 102.º n.º 3 alínea c), do CIRE".

Para tanto indica:

- Sobre as competências do Administrador da Insolvência: "Entre as suas funções incumbe-lhe também decidir o destino dos negócios jurídicos celebrados pelo insolvente, designadamente o cumprimento ou a recusa de cumprimento dos contratos, atuando vinculado aos superiores interesses da massa insolvente, visando a sua maximização, para ser maximizado também o produto a distribuir aos credores".

- "Neste âmbito, consagra-se no art. 102 do CIRE, um principio geral do qual resulta que, estando em causa contratos bilaterais ainda não cumpridos, o respetivo cumprimento fica suspenso, conferindo-se ao Administrador de insolvência o encargo de, agindo de forma criteriosa, optar pela recusa ou pelo cumprimento do contrato, em função daquela que seja no caso concreto a melhor solução para a prossecução dos interesses da massa insolvente e para a satisfação dos créditos sobre a insolvência (E o n.º 3 deste artigo vem regular as consequências da opção pelo não cumprimento por parte do Administrador)".

- "No caso vertente, tendo em conta que a questão que se coloca se prende com a resolução de um contrato promessa, importa ter em consideração o disposto nos arts. 106.º, 104.º n.º 5 e 102.º, todos do CIRE".

- "No caso que nos ocupa, o administrador da insolvência recusou cumprir um contrato-promessa bilateral de compra e venda, de um imóvel, com traditio antes da celebração do contrato prometido. O referido contrato não tinha eficácia real, sendo, pois, um contrato de eficácia meramente obrigacional e, ao tempo da declaração de insolvência era um negócio em curso, porque ainda não estava cumprido, nem definitivamente incumprido.

A questão que se coloca prende-se com saber quais os efeitos que a recusa de cumprimento, por parte do administrador da insolvência do promitente-vendedor, produz no contrato-promessa, obrigacional sinalizado, com entrega de coisa ao promitente-comprador e, mais concretamente, com saber se o promitente comprador tem direito, a um crédito no valor do sinal prestado, nos termos dos artigos 106.º n.º 1, 104.º n.º 5, 102.º n.º 3 alínea c) do CIRE, ou a um crédito no valor em dobro do sinal prestado, nos termos do artigo 442.º do Código Civil".

- "Da leitura dos arts. 106 n.º 1, 104 n.º 5, e 102 n.º 3 alínea c) do CIRE, transcritos supra resulta que, no âmbito do CIRE, não existe qualquer disposição legal que remeta, ou da qual se possa inferir remissão, para a aplicação do regime do sinal previsto no artigo 442.º CC, o que nos leva a concluir que o legislador, intencionalmente, afastou a aplicação desse regime ao regime da insolvência, optando por consagrar as normas específicas, constantes dos referidos normativos, para resolver esta questão".

- "Afigura-se-nos ainda que não é de aplicar o regime previsto no artigo 442.º n.º 2 do CC no caso sub judice, uma vez que os requisitos de aplicação de tal norma não se verificam. Com efeito, o regime estabelecido no artigo 442.º n.º 2 do CC está ligada ao incumprimento, seja do promitente-vendedor (caso em que deve restituir o sinal em dobro), seja do promitente-comprador (caso em que, sendo-lhe imputável o incumprimento, perde a favor do promitente-vendedor o sinal prestado) e pressupõe: - que o promitente devedor não cumpra o contrato promessa; que o não cumprimento do contrato promessa seja ilícito e, por último, que o não cumprimento ilícito do contrato promessa seja imputável ao devedor. Isto é, o regime estabelecido no n.º 2 do artigo 442.º CC pressupõe um incumprimento devido a causa imputável a um dos contraentes, resultando expressamente da letra da lei que a indemnização prevista nesse normativo apenas será devida em caso de incumprimento contratual culposo do inadimplente".

- "No caso em análise, desde logo não estamos perante uma situação de incumprimento do promitente vendedor, já que o contrato promessa se mantinha em vigor à data da declaração de insolvência".

- "O administrador de insolvência toma tal decisão [de não cumprimento do contrato promessa] no âmbito das atribuições e competências legalmente atribuídas pela lei insolvencial".

- "Esta tese é, aliás, reforçada face à redação do artigo 119.º do CIRE".

- "Face a redação deste normativo duvidas não existem que o disposto nos artigos 102 a 118.º do CIRE é imperativo o que, desde logo, exclui a aplicação do disposto no artigo 442.º do CC. De outra forma, seria incompreensível afirmar que as pretensões indemnizatórias das contrapartes, quando o administrador de insolvência recusa cumprir o contrato, não podem exceder o regime do CIRE".

- "Do que acaba de se expor, podemos assim concluir que está afastada a atuação do regime do sinal conforme vem disciplinado no art. 442.º do CCivil, justamente porque não é compatível com o regime específico fixado no processo de insolvência".

- "Acresce ainda referir que a solução que defendemos não é contrariada pela jurisprudência fixada no acórdão de fixação de jurisprudência 4/2014. É que no referido AUJ, o que estava em causa era (unicamente) saber se havia lugar ao direito de retenção para garantia do crédito resultante do não cumprimento da promessa por parte do administrador da insolvência, e foi sobre isto que se pronunciou decisoriamente o AUJ".

*

Foram colhidos os vistos.

Cumpre apreciar e decidir.

*

Resulta provada nos autos a seguinte matéria de facto (relevante):

3 - Por escrito particular de 13.11.2008, denominado «contrato de promessa de compra e venda», CC, na qualidade de gerente de Santos & Pereira da Silva, Lda., declarou prometer vender e os impugnados AA e BB declararam prometer comprar, pelo preço de 150.000 (euro), a moradia sita na Rua ..., n.º ..., freguesia de ..., concelho da ..., do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial da ...sob o n.º 13...2/091001 -cf. doc. de fls. 234-238) cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

4 - Do escrito particular referido em 3) consta, sob a Cláusula Terceira: "a-] Como sinal e princípio de pagamento, o(s) segundo(s) entrega(m) ao(s) primeiro(s) a quantia de (euro) 10.000,00 (...), de que se dá quitação"; b-) Reforço de sinal com o valor de (euro) 42.500,00 (...); c-] O restante pagamento no valor de (euro) 97.500,00 (...), serão liquidados no ato da escritura de compra e venda" - cf. doc. de fls. 234-238, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

5 - Do escrito particular referido em 3) consta, sob a Cláusula Quinta: "A Escritura pública de Compra e Venda da moradia prometida vender será efetuada logo que toda a documentação se encontre pronta para o efeito em Hora e Cartório a indicar pelo PRIMEIRO OUTORGANTE" - cf. doc. de fls. 234-238, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

6 - Relativamente ao preço indicado em 3), os impugnados AA e BB pagaram à Insolvente a quantia de 10.000 (euro).

7 - Em 2009, a Insolvente entregou as chaves da moradia referida em 3) aos impugnados AA e BB.

8 - Desde Setembro de 2009, os impugnados AA e BB tomam as suas refeições, pernoitam e recebem amigos na moradia referida em 3).

9 - No Processo 4464/09.9..., do.. Juízo Cível do Tribunal Judicial de ..., proposta pelos impugnados AA e BB contra Santos & Pereira da Silva - Sociedade de Construções, Lda., foi proferida sentença em 18.11.2009, fixando-se à ré o prazo de 60 dias, contado do respetivo trânsito em julgado, para a realização da escritura mencionada em 5) - cf. doe. de fls. 239-241, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

10 - Vazio Vertical, Lda. requereu a declaração de insolvência de Santos & Pereira da Silva - Sociedade de Construções, Lda., mediante petição inicial entrada em 4.11.2010, no Tribunal do Comércio de ... - cf. Fls. 2-33 dos autos principais.

11 - Por sentença proferida em 14.01.2011 e transitada em julgado em 24.02.2011, foi declarada a insolvência de Santos & Pereira da Silva - Sociedade de Construções, Lda. - cf. Fls. 55-63 dos autos principais.

12 - A Sra. Administradora da Insolvência optou pelo não cumprimento do acordo referido em 3).

13 - Foram apreendidos para a massa insolvente 48 imóveis da Insolvente - cf. auto de arrolamento e apreensão a fls. 21-29 do apenso A, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

FACTO ADITADO - Os impugnados AA e BB entregaram à Insolvente outras quantias para além da indicada em 6), como reforço do sinal, no total de 52.900,00(euro).

*

Direito a aplicar:

Considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão final a dilucidar respeita a saber se a recusa pelo Administrador da insolvência do cumprimento de contrato promessa com tradição do bem objeto do contrato implica a restituição do sinal em dobro ou a restituição do sinal em singelo.

A questão deve ser analisada à luz da lei e não como pretende o recorrente, que entende que "deve ter-se como objetivo primordial a defesa do interesse do consumidor que, confiando nas empresas, investe na compra da habitação própria que depois anda a pagar uma vida inteira".

A defesa do interesse do "consumidor" foi acautelada, em termos que nesta sede não relevam, pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2014, in DR. 1.ª S, n.º 95 de 19 de maio de 2014 (revista n.º 92/05.6TYVNG-M.P1.S1). E, nos presentes autos, como reconhece o acórdão recorrido, "perante a factualidade provada no ponto n.º 8 (desde setembro de 2009), AA e BB tomam as suas refeições, pernoitam e recebem amigos na moradia referida em 3)), considerando o uso que os Recorridos deram ao imóvel, resulta demonstrada a sua qualidade de consumidores e, consequentemente, há que reconhecer aos mesmos o direito de retenção sobre o imóvel".

Assim como nesse Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2014 foi acautelado o direito de retenção do promitente comprador, como consta do segmento uniformizador, nos seguintes termos: "No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente comprador em contrato, ainda que com contrato com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no art. 755.º, n.º 1, alínea f), do Código Civil".

O caso dos autos é o de um contrato-promessa com eficácia meramente obrigacional e com tradição da coisa e em que o promitente comprador é um consumidor, o que lhe confere o direito de retenção estando abrangido pelo conceito de consumidor resultante do referido AUJ n.º 4/2014.

"O direito de retenção consiste na faculdade de origem legal (por contraposição à génese negocial, administrativa ou judicial) de recusa do cumprimento da obrigação de restituição ou entrega de uma coisa detida enquanto o credor de tal obrigação não cumprir, por sua vez, uma obrigação de que é devedor, e de executar a coisa, pagando-se pelo valor dela, com preferência sobre os demais credores" - João Pedro Nunes Maldonado "O Direito de Retenção do Beneficiário da Promessa de Transmissão de Coisa Imóvel e a Hipoteca", in Revista Julgar n.º 13/2011.

O direito de retenção no caso vertente apenas funciona como meio de persuasão sobre a contraparte e de garantia sobre o montante do crédito.

Questão distinta é a que agora se analisa.

