Acórdão
Processo 41618
Acórdão na Secção de Jurisdição Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:
Pedro Jorge Cardoso Lourenço, com os demais sinais dos autos, invocando o preceituado no artigo 437.º do Código de Processo Penal, recorre extraordinariamente do Acórdão da Relação de Lisboa de 26 de Junho de 1990, de que foram arguidas nulidades decididas em 25 de Outubro de 1990, proferido no processo 826 da 5.ª Secção, no qual foi condenado como autor do crime do artigo 142.º, n.º 1, do Código Penal, decisão esta que estaria em frontal oposição com a do acórdão da mesma Relação e data proferido no processo 821, também daquela 5.ª Secção, já transitado em julgado.
Estrutura o recurso com base na consideração de que no acórdão fundamento foi entendido e decidido que «o crime de ofensas corporais é um crime material exigindo um resultado ou evento lesivo que se consubstancia numa concreta ofensa no corpo ou na saúde alheia, não bastando um pancada ou agressão para a existência do crime de ofensas corporais» enquanto no acórdão recorrido o entendimento foi o de que «ofensa corporal» tem o sentido de corresponder a uma agressão física, independentemente de dela resultarem ferimentos (ou chagas, na terminologia das Ordenações Afonsinas), consubstanciada num acto violento contra a integridade física de alguém, e é manifesto que tal integridade pode ficar lesada mesmo quando não resultem ferimentos ou estados de doenças perceptíveis pelos meios normais de observação e apenas se verifiquem microlesões como as que, por exemplo, podem resultar de uma bofetada, de um açoite, de uma estalada, de um pontapé, etc.
Em ambos os casos submetidos a julgamento, as agressões tinham sido praticadas com bofetadas, das quais não haviam resultado lesões ou outros estados de doença perceptíveis.
Foi verificada a oposição dos julgados tal como esta é pressuposta para os efeitos tidos em vista - cf. citado artigo 437.º
O recorrente, nas alegações que produziu, diz que «uma simples bofetada, desacompanhada de quaisquer vestígios sensíveis na pessoa ofendida, desconhecendo-se a existência de sensação dolorosa e sem a caracterização do agente ao desferi-la, não é suficiente para tornar o agente incurso no crime previsto do artigo 142.º do Código Penal».
Por sua vez, o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto nesta Secção pronunciou-se no sentido de que «aquele que voluntária e conscientemente agride outrem com uma bofetada comete o crime de ofensas corporais simples do artigo 142.º do Código Penal, ainda que a vítima não tenha sofrido dor, lesão ou incapacidade para o trabalho».
Colheram-se os vistos dos Exmos. Conselheiros-Adjuntos.
Cumpre decidir.
Tem-se verificado ultimamente o confronto entre duas teses no presente recurso representadas pelas decisões de que se recorre e pela que lhe serve de fundamento, quanto à punibilidade das agressões corporais voluntárias que não produzem quaisquer efeitos, externas ou internos, no corpo ou na saúde da pessoa visada.
A discussão surge com o novo Código Penal, que, quanto a ofensas corporais voluntárias, dispõe no seu artigo 142.º, n.º 1, que «quem causar uma ofensa no corpo ou na saúde de outrem será punido com prisão até dois anos e multa até 180 dias».
Como nota Maia Gonçalves (Código Penal Anotado), «o Código faz distinção entre ofensas corporais simples, que são as previstas neste artigo, qualificadas e privilegiadas, estas duas últimas modalidades previstas nos artigos seguintes».
Outra era a sistematização do Código Penal de 1886, que, no que toca a ofensas corporais voluntárias, distinguia entre simples (artigo 359.º), as de que resultavam doença ou impossibilidade para o trabalho (artigo 360.º), as de que resultava privação da razão ou impossibilidade para o trabalho permanente (artigo 361.º) e as de que resultava a morte por circunstância acidental (artigo 362.º), caracterizando as primeiras, que qualificava de simples, como aquelas em que não concorria qualquer das circunstâncias enunciadas nos artigos seguintes.
