Assento
Acordam os juízes que constituem a Secção de Jurisdição Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:
O Ministério Público, por seu douto agente na Relação de Lisboa, nos termos do preceituado nos artigos 437.º e seguintes do Código de Processo Penal, interpôs recurso do Acórdão proferido em 22 de Abril de 1991, no processo 26671/91, da 3.ª Secção, em que foi decidido que, deduzida acusação e não sendo possível notificá-la pessoalmente ao arguido, o processo prosseguiria logo para efeitos do artigo 311.º do Código de Processo Penal, com fundamento em que no processo 999 da 5.ª Secção da mesma Relação, em 16 de Outubro de 1990, se decidiu que, na mesma hipótese, os autos deveriam aguardar sob responsabilidade do Ministério Público a possibilidade da notificação pessoal do arguido, uma vez que só pode proceder-se à apreciação da acusação depois de essa notificação ter tido lugar.
O recurso subiu a este Supremo Tribunal, onde foi cumprido o ritual imposto pelo artigo 440.º do Código de Processo Penal e julgada existente a oposição dos julgados em confronto, tal como esta é requerida pelo já citado artigo 437.º
Na sequência do formalismo que ao caso cabe, foram notificados os sujeitos processuais para apresentarem por escrito, no prazo legal, as suas alegações, o que só foi cumprido pelo Ministério Público através do Exmo. Procurador-Geral-Adjunto nesta Secção que, em extenso e muito bem elaborado parecer, sem se inclinar para nenhuma das teses confrontadas, sugere uma terceira que assim sintetiza:
Deduzida acusação pelo Ministério Público, tem o arguido de ser dela notificado.
Comprovada nos autos a ausência do arguido em parte incerta, deve o mesmo ser notificado por editais por força do que dispõem os artigos conjugados 283.º, n.º 5, 277.º, n.º 3, e 113.º, n.º 1, alínea c), todos do Código de Processo Penal, prosseguindo depois os autos para a fase de julgamento.
Cumpre decidir.
I
O presente conflito de julgados assenta no diverso entendimento que os acórdãos recorrido e o que lhe serve de fundamento assumem quanto à posição a adoptar nos casos em que, sendo deduzida acusação, não é possível notificá-la pessoalmente ao arguido por este se encontrar em parte incerta e se entender não ser legal a notificação por editais.
Quando assim for, entendem uns que o processo deverá aguardar nos serviços do Ministério Público até se poder alcançar a notificação pessoal do argudio, enquanto outros perfilham o entendimento de que os autos devem prosseguir, sem mais, para o tribunal do julgamento, que cumprirá o disposto nos artigos 311.º e seguintes do Código de Processo Penal.
É, porém, cogitável uma terceira via da solução, segundo a qual o Ministério Público determinará a notificação edital do arguido ao abrigo do artigo 113.º, n.º 1, alínea c), ex vi do preceituado nos artigos 283.º, n.º 5, e 277.º, n.º 3, já acima referidos.
II
Aquele artigo 113.º, n.º 1, na sua alínea c), esclarece que as notificações por editais e anúncios têm lugar nos casos em que a lei expressamente admitir esta forma.
Ora, o artigo 283.º, n.º 5, ao estabelecer que a acusação deve ser notificada ao arguido, fá-lo por remissão para o artigo 277.º, n.º 3, que, a propósito da necessidade de notificação do arquivamento do inquérito, dispõe que «a comunicação ao arguido e ao assistente é feita por notificação, nos termos do artigo 113.º, n.º 1».
Quer dizer isto que a remessa que nestes preceitos é feita, em matéria de notificações, não estabelece qualquer excepção quanto à aplicabilidade da alínea c) do n.º 1 do artigo 113.º, o que, só por si, é já uma indicação segura da possibilidade e admissibilidade da notificação edital da acusação ao arguido nos casos em que esta deve ter lugar, um dos quais é o da ausência em parte incerta do notificando.
Uma interpretação restritiva, como é a feita no acórdão recorrido e no que lhe serve de fundamento, depararia logo com a dificuldade que é oposta pelo artigo 9.º, n.º 2, do Código Civil, quando chama a atenção para que «não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso».
Ora, na verdade, não se vê como é que, nos termos em que a lei se expressa, se poderá haver como inaplicável a referida alínea c), quando a remessa que se faz para o n.º 1 do artigo 113.º é sem quaisquer limites.
O legislador, quando quer introduzir qualquer limitação, di-lo claramente, como acontece em matéria de notificação do despacho que designa dia para a audiência, caso em que redigiu o artigo 313.º, n.º 2, do Código Penal, por forma a excluir que a notificação do arguido e do assistente se possa fazer editalmente, pois só alude às alíneas a) e b) do n.º 1 do mesmo artigo 113.º
Do mesmo modo, é destituído de razão o argumento de que não vem regulamentado o formalismo da notificação edital no caso em apreciação, ao contrário do que sucede na hipótese prevista no artigo 335.º da lei processual que tem vindo a ser citada.