Importando decidir se num contrato-promessa com eficácia meramente obrigacional e com tradição da coisa e em que o promitente comprador é um consumidor, o que lhe confere o direito de retenção estando abrangido pelo conceito de consumidor resultante do referido AUJ n.º 4/2014, deve ser ressarcido pela prestação efetuada, (sinal e reforços efetuados), em singelo ou, em dobro.

Dúvidas não existem de que o recorrente e a sociedade insolvente celebraram um contrato promessa de compra e venda de um prédio urbano (uma moradia) e que em consequência da declaração da insolvência da promitente vendedora a AI recusou o cumprimento, ou seja, recusou a celebração do contrato definitivo (optou pelo não cumprimento).

Perante tal recusa do AI, qual o montante do crédito do promitente comprador?

O montante correspondente à prestação efetuada (entendendo-se a quantia entregue a título de sinal como prestação efetuada pelo promitente comprador, sendo que o art. 442 n.º 1 do CC refere que quando haja sinal "a coisa entregue deve ser imputada na prestação devida", pelo que tem de ser considerado o sinal como algo mais que uma prestação realizada apenas como mera garantia de cumprimento) ou pode exigir o dobro do que prestou?

Numa situação "normal" de incumprimento do contrato promessa de compra e venda regeria o estatuído no art. 442 do Código Civil uma vez que foram prestadas quantias que integram o conceito de sinal.

Dispõe o art. 442 com a epígrafe - (Sinal)

"1 - Quando haja sinal, a coisa entregue deve ser imputada na prestação devida, ou restituída quando a imputação não for possível.

2 - Se quem constitui o sinal deixar de cumprir a obrigação por causa que lhe seja imputável, tem o outro contraente a faculdade de fazer sua a coisa entregue; se o não cumprimento do contrato for devido a este último, tem aquele a faculdade de exigir o dobro do que prestou, ou, se houve tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, o seu valor, ou o do direito a transmitir ou a constituir sobre ela, determinado objetivamente, à data do não cumprimento da promessa, com dedução do preço convencionado, devendo ainda ser-lhe restituído o sinal e a parte do preço que tenha pago.

3 - Em qualquer dos casos previstos no número anterior, o contraente não faltoso pode, em alternativa, requerer a execução específica do contrato, nos termos do artigo 830; se o contraente não faltoso optar pelo aumento do valor da coisa ou do direito, como se estabelece no número anterior, pode a outra parte opor-se ao exercício dessa faculdade, oferecendo-se para cumprir a promessa, salvo o disposto no artigo 808.

4 - Na ausência de estipulação em contrário, não há lugar, pelo não cumprimento do contrato, a qualquer outra indemnização, nos casos de perda do sinal ou de pagamento do dobro deste, ou do aumento do valor da coisa ou do direito à data do não cumprimento".

Mas, no caso vertente, verificou-se, entretanto (antes do cumprimento do contrato promessa), a declaração de insolvência da promitente vendedora e a declaração de insolvência provoca efeitos nas relações jurídicas que subsistem nessa data (o contrato promessa subsistia), regidos pelos arts. 102 e seguintes do CIRE, ou seja, o capítulo IV, com a epígrafe "Efeitos sobre os Negócios em Curso".

A insolvência ocorre quando se verifica a impossibilidade de cumprimento da generalidade das obrigações vencidas, seja o incumpridor pessoa singular ou coletiva, podendo em caso de insolvência iminente, a empresa requerer ao tribunal a instauração de PER, ou no caso de devedores de outra natureza (que não empresas) requererem ao tribunal processo especial para acordo de pagamento - arts. 1 e 2 do CIRE.

Não tendo o contrato promessa eficácia real, pode ser afetado o negócio, podendo ser recusado o cumprimento desse contrato mesmo que se tenha verificado tradição da coisa, conforme disposto no n.º 1 do art. 106 do CIRE, interpretação "a contrario". Este é também o entendimento de vasta doutrina, nomeadamente Nuno Pinto Oliveira e Catarina Serra in "Insolvência e Contrato Promessa: Os Efeitos da Insolvência sobre o Contrato-promessa com Eficácia Obrigacional" e entre outros que citam, os profs. Calvão da Silva, Carvalho Fernandes e João Labareda, e Lebre de Freitas.

Entendimento distinto tem Menezes Leitão, in "Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas" anotado, pág. 145, que entende como inadmissível a recusa de cumprimento de qualquer contrato promessa (mesmo que tenha eficácia meramente obrigacional) sempre que exista tradição da coisa. Entende que o direito de retenção confere ao titular, ou constitui, uma garantia real que não pode deixar de ser atendida em sede de insolvência.

José Carlos Brandão Proença in "Para a necessidade de uma melhor tutela dos promitentes adquirentes de bens imóveis (máxime, com fim habitacional)", in "Cadernos de Direito Privado", 2008, n.º 22, pág. 21, sustenta, implicitamente, que essa tese de Menezes Leitão não pode ser sufragada, considerando o direito constituído, mas deveria ser pensada em futuras alterações legislativas, com a preocupação de se buscar uma melhor tutela dos promitentes adquirentes de bens imóveis, maxime, com fim habitacional em que houve tradição da coisa, perante a insolvência do promitente vendedor.

O certo é que, de jure constituto, a lei consagra a opção de não ser cumprido o contrato promessa e, tendo a AI declarado optar pela recusa no cumprimento do contrato promessa, por aplicação daquele art. 106 (interpretação "a contrario") e 104 n.º 5, é aplicável, em consequência desse incumprimento, o disposto no art. 102, nomeadamente no seu n.º 3, todos do CIRE.

Dispõe este art. 102, com a epígrafe "Princípio geral quanto a negócios ainda não cumpridos":

"1 - Sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes, em qualquer contrato bilateral em que, à data da declaração de insolvência, não haja ainda total cumprimento nem pelo insolvente nem pela outra parte, o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento.

2 - A outra parte pode, contudo, fixar um prazo razoável ao administrador da insolvência para este exercer a sua opção, findo o qual se considera que recusa o cumprimento.

3 - Recusado o cumprimento pelo administrador da insolvência, e sem prejuízo do direito à separação da coisa, se for o caso:

a) Nenhuma das partes tem direito à restituição do que prestou;

b) A massa insolvente tem o direito de exigir o valor da contraprestação correspondente à prestação já efectuada pelo devedor, na medida em que não tenha sido ainda realizada pela outra parte;

c) A outra parte tem direito a exigir, como crédito sobre a insolvência, o valor da prestação do devedor, na parte incumprida, deduzido do valor da contraprestação correspondente que ainda não tenha sido realizada;

d) O direito à indemnização dos prejuízos causados à outra parte pelo incumprimento:

i) Apenas existe até ao valor da obrigação eventualmente imposta nos termos da alínea b);

ii) É abatido do quantitativo a que a outra parte tenha direito, por aplicação da alínea c);

iii) Constitui crédito sobre a insolvência;

e) Qualquer das partes pode declarar a compensação das obrigações referidas nas alíneas c) e d) com a aludida na alínea b), até à concorrência dos respectivos montantes.

4 - A opção pela execução é abusiva se o cumprimento pontual das obrigações contratuais por parte da massa insolvente for manifestamente improvável" (sublinhado nosso).

Se o cumprimento do contrato fica suspenso até decisão do AI e este pode optar entre cumprir ou recusar o cumprimento do contrato promessa (direito potestativo do AI), só se pode concluir que não estamos perante uma promessa incumprida em termos definitivos e em data anterior à declaração da insolvência.

A aplicação do n.º 2 do art. 442 do Código Civil pressupõe o incumprimento definitivo, ilícito e culposo dos próprios contratantes.

E não há correspondência entre a opção lícita de não cumprimento do administrador da insolvência e o incumprimento ilícito e culposo de um dos contraentes.

Como refere a Exmª PGA no parecer que emitiu, "Entre as suas funções [do Administrador de Insolvência] incumbe-lhe também decidir o destino dos negócios jurídicos celebrados pelo insolvente, designadamente o cumprimento ou a recusa de cumprimento dos contratos, atuando vinculado aos superiores interesses da massa insolvente, visando a sua maximização, para ser maximizado também o produto a distribuir aos credores".

O legislador optou pela regulamentação (no CIRE) dos negócios pendentes à data da declaração de insolvência, sem necessidade de nos socorrermos do princípio geral previsto no Código Civil - art. 442 - para o incumprimento de contrato promessa quando haja prestações efetuados pelo promitente comprador, que constituam sinal, ou neste possam ser incorporadas (reforços). Mas mesmo a lei geral, art. 442 do Código Civil, só tem aplicação na situação de o incumpridor "deixar de cumprir a obrigação por causa que lhe for imputável".

E é a lei (CIRE) que admite a recusa do cumprimento por parte do administrador, o que significa que não há obrigação de cumprimento, donde resulta o afastamento da ilicitude e da culpa, em tal situação. "Poder potestativo que o CIRE atribui ao administrador da insolvência de dar ou recusar o cumprimento de contratos pendentes, ou seja ainda não cumpridos", como se lhe refere o Ac. do STJ de 12/07/2011 proferido no proc. 509/08TBSCB-K.C1.S1.

Trata-se de exceção ao princípio geral em matéria de contratos consagrado no art. 406 do Código Civil "pacta sunt servanda" de que os contratos devem ser pontualmente cumpridos. Mas mesmo aí se prevê a exceção "nos casos admitidos na lei".

Como vimos dizendo, entendeu o acórdão recorrido: "perante a recusa de cumprimento do contrato-promessa pela Administradora da Insolvência, há que aplicar o regime indemnizatório previsto no artigo 102, do CIRE, designadamente no seu n.º 3, por forma a ressarcir os promitentes-compradores pelo incumprimento do contrato, regime que resulta da aplicação articulada do disposto nos artigos 102, n.º 3, alínea c), 104, n.º 4 e 106, n.º 2, todos do CIRE: direito igual ao valor da prestação do devedor, na parte incumprida, deduzido o valor da contraprestação correspondente que ainda não tenha sido realizada, acrescido de indemnização pelos prejuízos sofridos em virtude do incumprimento. Considerando que não ficou provada a existência de qualquer diferença entre o valor do imóvel objeto do contrato-promessa na data da recusa de cumprimento e o preço convencionado entre os contraentes, o crédito dos promitentes-compradores terá de se reconduzir ao montante do sinal prestado e seus reforços que, conforme apurado, tem o valor de 62.900,00(euro)".

Esse entendimento, que sufragamos, é também expresso por Nuno Pinto Oliveira e Catarina Serra in "Insolvência e Contrato Promessa: Os Efeitos da Insolvência sobre o Contrato-promessa com Eficácia Obrigacional", in https://portal.oa.pt, que salientam o direito de opção do AI como "um direito enquadrado no conjunto de funções típicas do administrador da insolvência", este deve "optar, em cada caso, pela solução que melhor servir as finalidades do processo de insolvência", maximizar o valor da massa insolvente, "no sentido de que o processo de insolvência deve perseguir, não uma satisfação individual ou seletiva, mas sim uma satisfação coletiva e paritária - a satisfação mais completa possível do maior número possível de credores".

