Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2021
Sumário: A venda, em sede de processo de insolvência, de imóvel hipotecado, com arrendamento celebrado subsequentemente à hipoteca, não faz caducar os direitos do locatário de harmonia com o preceituado no artigo 109.º, n.º 3, do CIRE, conjugado com o artigo 1057,º do Código Civil, sendo inaplicável o disposto no n.º 2 do artigo 824.º do Código Civil.
PROC 1268/16.6T8FAR.E1.S2-A
Acordam, em pleno das secções cíveis,
No Supremo Tribunal de Justiça
I - Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do Sotavento Algarvio, CRL, instaurou acção declarativa sob a forma de processo comum contra AA pedindo a declaração de que é dona e legítima proprietária da fracção autónoma designada pela letra E, correspondente ao rés-do-chão, primeiro e segundo andares do prédio urbano com entrada pelo n.º 0 da Rua..., destinada a habitação, do prédio urbano, constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida..., n.os 00, 00-X e 00-0 e Rua..., n.os 0 e 0, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 2398 da freguesia de..., concelho de... e a condenação do Réu a reconhecer tal direito, bem como a entregar-lhe a referida fracção livre de pessoas e bens e a pagar-lhe uma indemnização correspondente a (euro) 1.000,00 mensais, correspondente ao valor de uma renda mensal, desde a data da sua citação, até à efetiva entrega do imóvel.
Alegou para o efeito, e em síntese, ter adquirido a referida fracção no âmbito do processo de insolvência da anterior proprietária, BB, pelo preço de (euro) 340.000,00, montante correspondente à soma de dois mútuos garantidos por duas hipotecas sobre o imóvel, que sucessivamente celebrara com aquela: (euro) 280.000,00 para a aquisição à sociedade P..., Lda., de que a compradora era... e... e, em novo financiamento, (euro) 60.000,00; tais hipotecas encontram-se registadas (ap. 00 de 2008/03/05 e ap. 0000 de 2009/10/06, respectivamente), bem como a aquisição (ap. 0000 de 2015/06/24); a insolvência de BB foi declarada em 9 de Maio de 2014; e a ocupação do imóvel pelo Réu impede a Autora de lhe dar o destino para o qual o adquiriu, isto é, vendê-lo ou arrendá-lo.
O Réu contestou, invocando ser arrendatário da fracção, na qual reside, por contrato celebrado com BB em 1 de Outubro de 2011, pelo prazo de dez anos e pela renda mensal de (euro) 300,00, sendo que a Autora, a ter o direito que invoca, age abusivamente, uma vez que sempre teve conhecimento de que o Réu era o seu arrendatário tendo sempre aceitado os pagamentos das rendas que, a partir de Maio de 2015, passou a depositar à sua ordem.
Na audiência prévia, a Autora respondeu às excepções suscitadas na contestação e pediu a condenação do Réu como litigante de má fé.
Foi proferida sentença a julgar a acção parcialmente procedente, com o reconhecimento do direito de propriedade da Autora e a condenação do Réu a entregar-lhe de imediato a fracção, livre de pessoas e bens, bem como no pagamento da quantia de (euro) 9,956,21, relativa ao período de 17 de maio de 2016 a 17 de Abril de 2017, acrescida de (euro) 905,11, por cada mês que perdure a ocupação feita pelo Réu, contada desde 18 de Abril de 2017, até à data da efectiva entrega, tendo sido ainda o Réu condenado como litigante de má fé em multa no valor de 10 UC's e em indemnização a fixar, e absolvido do demais peticionado.
Inconformado, o Réu interpôs recurso de Apelação, recurso esse que veio a ser julgado improcedente, com a manutenção da sentença recorrida, embora tenha sido alterada a fundamentação de facto.
Irresignado, o Réu recorreu de Revista excepcional, a qual veio a ser admitida por Acórdão da Formação.
No Acórdão deste Supremo Tribunal, datado de 27 de Novembro de 2018, proferido a 27 de Novembro de 2018, foi produzida a seguinte decisão:
«[a)] Conceder provimento à revista, revogando-se o acórdão recorrido na parte em que condenou o Réu AA a entregar imediatamente à Autora a fracção autónoma acima indicada no ponto 1. dos factos provados, livre de pessoas e bens, e a pagar-lhe a indemnização pela ocupação dessa fracção, absolvendo-o desses pedidos.
b) Não conhecer do objecto da revista no tocante à condenação do Réu como litigante da má fé.»
Notificada de tal Aresto, veio a Autora interpor recurso para uniformização de jurisprudência, nos termos do disposto no artigo 688.º do CPCivil, invocando contradição com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Julho de 2015, produzido no processo 430/11.2TBEVR-Q.E1.S1, cuja cópia certificada fez juntar, quanto à questão de saber se com a venda judicial de um imóvel hipotecado que tenha sido dado de arrendamento a terceiro após o registo da referida hipoteca, caduca o direito do respectivo locatário, nos termos do n.º 2 do artigo 824.º do CC.
A Autora apresentou o seguinte acervo conclusivo:
A) Com o presente recurso, pretende a Recorrente ver suprimida a divergência jurisprudencial existente no Supremo Tribunal de Justiça, uma vez que existem decisões diametralmente opostas quanto ao thema decidendum;
B) Nesse sentido dispõe o n.º 1 do artigo 688.º do CPC, que as partes podem recorrer para o pleno das secções cíveis, quando o STJ proferir acórdão que esteja em contradição com outro anteriormente proferido, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito;
C) A divergência dos acórdãos sub judice versa sobre a interpretação do n.º 2 do artigo 824.º do CC, aplicável por analogia, no sentido de que o contrato de arrendamento caduca com a venda executiva, uma vez que este constituí uma forma de ónus sobre o imóvel, limitador do direito de propriedade, garantido através da hipoteca anteriormente constituída e registada, tornando-se inoponível ao adquirente;
D) Neste sentido o notável Acórdão Fundamento, que ora se junta para legitimar o presente recurso e que correu termos sob o processo 430/11.2TBEVR- Q.E1.S1, de 09/07/2015, da 6.ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça;
E) Ao invés, o douto Acórdão Recorrido que sustenta a tese obrigacionista da Doutrina, onde o direito do arrendatário, é um direito pessoal de gozo e, enveredando pela natureza meramente creditícia ou obrigacional do direito do arrendatário, concluem que não é de aplicar o n.º 2 do artigo 824.º do CC ao arrendamento;
F) Acrescentando que não poderá tal artigo ser aplicado analogicamente perfilhando a tese de Pinto Furtado, in Manual do Arrendamento Urbano, 2.ª edição, páginas 52 e ss;
G) A aclaração deste tema é manifestamente necessária para uma melhor aplicação do direito e certeza jurídica dos intervenientes entre estes dois institutos que são o arrendamento e a hipoteca;
H) A Recorrente perfilha a tese e entendimento do Recurso Fundamento, aliás da Doutrina e Jurisprudência maioritária, considerando a decisão do Recurso ora Recorrido violadora do direito da propriedade, considerando o arrendamento um verdadeiro ónus, uma vez que limita a disponibilidade do proprietário devido ao seu carácter vinculístico, impondo-se, portanto, a sua submissão ao regime do artigo 824.º n.º 2 do CC,
I) Ademais «A interpretação dada ao n.º 2 do art. 824.º do Código Civil no sentido de que o mesmo abrange também o contrato do arrendamento, é a que melhor responde às exigências de justiça e aos interesses teleológicos nele subjacentes, na medida em que assegura um equilíbrio adequado e proporcional entre os vários interesses em jogo: o interesse do proprietário do bem hipotecado, em celebrar o contrato de arrendamento; o interesse do arrendatário, que sabe ou pode saber pela publicidade registral que o bem objeto do arrendamento está sujeito à execução e o interesse do credor hipotecário, que não vê o bem hipotecado sofrer desvalorização em consequência do arrendamento», in www.dgsi.pt, processo 12/14.7TBEPS-A.G1.S2.
J) Posto isto, permitimo-nos concluir que o notável Acórdão Fundamento, faz uma correcta interpretação jurídica da aplicação do n.º 2 do artigo 824.º do CC aos contratos de arrendamento, orientação que, de há vários anos a esta parte, se vem sedimentando de forma praticamente unânime no sistema jurisprudencial português, e a qual perfilhamos.
K) Inequivocamente, deverá o Acórdão Fundamento, figurar como pedra basilar para uniformizar jurisprudência no sentido de que com a venda judicial de um imóvel hipotecado que tenha sido dado de arrendamento a terceiro após o registo da referida hipoteca, caduca o direito do respectivo locatário, nos termos do n.º 2 do art. 824.º do CC.
Foram apresentadas contra alegações pelo Réu, aqui Recorrido, onde se concluiu:
1) A interpretação dada à lei pela jurisprudência, pretendendo-se que seja homogénea e coerente, não pode deixar de acompanhar, não só a evolução legal dos institutos jurídicos que se interpretam, como o enquadramento jurídico-social a cada tempo, como, ainda, os interesses em jogo e de relevo.
2) O cuidado e tratamento que foi dado ao arrendamento andou no sentido de o fazer evoluir de um ónus sobre os imóveis para um instrumento de investimento e de melhoria no rendimento imobiliário.
3) De facto, é patente a evolução da lei do arrendamento que, - de novo com interesse para o presente caso - aliada à proliferação e actualização de diplomas legislativos específicos (tais como Novo Regime do Arrendamento Urbano e, mais recentemente, a Lei 12/2019 e a Lei 13/2019, ambas de 12 de fevereiro, afasta a necessidade de interpretação extensiva ou analógica do Código Civil, como muito clara e iluminadamente o Supremo Tribunal de Justiça manifestou no Acórdão ora recorrido.
4) É manifesto que numa perspectiva global mais capitalista do mundo e da sociedade, a interpretação jurisprudencial tenderá sempre para a protecção das fontes de capital como objecto de mais cuidada justiça e de alguma sobrepujança sobre o aspecto social global, entendendo-se que uma sociedade economicamente mais saudável cuidará melhor dos seus membros, cuidando-se mais, neste ambiente, do carácter económico das relações jurídicas do que do seu carácter social.
5) Por contraposição, na perspectiva global mais social, o entendimento será tendencialmente o oposto, prevalecendo o interesse da protecção social e de que o direito deverá cuidar mais das pessoas do que do sistema, o que levará a um pendor jurisprudencial mais leniente e protetor dos indivíduos do que das instituições, por se considerar a sua fragilidade perante aquelas.
6) Deste modo, e conforme é exactamente a posição de ambas as partes dos presentes autos (a Recorrente um banco e o Recorrido um indivíduo), o banco puxará sempre à interpretação jurisprudencial que o favorece e, de seu turno, o indivíduo procurará a protecção do interesse social e individual.
7) Na uniformização de jurisprudência, não se trata de «contar armas» mas antes, perspectivamente, de ler a lei e o mundo por forma a que a uniformização de jurisprudência não seja iníqua e injusta, cumprindo-se assim, um dos mais emblemáticos desígnios do labor jurisprudencial do Tribunal Supremo da Nação.
8) O acórdão recorrido, não se encontrando desacompanhado jurisprudencialmente, interpreta a lei e o mundo a que a mesma se aplica de forma correcta e que deve merecer provimento de uniformização.
9) Dar ao credor hipotecário o privilégio de impedir a administração do bem pelo proprietário, apenas na perspectiva de algo de mal acontecer e a garantia ter que ser accionada é, seguramente, algo que exorbita o carácter social do direito de crédito e da garantia em questão.
10) Isso representaria pura e simplesmente uma limitação do direito de propriedade que, contraditoriamente, se quer pretender evitar; ao credor quando se dirime inoponível a este um contrato de arrendamento prévio à venda ou adjudicação do bem ao credor hipotecário, mas posterior à hipoteca.
11) O argumento acima ganha ainda mais relevância e fundamento quando nos recordamos que, num contrato de arrendamento, estão envolvidos terceiros de boa fé que nada têm que ver com a relação de crédito ou a garantia de um crédito a que o imóvel está adstrito.