E sempre essas ofensas corporais simples foram havidas como as que não produziam lesões externas ou internas ou qualquer tipo de doença, isto é, estado mórbido da saúde.
Há agora quem veja no artigo 142.º a descriminalização das ofensas corporais que não produzam lesões corpóreas, simples dor ou que contendam com a saúde do ofendido.
Mas não é assim.
Antes de mais há que recordar que a Constituição da República reconhece, sem quaisquer limitações ou graduações, o direito à integridade física (artigo 24.º, n.º 1) e considera-o inviolável, não fazendo sentido que o legislador penal, ao incriminar e fazer punir os actos violadores de tal direito, com vista a assegurar a sua defesa o fizesse por forma limitada e descriminadora.
Por outro lado, a lei contrapõe ou distingue entre ofensa no corpo e ofensa na saúde, pelo que se tem de aceitar, numa visão ético-social do conceito de ofensa no corpo, que esta se pode verificar independentemente da produção de qualquer lesão, dor ou incapacidade para o trabalho.
Depois, há que reconhecer que a amplitude da penalização prevista naquele artigo 142.º e, mais do que isso, a própria alternatividade das penas (prisão e multa) é sinal revelador de que na sua previsão cabem não só aquelas situações em que das ofensas corporais cometidas decorram os vulgares efeitos danosos (ferimentos, dores, incapacidade para o trabalho, etc.) que eram anteriormente enunciados escalonadamente no artigo 360.º do Código Penal de 1886, como também os simples maus tratos, que constituem objecto da punição estatuída no artigo 359.º do mesmo repositório legal.
Uma bofetada é uma agressão corpórea produzida com a mão. Como lapidarmente diz o Ministério Público:
Uma bofetada significa uma pancada dada noutrem, com a mão aberta, normalmente na cara, distinguindo-se do soco, dado com a mão fechada.
Ético-socialmente [...], exprime uma agressão no corpo independentemente do efeito [...]
A questão da dor, sua existência e intensidade, como a questão das lesões ou da incapacidade para o trabalho, não são questões de tipicidade, excepto quanto aos casos de crime qualificado ou privilegiado, mas sim questões tão-só relevantes quanto à escolha da pena e sua medida.
Em suma, a lei pune hoje no artigo 142.º do Código Penal a mera ofensa no corpo e esta tem lugar quando uma agressão voluntária é praticada no corpo de alguém, mesmo quando dela não resulte ofensa na saúde do visado por ausência de quaisquer efeitos produtores de doença ou de incapacidade para o trabalho, pelo que uma simples bofetada dada com a intenção de agredir é susceptível de integrar tal ilícito penal quando não gere dor nem se lhe sigam os mencionados efeitos.
Não deixará de ser como se expôs quando, além da intenção de ofender corporalmente, acresça o animus injuriandi, pois que, quando assim for e à ofensa corporal corresponder concretamente pena mais grave, esta se acumulará com a que corresponde à injúria, como resulta do artigo 173.º do Código Penal.
Conclusão:
Juga-se improcedente o recurso, confirma-se a decisão recorrida e firma-se, com carácter obrigatório, a seguinte jurisprudência:
Integra o crime do artigo 142.º do Código Penal a agressão voluntária e consciente, cometida à bofetada, sobre uma pessoa, ainda que esta não sofra, por via disso, lesão, dor ou incapacidade para o trabalho.
Tributa-se o recorrente na taxa de justiça de 4UC e nas custas, fixando-se em 7000$00 a procuradoria que é devida.
Lisboa, 18 de Dezembro de 1991. - José Henriques Ferreira Vidigal - Manuel do Rosa Ferreira Dias - Armando Pinto Bastos - Agostinho Pereira dos Santos - Victor Manuel Lopes Sá Pereira - Bernardo Guimarães Ficher Sá Nogueira - Luís Vaz Sequeira - António Cerqueira Vahia - José Alexandre Lucena Vilhegas do Vale - José Alfredo Soares Manso Preto - Fernando Faria Pimentel Lopes de Melo - Fernando Ferreira de Sousa Sequeira - José Saraiva.