E sobre a questão concreta de saber se o direito potestativo de recusa de cumprimento do contrato promessa pelo AI é compatível com a atribuição (ou exigência) do sinal em dobro pelo promitente adquirente, estes autores concluem que não, porque conflituaria com o regime instituído pelo CIRE, arts. 102 a 119: "o devedor não tem a possibilidade de cumprir, por causa do art. 81, n.º 1 do CIRE, e o administrador da insolvência não tem a necessidade de cumprir, por causa do art. 102 e 106 do CIRE".

E concluem Nuno Pinto Oliveira e Catarina Serra que, "se alguma dúvida subsistisse sobre a inaplicabilidade do art. 442 do CC à recusa de cumprimento do contrato promessa pelo administrador da insolvência, o art. 119 do CIRE eliminá-la-ia. O n.º 1 do art. 119 do CIRE acolhe o princípio de que as disposições dos arts. 102 a 118 do CIRE são imperativas e o n.º 2 concretiza-o, dizendo: «é em particular nula a cláusula que [...] confira à parte contrária um direito de indemnização [...] em termos diversos dos previstos neste capítulo»" e, "se, porventura, a cláusula de sinal se aplicasse à recusa de cumprimento do contrato-promessa, seria (total ou parcialmente) nula, por violação do art. 119 do CIRE".

No mesmo sentido, Margarida Costa Andrade e Afonso Patrão, "Comentário ao Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 4/2014":

"A posição jurídica do beneficiário de promessa de alienação no caso de insolvência do promitente-vendedor", in JULGAR online, setembro de 2016, pág. 3, referindo "aquando da declaração de insolvência do promitente vendedor, o destino do contrato promessa é objeto de regulamentação do CIRE. Assim, a lei falimentar prescreve um princípio geral para os negócios em curso (art. 102 do CIRE), nos termos do qual estes ficam suspensos, podendo o administrador de insolvência optar por cumprir ou recusar o adimplemento. Esta regra prevê ainda um regime indemnizatório da contraparte, quando o administrador de insolvência decida não cumprir tais contratos, e é complementada com regras especiais no que tange a certos tipos contratuais (entre os quais, o contrato promessa de compra e venda - art 106), assumindo as normas deste capítulo do CIRE natureza imperativa (art. 119 CIRE) e não podendo ser derrogadas por condições indemnizatórias fixadas pelas partes".

Acrescentam a fls. 12 que o CIRE consagra dois regimes jurídicos para os contratos promessa: "se bem se atentar na redação do CIRE, a lei estabelece um regime geral - nos termos do qual ao administrador de insolvência cabe decidir executar ou violar os contratos em curso (art. 102 do CIRE) - e, no que a contratos promessa diz respeito, daqui exceciona somente as promessas com eficácia real em que tenha havido entrega da coisa (n.º 1 do art. 106 do CIRE). Todos os demais (aqueles em que não se verifiquem cumulativamente os três requisitos do art. 106/1 - eficácia real, tradição da coisa e ser insolvente o promitente vendedor) estão sujeitos ao princípio geral segundo o qual cabe ao administrador de insolvência decidir pelo cumprimento ou não do contrato prometido". E prosseguem a fls. 14: "em todos os casos em que o administrador pode decidir não cumprir o contrato-promessa (a regra geral do art. 102 CIRE), a indemnização do promissário é regulada em norma especial (n.º 2 do art. 106 CIRE) que, por força do princípio lex specialis derogat legi generali e da norma interpretativa do art. 119 CIRE, afasta a indemnização do promitente-comprador regulado no Código Civil. Isto é, o n.º 2 do art. 106 CIRE substitui, em todos os contratos-promessa sujeitos ao princípio geral do art. 102 CIRE, o regime do Código Civil de indemnização do beneficiário da promessa. Com efeito, se assim não fosse, a norma falimentar do n.º 2 do art. 106 não teria razão de ser, porquanto sempre seria aplicável a lei civil à tutela do promissário; nesse caso, o legislador puramente estabeleceria o direito de o administrador de insolvência não cumprir o contrato-promessa, sem se preocupar com regular, em lei especial, uma solução indemnizatória própria (o regime dos arts. 102 e 104/5 CIRE). É certo que a remissão "com as necessárias adaptações" para o cálculo indemnizatório regulado no n.º 5 do art. 104 CIRE (por sua vez, remetendo para a regra ressarcitória do n.º 3 do art. 102 CIRE) não contempla especificamente a devolução do sinal, mas apenas a diferença entre as prestações das partes. Todavia, a restituição do sinal é a solução a que se chega quer por via do regime geral de incumprimento do contrato-promessa por causa não imputável às partes; quer pelo princípio de que a resolução do contrato importa a restituição de tudo quanto haja sido recebido; quer por via do enriquecimento sem causa".

E a fls. 15 que, "quando é o administrador de insolvência a decidir não cumprir o contrato promessa", os pressupostos do n.º 2 do art. 442 do Código Civil nunca serão preenchidos (que seja o devedor a deixar de cumprir; que o incumprimento seja ilícito; que a ilicitude seja imputável ao promitente vendedor).

Salienta o Prof. Calvão da Silva in, "Sinal e contrato promessa", Almedina, p. 143, que: "O regime jurídico do art. 442, n.º 2 pressupõe um incumprimento devido a causa imputável ao tradens ou ao accipiens do sinal. É o que resulta do próprio texto do artigo em análise. Pelo que, em caso de incumprimento devido a causa não imputável a qualquer dos contraentes, os efeitos do sinal, previstos e regulados no art. 442, n.º 2, não se produzem. É que quando a prestação se torna impossível por causa não imputável ao devedor, a obrigação extingue-se (art. 790), ficando o credor desobrigado da contraprestação ou com o direito, se já a tiver realizado, de exigir a sua restituição nos termos previstos para o enriquecimento sem causa (art. 795, n.º 1), não havendo lugar a indemnização por falta de culpa do devedor."

O Prof. O. Ascensão, na Revista da Ordem dos Advogados, Ano 65, setembro de 2005, in "Insolvência: Efeitos sobre os Negócios em Curso", refere: "No propósito de conciliar quanto possível as finalidades da insolvência com a situação da contraparte, a lei reformula as posições em presença, fazendo surgir novos poderes e deveres. Não a orienta, neste momento, a preocupação de uma indemnização da contraparte, porque não assenta na ideia de ressarcimento de prejuízos. A lei penetra nos próprios termos, para a reconfigurar nos termos que considere mais conveniente."

Por sua vez, Nuno Pinto Oliveira, in "A qualificação do crédito resultante da não execução de contrato-promessa" in III Congresso de Direito da Insolvência (Centro de Estudos Judiciários), diferencia o direito à indemnização do direito à restituição do sinal, entendendo que este corresponde a um crédito sobre a massa insolvente e que tem como fundamento para a restituição o enriquecimento sem causa.

Que a recusa pelo AI no cumprimento de contrato ainda pendente à data da declaração de insolvência é uma recusa lícita também resulta do preâmbulo do CIRE, onde expressamente se refere:

"O capítulo dos efeitos da declaração de insolvência sobre os negócios jurídicos em curso é um daqueles em que a presente reforma mais se distancia do regime homólogo do CPEREF. Ele é objeto de uma extensa remodelação, tanto no plano da forma como no da substância, que resulta de uma mais atenta ponderação dos interesses em causa e da consideração, quanto a aspetos pontuais, da experiência de legislações estrangeiras. Poucas são as soluções que se mantiveram inalteradas neste domínio. De realçar é desde logo a introdução de um «princípio geral» quanto aos contratos bilaterais, que logo aponta para a noção de «negócios em curso» no âmbito do processo de insolvência: deverá tratar -se de contrato em que, à data da declaração de insolvência, não haja ainda total cumprimento tanto pelo insolvente como pela outra parte. O essencial do regime geral disposto para tais negócios é o de que o respetivo cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento. Vários outros tipos contratuais são objeto de tratamento específico, surgindo diversas e relevantes inovações nos domínios da compra e venda, locação, mandato, entre outros. O capítulo termina com uma importante norma pela qual se determina a nulidade de convenções que visem excluir ou limitar a aplicação dos preceitos nele contidos. Ressalvam-se, porém, os casos em que a situação de insolvência, uma vez ocorrida, possa configurar justa causa de resolução ou de denúncia do contrato em atenção à natureza e conteúdo das prestações contratuais, o que poderá suceder, a título de exemplo, no caso de ter natureza infungível a prestação a que o insolvente se obrigara" (sublinhado nosso).

Nessa senda, o Cons. Sebastião Póvoas concluiu na declaração de voto de vencido aposta ao AUJ n.º 4/14: "Mas, e como acenei, o citado n.º 2 do artigo 106, do CIRE, com remissão em 2.º grau para o também citado artigo 102, estabelece um regime autónomo de regulação das consequências da recusa de cumprimento da promessa de contrato sem eficácia real, "maxime" quanto à indemnização, a tornar inaplicável o artigo 442 do Código Civil".

Assim, o promitente adquirente tem direito à restituição em valor do que tenha prestado, ou seja, o valor do sinal pago e entregue à (futura) insolvente.

Este é o caminho percorrido no acórdão recorrido e que também elegemos.

E em igual sentido, o Ac. do STJ de 18-09-2018, no proc. n.º 1210/11.0TYVNG-D.P1.S1, onde se concluiu: "I - A opção do administrador da insolvência pelo não cumprimento da promessa de venda feita pelo insolvente, dotada de eficácia meramente obrigacional, constituiu um ato lícito e não culposo. II - Sendo assim, não é adequado trazer à discussão o n.º 2 do art. 442 do CC (seja por aplicação direta seja por analogia), pois que a atuação do regime do sinal ali prevista pressupõe um incumprimento definitivo, ilícito e culposo dos próprios contratantes (anteriormente à declaração da insolvência), não se podendo fazer equivaler a opção lícita de não cumprimento do administrador da insolvência a esse incumprimento ilícito e culposo. III - O direito do credor promissário deve ser encontrado exclusivamente no CIRE, nos termos das disposições conjugadas dos respetivos arts. 106.º, n.º 2, 104.º, n.º 5 e 102.º, n.º 3, al. c)".