12) O que se está a fazer com a interpretação jurisprudencial é prejudicar um instituto jurídico dedicado essencialmente à estabilidade e bem-estar social, que sempre foi protegida pelo Estado de Direito, consubstanciada, in casu, no direito à habitação por via do arrendamento, direito este muito mais relevante social, política e economicamente que o direito de crédito dos bancos que o usam para mero exercício comercial e de prossecução de lucro.
13) Sendo acto de mera administração, o arrendamento, como direito obrigacional por natureza, não implica uma limitação, mas sim, ao contrário, uma vantagem de que o bem produz um rendimento, não uma despesa com manutenção, ou uma falta de rendimento.
14) O que acima se disse é ainda mais patente quando facilmente se comprova que, nos nossos dias, estes imóveis têm uma procura acrescida, e neste aspecto, há que atender em concreto ao facto de um imóvel poder e ser normalmente uma fonte de rendimento, para além do seu carácter residencial ou habitacional próprio.
15) É hodiernamente reconhecido, até por instâncias internacionais financeiras, como uma excelente opção de investimento, que, aliás, mesmo pelo próprio Autor é adoptado como medida de sã gestão no meio do descalabro de reaquisições de imóveis que tem ocorrido com esta crise da qual o mundo está apenas a sair, e que tem inundado as entidades bancárias com carteiras de imobiliário que, expeditamente despacha para fundos autónomos que se dedicam a rentabilizar os imóveis, nomeadamente arrendando-os.
16) É, por isso, totalmente anacrónico e conclusivo defender que o facto de um imóvel ter um contrato de arrendamento seja uma limitação ao direito de propriedade ou ao livre exercício da mesma.
17) O arrendamento pode e deve, nas presentes circunstâncias de facto e de direito, ser oposto ao adquirente.
18) E isto por várias razões: uma, de carácter social, dado que seria abrir a porta à destruição do carácter social do arrendamento e dar-lhe um carácter transitório, porque dependente de uma qualquer hipoteca, cuja álea, inerente ao risco do contrato de mútuo bancário ser, ou não, incumprido, determinaria a jusante, aquando da venda judicial em execução, a caducidade do contrato e já não as causas típicas (de tipologia fechada, diga-se) previstas para tal fim pelo Regime do Arrendamento Urbano, o Código Civil e o Novo Regime do Arrendamento Urbano, fim esse que, neste caso, a caducidade viola frontalmente em espírito e de facto.
19) A assumir-se a posição doutrinária e jurisprudencial plasmada no Acórdão Fundamento, dado o vastíssimo número de prédios hipotecados no nosso país, necessariamente levará, por este caminho, a que o mercado de arrendamento seja reduzido a uma expressão ínfima.
20) A outra, segunda, uma razão legal: não é o que a lei pretende ou sequer permite com a sua letra presentemente, dado o regime do Arrendamento e locação e o disposto no artigo 824.º, n.º 2, do Código Civil que, bem ao contrário do que o tribunal entende, não deixam na sua regulamentação algum vazio que exija uma interpretação extensiva ou analógica (a qual se aproxima bastante de uma integração de lacuna, fora dos limites consentidos pelo art. 10.º do Código Civil) como a vaticinada pelo Acórdão Fundamento.
21) Nesta questão de direito que essencialmente se prende com a interpretação e a existência, ou não de uma lacuna no regime legal que determine uma interpretação extensiva e/ou analógica da lei colhe, da melhor jurisprudência e doutrina, uma interpretação sistemática das normas (a qual tem verdadeiramente em conta a «unidade do sistema jurídico» preconizada no art. 9.º, n.º 1 do Código Civil) em causa e até as regras da interpretação teleológica - não se podendo olvidar que todo o intérprete tem o dever de presumir «que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» (cf. art. 9.º, n.º 3 do mesmo diploma) concorrem para a manutenção - e não para a caducidade - do contrato de arrendamento, sucedendo o credor hipotecário na posição de senhorio, nos termos do artigo 1057.º do Código Civil ex vi o art.s 109.º, n.º 3 do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas.
22) Nesta específica esfera da insolvência, inexistem quaisquer fundamentos para declarar a caducidade do contrato de arrendamento em causa aquando de uma venda judicial, sendo este ainda mais um facto interpretativo que compele a que a decisão de declaração de caducidade seja a menos equilibrada, não devendo ser adoptada como interpretação aceitável do disposto no n.º 2 do artigo 824.º do Código Civil.
23) Conforme até já decidido no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 18-12-2013, n.º 01756/13, mesmo nos casos em que considere o arrendamento como um ónus ou limitação da coisa (o que não se concede e apenas se coloca academicamente e por mero dever de cautela de patrocínio), uma solução que conclua que o contrato de arrendamento confere ao locatário um direito real, seria inconciliável com a nulidade da cláusula que proíbe o dono de onerar os bens hipotecados (artigo 695.º do CC.), sendo que também não se compreenderia o direito de preferência atribuído ao arrendatário na venda do local arrendado (cf. artigo 1091.º C. Civil), nem a obrigação de inserir no anúncio da venda do imóvel a existência do arrendamento por ser limitadora, de regra, do potencial valor do mesmo.
24) Conclui-se portanto que o contrato de arrendamento não confere ao locatário um direito real, mas apenas um direito de crédito, ou seja o contrato de arrendamento é de natureza obrigacional, e assim, a letra do n.º 2 do artigo 824.º do Código Civil não abrange os contratos de arrendamento, porque, na verdade não ocorre qualquer lacuna legal que permita ou implique tal interpretação da norma, sendo esta, no mínimo, desconforme com o sentido literal e teleologicamente inadequada, implicando uma «apropriação» do poder de determinar o critério de aplicação de uma disposição legal - e, portanto, da solução do caso - que cabe ao legislador e, constitui uma violação do princípio da separação de poderes e do dever de obediência à lei que os tribunais estão sujeitos, violando os artigos 2.º, 111.º, n.º l, 203.º e 204.º da CRP.
25) Conforme impressivamente disposto no acórdão recorrido:
«[A] parte da doutrina que sustenta a natureza real do arrendamento (direito real de gozo) (teoria realista), fá-lo pela constatação dos poderes de que o arrendatário fica investido: em especial, o gozo do prédio (artigos 1022.º e 1031.º do CC), a subsistência do arrendamento independentemente da transmissão da propriedade do prédio (artigo 1057.º do CC), e a possibilidade de defesa possessória por parte do arrendatário, contra quaisquer pessoas (artigo 1037.º, n.º 2, do CC). Onde se descortinam sinais de 'realidade'.
Ora, se o arrendatário tem poderes com esta consistência, que, segundo aqueles autores, quase configuram direito de sequela, não se compreende que tal direito caduque com a venda em praça do prédio arrendado, tão só porque o arrematante é o exequente com hipoteca sobre o prédio, registada em data anterior ao arrendamento.
[...]
Porque se tal concepção se aplicar [...] ela deveria conduzir precisamente ao resultado inverso, devia conduzir ao reforço e não à fragilização da posição do arrendatário: não à caducidade do arrendamento, mas à sua manutenção [...]».
26) As disposições que concedem ao locatário tratamento jurídico análogo ao dos direitos reais são raras e de natureza incontestavelmente excepcional, não podendo ser submetidas a integração analógica, nos termos do art. 11.º do Código Civil.
27) Não parece ser coerente defender-se que as equiparações legais, dada a natureza proeminentemente pessoal do direito do locatário, só se aplicam porque há disposição a concedê-las e, depois, admitir-se um tratamento real para casos omissos do regime legal locatício.
28) A ratio legis do n.º 2 do art. 824.º do Código Civil em causa é assegurar que o valor do bem vendido em execução judicial, pelo facto de sobre o mesmo incidirem direitos reais, não sofrerá uma significativa desvalorização ou depreciação em prejuízo dos credores.
29) Todavia a hipoteca, apesar de ser uma garantia real que acompanha o imóvel sobre que incide, não impede o titular desse imóvel de o alienar ou de o onerar, como resulta nitidamente do dispositivo do artigo 695.º do CC.
30) Como se obtempera no acórdão deste STJ de 27.03.2007, se se tornar insuficiente a segurança da obrigação, tem o credor o direito de exigir que o devedor a substitua ou reforce, e, não o fazendo, pode o credor exigir o imediato cumprimento da obrigação, ou tratando-se de obrigação futura, registar hipoteca sobre outros bens do devedor, nos termos do artigo 701.º, n.º 1, do CC. «E, por outro lado, não parece de afastar a possibilidade de exercer acção pauliana contra o devedor que onerar com arrendamento o prédio objecto da garantia, verificando-se os respectivos requisitos (artigo 610.º e seguintes do CC)».
31) Acresce a tudo isto que o regime vinculístico, característico do arrendamento, especialmente do urbano e mais especificamente do comercial (que é o caso dos presentes autos, em que o arrendamento é habitacional), tem vindo a estiolar-se nas últimas alterações legislativas.
32) Acresce também que a regressão das medidas protecionistas em benefício de uma maior liberalização no mercado de arrendamento, traduzida na abolição do princípio da renovação do contrato de arrendamento e no esbatimento da política de bloqueio das rendas, permitiu a atribuição de poderes mais amplos ao locador para proceder à denúncia do arrendamento (sendo, em consequência, menor o nível de desvalorização que a subsistência do arrendamento produz para o valor da venda do imóvel na acção executiva), e, por outro lado, abriu espaço à criação de um adequado regime de actualização do valor das rendas, indexando o valor destas ao índice de preços do consumidor, evitando assim a sua depreciação.
33) No actual contexto legal, o arrendamento de um imóvel não constitui, sem mais, um factor de desvalorização do mesmo, ou seja, não constitui necessariamente um ónus, com o sentido pretendido, nem constitui um obstáculo à satisfação integral do crédito garantido.
34) No caso concreto, a Autora sabia, à data da venda judicial, que o imóvel que servia de garantia ao mútuo que concedera à anterior proprietária, se encontrava arrendado - v. ponto 23. Dos factos provados.
35) Assim, conclui-se que o artigo 824.º, n.º 2, do Código Civil não se aplica, nem directa nem analogicamente, ao arrendamento, devendo ser uniformizada a jurisprudência nesses termos.
O recurso para uniformização de jurisprudência veio a ser admitido liminarmente, nos termos do artigo 692.º, n.º 5 do CPCivil, tendo-se entendido, além do mais, encontrar-se perfeitamente identificada a questão fundamental de direito a dilucidar que em ambos os acórdãos foi decidida contraditoriamente, no domínio da mesma legislação, isto é, a de saber se a venda judicial faz caducar o contrato de arrendamento do imóvel, com hipoteca registada em data anterior, nos termos do artigo 824.º, n.º 2, do Código Civil, concluindo-se afirmativamente no Acórdão aqui impugnado e contrariamente no Acórdão fundamento.
O Ministério Público emitiu parecer, nos termos do disposto no artigo 687.º, n.º, aplicável ex vi do artigo 695.º, este como aquele do CPCivil, sustentando, no que à economia das questões a resolver diz respeito, o seguinte «[v]erifica-se que no acórdão fundamento o tribunal entendeu que, em caso de declaração de insolvência do locador, o contrato de arrendamento de bem imóvel, com hipoteca registada em data anterior, caduca com a venda judicial, nos termos do artigo 824.º n.º 2 do Código Civil.
E tal sucede, refere-se no acórdão fundamento uma vez que, apesar do direito do arrendatário ter natureza pessoal ou creditícia, ter ainda contornos que se assemelham aos dos direitos reais, motivos pelo qual se lhe aplica o regime dos direitos reais, mais concretamente o disposto no artigo 824.º n.º 2 do Código Civil.
Refere-se ainda no acórdão fundamento que, a favor de tal entendimento, milita ainda o disposto no artigo 1051.º do CC, o qual estabelece que os casos em que o contrato de arrendamento caduca não são taxativos, e que o disposto no artigo 1057.º do CC não se aplica à venda judicial, já que existe uma norma própria que regula esta matéria que é a do artigo 824.º n.º 2 do CC.