É que esta prevê o modo de integração de lacunas e assim é que, no seu artigo 4.º, dispôs que «nos casos omisso, quando as disposições deste Código não puderem aplicar-se por analogia, observam-se as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal e, na falta delas, aplicam-se os princípios gerais de processo penal».
E, assim sendo, ou se aplicam analogicamente as formalidades daquele artigo 335.º ou se recorre à regulamentação que o Código de Processo Civil - artigos 284.º e seguintes - estabelece para a citação edital.
III
A solução do acórdão fundamento, segundo a qual os autos se deverão manter confiados ao Ministério Público até que este consiga notificar o arguido da acusação deduzida, em virtude de só poder proceder-se à apreciação judicial da mesma depois de se ter verificado a notificação pessoal do acusado, não é de sufragar, não só pelos efeitos da não realização da justiça a que conduziria - por exemplo, à frequente prescrição do procedimento criminal - como também por ser contrária à necessidade social de uma justiça segura mas também prontamente realizada, propósito que é até sufragado constitucionalmente quando no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República se estabelece como garantia do processo criminal que «todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias da defesa».
A justiça, para além de segura, tem de ser célere, actual. É o princípio da celeridade processual que também o impõe.
Tal princípio retira a sua razão de ser multiplicidade dos interesses em jogo num qualquer processo, de natureza civil ou criminal. Essa razão está, como ensinava o Prof. Manuel Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, p. 371, em que:
a) Para o vencedor, a própria utilidade económica da decisão final resulta gravemente comprometida se o processo se arrastou longo tempo antes de se chegar a essa decisão. Vencer o pleito mas só tarde e a más horas equivale em certa medida a não vencer. Vitória tardia é meia vitória;
b) Para o próprio vencido, a demora na decisão pode importar um sacrifício acrescido, pela prolongação do estado de incerteza consequente do litígio;
c) O efeito psicológico e social da decisão, ainda que justa [...], perde-se em grande parte quando ela só chega no fim de muito tempo.
IV
Como já se deixou antever, a solução para que se propende não corresponde a nenhuma das corporizadas quer no acórdão recorrido, quer no que lhe serve de fundamento, conquanto seja frontal a posição em que se encontra relativamente a qualquer destas.
Contudo, a verdade é que em parte alguma se afirma que nesta matéria o Supremo Tribunal de Justiça não deva enveredar por outra solução que tenha como mais correcta face à lei a à justiça.
Como pondera o Ministério Público, «por isso que o Supremo Tribunal de Justiça é um tribunal de revista, [...] sendo impensável que se lhe imponha uma opção entre dois erros [...] ficando jurisprudência num deles».
Aqui, como em processo civil - artigo 664.º -, o juiz, que o mesmo é dizer o tribunal, não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação de direito, como também não pode ficar vinculado a uma qualquer das soluções julgadas opostas quando conclui que nenhuma delas é a sufragar mas será outra aquela a que deve conferir a dignidade de se tornar jurisprudencialmente obrigatória.
Estamos na área dos recursos para fixação de jurisprudência, em que o conflito deve ser resolvido no interesse da lei, da segurança e da certeza jurídicas, ainda que a solução por que se venha a adoptar não seja nenhuma entre as quais o mesmo surgiu, desde que com elas esteja em oposição.
Em conclusão, formula-se a seguinte jurisprudência, com carácter obrigatório:
Deduzida acusação, a mesma tem de ser notificada ao arguido nos termos dos artigos 283.º, n.º 5, 277.º, n.º 3, e 113.º, n.º 1, alínea c), todos do Código de Processo Penal.
Caso se verifique que aquele está ausente em parte incerta, a notificação a fazer-lhe será a edital prevista naquele artigo 113.º, n.º 1, alínea c), prosseguindo depois o processo para a fase do julgamento.
Em consequência do que se revoga o acórdão recorrido.
Não é devida tributação.
Lisboa, 25 de Março de 1992. - José Henriques Ferreira Vidigal - Manuel da Rosa Ferreira Dias - Armando Pinto Bastos - António Cerqueira Vahia - Agostinho Pereira dos Santos - Noel Silva Pinto - Victor Manuel Lopes de Sá Pereira - Luís Vaz de Sequeira - José Alexandre Vilhegas Lucena do Valle - José Alfredo Soares Manso Preto - José Saraiva - Fernando Faria Pimentel Lopes de Melo - Bernardo Guimarães Fischer Sá Nogueira (vencido pelas razões constantes do acórdão fundamento, de que fui relator, entendo que, embora haja lugar a mera notificação edital, teoricamente, a mesma não pode ser mandada efectivar pelo Ministério Público, por ela falecer competência para tal, nem pelo juiz do processo, por só passar a ser competente após a notificação de acusação. Por essa razão, votei no sentido de que os autos devem ficar a aguardar, à ordem do Ministério Público, a efectivação da notificação).