E se acrescenta: "Embora o que acaba de ser dito não se apresente incontroverso na doutrina - no sentido da aplicação do art. 442.º, n.º 2 do CCivil aos casos de recusa de cumprimento pelo administrador da insolvência pronunciam-se Pestana de Vasconcelos (Cadernos de Direito Privado, n.os 24 e 33, pp. 3 e seguintes e 43 e seguintes, respetivamente) e Gravato Morais (Cadernos de Direito Privado, n.º 29, pp. 3 e seguintes) -, corresponde, com maior ou menor detalhe, ao entendimento maioritário da doutrina (assim, Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, pp. 234 a 238; Pinto Oliveira e Catarina Serra, Revista da Ordem dos Advogados, ano 70, pp. 399 e seguintes; Pinto Oliveira, Cadernos de Direito Privado, n.º 36, pp 3 e seguintes; Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, 3.ª ed., pp. 472 e 473; Ana Prata et al., Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, p. 312 e 320; Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2.ª ed., pp. 186 e 190; Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 6.ª ed., p. 187, Gisela César, Os Efeitos da Declaração de Insolvência Sobre o Contrato-Promessa em Curso, p. 203)".

A que podemos adir:

- No sentido de que o direito do credor promitente comprador deve ser encontrado exclusivamente no CIRE: - Calvão da Silva, Sinal e Contrato-Promessa, 13.ª edição revista e aumentada, Almedina, Coimbra, 2010, p. 172 a 174; - José de Oliveira Ascensão, "Insolvência: Efeitos sobre os negócios em curso", in Themis (Edição especial), Faculdade de Direito, Universidade Nova de Lisboa, 2005, p. 105 a 130 (em especial, p. 124 e 125).

- No sentido da aplicação do art. 442, n.º 2 do CCivil: - Pedro Guilherme Pereira Tavares, Os Efeitos da Declaração de Insolvência no Contrato-Promessa - Novas Questões, Dissertação de mestrado sob orientação da Prof. Doutora Maria de Fátima Ribeiro, Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Direito, Escola do Porto, Maio de 2018 (em especial, p. 22 a 27, 30 e 35 a 40).

- No sentido da aplicabilidade, por recurso à analogia, do regime do CC: - Henrique dos Santos Aparício, O Direito de Retenção em Portugal, O exercício do direito de retenção pelo promitente-comprador em Portugal à luz do Direito Português Actual, Dissertação de Mestrado sob orientação do Professor Doutor Luís Menezes Leitão, maio de 2012, p. 107 a 142 (em especial, p. 191: - no que tange ao sinal em dobro e ao direito de retenção - nos casos em que o promitente-comprador seja consumidor).

A nível da Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça destacamos:

1 - No sentido da aplicabilidade do regime do CIRE:

- O acórdão recorrido, já referido.

- Ac. de 12-05-2011, no proc. n.º 5151/06.5TBAVR.C1.S1 - 7.ª Secção ("Não se verificando os requisitos especialmente previstos pelo art. 106.º do CIRE, é aplicável o disposto no art. 102.º à recusa de cumprimento de um contrato-promessa de compra e venda, por parte do administrador da insolvência").

- Ac. de 4-06-2011, no proc. n.º 6132/08.0TBBRG-J.G1.S1 - 6.ª Secção ["A recusa do administrador em executar o contrato não exprime incumprimento mas "reconfiguração da relação", tendo em vista a especificidade do processo insolvencial, não sendo aplicável o conceito do art. 442.º, n.º 2, do CC - "incumprimento imputável a uma das partes" ...(neste caso ficcionando que a parte que incumpre seria o administrador da insolvência na veste do promitente ou em representação dele), pelo que não se aplica o regime daquele normativo e, como tal, não tem o promitente-comprador direito ao dobro do sinal até por força do regime imperativo do art. 119.º do CIRE"].

- Ac. de 05-04-2016, no proc. n.º 128/13.7TBBRG-B.G1.S1- 6.ª Secção ("Não tendo havido incumprimento culposo, como referido em I, não se aplica a sanção do art. 442.º, n.º 2, do CC, pelo que os recorrentes apenas têm direito à restituição do valor por eles entregue, a título de sinal").

- Ac. de 21-06-2016, no proc. n.º 3415/14.3TCLRS-C.L1.S1 - 6.ª Secção ("I - O art. 106.º, n.º 2, do CIRE, permite ao administrador de insolvência recusar o cumprimento de contrato-promessa com eficácia meramente obrigacional e tradição da coisa. II - Neste caso, ao direito de indemnização do promitente-comprador aplica-se o disposto no art. 102.º, n.º 3, por força daquele artigo e do art. 104.º, n.º 5, todos do CIRE, e não o disposto no art. 442.º do CC").

- Ac. de 18-09-2018, no proc. 1210/11.0TYVNG-D.P1.S1 - 6.ª Secção, já supra referenciado.

- Ac. de 18-06-2019, no proc. n.º 88/14.7T8OVR.P1.S1 - 6.ª Secção ("Tendo havido incumprimento por parte do Administrador da Insolvência, nos termos art. 102.º, n.º 3, alínea c) do CIRE os autores têm o direito de exigir o valor da prestação do devedor insolvente, na parte por este ainda não cumprida, deduzido do valor da contraprestação correspondente ainda não realizada por aquela").

2 - No sentido da aplicabilidade do regime do CC:

- O acórdão fundamento, já referido.

- Ac. de 13-11-2014, no proc. n.º 1980/11.6T2AVR-B.C1.S1 - 6.ª Secção ("II - A recusa de cumprimento do contrato em curso, por parte do administrador da insolvência, legitima que se endosse ao próprio insolvente, em termos de imputabilidade reflexa, o incumprimento definitivo daquele contrato. III - O art. 106.º, n.º 2, do CIRE, reclama uma interpretação restritiva, de molde a considerar-se que o mesmo se aplica apenas às promessas não sinalizadas, devendo aplicar-se às demais - promessas sinalizadas - a disciplina civilista do art. 442.º, n.º 2").

*

Mas, vejamos os argumentos do acórdão fundamento, de 09-07-2014, no Proc. n.º 1206/11.2TBLSD-H.P1.S1.

Aí se concluiu, como sumariado: "II - O promitente-comprador que, beneficiando da tradição do imóvel, viu recusado, pelo administrador da insolvência, o cumprimento do contrato-promessa de compra e venda, nos termos do art.102 do CIRE, tem um crédito sobre a massa insolvente correspondente ao sinal em dobro, nos termos do art. 442, n.º 2, do CC, conforme fundamentado no AUJ n.º 4/2014, de 20-03-2014, publicado no DR 1.ª série, n.º 95, de 19-05-2014".

Este acórdão veio, na esteira dos fundamentos explanados no AUJ n.º 4/2014 e acompanhando a doutrina de Pestana de Vasconcelos, Gravato de Morais in "Cadernos de Direito Privado" n.º 29 págs. 3 ss., entender não estar prevista no n.º 2, art. 106 a regulamentação do contrato promessa com efeito meramente obrigacional e em que se verificou a tradição do objeto ao promitente comprador.

Nesse AUJ n.º 4/2014 entendeu-se que o n.º 2 do art. 106 apenas se aplica ao contrato promessa com efeito meramente obrigacional e em que não se verificou a tradição da coisa ao promitente comprador porque "só aqui, e a menos que uma das partes tenha cumprido integralmente a sua obrigação, poderá o administrador optar por cumprir ou recusar a execução do contrato". Em suma, concluiu-se nesse aresto que, "não sendo afetado o contrato-promessa, mantêm-se os efeitos do incumprimento a que se reporta o artigo 442 n.º 2 do Código Civil" e, igualmente, haver imputação de culpa (imputação reflexa) no caso de insolvência pelas causas que determinaram essa mesma insolvência, porque "a insolvência não surge do nada, radicando antes e à partida no comportamento de uma entidade que se mostrou não ter cumprido as suas obrigações".

Entendemos que assim poderia ser, mas apenas nos casos de insolvência dolosa, em que o devedor age com intenção de prejudicar os credores e por esse modo provoca a insolvência, o que constitui crime, conforme art. 227 do Código Penal, que o prevê e pune.

Mas, na maior parte das ocorrências, as insolvências resultarão de casos fortuitos. O que contraria o conceito de imputabilidade reflexa que assenta na ideia de que o incumprimento do contrato promessa de compra e venda é imputável ao insolvente, pois que foi o promitente vendedor, insolvente, que se colocou em situação de não poder cumprir pontualmente as suas obrigações.

Assim, entendemos que não há falta culposa ao cumprimento da obrigação, nem há qualquer presunção de culpa que deva ser ilidida pelo devedor, como realçou o Cons. Fonseca Ramos na declaração de voto que juntou ao AUJ n.º 4/14: "Ligar o incumprimento do contrato promessa à opção (lícita) do administrador da insolvência em cumprir ou não cumprir o contrato em curso, contraria a opção potestativa daquele - art. 102, n.º 1 do CIRE - ope legis desligada da atuação do insolvente, não sendo tal opção compaginável com o disposto nos arts. 798.º e 799.º do Código Civil".

A esse propósito, também o Cons. Lopes do Rego referiu na declaração de voto de vencido que apôs ao dito AUJ: "a questão a dirimir no presente recurso de uniformização de jurisprudência consiste apenas em determinar se a garantia real outorgada ao promitente comprador que obteve a tradição do imóvel pela alínea f) do n.º 1 do art. 755.º do CC (independentemente do valor do crédito resultante do incumprimento, ou seja, de este se calcular pelos critérios específicos consagrados no art. 442 do CC ou antes pelos resultantes das normas do Código da Insolvência) é invocável no âmbito do processo de insolvência" (sublinhado nosso).

Sobre esta questão pronunciou-se o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 18/09-2018, no proc. n.º 1210/11.0TYVNG-D.P1.S1:

"[N]ão há qualquer contradição entre a decisão recorrida relativamente ao não reconhecimento de um crédito correspondente ao dobro do que alegaram ter pago à promitente-vendedora e o que foi decidido no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 20 de Março de 2014 (AUJ n.º 4/2014). Basta ler o respetivo segmento uniformizador, para ver que assim é.

Efetivamente, na espécie sobre que recaiu o AUJ, e diferentemente do que sucede no caso vertente, não estava em causa saber se o credor tinha direito ao sinal em singelo ou em dobro, e por isso nada foi decidido quanto a essa temática (ainda que se tenham feito ao longo do texto do acórdão diversas alusões ao n.º 2 do art. 442 do CCivil); o que estava em causa era (unicamente) saber se havia lugar ao direito de retenção para garantia do crédito resultante do não cumprimento da promessa por parte do administrador da insolvência, e foi sobre isto que se pronunciou decisoriamente o AUJ. Mais, decorre claramente do AUJ que o crédito relativamente ao qual se reconheceu o direito de retenção se reportava ao sinal em singelo, e não ao seu dobro, e foi sobre essa realidade que trabalhou o acórdão, pelo que é apodítico que o que a decisão tomada no dito AUJ sufragou - e podia ter sufragado - foi o direito de retenção sobre o sinal em singelo, e não sobre o sinal a dobrar.