Assim, no acórdão fundamento não se faz qualquer menção ao disposto no artigo 109.º n.º 3 do CIRE, ao contrário do que sucede no acórdão recorrido.
Com efeito, no acórdão recorrido o Tribunal entendeu que o disposto no artigo 824.º n.º 2 do CC não se aplicava, nem directa nem analogicamente, ao arrendamento, motivo pelo qual o arrendamento da fracção ao Réu deveria subsistir, não caducando, antes se havendo como transmitida a posição do locador para o terceiro adquirente (Autora) do prédio alienado em execução. Entendeu ainda que face ao disposto no artigo 109.º n.º 3 do CIRE, conjugado com o artigo 1057.º do CC, o contrato de arrendamento de bem imóvel, com hipoteca registada em data anterior, não caduca com a venda judicial.
Resulta do exposto que, no acórdão fundamento, nem implícita nem explicitamente foi ponderada a aplicação do disposto no artigo 109.º n.º 3 do CIRE.
Ainda que se admitisse, por mera hipótese que, no acórdão fundamento, o artigo 824.º do CC foi aplicado tendo em conta, implicitamente, o disposto no artigo 109.º n.º 3 do CIRE, sempre seria de concluir que não existira oposição expressa nesta matéria, uma vez que nesse acórdão se não faz qualquer referência às razões pelas quais se afastou este normativo.
É certo que o acórdão fundamento optou por aplicar o disposto no artigo 824.º do CC, afastando o regime dos artigos 1057.º e 1051.º do CC com o fundamento que tais normativos não são taxativos e, que existia uma norma própria que regulava a venda judicial.
Contudo, não se tendo expressamente pronunciado sobre o artigo 109.º n.º 3 do CIRE, não atentou ou sopesou as razões subjacentes à existência deste dispositivo legal.
Ora, para efeitos de recurso para uniformização de jurisprudência, estamos perante contradição de julgados no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, quando a mesma disposição legal se mostre, num e noutro, aplicada em termos opostos, havendo identidade de situação de facto subjacente a essa aplicação, o que não sucede no caso vertente.
Por estes motivos somos de parecer que o acórdão recorrido, não decidiu de forma oposta ao acórdão fundamento, no mesmo quadro normativo, sobre a mesma questão fundamental de direito, não existindo assim oposição de julgados relevante devendo, consequentemente, ser rejeitado o presente recurso de uniformização de jurisprudência.
2.5.2 - Caso assim não se entenda dir-se-á que, por despacho de 19 de Março de 2019 o Excelentíssimo Senhor Conselheiro decidiu que a questão fundamental de direito a dilucidar nos presentes autos era a de saber se "A venda judicial faz caducar o contrato de arrendamento de imóvel com hipoteca registada em data anterior, à celebração do contrato de arrendamento, nos termos do artigo 824.º n.º 2 do Código Civil?
Afigura-se-nos que a questão em análise dos autos deverá ser reconduzida ao âmbito da insolvência. Com efeito, verifica-se que tanto o acórdão recorrido como o acórdão fundamento foram proferidos no âmbito do processo de insolvência, sendo que o regime jurídico aplicável à venda judicial no âmbito do processo de insolvência, é diferente do regime jurídico aplicável à venda judicial em processo executivo.
Pelo exposto, afigura-se-nos que a questão em análise nos presentes autos deveria ser formulada nos seguintes termos:
No âmbito de um processo de insolvência a venda judicial, realizada, faz caducar o contrato de arrendamento de imóvel com hipoteca registada em data anterior, à celebração do contrato de arrendamento, nos termos do artigo 824.º n.º 2 do Código Civil.».
II - As instâncias declararam como assentes os seguintes factos:
1 - Encontra-se descrita na Conservatória do Registo Predial de..., sob o n.º 00/2007..., a fracção autónoma designada pela letra «E», correspondente ao rés-do-chão, primeiro e segundo andares, com entrada pelo n.º 0 da Rua..., destinada a habitação, do prédio urbano, constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida..., n.os 00, 00-X e 00-0 e Rua..., n.os 0 e 0, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 2398 da freguesia de..., concelho de...;
2 - A acima referida fracção autónoma foi adquirida por BB, em 15 de Fevereiro de 2008, à sociedade P..., da qual a própria era... e..., conforme escritura junta a fls. 15 e seguintes e que aqui se dá por reproduzida;
3 - Para aquisição da referida fracção autónoma, a Autora, na altura, mutuou à referida BB a quantia de 280.000,00 (euro), tendo a mesma hipotecado o prédio para garantia deste mútuo, a favor da Autora, e para garantia do montante máximo de 392.000,00 (euro), hipoteca que ficou inscrita no respectivo registo predial sob a ap. 00 de 2008/03/05;
4 - Ainda por escritura pública de mútuo com hipoteca e mandato, lavrada a 30 de Setembro de 2009, no Cartório Notarial em..., do Dr. CC, a fls. 41 a 42, do livro de notas para escrituras diversas n.º 135 -A, a Autora concedeu à referida BB, um novo financiamento de 60.000,00 (euro), constituindo esta uma segunda hipoteca sobre a referida fracção «E», a favor da Autora e para garantia do montante máximo de 84.000,00 (euro), que foi inscrita no respectivo registo predial sob a ap. 0000 de 2009/10/06, tudo ainda como consta no documento junto a fls. 43 e seguintes e que aqui se dá por reproduzido;
5 - Na descrição predial referida no facto provado 1., em 05.03.2008 e previamente à inscrição das duas hipotecas voluntárias acima mencionadas, foi inscrita a aquisição do direito de propriedade a favor de BB;
6 - Na mesma descrição predial, em 01.06.2011, foi inscrita a penhora a favor da Fazenda Nacional para garantia da quantia exequenda de 1.004,45 (euro), a qual foi liquidada e cancelada a inscrição em 24.03,2015; (alterado pelo Tribunal da Relação)
7 - Na mesma descrição predial, em 01.02.2012, foi inscrita a penhora a favor da C..., S. A., para garantia da quantia exequenda de 2.274.756,04 (euro);
8 - Na mesma descrição predial, em 19.06.2013, foi inscrita a penhora a favor da aqui Autora, para garantia da quantia exequenda de 712.802,27 (euro);
9 - Na mesma descrição predial, em 19.06.2013, foi inscrita a penhora a favor da aqui Autora, para garantia da quantia exequenda de 63.459,63 (euro);
10 - Na mesma descrição predial, em 04.09.2013, foi inscrita a penhora a favor da aqui Autora, para garantia da quantia exequenda de 300.781,57 (euro);
11 - Por sentença proferida em 9 de Maio de 2014, no processo de insolvência n.º 260/14.0... do Tribunal Judicial de..., foi declarada a insolvência de BB;
12 - A fracção autónoma indicada no facto provado 1. integrou a massa insolvente de BB;
13 - Na descrição predial referida no facto provado 1., em 02.06.2014, foi inscrita a apreensão à ordem do processo de insolvência n.º 260/14.0... do Tribunal Judicial de...;
14 - Por contrato de compra e venda, celebrado na Conservatória dos Registos Civil, Predial, Comercial e Automóveis de..., no processo Casa Pronta n.º .../2015, em 24 de Junho de 2015, a administradora da insolvência da Massa Insolvente de BB, nessa qualidade, declarou vender à aqui Autora, que aceitou a venda, pelo preço de 340.000,00 (euro), a fracção autónoma indicada no facto provado 1.
15 - A venda acima referida foi efectuada no âmbito da liquidação que correu termos no processo de insolvência n.º 260/14.0... do ex-Tribunal Judicial de...;
16 - A aquisição efectuada pela Autora e indicada no facto provado 14. foi inscrita no respectivo registo predial (descrição predial indicada no facto provado 1) pela ap. 0000 de 2015/06/24, constando como causa de aquisição a «compra em processo de insolvência», tendo sido igualmente canceladas todas as penhoras e hipotecas inscritas e acima indicados;
17 - Na descrição predial referida no facto provado 1., presentemente, o direito de propriedade continua inscrito a favor da Autora;
18 - O Réu ocupa a fracção autónoma indicada no facto provado 1. e recusa-se a entregá-la à Autora;
19 - A Autora está impedida de fazer o uso da fracção autónoma indicada no facto provado 1., incluindo a faculdade de a arrendar, em razão da ocupação feita pelo Réu; (alterado pelo Tribunal da Relação);
20 - O valor de mercado actual para o arrendamento da fracção autónoma indicada no facto provado 1., com referência à data de Maio de 2016, era de 905,11 (euro) mensais, sendo que com referência ao ano de 2011 esse valor mensal era de 841,57 e;
21 - Em 1 de Outubro de 2011, BB, na qualidade de senhoria, e o Réu, na qualidade de inquilino, celebraram por escrito um contrato de arrendamento, pelo prazo de 10 anos, com início em 01.10.2011, com a renda mensal de 300,00 (euro), tendo por objecto a fracção autónoma indicada no facto provado 1.
22 - O Réu efectuou diversos depósitos na Caixa Geral de Depósitos, indicando como senhoria a aqui Autora, e como prédio a fracção autónoma referida no facto provado 1., invocando a previsão do artigo 18.º do NRAU que assinalou nos respectivos talões de depósito, com as seguintes datas, valores e menções:
- em 25.08.2015, com o valor de 600 (euro) e mencionando «as rendas de Julho e Agosto de 2015»;
- em 03.09.2015, com o valor de 300 (euro) e mencionando «a renda de Setembro»;
- em 06.10.2015, com o valor de 300 (euro) e mencionando «a renda de Outubro»;
- em 04.11.2015, com o valor de 300 (euro) e mencionando «a renda de Novembro»;
- em 07.12.2015, com o valor de 300 (euro) e mencionando «a renda de Dezembro»;
- em 08.01.2016, com o valor de 300 (euro) e mencionando «a renda de Janeiro de 2016»;
- em 08.02.2016, com o valor de 300 (euro) e mencionando «a renda de Fevereiro de 2016»;
- em 07.03.2016, com o valor de 300 (euro) e mencionando «a renda de Março de 2016»;
- em 08.04.2016, com o valor de 300 (euro) e mencionando «a renda de Abril de 2016»;
- em 09.05.2016, com o valor de 300 (euro) e mencionando «a renda de Maio de 2016»;
23 - A Autora tomou conhecimento do contrato de arrendamento referido no facto provado 1., através da administradora da insolvência no processo de insolvência n.º 260/14.0... do ex-Tribunal Judicial de... e no âmbito da preparação da compra e venda referida no facto provado 14.;
24 - Após a aquisição da fracção autónoma indicada no facto provado 1., a Autora comunicou ao Réu que não o reconhecia como arrendatário;
25 - O Réu, quando apresentou a contestação na presente acção, já sabia que a Autora não o aceitava como arrendatário;
26 - Em 15.09.2015, a Autora comunicou ao Réu que, por via da venda judicial da fracção autónoma, entendia que o contrato de arrendamento caducara, pelo que ocupava ilegitimamente a fracção autónoma e que apenas aceitava essa ocupação se, até ao dia 31.09.2015, o Réu celebrasse um contrato promessa de compra e venda da fracção autónoma nas condições expostas no documento de fls. 123 e 124, que aqui se dá por reproduzido;
27 - O Réu mantém uma relação amorosa com BB, desde há vários anos, com início em data concretamente não apurada.
28 - O Réu tem a sua residência permanente na fracção autónoma em causa. (Facto dado como provado pelo Tribunal da Relação)
Considerou-se não provada a seguinte materialidade:
1 - Que, sem prejuízo do que consta no facto provado 20.º, o valor de arrendamento da fracção autónoma, excedesse o valor mensal de 902,11 euros e atingisse pelo menos 1.000,00 (euro) mensais.
2 - Que as quantias referidas no facto provado 22. já tivessem sido entregues à Autora e que a Autora aceitasse o pagamento das rendas depositadas;
3 - Que a Autora tivesse reconhecido o Réu como arrendatário;
4 - Que a Autora sabia da existência de um contrato de arrendamento válido que legitimasse a ocupação feita pelo Réu e que tivesse omitido esse facto na petição inicial;
5 - Que, sem prejuízo do que consta nos factos provados, a Autora sempre teve conhecimento de que o Réu era arrendatário da mencionada fracção autónoma;
6 - Que a Autora não se opôs ao arrendamento, recebendo as rendas durante estes meses, sem qualquer oposição;
7 - Que a Autora gerou no Réu a convicção de que o contrato de arrendamento era válido, levando-o a organizar a sua vida em função da residência que estabeleceu na fracção autónoma e a abrir um estabelecimento na mesma localidade;
8 - Que o valor de 300,00 (euro) correspondesse ao valor de mercado de arrendamento da fracção autónoma indicada no facto provado 1., com referência a 01.10.2011 e no estado em que então se encontrava;
9 - Que o Réu tivesse suportado elevadas despesas de manutenção da fracção autónoma indicada no facto provado 1.
1 - Da admissibilidade do recurso.
Resulta do artigo 688.º, n.º 1 do CPCivil que «As partes podem interpor recurso para o pleno das secções cíveis do Supremo Tribunal de Justiça quando o Supremo proferir acórdão que esteja em contradição com outro anteriormente proferido pelo mesmo tribunal, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.», acrescentando o n.º 2 que «Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior com trânsito em julgado, presumindo-se o trânsito.».
Constituem, assim, requisitos para a admissão de tal recurso: i) que exista um Acórdão do STJ transitado em julgado, proferido nos autos onde se suscita a uniformização; ii) contradição entre o Acórdão proferido e outro que o mesmo Tribunal haja produzido anteriormente; iii) que essa contradição tenha ocorrido no domínio da mesma legislação e que respeite à mesma questão essencial de direito.
Em sentido técnico, a oposição de acórdãos quanto à mesma questão fundamental de direito verifica-se quando a mesma disposição legal se mostre, num e noutro, interpretada e/ou aplicada em termos opostos, havendo identidade da situação de facto subjacente a essa aplicação.
Pressupondo a contradição relevante para efeitos de uniformização de jurisprudência, a identidade substancial do núcleo essencial das situações de facto que suportam a aplicação díspar dos mesmos institutos jurídicos ou da mesma legislação, afigura-se que é precisamente o caso daqui, cfr Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9.ª edição, 122; Castro Mendes, Obras Completas - Direito Processual Civil, III Volume, 117/118; Pinto Furtado, Recursos em Processo Civil, 141.
O despacho liminar de admissão do recurso assentou nos seguintes fundamentos:
«[9.] No pedido de admissão do recurso para uniformização de jurisprudência, a Autora refere que existe oposição entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, do STJ, de 09.07.2015, no âmbito do processo 430/11.2TBEVR-Q.E1.S1, da 6.ª secção, em que foi relator o Ex.º Conselheiro João Camilo.
10 - No acórdão fundamento (cuja certidão consta de fls. 43 e seguintes deste apenso), que versou igualmente sobre uma situação em que o imóvel hipotecado, vendido pelo administrador da insolvência, também havia sido dado de arrendamento em data posterior ao registo da hipoteca, decidiu-se que 'com a venda judicial de um imóvel hipotecado que tenha sido dado de arrendamento a terceiro após o registo da referida hipoteca, caduca o direito do respetivo locatário, nos termos do n.º 2 do artigo 824.º do Código Civil'.
11 - Encontra-se perfeitamente identificada a questão fundamental de direito a dilucidar, que em ambos os acórdãos foi decidida contraditoriamente, no domínio da mesma legislação, qual seja: A venda judicial faz caducar o contrato de arrendamento de imóvel, com hipoteca registada em data anterior, nos termos do artigo 824.º, n.º 2, do Código Civil?».
A Exª Procuradora Geral-Adjunta no seu parecer, sustentou que não ocorre a contradição de julgados, como supra se deixou extractado, uma vez que, ao contrário do Acórdão recorrido, o Acórdão fundamento não fez qualquer alusão ao normativo inserto no artigo 109.º, n.º 3 do CIRE.
Efectivamente, o Acórdão fundamento, respeitando a uma situação em tudo idêntica à questionada nestes autos, entendeu que em sede de declaração de insolvência do devedor, o contrato de arrendamento de bem imóvel, com hipoteca registada em data anterior a tal declaração, caduca com a venda judicial, nos termos do artigo 824.º, n.º 2 do CCivil, uma vez que, não obstante o direito do arrendatário tenha natureza pessoal, assume contornos que se assemelham aos dos direitos reais, aplicando-se o regime destes, mormente aquele apontado normativo adiantando-se que «[p]ensamos como a quase generalidade dos autores, que esse direito tem natureza pessoal ou creditícia, mas tem contornos que se assemelham aos direitos reais em que o regime dos direitos reais se lhe aplica - cf. art. 1037.º, n.º 2 do Cód. Civil. As exigências de justiça e os interesses teleologicamente detetáveis no referido n.º 2 do art. 824.º apontam para a aplicação ao arrendamento do regime de caducidade neste último previsto.
Em favor deste entendimento e rebatendo os argumentos geralmente apontados em sentido oposto - como os expostos no notável acórdão fundamento junto para legitimar a revista excecional -, acrescentaremos que o disposto no art. 1051.º do Cód. Civil, que indica os casos em que o contrato de arrendamento caduca, não é taxativo, nomeadamente, por também poder caducar em caso de impossibilidade de cumprimento, nos termos do art. 795.º do Cód. Civil. Também o disposto no art. 1057.º do Cód. Civil não pode justificar o entendimento oposto, por tal preceito se não aplicar à venda judicial que, nesse aspecto, tem norma própria que é a do art. 824.º, n.º 2 referido.».
O Acórdão recorrido fixou a questão a resolver nos seguintes termos «A sentença da 1.ª instância e o acórdão recorrido condenaram o Réu a entregar a identificada fracção predial à Autora, baseando-se no disposto no artigo 824.º, n.º 2, do CC, aplicado por via analógica.
Vejamos se essa decisão deve manter-se.», tendo no desenrolar da tese, que veio a gizar e delinear para a tomada de posição final, concluído que «[o] artigo 824.º, n.º 2, do CC não se aplica, nem directa nem analogicamente, ao arrendamento» e «[A] norma do artigo 109.º, n.º 3, do CIRE, estabelece que 'a alienação da coisa locada no processo de insolvência não priva o locatário dos direitos que lhe são reconhecidos pela lei civil em tal circunstância'. Na primeira linha desses direitos surgem o direito à manutenção da sua posição contratual e o direito de preferência.».
Esta referência ao disposto no artigo 109.º, n.º 3 do CIRE, não aponta directamente para uma resolução jurídica diversa do conflito nos Acórdãos em confronto, já que o nó górdio da problemática discutida em ambos se centrou na (in)aplicabilidade do preceituado no artigo 824.º, n.º 2 do CCivil aos contratos de arrendamento celebrados em data posterior à constituição da hipoteca sobre os respectivos imóveis que tenham sido objecto de venda no âmbito de um processo insolvencial dos seus locadores, sendo que o referido normativo, no seu n.º 1, refere-se especificamente à venda em execução.
Contudo, atentemos no artigo 1.º do CIRE, onde se estipula que «O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.».
Este procedimento é universal e concursal: i) é um processo universal, uma vez que todos os bens do devedor podem ser apreendidos para futura liquidação, de harmonia com o disposto no artigo 46.º, n.os 1 e 2 do CIRE, normativo este que define o âmbito e a função da massa insolvente; ii) concursal, pois o seu objectivo é a obtenção da liquidação do património do devedor, por todos os seus credores, os quais são chamados a intervir no processo, seja qual for a natureza do respectivo crédito, e caso venha a ser verificada a insuficiência do património a excutir, serão repartidas de modo proporcional pelos mesmos as respectivas perdas (principio da par conditio creditorum).
Nesta perspectiva claramente executória do procedimento insolvencial, embora não exclusivamente executória, comportando antes uma natureza mista, porquanto se inicia com uma fase declarativa da qual se parte para uma outra com vista à transmissão do património e pagamento aos credores, parecem não restar dúvidas que o regime legal da venda executiva previsto no Código de Processo Civil é aplicável àquela alienação patrimonial, em incidente de liquidação da massa, designadamente, o da venda de bens, para o qual nos remete especificamente o artigo 164.º, n.º 1 do CIRE e em termos genéricos, subsidiariamente o artigo 17.º, n.º 1 do mesmo diploma, cfr Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2021, 3.ª edição, volume I, 256; José Alberto dos Reis, Processos Especiais, vol. II, reimp., Coimbra, 1982, 312; José lebre de Freitas, Apreensão, Restituição, Separação e Venda de Bens no Processo de Falência, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol 36, 1995, 372/373; Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª edição, 482; Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 7.ª edição, 2019, 226; Ac STJ de 1 de Setembro de 2016 proc. n.º 243/11.1TBALJ.G1.S1 e de 7 de Setembro de 2020 proc. n.º 205/04.3TBVLN-T.G1.S1, in www.dgsi.pt.
Assim sendo, o quadro normativo considerado foi o mesmo, no qual reside a essencialidade da questão decidenda, acerca da qual inexiste qualquer solução uniformizadora, embora a sua dilucidação se limite à venda do bem locado em sede insolvencial, havendo deste modo lugar ao conhecimento do objecto da impugnação.
2 - Da questão solvenda.
O aporema daqui reside em saber se a venda de um imóvel hipotecado e arrendado, por contrato de arrendamento urbano para habitação posterior ao registo da hipoteca, realizada no âmbito de liquidação efectuada em processo de insolvência do locador, provoca a caducidade do arrendamento, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 824.º do CCivil.
Perscrutando o aludido normativo verificamos, no que à economia da questão em tela diz respeito, que no mesmo se predispõe:
«1 - A venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida.
2 - Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerem, bem como os demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente desse registo.».
A fim de se poder enveredar pela subsunção da caducidade do contrato de arrendamento em sede de venda ocorrida na liquidação insolvencial que aqui nos ocupa, nos termos esgrimidos pelo Acórdão fundamento, tornar-se-ia mister, fazer a equiparação da relação locatícia existente, na perspectiva do locatário, a um direito real, porquanto aquela norma se refere tão só à extinção de direitos reais e, não também, de todos os direitos, reais e/ou obrigacionais, que incidam sobre a coisa transmitida.
Começamos por dizer que o contrato de arrendamento, na sua estrutura, é um direito pessoal de gozo, de natureza obrigacional, do qual decorre para o locador a obrigação de proporcionar ao locatário o gozo de um imóvel, temporariamente, mediante uma determinada retribuição, estando o seu enquadramento legal perfeitamente definido no artigo 1022.º do CCivil, não se tratando, pois, de um direito real de gozo, encontrando-se expressamente afastado do Livro III - Direito das Coisas - sendo certo que neste específico domínio estamos adstritos ao princípio da tipicidade (artigo 1306.º do CCivil), o qual afasta, à partida, qualquer possibilidade de analogia.
Essa tipicidade concreta mostra-se abrangida pela norma do artigo 824.º, n.º 2 do CCivil, a qual é clara, precisa e concisa, no que concerne aos direitos que caducam em sede de venda executiva, pois estes são apenas os reais e não também os obrigacionais, caso do arrendamento.