Consequentemente, nada tendo o AUJ decidido sobre o montante do crédito (se em singelo, se a dobrar), carece de qualquer fundamento a afirmação dos Autores de que estamos perante decisão (a do acórdão recorrido, e o mesmo se diga da presente decisão) que vai, quanto à mesma questão fundamental de direito, contra jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça. Pelo contrário, o acórdão recorrido até está na maior sintonia com o AUJ quanto à questão de direito em causa, pois que, tal como sucedeu neste, reconheceu aos Autores o direito de retenção para garantia do crédito correspondente ao sinal em singelo" (sublinhados nossos).

As próprias alterações legislativas sucessivas desta matéria parecem apontar no sentido de que a lei, no segmento que ora interessa, regulamenta o instituto da falência/insolvência de forma exaustiva.

O Código de Processo Civil de 1961, no art. 1197, estabelecia que a declaração de falência não importava, ipso facto, a rescisão dos contratos bilaterais celebrados pelo falido. Eles seriam ou não cumpridos consoante o seu cumprimento fosse mais conveniente para a massa. E prescrevia que, no caso de opção pelo não cumprimento, "deve o administrador notificar o outro contraente, a quem fica salvo o direito de exigir à massa, no processo de verificação de créditos, a correspondente indemnização de perdas e danos".

O Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (CPEREF), aprovado pelo DL n.º 132/93, de 23/04, não previa um regime particular para o contrato-promessa. Só com a revisão levada a cabo pelo DL n.º 315/98, de 20-10 se passou a regular especificamente o contrato-promessa, através do aditamento de um artigo (art. 164.º-A) no qual se previa o funcionamento do mecanismo do sinal, em termos similares ao regime previsto no art. 442, n.º 2, do CC, para sancionar o incumprimento, "- O contrato-promessa sem eficácia real que se encontre por cumprir à data da declaração de falência extingue-se com esta, com perda do sinal entregue ou restituição em dobro do sinal recebido, como dívida da massa falida, consoante os casos".

De forma clara, regulamentavam-se as consequências do incumprimento do contrato-promessa em caso de falência.

Com as alterações do CIRE, determinando e regendo de forma diferente, pretendeu-se, certamente, que fosse observado um diverso regime.

Como refere a Exmª PGA no seu parecer: "Concluímos portanto ter havido o intuito do legislador de modificar a orientação legislativa nesta matéria, afastando a aplicação do disposto no artigo 442.º do C.C. e estabelecendo um regime insolvencial próprio".

Sobre o regime do CIRE, nesta matéria, já supra aludimos a que consta do seu preâmbulo que "o capítulo termina com uma importante norma pela qual se determina a nulidade de convenções que visem excluir ou limitar a aplicação dos preceitos nele contidos" e esse capítulo é o que integra os arts. 102 a 119, com a epígrafe "efeitos sobre os negócios em curso" à data da declaração de insolvência.

Este é o entendimento que temos como correto, face ao direito vigente sobre a matéria, sendo de manter, por confirmado, o acórdão recorrido.

*

É certo que na fundamentação do AUJ n.º 4/14 ponderou-se, além do mais, que se "verifica uma imputabilidade reflexa considerando o comportamento da insolvente na origem do processo falimentar" e "acresce que, seria sempre a esta última que cumpriria afastar a culpa, que se presume, em matéria de responsabilidade civil contratual - art. 799, n.º 1 do Código Civil".

Face a tal fundamentação, concluiu o Acórdão Fundamento: "Retira-se do exposto que a tese que obteve vencimento é aquela segundo a qual o crédito do promitente-comprador deverá corresponder ao sinal em dobro, conforme dispõe o artigo 442.º, n.º 2, do CC, e não em singelo, nem tão pouco ao valor que decorre da conjugação das normas do CIRE constantes nos seus artºs 102, n.º 3, al. c), 106, n.º 2, e 104.º, n.º 5.

Trata-se de entendimento que, muito embora não integre o segmento de uniformização, encerra o valor de premissa lógica necessária que o antecede e, nessa medida, deverá assumir o mesmo carácter vinculativo".

Realmente, a fundamentação do AUJ n.º 4/2014 aponta no sentido de o crédito do promitente-comprador dever corresponder ao sinal em dobro, por aplicação do n.º 2 do art. 442 do Código Civil, face à recusa pelo AI de cumprimento do contrato-promessa. Mas a questão do montante do crédito, de que ora nos ocupamos, não foi abarcada pela decisão contida no respetivo segmento unificador.

No presente AUJ não se questiona o direito de retenção do recorrente sobre o bem nos termos definidos pelo segmento unificador do AUJ n.º 4/2014 (posteriormente complementado pelo AUJ n.º 4/2019), ou seja: o direito de retenção do promitente comprador consumidor, num contrato-promessa com eficácia meramente obrigacional e com tradição da coisa.

A questão aqui em análise e colocada à apreciação do Pleno é, apenas, a do montante da indemnização a que o promitente comprador tem direito face à recusa do AI em cumprir o contrato promessa, cuja solução é autónoma, distinta e independente da decidida no AUJ n.º 4/14 e, por isso, não só não interfere, como é conciliável com a manutenção do reconhecimento, definido em tal aresto, do direito de retenção previsto no art. 755.º/1/f) do CC [em garantia do crédito decorrente dos arts. 106.º/2, 104.º/5 e 102.º/3/c) do CIRE], tendo em vista a tutela da intensa expetativa do promitente-adquirente, no caso de promessa sinalizada em que tenha havido tradição da coisa, de a vir a adquirir e que se justifica, tanto em caso de incumprimento imputável ao promitente-alienante, como no caso de recusa lícita de cumprimento pelo AI, até porque esta é reflexamente imputável ao incumprimento daquele.

Essa não interferência fora já salientada em algumas declarações de voto apostas ao referido AUJ, de entre as quais as expressas pelos Conselheiros:

- Moreira Alves: "Assim, recusado o cumprimento, aplica-se o regime geral do art. 102 n.º 3, sem prejuízo do direito de retenção, havendo tradição da coisa. Restringiria, por isso, a garantia ao valor do crédito que resultasse da aplicação do critério definido no citado n.º 3 do art. 102.º do CIRE".

- Alves Velho: "Incluiria também no segmento de uniformização a menção de restrição da garantia do direito de retenção ao valor do crédito resultante da aplicação do disposto no art. 102.º-3 do CIRE".

- Prazeres Beleza: "Saliento, ainda, que o reconhecimento do direito de retenção é independente de saber qual o regime aplicável à determinação do montante do crédito assim garantido (cf. n.º 2 do artigo 102.º do CIRE e n.º 2 do artigo 442.º do Código Civil)".

*

Concluindo que o CIRE, enquanto lei especial, regulamenta os casos em que o promitente vendedor é declarado insolvente, sem necessidade de recorrer às normas gerais sobre a matéria previstas no Código Civil, cumpre resolver o caso em apreço e determinar as consequências para os casos em que o administrador de insolvência recusa o cumprimento de contrato promessa de compra e venda, sem eficácia real, beneficiando, ou não, o promitente comprador do direito de retenção, o que se faz nos seguintes termos:

Quando o administrador da insolvência do promitente vendedor optar pela recusa do cumprimento de contrato-promessa de compra e venda, o promitente comprador tem direito a ser ressarcido pelo valor correspondente à prestação efetuada, nos termos dos artigos 106.º, n.º 2, 104.º, n.º 5, e 102.º, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei 53/2004, de 18 de março.

Tendo em conta o disposto 695 do Código de Processo Civil, tendo o acórdão recorrido decidido em conformidade com a orientação agora assumida neste AUJ, confirma-se o acórdão recorrido.

*

Decisão:

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam no Pleno das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça em:

1 - Uniformizar a Jurisprudência nos seguintes termos:

"Quando o administrador da insolvência do promitente vendedor optar pela recusa do cumprimento de contrato-promessa de compra e venda, o promitente comprador tem direito a ser ressarcido pelo valor correspondente à prestação efetuada, nos termos dos artigos 106.º, n.º 2, 104.º, n.º 5, e 102.º, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei 53/2004, de 18 de março".

2 - Confirma-se o Acórdão recorrido.

3 - Custas pelo recorrente.

Lisboa, 27 de abril de 2021. - Fernando Jorge Dias (relator).

Nos termos do art. 15-A, do Dl. n.º 10-A/2020 de 13-03, aditado pelo art. 3 do Dl. n.º 20/2020 atesto o voto de conformidade dos srs. Juízes Conselheiros: José Maria Ferreira Lopes; João Eduardo Cura Mariano Esteves; Manuel José Pires Capelo; Tibério Nunes da Silva; António Fernando Barateiro Dias Martins; Fernando Batista de Oliveira; José Manuel Cabrita Vieira e Cunha; Luis Filipe Castelo Branco Espírito Santo; António dos Santos Abrantes Geraldes; José Inácio Manso Rainho; Maria da Graça Machado Trigo Franco Frazão; Olindo dos Santos Geraldes; António Alexandre dos Reis; Maria Rosa Oliveira Tching; Graça Maria Lima de Figueiredo Amaral; Fernando Augusto Samões e, António José Moura de Magalhães.

Nos termos das mesmas disposições legais atesto que os srs. Juízes Conselheiros: Nuno Manuel Pinto Oliveira, formulou declaração de voto e, Fernando Manuel Pinto de Almeida votou vencido.

Paulo Jorge Rijo Ferreira

José Maria Ferreira Lopes

João Eduardo Cura Mariano Esteves

Manuel José Pires Capelo

Tibério Nunes da Silva

António Fernando Barateiro Dias Martins

Fernando Baptista de Oliveira

José Manuel Cabrita Vieira e Cunha

Luís Filipe Castelo Branco do Espírito Santo

Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza

António dos Santos Abrantes Geraldes

Manuel Tomé Soares Gomes

José Inácio Manso Rainho

Maria da Graça Machado Trigo Franco Frazão

Olindo dos Santos Geraldes

António Alexandre dos Reis

António Pedro de Lima Gonçalves

Maria Rosa Oliveira Tching

Maria do Rosário Correia de Oliveira Morgado

Maria de Fátima Morais Gomes

Graça Maria Lima de Figueiredo Amaral

Henrique Luís de Brito de Araújo

Maria Olinda da Silva Nunes Garcia

António José dos Santos Oliveira Abreu

Fernando Augusto Samões

Maria João Romão Carreiro Vaz Tomé - de acordo com a declaração de voto que anexo.

Ilídio Sacarrão Martins

Nuno Manuel Pinto de Oliveira

António José Moura de Magalhães

Ricardo Alberto Santos Costa

Ana Paula Lopes Martins Boularot (vencida nos termos da declaração de voto que junto)

Maria Clara Pereira de Sousa de Santiago Sottomayor - voto vencida de acordo com declaração que junto.

Fernando Manuel Pinto de Almeida

António Joaquim Piçarra

***

PROC 872/10.0TYVNG-B.P1.S1-A (Recurso para uniformização de jurisprudência)

Declaração de voto

Vencida, nos seguintes termos.