A tese sustentada no Acórdão fundamento, arrima-se na doutrina realista, baseada na ideia chave de o arrendamento ser um «direito inerente» por força do disposto no artigo 1057.º do CCivil, que faz transferir para o adquirente do direito os direitos e obrigações do locador, aliando a essa ideia o carácter tendencialmente vinculístico do arrendamento, que constitui um gravame para o respectivo titular; se a Lei pretende que os bens sejam transmitidos livres de quaisquer direitos que os onerem, preservando assim o seu valor em processo executivo, seria incompreensível que deixasse incólume o arrendamento, incluindo-se o mesmo no disposto no artigo 824.º, n.º 2 do CCivil, o qual abrangerá assim, também os «direitos inerentes», doutrina essa que foi tomando forma ao longo dos anos 2000 neste Supremo Tribunal de Justiça, afastando-se da doutrina tradicional que até então prevalecia, cfr A. Luís Gonçalves, in RDES, Ano XXXX - XII da 2.ª série - n.º 1, pág. 98; Ana Carolina Sequeira, A Extinção de Direitos por Venda Executiva, in Garantias das Obrigações, 23 e 43; Manuel Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, 140/141; Oliveira Ascensão, Locação de bens dados em garantia. Natureza jurídica da locação, in ROA, n.º 45, 352 e segs.; inter alia os Ac STJ de 5 de Fevereiro de 2009, proc. n.º 08B3994; de 27 de Maio de 2010, proc. n.º 5425/03.7TBSXL.S1; de 16 de Setembro de 2014, proc. n.º 351/09.9TVLSB.L1.S1; de 22 de Outubro de 2015, proc. n.º 896/07.5TBSTS.P1.S; de 9 de Janeiro de 2018, proc. n.º 732/11.8TBPDL-A.L1.S; de 15 de Fevereiro de 2018, proc. n.º 851/10.8TBLSA-D.S1 (todos em www.dgsi.pt).
Prima facie, há que acentuar que não obstante algumas características particulares do arrendamento, maxime, as que conferem ao locatário o poder de usar dos meios facultados ao possuidor, se for perturbado no exercício dos seus direitos, nos termos do artigo 1037.º, n.º 2 do CCivil, contra o locador ou contra aquele que dele adquira o direito por força do artigo 1057.º, o arrendamento é um direito pessoal de gozo (assim qualificado expressamente pelo artigo 1682.º, n.os 1 e 2 do CCivil), definido pelo artigo 1022.º do CCivil, nos termos apontados supra, como o contrato pelo qual alguém se obriga a proporcionar a outrem o gozo de uma coisa mediante uma retribuição, sendo nesta que reside a natureza creditícia da relação: é um direito creditório referente a uma coisa, não é um direito sobre a coisa; por outro lado a inerência, afloramento da sequela, não lhe confere a característica do absolutismo do direito, apanágio de um direito real, uma vez que o mesmo não corresponde a uma obrigação passiva universal, mas antes a um direito relativo ao senhorio, pois apenas a este o arrendatário poderá exigir que lhe seja assegurado o gozo da coisa locada para os fins a que a mesma se destina, bem como que proceda às reparações necessárias, nos termos dos artigos 1031.º, alínea b) e 1036.º do mesmo diploma, cfr Pereira Coelho, in Arrendamento, 1988, 16/22.
Como se faz notar no Acórdão recorrido, fazendo apelo a Galvão Telles, in Arrendamento, 84 e Aragão Seia, in Arrendamento Urbano, 6.ª edição, página 78 «[a] concessão do gozo significa que nada se transmite, nada se transfere, nada se aliena. O que sucede é que o locador se vincula à prestação de proporcionar esse gozo ao arrendatário, adquirindo este, em contrapartida, o direito à mesma prestação - de natureza obrigacional - e não qualquer direito sobre a coisa».
Ademais, dispondo o artigo 109.º, n.º 3 do CIRE que «A alienação da coisa locada no processo de insolvência não priva o locatário dos direitos que lhe são reconhecidos pela lei civil em tal circunstância», daí resulta a garantia para o arrendatário da manutenção do seu contrato de arrendamento, ex vi do disposto no artigo 1057.º do CCivil onde se prevê que «O adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador, sem prejuízo das regras do registo.», de onde a lei mais do que prever a transmissão para o novo proprietário do contrato de arrendamento anteriormente celebrado, impõe que nessa transmissão se mantenham intactos todos os direitos e obrigações que impendem sobre o direito transmitido.
Ora, aquela previsão específica, faz afastar, a se, de um lado, a aplicação do normativo inserto no artigo 824.º, n.º 2 do CCivil, por no mesmo não haver qualquer referência à ocorrência da caducidade relativamente aos direitos obrigacionais e, nestes, ao arrendamento, e por outro, por nas causas de caducidade do contrato de arrendamento enunciadas no artigo 1051.º do mesmo diploma, não consta a venda, quer em acção executiva, quer em liquidação em processo insolvencial.
Nem se diga ex adverso, que se trata de uma argumentação sem qualquer expressão, uma vez que a enunciação legal embora nunca assuma um carácter taxativo, mas antes meramente exemplificativo, no caso concreto, a apontada omissão, só se poderá ter como propositada, face ao preceituado no artigo 1057.º: se o arrendamento se mantém independentemente da transmissão do direito, é óbvio que essa transmissão não o poderá fazer caducar e, daí a impossibilidade manifesta de se poder afastar a aplicação do disposto no artigo 1051.º, o qual não prevê como causa de caducidade a venda em processo executivo do imóvel arrendado, nem tão pouco na liquidação insolvencial, que aqui tratamos, entre outros os Ac STJ de 7 de Dezembro de 1995, proc. n.º 087516 e de 19 de Janeiro de 2004, proc. n.º 03A4098, in www.dgsi.pt; de 20 de Setembro de 2005, CJ STJ, Ano XIII, Tomo III, 29 e de 27 de Março de 2007, CJ STJ, Ano XV, Tomo I, 146.
Só não seria assim, se o legislador podendo prever a hipótese da venda em execução e, concomitantemente, em liquidação insolvencial, o tivesse deixado consignado, sendo certo que o poderia ter feito, atentas as alterações legislativas entretanto ocorridas, mas não o fez (maxime aquando da inclusão no artigo 819.º do CCivil do arrendamento posterior à penhora, entre os actos inoponíveis à execução), caso tivesse tido o propósito de fazer caducar o arrendamento anterior à penhora, mas posterior à hipoteca. Nestas circunstâncias específicas, vale a norma ínsita no artigo 109.º, n.º 3 do CIRE, como excepcional, sobrepondo-se, por isso, a qualquer outra aplicação normativa que a não comporta no seu âmbito, vg a situação apreciada no artigo 824.º, n.º 2 do CCivil, esbarrando com esta leitura interpretativa qualquer outro entendimento que a contrarie, cfr a propósito Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 2010, 400; Carvalho Fernandes e João Labareda, Código de Insolvência e Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª edição, 482, onde se consigna «[V]isto no seu conjunto, pode dizer-se que o regime definido no artigo 109.º, é dominado pela ideia da tutela do locatário, estranho à insolvência do locador.»; Maria Olinda Garcia, Arrendamento Urbano e outros temas de Direito e Processo Civil, 2004, 54; Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 7.ª Edição, 226; Menezes Leitão, Arrendamento Urbano, 8.ª edição, 155; Pestana de Vasconcelos, in Insolvência e locação. Os efeitos da insolvência sobre o contrato de locação, RDP, n.º 70 Abril/Junho 2020; Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, 2.ª edição, 52.
A simples constatação da injuntividade do segmento normativo inserto no artigo 109.º, n.º 3 do CIRE, cuja operância não poderá ser, de modo algum, ignorada, deixa sem sentido, as antigas querelas existenciais sobre a natureza do direito do locatário e a dicotomia direito obrigacional/direito real, ou mera inerência do mesmo, face à incompatibilidade da lei geral civil no que tange à caducidade dos direitos reais em venda executiva, com a lei especial constante do CIRE e a aplicação expressa desta, com a expressão de manterem incólumes os direitos do locatário, aquando da venda em processo de insolvência, aliás na esteira do que se havia já consagrado no artigo 170.º, n.º 2 do CPEREF.
De outra banda, há que convir, que as alterações legislativas operadas em sede de arrendamento, vieram acentuar o carácter transitório do instituto, bem como, face ao aumento das rendas, tornaram-no um instrumento jurídico altamente rentável para os proprietários, não se podendo continuar a defender que o arrendamento implique uma desvalorização do bem, onerando-o economicamente, nem tão pouco que frustre e/ou diminua a posição do credor reclamante.
Decorrendo do artigo 59.º, n.º 1 do NRAU (Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro) que este regime é aplicável «[a]os contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias.», tal significa, que mesmo os contratos de arrendamento mais antigos, poderão inclusivamente ser objecto de negociação/actualização de rendas, desde que se não verifiquem quaisquer excepcões provenientes das disposições transitórias, o que faz igualmente afastar aquele eventual carácter depreciativo, em termos económicos, atribuído ao arrendamento, v.g. nos casos de longa duração.
Há que ter igualmente em atenção que a circunstância de o imóvel, em venda, poder estar hipotecado, não inibe o proprietário de o arrendar, nem de o transmitir a terceiro com lucro, como deflui inequivocamente do disposto no artigo 695.º do CCivil, uma vez que hoje em dia a subsistência do direito do arrendatário depende da subsistência de um contrato, que o senhorio pode extinguir por sua vontade unilateral, por via de oposição à renovação, denúncia e/ou resolução, não procedendo as posições que reclamam a ideia de que o contrato de arrendamento «[n]a medida em que sujeita o bem arrendado a uma situação fora da disponibilidade do proprietário devido ao seu carácter vinculístico, traduz-se num verdadeiro ónus e, como tal, deve estar sujeito à extinção por força da venda executiva. O arrendamento de que o senhorio não possa libertar-se a breve prazo é um ónus, não podendo sobrepor-se à hipoteca, porquanto origina a degradação do valor dado em garantia», in M. Isabel H. Menéres Campos, Da Hipoteca - Caracterização, Constituição e Efeitos, 242.
Dispõe o artigo 11.º do CCivil que as normas excepcionais, embora não comportando uma aplicação analógica, podem ser objecto de interpretação extensiva.
Por seu turno e a propósito das regras de interpretação predispõe o artigo 9.º daquele mesmo diploma:
«1 - A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições especificas do tempo em que é aplicada.
2 - Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal ainda que imperfeitamente expresso.
3 - Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.»
Queremos nós dizer que a interpretação que é feita pelos Tribunais, vulgo interpretação judicial, está sujeita às regras legais sobre interpretação, não lhe cabendo, por princípio, sob a aparência da simples interpretação, o poder de criar norma, a não ser nos casos especialmente previstos em que essa criação da norma se impõe, por inexistência de caso análogo, nos termos do normativo inserto no artigo 10.º, n.º 3 do CCivil, já que o Tribunal não se pode abster de julgar, além do mais, por falta de lei aplicável ao caso concreto, cfr artigo 8.º, n.º 1, do mesmo diploma legal.
A nossa actividade enquanto julgadores passa por fixar o sentido e o alcance que o texto legislativo deverá ter, sendo que não poderá ser um qualquer sentido de entre os possíveis (caso haja mais do que um), procurando fazer extrair da lei, enquanto instrumento de conformação e ordenação da vida em sociedade, dirigida à generalidade das pessoas e abarcando uma miríade de casos, um sentido decisivo que garanta um mínimo de uniformidade de soluções, por forma a evitar-se o casuísmo e o arbítrio de cada julgador, incompatíveis com a necessária segurança jurídica, cfr Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 1987, 176.
Estando o regime da transmissibilidade do arrendamento perfeitamente enquadrado no preceituado no artigo 1057.º do CCivil, para onde nos remete, além do mais, o disposto no artigo 109.º, n.º 3 do CIRE, dúvidas não subsistem de que a tais normativos é estranho o regime prevenido no artigo 824.º, n.º 2 do CCivil, pelo que, inexiste qualquer lacuna carecida de integração analógica.
Os conceitos devem sustentar-se numa interpretação normativa e não o inverso.
A fundamentação e conclusão sustentada, sob um manto de interpretação normativa, nunca poderia derrogar uma norma excepcional do CIRE, a constante daquele n.º 3 do artigo 109.º, levando por arrasto o que se predispõe no artigo 1057.º do CCivil, em frontal colisão com os deveres que sobre nós impendem, enquanto julgadores, de estrita obediência à Lei, decorrentes do artigo 8.º do CCivil e 203.º da CRPortuguesa.
Os direitos de garantia e os direitos reais, nada têm a ver com os direitos obrigacionais, onde se inclui o arrendamento, não se podendo, sem mais, concluir que aqueles podem abarcar este, «[N]ão sendo direito real, à locação, mesmo na modalidade de arrendamento, não se aplica o disposto no art. 824.º, n.º 2, CC, pelo que o bem vendido em execução é transmitido sem afectar o direito do locatário.», in Pedro Romano Martinez, in Venda Executiva. Alguns aspectos das alterações legislativas na nova versão do Código de Processo Civil, 334, mormente numa situação paradigmática em que existe disposição legal especial, a insolvencial, de onde decorre literalmente, como deixámos sublinhado supra, que «A alienação da coisa locada no processo de insolvência não priva o locatário dos direitos que lhe são reconhecidos pela lei civil em tal circunstância», o que sempre faria afastar qualquer interpretação extensiva ou analógica.
III - Destarte, confirma-se o Acórdão recorrido, mantendo-se a posição e decisão aí sustentada, dela fazendo extrair como segmento uniformizador:
«A venda, em sede de processo de insolvência, de imóvel hipotecado, com arrendamento celebrado subsequentemente à hipoteca, não faz caducar os direitos do locatário de harmonia com o preceituado no artigo 109.º, n.º 3 do CIRE, conjugado com o artigo 1057.º do CCivil, sendo inaplicável o disposto no n.º 2 do artigo 824.º do CCivil»
Custas pelo Recorrente.
Lisboa, 5 de Julho de 2021. - Ana Paula Boularot, Relatora por vencimento.
(Tem o voto de conformidade dos Exºs Conselheiros José Rainho, Alexandre Reis, Graça Amaral, Maria Olinda Garcia (com a declaração junta), Acácio das Neves, Fernando Samões, Raimundo Queirós, António de Magalhães, Ricardo Costa, Fernando Jorge Dias e Paulo Rijo Ferreira, nos termos do artigo 15.º-A aditado ao DL 10-A/2020, de 13 de Março, pelo DL 20/2020, de 1 de Maio).
Maria Clara Pereira de Sousa de Santiago Sottomayor
José Inácio Manso Rainho
António Alexandre dos Reis
António Pedro de Lima Gonçalves
Graça Maria Lima de Figueiredo Amaral
Maria Olinda da Silva Nunes Garcia
Acácio Luís Jesus das Neves
Fernando Augusto Samões
António José Moura de Magalhães
Raimundo Manuel da Silva Queirós
Ricardo Alberto Santos Costa
Fernando Jorge Dias
Paulo Jorge Rijo Ferreira
Manuel Tomé Soares Gomes (com voto de vencido conforme declaração)
Maria da Graça Machado Trigo Franco Frazão
Olindo dos Santos Geraldes, vencido nos termos da declaração de voto da Exma. Conselheira Maria dos Prazeres Beleza
Maria Rosa Oliveira Tching
Maria do Rosário Correia de Oliveira Morgado, vencida pelas razões aduzidas pelos Srs. Conselheiros Maria dos Prazeres Beleza, Abrantes Geraldes e Tomé Gomes nas respetivas declarações de voto.
Maria de Fátima Gomes, vencida, conforme declarações de voto dos Exmos. Srs. Conselheiros Maria dos Prazeres Beleza, Abrantes Geraldes e Tomé Gomes
António José dos Santos Oliveira Abreu (voto vencido e acompanho as declarações de voto dos Srs. Juízes Conselheiros, Maria dos Prazeres Beleza, Abrantes Geraldes e Tomé Gomes)
José Manuel Bernardo Domingos
Maria João Romão Carreiro Vaz Tomé
Ilídio Sacarrão Martins, Voto contra, subscrevendo as declarações de voto da Exma. Conselheira Maria dos Prazeres Beleza e do Exmo. Conselheiro Abrantes Geraldes
Nuno Manuel Pinto Oliveira
José Maria Ferreira Lopes
António dos Santos Abrantes Geraldes (com declaração de vencido anexa).
Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza - Vencida, conforme declaração que junto
Henrique Luís de Brito de Araújo (Presidente do STJ)
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Proc. 1268/16.6T8FAR.E1.S2-A
Declaração de voto
Concordo com o projeto, bem como com o sentido decisório que se pretende transmitir através do segmento uniformizador proposto. Todavia, discordo, parcialmente, da formulação deste segmento.
Entendo, diferentemente do proposto no projeto, que não se pode tomar como premissa a venda de imóvel hipotecado. Em rigor, nunca há venda de imóvel hipotecado, porque a hipoteca caduca sempre com a venda (mesmo que o crédito que ela garante não seja reclamado).
Também não se afigura rigoroso falar de caducidade dos direitos do locatário, porque aquilo que se discute é a caducidade do próprio contrato. Não se trata de uma questão de caducidade de direitos, mas sim da própria fonte desses direitos.
Por outro lado, nos presentes autos, não está em causa a posição do locatário, mas apenas do arrendatário. E apenas do arrendatário habitacional, pois o próprio acórdão, quando enuncia a questão solvenda, refere-se expressamente a arrendamento para habitação.
A meu ver, o segmento uniformizador deveria ter a seguinte formulação:
«A venda, em processo de insolvência, de imóvel arrendado para habitação, quando o contrato de arrendamento tenha sido celebrado depois da constituição de hipoteca sobre esse imóvel, não faz caducar o arrendamento, como decorre da aplicação conjugada do art. 109.º, n.º 2 do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas e do art. 1057.º do Código Civil, não sendo aplicável o art. 824.º, n.º 2 do Código Civil.»
Maria Olinda Garcia.
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Voto de vencido no AUJ n.º 1268/16.6T8FAR.E1.S2-A
Na sessão do Pleno das Secções Cíveis de 22/10/2020 expressei o meu voto de conformidade com o Projeto de AUJ então relatado pela Exm.ª Juíza Conselheira Maria dos Prazeres Beleza, cujo dispositivo uniformizador era do seguinte teor:
O n.º 2 do artigo 824.º do Código Civil é aplicável à venda, em processo de insolvência, de um imóvel hipotecado e posteriormente arrendado para habitação, por contrato celebrado após a entrada em vigor da Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro.
Nessa linha, manifesto aqui a minha inteira discordância com o acórdão uniformizador ora aprovado pelas razões que passo a expor.
O primeiro aspeto em que divirjo recai sobre o pressuposto subjacente à orientação adotada de equiparação da venda executiva, seja no âmbito da execução singular ou em sede insolvencial, ao contrato de compra e venda de coisa anteriormente locada, na base do qual se tem por aplicável à venda executiva a limitação, denominada emptio non tollit locatum, estatuída no artigo 1057.º do CC nos mesmos termos em que o seria em sede da compra e venda dita voluntária. Essa suposta equiparação parece desmerecer a função sócio-económica e o alcance diferenciados de cada uma dessas distintas espécies de venda e que se me afiguram juridicamente relevantes para efeitos de aplicação do disposto no indicado artigo 1057.º
Com efeito, o contrato de compra e venda inscreve-se no domínio da liberdade contratual, corolário do princípio da autonomia privada, com a ampla latitude delineada no artigo 405.º do CC. Daí que seja compreensível e razoável cerceá-la com a limitação prevista no sobredito artigo 1057.º em ordem a salvaguardar a estabilidade das relações locatícias já existentes sobre o bem alineado, embora seja de estranhar a sua extensão à generalidade destas relações em vez de a circunscrever àquelas em que tal estabilidade mais se justifica pela sua repercussão social, como sucede nos casos de arrendamento urbano, mormente o destinado a habitação.
Por seu turno, a venda executiva, consistente numa venda forçada, de cariz expropriativo, tem por função específica proporcionar a satisfação coativa de um crédito em estado de não cumprimento voluntário (artigo 817.º do CC), na medida da garantia patrimonial prioritária e especial previamente estipulada ou, de outro modo, estabelecida com vista à realização desse crédito.
Nessa dimensão, diversamente do contrato de compra e venda, a venda executiva, como meio coercivo colimado à garantia patrimonial que através daquela se visa realizar, assume natureza instrumental. E é esta natureza instrumental que, no meu entender, implica uma diferenciação do alcance a dar à limitação constante do artigo 1057.º do CC, consoante se trate de contrato de compra e venda ou de venda executiva.
De resto, o artigo 819.º do CC, ao consagrar a inoponibilidade à execução dos atos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados, reflete bem a instrumentalidade da venda executiva em relação à preferência legal resultante da penhora (artigo 822.º, n.º 1, do CC) no pagamento do crédito exequendo que aquela venda visa concretizar. Se assim não fosse abrir-se-ia caminho à eventual quebra da correlatividade entre os efeitos da venda executiva e o âmbito da eficácia real inerente à penhora, permitindo-se a delapidação do valor do bem penhorado.
O mesmo efeito perverso se verificará quando o crédito exequendo já se encontre provido de garantia real (v.g. hipoteca, penhor) constituída antes da penhora do bem assim onerado, em caso de ocorrência de ato de disposição, oneração, arrendamento ou outra limitação (v.g. direitos pessoais de gozo) celebrado pelo dono da coisa posteriormente à constituição daquela garantia real mas antes da penhora.
Adrede, importa ter presente que, no caso de execução de crédito provido de garantia real, o que releva como causa legítima de preferência no respetivo pagamento (artigo 604.º, n.º 2, do CC) é a prioridade legal dessa garantia real, que não a decorrente da ulterior penhora do bem onerado. E é também essa a prioridade a atender na graduação de um crédito reclamado em detrimento do crédito exequendo garantido pela penhora do bem anteriormente onerado. E é em função dessa prioridade que o n.º 2 do artigo 824.º do CC estatui, como efeito da venda executiva, a caducidade dos direitos reais incidentes sobre a coisa com referência ao registo de arresto, de penhora ou de garantia, consoante a venda tenha por antecedente qualquer dessas espécies de preferência legal no pagamento do crédito exequendo.
Ora, nos termos do artigo 686.º, n.º 1, do CC, a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo.
O mesmo ocorre, mutatis mutandis, nos domínios específicos dos demais direitos reais de garantia, como se alcança do disposto, respetivamente, nos artigos 656.º, n.º 1 (consignação de rendimentos), 666.º, n.º 1 (penhor), 733.º (privilégios creditórios), 754.º e 759.º, n.º 2 (direito de retenção) do CC. Significa isto que os direitos reais de garantia gozam dos atributos de sequela e prioridade inerentes à sua natureza.
É certo que a constituição desses direitos não retira a disponibilidade jurídica ao dono do bem onerado, mas não será menos certo que os posteriores atos de disposição, oneração ou de outra limitação desse bem são ineficazes ou inoponíveis à garantia real dantes constituída, dotada, como está, da sequela e prioridade que lhe são próprias.
Nessa conformidade, a nulidade de convenção de inalienabilidade dos bens hipotecados prescrita no artigo 695.º do CC é condizente com a sobredita disponibilidade jurídica de que goza o dono do bem hipotecado. Mas daí não é lícito concluir pela eficácia ou oponibilidade dos atos ou de alguns dos atos de disposição, oneração ou limitação praticados pelo dono do bem onerado, como se concluiu no presente acórdão relativamente ao arrendamento celebrado posteriormente à hipoteca do bem em causa.
Não diviso que tal ineficácia ou oponibilidade possa ser sustentada com apelo ao disposto no artigo 1057.º do CC. O preceituado neste artigo só terá aplicação aos arrendamentos celebrados antes da constituição da hipoteca. Nem tão pouco se me afiguram convincentes os argumentos no sentido de que o credor hipotecário dispõe de meios alternativos de proteção, podendo exigir ao devedor a substituição ou o reforço da garantia, ou o imediato cumprimento da obrigação, ou porventura reagir em sede de impugnação pauliana.
Ao credor hipotecário assistirão todas essas faculdades de modo a prevenir, casuisticamente, a diminuição ou o agravamento da sua garantia patrimonial, mas não se lhe poderá impor o ónus de o fazer para conservar a incolumidade originária da garantia hipotecária de que goza nos termos do artigo 686.º, n.º 1, do CC.