O Acórdão recorrido configurou a recusa de cumprimento do contrato promessa pelo administrador da insolvência como uma recusa lícita de cumprimento que, por isso, nunca poderia desencadear os efeitos previstos no artigo 442.º, n.º 2, do Código Civil (os quais pressupõem um incumprimento ilícito e culposo), ficando antes sujeita à disciplina jurídico insolvencial estabelecida no artigo 102.º, n.º 3, por força da remissão de duplo grau operada pelo artigo 106.º, n.º 2, do CIRE, sendo que o direito de retenção do promitente comprador consumidor reconhecido pelo AUJ n.º 4/2014 (e previsto no artigo 755.º, n.º 1, al. f), do Código Civil), incidiria apenas sobre o crédito resultante da aplicação da referida disciplina insolvencial.

O Acórdão fundamento, navegou por outras águas, daí se retirando o seguinte:

«Começaremos por referir que a norma do artigo 102.º do CIRE acima transcrito se aplica, como se vê do próprio texto, "sem prejuízo do estatuído nos artigos seguintes", conferindo de certa forma autonomia ao estatuído no artigo 106.º; e aqui a lei é expressa ao referir que "no caso de insolvência do promitente vendedor, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento se já tiver havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador; a isto acresce que nada apontando, a nosso ver, para o facto de ter havido intuito de modificar com a entrada em vigor do CIRE a orientação legislativa ao nível das consequências de incumprimento da promessa do contrato e suprindo pelo recurso ao regime da compra e venda com reserva de propriedade, a omissão da regulamentação do contrato promessa com efeito obrigacional e tradição do objeto, ficará o n.º 2 do artigo 106.º aplicável apenas ao contrato promessa com efeito meramente obrigacional e em que não tenha havido aquela tradição ao promitente-comprador. Só aqui, e a menos que uma das partes tenha cumprido integralmente a sua obrigação, poderá o administrador optar por cumprir ou recusar a execução do contrato.

Não se aduza ainda, contra o entendimento exposto, que não há imputação de culpa a fazer em caso de insolvência porque com a declaração desta última, a relação jurídica existente, então reconfigurada, não a poderá comportar, já que ao insolvente se substitui e passa a figurar em juízo apenas a massa falida e o administrador; é para nós claro o cariz redutor deste entendimento; a insolvência não surge do nada, radicando antes e à partida no comportamento de uma entidade que se mostrou não ter cumprido as suas obrigações. Nestes casos já foi decidido e bem, neste Supremo Tribunal de Justiça, que se verifica uma imputabilidade reflexa considerando o comportamento da insolvente na origem do processo falimentar; acresce que, seria sempre a esta última que cumpriria afastar a culpa, que se presume, em matéria de responsabilidade civil contratual - artigo 799.º n.º 1 do Código Civil. Por último diremos que o artigo 97.º do CIRE que se reporta à extinção de privilégios creditórios e garantias reais, com a declaração de insolvência, não enumera "o direito de retenção" no elenco dos extintos. Adiante-se ainda que, como bem salienta o recorrente, bastaria, caso contrário, que uma empresa promitente vendedora e incumpridora do contrato, se apresentasse à insolvência para evitar as consequências do incumprimento. Em suma concluímos que não sendo afetado o contrato-promessa, mantêm-se os efeitos do incumprimento a que se reporta o artigo 442.º n.º 2 do Código Civil. Destarte o crédito pedido do reclamante, valor em singelo no montante de (euro) 108.488,54, mantém a prevalência que lhe é conferida pelo "direito de retenção" tendo sido e bem, graduado acima da hipoteca da CBB»

Retira-se do exposto que a tese que obteve vencimento é aquela segundo a qual o crédito do promitente-comprador deverá corresponder ao sinal em dobro, conforme dispõe o artigo 442.º, n.º 2, do CC, e não em singelo, nem tão pouco ao valor que decorre da conjugação das normas do CIRE constantes nos seus artºs 102.º, n.º 3, al. c), 106.º, n.º 2, e 104.º, n.º 5.

Trata-se de entendimento que, muito embora não integre o segmento de uniformização, encerra o valor de premissa lógica necessária que o antecede e, nessa medida, deverá assumir o mesmo carácter vinculativo.».

Em ambos os Acórdãos a questão de direito que lhes subjaz é idêntica à problemática suscitada no AUJ 4/2014.

Recordemos o segmento uniformizador daquele.

"No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente -comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755.º n.º 1 alínea f) do Código Civil".

Por força deste segmento uniformizador, de acordo com a sua linha argumentativa, ao contrário do que se esgrime no projecto, na hipótese aí projectada de recusa do cumprimento da promessa por parte do administrador, em que tenha havido sinal e tradição da coisa dela objecto, o promitente comprador tem direito a uma indemnização calculada segundo as regras gerais estabelecidas no artigo 442.º, n.º 2 do CCivil e por isso, precisamente porque assim é, o AUJ 4/2014 pode qualificar o crédito indemnizatório do promitente comprador (se consumidor) como um crédito garantido pelo direito de retenção prevenido no artigo 755.º, n.º 1, alínea f) do mesmo diploma legal, uma vez que este direito apenas se pode concretizar se estiver assente no incumprimento aludido naqueloutro normativo.

O AUJ 4/2014, tem como pressuposto a interpretação restritiva do artigo 106.º, n.º 2 do CIRE, o qual na sua tese apenas se aplicará às promessas meramente obrigacionais, sem tradição da coisa, aplicando-se àquelas em que tenha havido tal tradição, como lugar paralelo o seu n.º 1 conjugado com o artigo 104.º, n.º 1, assumindo a recusa de cumprimento do contrato pelo administrador como um incumprimento ilícito, o que irá desencadear a aplicação do regime civil aludido no artigo 442.º, n.º 2, do Código Civil e, por isso também, merecedor da tutela conferida pelo artigo 755.º, n.º 1, alínea f), do Código Civil.

E esse incumprimento ilícito radica na ideia de apesar do devedor ser substituído pelo administrador da insolvência nos poderes de disposição e administração da massa, a actuação culposa daquele por não ter conseguido cumprir de pleno as suas obrigações e por isso ter dado causa à situação insolvencial, reflecte-se na actuação deste, enquadrando-se na sua culpabilidade reflexa; outrossim, o AUJ 4/2014, imputa a responsabilidade culposa pelo incumprimento do contrato promessa ao AI, por via da aplicação do artigo 799.º, n.º 1 do CCivil (culpa presumida não ilidida pelo devedor).

Independentemente da bondade de uma ou outra solução, cuja discussão aqui se não cura nem se poderá ter em atenção, certo é que foi essa a solução a que se chegou: o incumprimento do contrato promessa pelo AI, nestas precisas circunstâncias é sempre havido como culposo, sendo-lhe por isso aplicável o regime inserto no artigo 442.º, n.º 2 do CCivil e por consequência, a disciplina prevenida pelo artigo 755.º, n.º 1, alínea f) do mesmo diploma, que constitui um pressuposto daquele.

Por último, pouco importa, para a validade deste raciocínio que o AUJ 4/2014, tenha concluído que se mantinham os efeitos do incumprimento aludidos no artigo 442.º, n.º 2, mesmo na situação dos autos a que se reportava nos quais o credor havia pedido apenas a devolução do sinal em singelo, mantendo contudo a sua prevalência, em relação ao crédito hipotecário, por via do direito de retenção a que alude o artigo 755.º, n.º 1, alínea f) do CCivil, uma vez que este ínsito cobre «o crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos temos do artigo 442.º», o qual comporta sempre, pelo menos, a restituição do sinal prestado.

Tudo isto para concluir que, o Acórdão recorrido para além de ter decidido contra o AUJ 4/2014, ao fazer aplicar ao contrato promessa obrigacional, com tradição da coisa, as disposições conjugadas dos respetivos artigos 106.º, n.º 2, 104.º, n.º 5 e 102.º, n.º 3, alínea c) do CIRE - direito igual ao valor da prestação do devedor, na parte incumprida, deduzido o valor da contraprestação correspondente que ainda não tenha sido realizada, acrescido de indemnização pelos prejuízos sofridos em virtude do incumprimento, afastando assim a aplicação do disposto no artigo 442.º, n.º 2 do CCivil, fazendo corresponder a indemnização devida ao valor do sinal prestado (veja-se que a norma para a qual remete o n.º 5 do artigo 104.º referente ao cálculo da indemnização pelo incumprimento, artigo 102.º, n.º 3, alínea c), este como aquele do CIRE, nem sequer assume qualquer correspondência com a devolução desse valor, ao qual se chegará apenas, com uma interpretação correctiva do preceito) - faz aplicar, de forma completamente incoerente o que naquele mesmo AUJ se decidiu a propósito do reconhecimento do direito de retenção, nos termos do disposto no artigo 755.º, n.º 1, alínea f) do CCivil, quando este normativo tem como pressuposto causal o incumprimento imputável à outra parte nos termos do artigo 442.º do mesmo diploma.

Ora, assentando-se na tese de que o incumprimento do contrato não é culposo, correspondendo a um direito potestativo do AI, licito portanto, fazendo-se-lhe aplicar os normativos insertos nos artigos 106.º, n.º 2, 104.º, n.º 5 e 102.º, n.º 3, alínea c) do CIRE, para o cálculo da indemnização pelo não cumprimento assim decidido, nunca se poderia daí fazer decorrer a declaração de qualquer outro direito, maxime, o direito de retenção, o qual carece de assento nesta específica matéria insolvencial.

E, porque a ratio essendi deste AUJ, reside apenas na impugnação do montante decretado a título indemnizatório, não poderá este ser fixado: i) em termos que contrariem de forma frontal e inequívoca, quer a Lei em que se baseia - o CIRE -, por este diploma não prever de todo em todo a figura do direito de retenção; ii) em termos de poder albergar na sua fundamentação elementos do CIRE e do regime civil que à partida faz afastar; iii) em termos de fazer introduzir, concomitantemente, legislação específica do CIRE e a doutrina do AUJ 14/2014, cuja aplicação refuta, no que concerne à aplicação do regime inserto no artigo 442.º, n.º 2 do CCivil, quando este normativo constitui o cerne da aplicação do preceituado no artigo 755.º, n.º 1, alínea f) do mesmo diploma, uma vez que o direito de retenção surge da titularidade ao sinal em dobro atribuído poe aqueloutro normativo, exigindo-se ainda que o incumprimento do contrato-promessa seja ilícito, e imputável ao promitente.