Assim, estou em crer que, à semelhança da correlatividade exigível entre os efeitos da venda executiva e a eficácia real resultante da penhora nos termos conjugados dos artigos 819.º e 822.º do CC, também tal correlatividade deve ser assegurada entre a eficácia de qualquer direito real de garantia constituído antes da penhora e os efeitos da venda executiva destinada a obter a satisfação do crédito desse modo garantido. Não encontro dissemelhanças essenciais para tal relevantes entre a garantia real resultante da penhora nos termos do artigo 822.º do CC e as demais garantias reais.
Com efeito, não obstante os diferentes modos de constituição da penhora e dos típicos direitos reais de garantia, tanto aquela como estes se assemelham no plano da sua eficácia real, sendo que a própria penhora tem vindo a ser qualificada, à luz do disposto no artigo 822.º do CC, como um direito real de garantia e até menos robusto do que a generalidade dos demais, dado não ser atendível na graduação de créditos em sede de insolvência conforme o preceituado no artigo 140.º, n.º 3, do CIRE.
Em face disto, parece-me poder concluir-se que a venda executiva de bem hipotecado (ou onerado com qualquer outro direito real de garantia) destinada a obter a satisfação do crédito assim garantido faz caducar o contrato de arrendamento celebrado posteriormente à constituição da hipoteca, por não lhe ser oponível nos termos do artigo 686.º, n.º 1, do CC, tal como sucede com a venda executiva de bem penhorado por virtude do disposto nos artigos 819.º e 822.º, n.º 1, do mesmo Código, mesmo que isso não se encontre, em qualquer dos casos, expressamente consignado no artigo 824.º, n.º 2, do CC.
Por isso à caducidade decorrente desses normativos não obsta o facto de não figurar no elenco dos casos de caducidade da locação enunciados no artigo 1051.º do CC.
Sucede que a omissão dessa caducidade no n.º 2 do artigo 824.º do CC tem alimentado a tese da sua exclusão como efeito da venda executiva realizada com vista ao pagamento de crédito provido de garantia real, mas, curiosamente, já não quanto à venda de bem penhorado, quiçá dada a proximidade sistemática do artigo 819.º do CC, muito embora, a meu ver, igual consequência deverá ser extraída das disposições que conferem sequela e prioridade aos direitos reais de garantia, como, no caso da hipoteca, o mencionado artigo 686.º n.º 1.
De todo o modo, ante a controvérsia jurisprudencial e doutrinária existente em torno dessa omissão, impõe-se clarificar os efeitos da venda executiva em sede do próprio artigo 824.º, n.º 2, do CC, mormente em relação ao arrendamento, dada a sua afinidade ou proximidade como alguns dos direitos reais de gozo ali contemplados, em particular com o direito real de uso e habitação.
Nessa perspetiva, não creio que se trate de matéria alheia àquele normativo nem se poderá dizer que o mesmo não padece de lacuna nesse particular, mostrando-se antes necessário evidenciar a coerência dos efeitos da venda executiva com a inoponibilidade dos atos de disposição, oneração ou arrendamento celebrados posteriormente à constituição da garantia real que essa venda tende a proporcionar.
Independentemente da possibilidade embora muito restrita de aplicação analógica de normas excecionais, creio que a caducidade dos direitos reais de gozo estabelecida no artigo 824.º, n.º 2, se revela ainda como afloramento ou decorrência do princípio geral da sequela inerente a todo o universo dos direitos reais, hierarquizada em função da respetiva prioridade constitutiva, não podendo ser vista apenas como reduto isolado dos direitos reais de gozo.
Em suma, parece-me admissível e justificável a aplicação analógica do artigo 824.º, n.º 2, do CC à caducidade do contrato de arrendamento urbano celebrado pelo dono do prédio hipotecado, depois da constituição da hipoteca e antes da penhora do bem onerado nos termos que constavam da fundamentação do projeto de AUJ que não obteve vencimento.
Resta a questão relativa à compatibilização dessa solução com as normas de proteção do locatário em sede do processo de insolvência constantes do artigo 109.º do CIRE.
Na verdade, além de o n.º 1 do referido artigo consignar que a declaração de insolvência não suspende a execução do contrato de locação em que o insolvente seja locador, o respetivo n.º 3 preceitua que «a alienação da coisa locada no processo de insolvência não priva o locatário dos direitos que lhe são reconhecidos pela lei civil em tal circunstância.»
Nesta base, no presente acórdão, considera-se o seguinte: «Estando o regime da transmissibilidade do arrendamento perfeitamente enquadrado no preceituado no artigo 1057.º do CCivil, para onde nos remete, além do mais, o preceituado no artigo 109.º, n.º 3, do CIRE, dúvidas não subsistem que a tais normativos é estranho o regime prevenido no artigo 824.º, n.º 2, do CCivil, pelo que, inexiste qualquer lacuna carecida de integração analógica.»
Também aqui estou em total divergência com o assim afirmado.
Não me parece que o artigo 1057.º do CC seja aplicável à venda executiva nos casos de arrendamento celebrado depois da constituição da hipoteca e antes da penhora do bem onerado, com manifesta derrogação ou constrangimento do âmbito dessa garantia real provida, como é, de sequela e prioridade nos termos do artigo 686.º, n.º 1, do CC, a qual se mantém em sede de insolvência. Por outro lado, considero que a caducidade do arrendamento por efeito da venda executiva é matéria que importa considerar integrada no artigo 824.º, n.º 2, do CC, em ordem a tornar coerente os efeitos dessa venda com a inoponibilidade dos atos de disposição, oneração ou arrendamento celebrados posteriormente à constituição da garantia real.
Creio que a solução de considerar caducado o arrendamento assim celebrado, por efeito da venda em sede de insolvência, não esvazia o conteúdo útil do preceituado no artigo 109.º do CIRE, posto que contempla ainda os contratos de locação celebrados antes da constituição de qualquer direito real de garantia atendível na insolvência e os celebrados antes de penhora ou da declaração de insolvência sobre bens não anteriormente onerados.
Poderá até admitir-se a necessidade de adequar o regime da hipoteca voluntária de modo a conferir maior nível de proteção a terceiros arrendatários, por exemplo, em casos de crédito hipotecário destinado a aquisição imobiliária para posterior arrendamento habitacional. Mas é matéria cujos contornos e parâmetros só poderão ser definidos por via legislativa, não cabendo ao poder jurisdicional fazê-lo a pretexto de determinadas e justas preocupações sociais.
É certo que a solução adotada no presente acórdão se inscreve na esfera da interpretação e aplicação da lei e tem apoio em orientação doutrinária e jurisprudencial que tem vindo a fazer caminho. Todavia, salvo o devido respeito, estou em crer que colide com o âmbito da garantia hipotecária consagrado no artigo 686.º, n.º 1, do CC, para mais, com o risco de se generalizar a todo o universo das relações locatícias, incluindo situações em que se mostra injustificada uma tal extensão.
Pelas considerações expostas e aderindo ainda às declarações de voto de vencido da Exm.ª Juíza Conselheira Maria dos Prazeres Beleza e do Exm.º Juiz Conselheiro Abrantes Geraldes, não acompanho de todo a solução do presente acórdão e daria o meu voto conforme à solução do projeto que não fez vencimento.
Lisboa, 5 de julho de 2021. - Manuel Tomé Soares Gomes.
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Processo 1268/16.6T8FAR.E1.S2-A - Declaração de voto
Votei vencida pelas razões constantes das declarações de voto dos Senhores Conselheiros Maria dos Prazeres Beleza, Abrantes Geraldes e Tomé Gomes.
Maria da Graça Trigo.
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RUJ n.º 1268/16.6T8FAR.E1.S2-A
Voto vencida nos termos das declarações de voto da Exmª Senhora Conselheira Maria dos Prazeres Beleza e do Exmº Senhor Conselheiro António Abrantes Geraldes, que subscrevo.
Supremo Tribunal de Justiça, 5 de julho de 2021. - Maria Rosa Oliveira Tching.
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RUJ n.º 1268/16.6T8FAR.E1.S2-A
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Votei vencido, aderindo à declaração de voto do Exmº. Cons. Abrantes Geraldes.
Lisboa, em 5 de julho de 2021. - Bernardo Domingues.
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Processo 1268/16.T8FAR.E1.S2-A
Vencida pelas razões referidas nas declarações de voto dos Exmo.s Senhores Conselheiros Maria dos Prazeres Beleza, Abrantes Geraldes e Tomé Gomes.
Lisboa, 5 de julho de 2021. - Maria João Vaz Tomé.
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Processo 1268/16.6T8FAR.E1.S2-A
Vencido, nos termos das declarações de voto da Exma. Senhora Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza e dos Exmos. Senhores Conselheiros Abrantes Geraldes e Tomé Gomes.
Nuno Manuel Pinto Oliveira.
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P. n.º 1268/16.6T8FAR.E1.S2-A
Voto vencido, aderindo às razões constantes dos votos dos Ex.mºs Conselheiros Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Abrantes Geraldes.
Ferreira Lopes.
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Voto de vencido:
1 - Discordo, em absoluto, da tese que fez vencimento, considerando que os argumentos que foram expostos no projeto inicial propiciavam a resposta uniformizadora mais adequada.
É claro que, como o demonstra a divergência doutrinária e jurisprudencial existente, a questão de direito em torno da aplicabilidade ou não do n.º 2 do art. 824.º do CC a situações de arrendamento subsequentes à constituição de garantia hipotecária não encontra na lei uma resposta clara. E que, existindo diversos acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça em contradição, os valores da certeza e da segurança jurídica reclamam uma resposta uniformizadora.
Todavia, parecem-me claramente insuficientes os argumentos, aliás, de natureza eminentemente formal, que foram enunciados na fundamentação e que deixam na penumbra e desvalorizam outros aspetos materiais que não poderiam deixar de ser considerados.
Com efeito, assume-se explicitamente a natureza obrigacional do contrato de arrendamento, desconsiderando as vertentes realísticas que também são realçadas pela jurisprudência deste Supremo e pela doutrina e que assomam, designadamente, na norma do art. 1057.º do CC, a ponderar quando se trata de interpretar o que, em termos dúbios, consta do n.º 2 do art. 824.º do CC.
Por outro lado, eleva-se à categoria de benefícios o que, na perspetiva de qualquer observador externo, continua a constituir, sem dúvida alguma, uma oneração relevante do direito de propriedade imobiliária, mesmo considerando o atual quadro jurídico do contrato de arrendamento. Argumento que, no caso concreto, é especialmente incongruente, uma vez que a adquirente da fração se manterá vinculada a um contrato de arrendamento que apenas lhe confere o direito de receber uma quantia mensal de (euro) 300,00, obstando a que consiga obter no mercado um valor diversas vezes superior.
Ora, como parâmetro de interpretação das normas que não despreze os resultados decorrentes da sua aplicação, nos termos do n.º 1 do art. 9.º do CC, não poderia deixar de ser considerado que a subsistência de um contrato de arrendamento, depois de realizada uma venda judicial (em processo executivo ou de insolvência), constitui um fator que geralmente interfere no valor comercial do bem, na medida em que condiciona o adquirente no que respeita ao gozo dos poderes inerentes ao direito de propriedade, quais sejam, os de usar o bem, de arrendá-lo mediante o pagamento da contrapartida que considere mais ajustada ou de proceder à sua revenda, como bem totalmente desonerado, pelo real valor de mercado.
Não deveria, por conseguinte, presumir-se a existência de benefícios onde comummente apenas se deteta uma posição de desvantagem quando se estabelece a comparação com a aquisição de imóveis não sujeitos a vínculos jurídicos como aqueles que ainda continuam a marcar o contrato de arrendamento.
2 - Tal como se referia no projeto inicial, a norma do art. 109.º, n.º 3, do CIRE, é totalmente indiferente para a resolução do caso, já que se limita transpor para o domínio do processo de insolvência os efeitos resultantes da aplicação da lei civil e designadamente do art. 824.º, n.º 2, do CC. Daí que não pareça sequer legítima a apresentação de quaisquer argumentos interpretativos a partir da excecionalidade daquele preceito, devendo o caso ser resolvido unicamente através da interpretação e aplicação do n.º 2 do art. 824.º do CC.
Para o efeito, a modificação que foi operada no art. 819.º do CC, através do DL n.º 38/03, de 8 de março, no âmbito de uma reforma mais ampla da ação executiva, e que se traduziu no aditamento do contrato de arrendamento aos atos inoponíveis ou ineficazes em relação à penhora, não tem o sentido que lhe foi atribuído de representar uma tomada de posição implícita do legislador quanto à preservação do sentido literal que se extrai do n.º 2 do art. 824.º Ao invés, aquela medida veio acentuar a equiparação do contrato de arrendamento aos demais atos de disposição ou de oneração de bens penhorados, de modo que deveria ser encarada como contributo para extrair do n.º 2 do art. 824.º a solução contrária à que fez vencimento.
Determinando este preceito a caducidade dos direitos reais sem registo anterior a qualquer garantia real que tenha sido judicialmente executada, designadamente à garantia hipotecária, necessariamente sujeita a registo, os contratos de arrendamento posteriores devem sujeitar-se ao efeito extintivo declarado naquele preceito, independentemente de se atribuir ao direito de arrendamento natureza real ou obrigacional.
Na verdade, se acaso se privilegia a perspetiva realista do direito de arrendamento, como é sugerido pela norma do art. 1057.º do CC, este deve ceder perante a execução judicial da garantia hipotecária, como ocorre com os demais direitos reais de gozo sem registo anterior. Efeito que, apelando ao elemento racional ou teleológico, também se obtém quando se perspetiva o arrendamento como vínculo de natureza obrigacional.
Além disso, nada permite afirmar a natureza taxativa dos fundamentos de caducidade do contrato de arrendamento enunciados no art. 1051.º, nem o carácter absoluto da vinculação ao arrendamento que emerge do art. 1057.º do CC, normas cuja interpretação e alcance devem ser compaginados com outras que tutelam as garantias reais registadas em benefício de terceiros.
Deste modo, entendo que o campo de aplicação da norma do art. 1057.º do CC deve ser reservado para situações que não colidam nem com a penhora ou outros atos de apreensão (art. 819.º) determinantes da ineficácia do arrendamento, nem com a venda judicial a que esteja subjacente uma garantia real, como a garantia hipotecária anterior, assumindo uma interpretação extensiva do n.º 2 do art. 824.º do CC, com resultado na caducidade do contrato de arrendamento, tendo em conta a similitude com os direitos reais de gozo explicitamente previstos nesta norma.
3 - A realidade subjacente ao caso de que emerge este recurso extraordinário espelha bem os efeitos negativos que se poderão extrair da tese que fez vencimento.
Revela a matéria de facto apurada que o «contrato de arrendamento» foi outorgado pela anterior proprietária e devedora hipotecária com o ora recorrido, mantendo ambos uma relação amorosa (facto n.º 27). Foi estipulada uma «renda» mensal de (euro) 300,00 (facto 21.º) relativamente a um bem cujo valor de referência no mercado já era, na altura, próximo do triplo ((euro) 841,57 - facto 22.º), com fixação de um prazo incomum de 10 anos (facto 11.º), que, aliás, o sujeitaria ao registo predial (arts. 2.º, n.º 1, alínea m), e 5.º, n.º 5, do Cód. de Registo Predial). Tal acordo foi realizado bem próximo das datas em que foram realizadas penhoras para garantia de créditos de valor elevadíssimo (num caso, superior a (euro) 2.000.000,00; noutros, acima de (euro) 1.000.000,00 - factos 7.º a 10.º).
Não se descortinam, pois, nesta situação ou na generalidade dos casos, os benefícios que a tese que fez vencimento associou à manutenção do vínculo arrendatício constituído sobre imóveis hipotecados que, entretanto, foram objeto de venda judicial, havendo, pelo contrário, o risco sério de a solução adotada acabar por constituir um elemento que poderá ser aproveitado para defraudar os credores com garantias reais.
Assim o demonstra, como primeiro teste, a solução alcançada no caso concreto.
4 - Por conseguinte, contra a tese que fez vencimento:
a) Defendi uma solução uniformizadora segundo a qual a venda judicial de um imóvel hipotecado, designadamente no âmbito de processo de insolvência, sobre o qual exista contrato de arrendamento outorgado depois do registo da hipoteca, determinaria a caducidade desse contrato, tendo em conta o n.º 2 do art. 824.º do CC;
b) No caso concreto, tal reconduzir-se-ia à revogação do acórdão recorrido, dando procedência aos pedidos de condenação do Réu na entrega do imóvel à ora recorrente e no pagamento de uma indemnização.
Abrantes Geraldes.
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Declaração de voto
1 - No projecto que apresentei como relatora concluí no sentido de o n.º 2 do artigo 824.º do Código Civil ser aplicável à venda, em processo de insolvência do locador, de um imóvel hipotecado e arrendado para habitação posteriormente ao registo da hipoteca. Entendi ainda que a exigência de identidade do quadro normativo aplicado nos acórdãos em contradição obrigava a ter em conta que ambos respeitavam a contratos de arrendamento celebrados no âmbito da Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro, e que o n.º 3 do artigo 109.º do CIRE (não referido no acórdão fundamento, mas considerado relevante no acórdão recorrido, para excluir a aplicação do n.º 2 do artigo 824.º e conduzir à aplicação do artigo 1057.º, ambos do Código Civil) deve ser interpretado no sentido de aproximar os regimes da manutenção ou caducidade do arrendamento, em caso de venda em processo de insolvência do locador ou em processo executivo. Com efeito, trata-se, nos dois casos, de vendas judiciais forçadas, das quais resulta uma aquisição derivada do direito do executado ou insolvente; e valem as mesmas razões que poderão justificar a caducidade ou a manutenção do direito do arrendatário, que tem a mesma natureza, provoca a mesma oneração do direito com base no qual o arrendamento foi celebrado e obriga à mesma ponderação de interesses.
2 - São, em primeiro lugar, vendas judiciais forçadas; aliás, ressalvadas regras especiais do processo de insolvência, aplica-se o regime da venda executiva à venda realizada em liquidação num processo de insolvência (artigo 17.º do CIRE) e valem para ambas, embora com particularidades, as regras que o Código Civil define para a compra e venda, desde logo quanto aos seus efeitos essenciais
De entre essas particularidades, que não põem em causa, todavia, o carácter derivado da aquisição do direito alienado, e que se destinam a potenciar o interesse na compra do bem, salienta-se agora a possibilidade de derrogação ao princípio do nemo plus iuris in alium transfere potest quam ipse habet, que pode decorrer do funcionamento do regime previsto no n.º 2 do artigo 824.º do Código Civil. O principal objectivo deste preceito é o de proporcionar que a venda se faça pelo melhor preço, tornando-a mais apelativa e por essa via prosseguindo os interesses do exequente e dos credores, aumentando a probabilidade de virem a ser pagos e, por isso mesmo, o do executado ou insolvente e o interesse público da eficácia da acção executiva ou da liquidação na insolvência.
3 - Do texto do n.º 2 do artigo 824.º do Código Civil resulta que com a venda em execução se extinguem todos os direitos reais de garantia e os demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia; tratando-se de direitos não sujeitos a registo, releva o momento da sua constituição. São a sequela e a prevalência, comum a tais direitos, que justificam a caducidade; caducidade esta que só atinge direitos que, a manterem-se, diminuiriam o valor do bem judicialmente vendido e que se afere, tratando-se de hipoteca anteriormente registada, por relação a actos dotados da publicidade resultante do registo. Os direitos que caducam transferem-se para o produto da venda; não sendo possível esta sub-rogação, o produto da venda desempenha uma função indemnizatória.
O arrendamento, sujeito ou não a registo, é igualmente oponível ao adquirente da coisa arrendada (considere-se esta oponibilidade como uma manifestação de sequela ou como uma transmissão legal da posição de locador).
Literalmente, só resulta do n.º 2 do artigo 824.º a caducidade de direitos reais, e não de direitos de natureza obrigacional; recorda-se, todavia, que os direitos pessoais de gozo são dotados de prevalência (artigo 407.º do Código Civil).
4 - Da história dos n.os 2 e 3 do artigo 824.º do Código Civil, desenvolvida no projecto, retira-se uma linha condutora: a caducidade dos direitos que, a manterem-se na venda judicial, a poderiam dificultar, por reduzirem o preço. E igualmente se retira a necessidade de analisar os pontos relevantes do regime do arrendamento urbano para habitação, na versão aplicável, para determinar se deve ou não considerar-se abrangido pelo referido n.º 2 do artigo 824.º, directamente ou por analogia.
5 - Tem-se questionado se, tal como a lei que em concreto for aplicável o regula, o direito do arrendatário tem natureza real (por ser oponível ao adquirente e pela possibilidade de utilização dos meios de defesa da posse mesmo contra o senhorio, o que revelaria um direito inerente à coisa, dotado de sequela e prevalência), obrigacional (porque não incide directamente sobre a coisa arrendada mas sim sobre a obrigação do senhorio de proporcionar o respectivo gozo) ou até dualista, com características próprias de um direito real e de um direito de crédito.
Entendeu-se no projecto, que o regime definido para o arrendamento urbano para habitação e aplicável aos casos tratados no acórdão recorrido e no acórdão fundamento justifica que se reconheça ao direito do arrendatário uma natureza mista ou dualista, por combinar características de realidade - as que respeitam à sua defesa e à oponibilidade aos terceiros adquirentes do direito com base no qual foi constituído o arrendamento - com características próprias de um direito obrigacional, que o mantêm ligado ao contrato de que nasceu.
Acresce que, não obstante a lei portuguesa recente oscilar entre o agravamento e o aligeiramento do carácter vinculístico do arrendamento urbano para habitação, continua a valer no regime aplicável ao contrato dos autos a razão principal pela qual o arrendamento onera o bem arrendado da mesma forma por que o oneram os direitos reais de gozo: a oponibilidade ao adquirente, ou a transmissão legal da posição de locador. Seja qual for a perspectiva que se adopte, a verdade é que o adquirente se vê investido no regime legal (de locador) de um contrato que se lhe impõe e que, enquanto tiver de respeitar o contrato, lhe retira o gozo da coisa arrendada, ou a faculdade de dispor desse gozo, tal como sucede com os direitos reais menores, na extensão correspondente ao respectivo conteúdo. A manter-se o arrendamento, será normalmente prejudicado o valor de venda do bem.
A razão de ser do n.º 2 do artigo 824.º do Código Civil conduz à sua aplicação ao arrendamento, seja directamente (por estar em causa um dos pontos do regime em que o direito do arrendatário deve seguir o que é próprio dos direitos reais), seja por analogia entre a sequela e a transmissão forçada da posição de locador, trate-se de venda da coisa arrendada em processo executivo ou no âmbito da liquidação em processo de insolvência.
O arrendamento caduca, se for celebrado depois do registo da hipoteca. Não releva a circunstância de a causa não figurar na lista exemplificativa dos fundamentos de caducidade constante do artigo 1051.º do Código Civil; nem isso impede a possibilidade de renovação do arrendamento (artigo 1056.º do Código Civil) ou a aplicação do mecanismo de protecção do arrendatário prevista no artigo 1058.º do Código Civil.
6 - Finalmente, creio que não tem fundamento a alegação de inconstitucionalidade, por parte do recorrente; o princípio da separação de poderes e a sujeição dos tribunais à lei não dispensam, nem a interpretação das normas aplicáveis aos casos concretos, que pode implicar o recurso a outros elementos, para além do texto, nem o eventual preenchimento de lacunas mediante a aplicação de regulamentação prevista para casos análogos.
Lisboa, 5 de Julho de 2021. - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza.
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