A explicação encetada na tese que faz vencimento, sobre a conciliação da decisão tomada de o montante do crédito não colidir com a conclusão que a respeito se chegou no AUJ 4/2014, trata-se de uma falácia, aliás patente no seu arrimo, em sede de fundamentação, em três das declarações de votos apostas naquele Aresto: as declarações de voto produzidas relativamente a um Acórdão, são precisamente isso e tão só - declarações - uma vez que a tese que fez vencimento foi outra, completamente diversa, a qual não é nem corrigida, nem complementada, nem ampliada e/ou passível de diversa interpretação por força do que nelas se mostra expresso, correspondendo, antes e apenas, ao entendimento daqueles cuja tese não logrou vingar.

Face ao exposto, a decisão deveria passar pela revogação parcial do Acórdão recorrido no que tange à fixação da indemnização que corresponderá ao montante do sinal em dobro, mantendo-se o mesmo no mais, concluindo-se em termos de segmento uniformizador nos seguintes termos:

A recusa pelo AI de cumprimento de contrato promessa obrigacional, sinalizado e com traditio, assume natureza ilícita, por culpabilidade reflexa, fazendo desencadear a aplicação do regime civil aludido no artigo 442.º, n.º 2, do Código Civil e, por isso também, merecedor da tutela conferida pelo artigo 755.º, n.º 1, alínea f), do Código Civil, por força da doutrina constante do AUJ 4/2014.

(Ana Paula Boularot)

**

Declaração de voto

Voto vencida.

O objeto do processo incide sobre a questão de saber qual o âmbito de aplicação do artigo 106.º, n.º 1, do CIRE para o efeito de determinar o montante do crédito a que tem direito o promitente-comprador, nos contratos-promessa obrigacionais sinalizados e acompanhados da entrega do imóvel, quando o administrador da insolvência recusa a celebração do contrato prometido: se o montante do crédito corresponde à restituição do sinal singelo, por estarmos perante uma opção lícita do administrador da insolvência (artigos 106.º, n.º 2, 104.º, n.º 5 e 102.º, n.º 3, al. c), todos do CIRE), ou perante um incumprimento do contrato-promessa que dá lugar à restituição do sinal em dobro, conforme previsto no artigo 442.º, n.º 2, do Código Civil.

Com apoio no argumento literal de interpretação (artigo 106.º, n.º 1, do CIRE) e no argumento a contrario, o acórdão que fez vencimento responde a esta questão, salientando que a lei apenas confere ao promitente-comprador indemnização pelo dobro do sinal, nos termos do artigo 442.º, n.º 2, do Código Civil, se o contrato-promessa, cujo cumprimento for recusado pelo Administrador da Insolvência (AI), for um contrato promessa com eficácia real, acompanhado de tradição da coisa.

Afirma o artigo 106.º, n.º 1, do CIRE, que, «No caso de insolvência do promitente-vendedor, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento de contrato-promessa com eficácia real, se já tiver havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador».

O artigo 106.º do CIRE regula especificamente a situação em que o insolvente se encontra vinculado a um contrato promessa de compra e venda, não tendo ainda, à data da declaração de insolvência, nenhum dos contraentes emitido a declaração negocial correspondente ao contrato prometido.

O acórdão recorrido entende que se deduz do n.º 1 do artigo 106.º do CIRE que o Administrador da Insolvência (AI) tem um direito potestativo de recusar o cumprimento dos contratos-promessa meramente obrigacionais, ainda que tenha havido tradição da coisa. Ou seja, os contratos-promessa não abrangidos pela letra do n.º 1 do artigo 106.º seriam regulados pelo princípio geral consagrado no artigo 102.º, n.º 1, do CIRE, segundo o qual, em qualquer contrato bilateral em que, à data da declaração de insolvência, não haja ainda total cumprimento nem pelo insolvente nem pela outra parte, o cumprimento fica suspenso até que o AI declare optar pela execução ou recusar o cumprimento.

Contudo, apesar de o texto da lei ser o ponto de partida da interpretação, ele tem de ser confrontado com outros elementos de interpretação, designadamente os elementos teleológico e sistemático, que servem precisamente para controlar a coerência axiológica do argumento literal com a finalidade da lei e com o plano global da ordem jurídica num determinado setor de relações jurídicas. Ora, tendo em conta que na prática a celebração de contratos de promessa com eficácia real, nos termos do artigo 413.º do Código Civil, é rara, constituindo este tipo de contrato uma figura quase académica, a interpretação literal retira qualquer sentido útil ao regime de proteção do promitente-comprador fixado no artigo 106.º, n.º 1, do CIRE, e deixa desprotegidas situações que a ordem jurídica pretende acautelar.

O contrato-promessa com eficácia real é uma figura que resulta da adaptação da figura da Vormerkung do direito alemão aos sistemas latinos em que vigora o princípio da consensualidade, tratando-se de um registo que garante ao comprador, na venda obrigacional do direito alemão, o acordo translativo do direito real, classificando a doutrina alemã a posição jurídica do adquirente como um direito de crédito fortemente tutelado (e não como um direito real).

A natureza jurídica do contrato promessa com eficácia real tem dividido a doutrina que ora considera que este contrato atribui ao promitente comprador um direito real de aquisição (cf., por todos, Almeida Costa, Direitos das Obrigações, 10.ª edição, Almedina, 2006, p. 441) ou antes um direito de crédito oponível a terceiros, significando que a promessa real admite necessariamente execução específica (Henrique Mesquita, Obrigações reais e ónus reais, Coimbra, 1990, pp. 241-243, 252 e 262). A proteção legalmente conferida ao promitente-comprador, nos contratos promessa em que o direito de execução específica é imperativo (artigos 410.º, n.º 3, e 830.º, n.º 3, ambos do Código Civil) aproxima-se, pois, da que é conferida pelo contrato promessa com eficácia real.

O mercado da habitação adota o paradigma da promessa obrigacional com tradição da coisa acompanhada da estipulação de uma cláusula de execução específica. Estes promitentes compradores são a parte mais débil que investe no imóvel todas as suas poupanças, contraindo uma dívida por largos anos e fazendo do imóvel a sua casa de morada de família. Neste contexto, não é de facto crível que o legislador tenha querido excluir os contratos de promessa com eficácia obrigacional, em que houve tradição da coisa, do regime do artigo 106.º, n.º 1, que não permite ao AI a recusa de cumprimento.

Estamos, pois, perante uma norma que pede ao julgador a sua correção teleológica de forma a fazer coincidir a letra da lei com a sua finalidade ou ratio: a proteção das fortes expetativas dos promitentes-compradores na aquisição da propriedade do imóvel que habitam, cuja posse já detêm, através do acordo negocial de traditio. Todavia, devido ao argumento de que o sentido a atribuir à norma, por interpretação extensiva ou corretiva, deve ter ainda um mínimo de correspondência na letra da lei, entendo que o contrato-promessa obrigacional com tradição da coisa constitui um caso omisso (não regulado no CIRE), ao qual deve aplicar-se analogicamente o regime previsto no artigo 106.º, n.º 1, do CIRE, e não o princípio geral consagrado no artigo 102.º, n.º 1, do CIRE. A moderna teoria do direito admite que as normas excecionais possam ser aplicadas analogicamente a casos omissos, por força do princípio do tratamento igual de situações idênticas, desde que os casos omissos apresentem mais afinidades com os casos regulados pela norma excecional do que com os casos abrangidos pela regra geral (Pedro de Albuquerque, A Representação Voluntária em Direito Civil, Almedina, Coimbra, 2004, nota 1669, pp. 996-997; Castanheira Neves, Metodologia Jurídica, Problemas fundamentais, 1993, pp. 274-276.), o que sucede no presente caso, em que a tradição da coisa surge como o elemento comum e fundante da proteção legal.

No mesmo sentido, o AUJ n.º 4/2014, nos seus fundamentos, equiparou todos os contratos promessa com tradição da coisa, em que o promitente comprador é consumidor (v. AUJ n.º 4/2019), e unificou o seu regime no que diz respeito ao direito de retenção, por entender que «A constituição de sinal e a tradição da coisa têm subjacente uma forte confiança na firmeza e concretização do negócio. Daí que se imponha com particular acuidade defender o mais possível o exato cumprimento do contrato», aplicando ao caso omisso o regime previsto para a reserva de propriedade no n.º 2 do artigo 106.º, que funcionaria como lugar paralelo:

««Contudo, havendo tradição da coisa, a norma [o artigo 106.º do CIRE] não esclarece qual a consequência daí resultante; todavia tal omissão é ultrapassada fazendo apelo ao "lugar paralelo" resultante da conjugação dos artigos 106.º n.º 2 e 104.º nsº 1 do CIRE (respeitante à venda com reserva de propriedade) aplicável no caso em análise, já que as razões determinantes do que ali vem exposto quanto ao que lá se regula (compra e venda a prestações) são idênticas às que qui estão em causa. Subjacente a esta tomada de posição está a forte expectativa que a traditio criou no "promitente- -comprador" quanto à solidez do vínculo. Cimentada esta confiança, e "corporizada" destarte a posse, existe, na prática, do lado do adquirente um verdadeiro animus de agir como possuidor, não já nomine alieno mas antes em nome próprio; a partir do momento em que o insolvente entregou as chaves dos prédios ao promitente -comprador, materializou a intenção de transferir para este os poderes sobre a coisa, faltando apenas legalizar uma situação de facto consolidada. Parificada tal situação com as hipóteses do efeito real dos contratos em termos de impedir a resolução respetiva, poderá assentar -se em que o incumprimento dá assim origem ao despoletar do "direito de retenção" a que se reporta o artigo 755.º n.º 1 alínea f) do Código Civil viabilizado pela interpretação a que acima fizemos referência no tocante ao artigo 106.º, pelo que assim sendo subsiste a preferência a que aludimos».

[...]

«[...] [A] insolvência não surge do nada, radicando antes e à partida no comportamento de uma entidade que se mostrou não ter cumprido as suas obrigações. Nestes casos já foi decidido e bem, neste Supremo Tribunal de Justiça, que se verifica uma imputabilidade reflexa considerando o comportamento da insolvente na origem do processo falimentar; acresce que, seria sempre a esta última que cumpriria afastar a culpa, que se presume, em matéria de responsabilidade civil contratual - artigo 799.º n.º 1 do Código Civil».

Apesar de estes fundamentos não terem sido levados ao segmento uniformizador do AUJ n.º 4/2014, e, portanto, não serem vinculativos, continuo a considerar que são válidos para fundamentar a aplicabilidade das normas civis, no processo de insolvência, que consagram o direito de retenção (artigo 755.º, n.º 1, al. f), do Código Civil) e a indemnização pelo dobro do sinal em caso de incumprimento (artigo 442.º, n.º 2, do Código Civil), para todos os contratos promessa em que houve tradição da coisa, independentemente da sua natureza real ou obrigacional.

O regime insolvencial não pode ser interpretado de forma completamente autónoma do restante ordenamento jurídico e dos seus princípios fundamentais, atribuindo ao administrador da insolvência uma opção livre ou um poder discricionário de recusar o cumprimento dos contratos de promessa no exclusivo interesse da globalidade dos credores. Não se pode abstrair da culpa do insolvente no incumprimento das suas obrigações e da relevância social dos contratos em curso, nos casos em que o promitente-vendedor entregou o imóvel ao promitente-comprador, que pode inclusivamente nele residir há vários anos. A norma em causa, o artigo 106.º, n.º 1, do CIRE, visa proteger a continuidade da permanência das pessoas no imóvel e as suas fortes expetativas de aquisição do direito de propriedade, sendo o elemento decisivo para justificar esta tutela, não a natureza jurídica do contrato-promessa, mas a circunstância de ter havido tradição.

Também não subscrevo a orientação que fez vencimento, no que diz respeito aos poderes do AI. Entendo que este não atua como uma entidade completamente independente do insolvente, não sendo possível ficcionar que o comportamento anterior deste, traduzido no incumprimento das suas obrigações, nunca existiu. O regime da insolvência, que permite ao AI recusar o cumprimento dos contratos em curso, não pode significar um direito a não cumprir um contrato, que sempre seria contrário à unidade da ordem jurídica e aos princípios da tutela da confiança e da boa fé.

A posição adotada no presente AUJ, apesar de ressalvar a hipótese de paralisação do poder do AI, caso se verifiquem os pressupostos do abuso do direito (artigo 334.º do Código Civil), permite que estejam abrangidos, pela opção de recusar o cumprimento, os contratos promessa obrigacionais com tradição da coisa, mesmo nas situações em que o promitente-vendedor, antes da declaração de insolvência, foi notificado para celebrar a escritura e não compareceu, mas em que não se verificaram os exigentes pressupostos, tal como configurados pela jurisprudência, do incumprimento definitivo.

Defendo, pois, que o AI não tem o poder discricionário ou potestativo para não cumprir, sem mais, os contratos em curso. Os poderes atribuídos pela lei ao AI têm a natureza de poderes-deveres ou poderes funcionais e, apesar de serem exercidos no interesse da globalidade dos credores, nalguns casos devem atender aos interesses sociais prementes de alguns credores, in casu, os interesses dos promitentes compradores que habitam o imóvel ou que dele fazem um uso particular (não profissional), no sentido do Acórdão 4/2019. A esta proteção dos sujeitos em situação mais vulnerável não se opõe o princípio da igualdade entre credores (par conditio creditorum), o qual comporta, nos termos da lei, "diferenciações justificadas por razões objetivas", admitindo, portanto, que situações diferentes sejam objeto de um tratamento distinto, na medida da diferença verificada.

Subscrevo, pois, a orientação jurisprudencial do acórdão fundamento e de outros acórdãos deste Supremo Tribunal (p. ex., o acórdão de 22-10-2013, proc. n.º 2806/67BVIS-B-S1 e o acórdão de 13-11-2014, proc. n.º 1980/11.6T2AVR-B.C1.S1), segundo a qual "a insolvência não surge do nada, radicando antes e à partida no comportamento de uma entidade que se mostrou não ter cumprido as suas obrigações"; "[...] em última análise, foi este [o insolvente] que deu causa ou motivou a declarada situação de insolvência. Aceito, para o efeito de aferir a legitimidade do poder de o AI recusar o cumprimento, a ideia, adotada na jurisprudência deste Supremo Tribunal, de "imputabilidade reflexa" do comportamento culposo do insolvente ao AI, representante do insolvente.

Por último, não obstante o presente AUJ na sua fundamentação ter acautelado o direito de retenção do promitente comprador nas promessas obrigacionais com tradição da coisa, pode estar a abrir-se uma brecha não desejada pelo legislador democrático, na tutela do promitente-comprador que habita o imóvel.

Maria Clara Sottomayor

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Declaração de voto

Subscrevo a declaração de voto da Sra. Conselheira Ana Paula Boularot.

Pretendo apenas acrescentar o seguinte para sublinhar a incompatibilidade entre a solução do presente Acórdão e aquela que foi adoptada no AUJ n.º 4/2014. Com o devido respeito, de nada vale afirmar-se que essa incompatibilidade não existe, quando ela é patente.

O presente Acórdão consagra a tese adoptada no Acórdão da Relação de Lisboa que foi apreciada no referido AUJ (revista ampliada), quanto à aplicabilidade do regime do CIRE na determinação da indemnização devida ao promitente comprador, em caso de contrato promessa obrigacional com tradição. Porém, esse Acórdão da Relação foi revogado pelo referido AUJ, que optou pela solução oposta: aplicação do regime civilista do art. 442.º, só assim sendo possível o reconhecimento do direito de retenção ao beneficiário da promessa, previsto no art. 755.º, n.º 1, al. f), do CC, que pressupõe o "não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442.º". A invocação que se faz agora de declarações de voto formuladas no referido AUJ é reveladora dessa oposição.

Por outro lado, afirma-se no presente Acórdão que, perante a factualidade provada, resulta demonstrada a qualidade de consumidor do promitente comprador, o que confere a este o direito de retenção.

É certo que não faz parte do objecto deste recurso a questão do direito de retenção, mas deveriam ser ponderadas as consequências, nesse âmbito, da solução adoptada.

Assim, pergunta-se: acolhendo-se a construção jurídica agora preconizada -aplicação do regime insolvencial à indemnização devida ao promitente comprador-qual será o fundamento legal para o reconhecimento do direito de retenção?

Repare-se que a abundante doutrina invocada no Acórdão (e também a aí referida declaração de voto do Conselheiro Sebastião Póvoas no AUJ 4/2014) em defesa da aplicação do regime do CIRE acaba por concluir que, nessa solução, não existe fundamento legal para o reconhecimento do direito de retenção. Parece, realmente, ser esta a solução lógica e conforme àquele regime legal.

À semelhança da douta declaração a que adiro, penso que deveria haver coerência: o AUJ 4/2014 conduz ao reconhecimento do direito de retenção com a fundamentação nele utilizada. Esse reconhecimento não pode ser desligado dessa fundamentação jurídica, que o justifica, como ocorre na solução deste Acórdão, que aplica o regime do CIRE à determinação da indemnização e faz assentar o direito de retenção do promitente comprador no AUJ 4/2014, que se apoia numa fundamentação contrária.

Neste contexto, receio que este Acórdão não venha a ter o pretendido efeito apaziguador e uniformizador da jurisprudência.

27 de abril de 2021. - Fernando Pinto de Almeida.

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Declaração de voto

Processo 872/10.0TYVNG-B.P1.S1-A

Não subscrevo a parte da fundamentação referente à compatibilidade entre a interpretação uniformizadora adoptada neste acórdão e a interpretação uniformizadora adoptada no AUJ 4/2014 por considerar, por um lado, que tal apreciação está fora do âmbito do recurso (que não abrange as consequências e implicações desse cariz, a serem ulteriormente elaboradas pela jurisprudência e doutrina, ou intervenção legislativa) e, por outro lado, que há uma manifesta e irreconciliável incompatibilidade entre as duas interpretações uniformizadoras.

(Rijo Ferreira)

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Declaração de voto

Votei o presente acórdão de uniformização de jurisprudência.

De jure constituto, numa promessa com eficácia meramente obrigacional, com traditio da coisa, o promitente-comprador, no caso de insolvência do promitente-vendedor e de recusa do cumprimento - i.e., de celebração do contrato prometido - pelo respetivo administrador, apenas tem direito, via de regra, à restituição do sinal em singelo (solução que, em geral, emerge da aplicação dos arts. 106.º, n.º 2, 104.º, n.º 5 e 102.º, n.º 3 do CIRE).

Este resultado decorre das regras do enriquecimento sem causa, do regime geral do incumprimento do contrato-promessa por causa não imputável às partes e, ainda, do princípio segundo o qual a resolução do contrato importa a restituição de tudo quanto haja sido prestado.

Aquela recusa do cumprimento pelo administrador da insolvência - consentida, aliás, pela ordem jurídica, conforme resulta da interpretação declarativa do art. 102.º, n.º 1, do CIRE, e da interpretação enunciativa do art. 106.º, n.º 1, do mesmo corpo de normas, mediante o recurso ao argumento a contrario sensu - não corresponde a qualquer incumprimento ilícito e culposo do promitente-vendedor. De resto, dificilmente se pode falar, cum summo rigore, a este propósito, pelo menos generalizadamente, de incumprimento em último recurso imputável ao promitente-vendedor insolvente (ou de "imputabilidade reflexa" do comportamento culposo do insolvente ao administrador da insolvência). Não pode, assim, aplicar-se o art. 442.º, n.º 2, do CC, por inverificação da situação típica referida na sua facti-species.

Todavia, o afastamento do art. 442.º, n.º 2, do CC, conduz, necessariamente, a que a atribuição, ao promitente-comprador, do direito de retenção, nos termos do art. 755.º, n,º 1, al. f), do mesmo corpo de normas, para garantir o cumprimento do crédito decorrente dos arts. 106.º, n.º 2, 104.º, n.º 5 e 102.º, n.º 3, do CIRE, se encontre, nestas circunstâncias, pejada de dificuldades. Com efeito, não pode afirmar-se a verificação dos seus requisitos, i.e., o "[...] não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442.º."

Pode, assim, surgir, a necessidade de determinar a (in)existência de uma lacuna da lei e, na hipótese de porventura se concluir pela sua existência, a dificuldade da aplicação por analogia do art. 755.º, n.º 1, al. f), do CC, a casos como o dos autos, uma vez que está em causa um direito real de garantia e que os direitos reais se encontram sujeitos ao princípio do numerus clausus (art. 1306.º do CC). De um lado, uma situação "real" não tipificada - por não haver norma jurídica que a regule - não significa a existência de uma lacuna da lei e, de outro lado, o núcleo essencial ou tipológico dos direitos reais é intangível. Não se descuram, por último, dificuldades oriundas do Direito da Insolvência.

Lisboa, 27 de abril de 2021. - Maria João Vaz Tomé.

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Processo 872/10.0TYVNG-B.P1.S1-A

Declaração de voto

Voto a decisão, ainda que considere (i) que o direito do promitente-comprador à restituição do sinal em singelo é um afloramento do princípio da proibição do enriquecimento sem causa (art. 473.º do Código Civil) e (ii) que a imputabilidade reflexa de que se fala na fundamentação do acórdão é uma fórmula vazia, sem significado técnico-jurídico, cuja invocação só faz com que se confunda, indevidamente, o conceito de causalidade com o de imputabilidade e o conceito de incumprimento com o de insolvência.

27 de abril de 2021. - Nuno Manuel Pinto Oliveira.

114479191

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/4625636.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 2004-03-18 - Decreto-Lei 53/2004 - Ministério da Justiça

    Aprova o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. Altera o Código de Processo Civil, o Código do Registo Comercial, o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, o Código Penal, o Código de Registo Civil e o Regulamento Emolumentar dos Registos e Notariado.

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