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Acórdão 684/2014, de 11 de Novembro

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Sumário

Julga procedente ação de impugnação de deliberação de natureza disciplinar tomada por órgão de partido político (expulsão de militante)

Texto do documento

Acórdão 684/2014

Processo 838/2014

Acordam, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional

I - Relatório

1 - Nos presentes autos, Cristina da Assunção Matias Martins, na qualidade de militante, instaurou, contra o Partido Socialista, ação de impugnação de deliberação de órgão de partido político, de natureza disciplinar, ao abrigo do artigo 103.º-D da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC).

Foi expressamente peticionado o seguinte:

«1 - No dia 18 de julho de 2014 a Impugnante recebeu, por carta registada com aviso de receção, um ofício não numerado da CNJ do PS que a notificava do teor do Acórdão proferido por essa CNJ, ofício esse que capeava uma cópia das partes componentes do tal Acórdão (Relatório, Conclusões, Enquadramento Factual e Decisão) bem como uma cópia da lista de presenças. De todo o conteúdo dessa carta se juntam fotocópias (doc. 01)

2 - Nesse acórdão, que agora se impugna, deliberou a CNJ aplicar à impugnante a pena de expulsão do Partido Socialista.

3 - A impugnante não se conformou com essa decisão de a expulsarem do Partido Socialista e, ciente de que as decisões de aplicação da pena de expulsão do PS são tomadas em primeira e única instância decisória interna pela CNJ, não estando previsto expressamente nos Estatutos nem no Regulamento Processual e Disciplinar (RPD) do Partido Socialista qualquer mecanismo de reapreciação interna deste tipo de deliberações o que contraria o estipulado no n.º 2 do artigo 22.º da Lei Orgânica 2/2003, de 22 de agosto, na redação dada pela Lei Orgânica 2/2008, de 14 de maio (Lei dos Partidos Políticos) que determina que compete aos órgãos próprios de cada partido a aplicação das sanções disciplinares, sempre com garantias de audiência e defesa e possibilidade de reclamação ou recurso, dessa decisão decidiu apresentar Reclamação à CNJ, da qual se junta cópia (doc. 02).

4 - No passado dia 11 de agosto a impugnante, por carta registada com aviso de receção de que junta cópia (doc. 03), foi notificada do teor do despacho que mereceu a Reclamação que tinha enviado à CNJ do PS.

5 - Nesse despacho, datado de 4 de agosto de 2014, a CNJ do PS recusa-se a tomar conhecimento dessa Reclamação alegando que a reclamação não é o "meio próprio para questionar a deliberação em causa" e que "o meio processual adequado ao exercício do direito da requerida em sindicar a decisão preferida pela CNJ é o recurso para o Tribunal Constitucional da deliberação em causa".

6 - A pena de Expulsão do Partido Socialista que a CNJ decidiu aplicar à impugnante está ínsita no Acórdão de 11 de julho de 2014 da CNJ e surge na sequência de um processo disciplinar "sui generis" instruído à revelia do preceituado quer nos Estatutos quer no RPD do PS, porquanto:

a) Tal processo disciplinar foi instaurado e instruído pela Comissão Federativa de Jurisdição de Coimbra (CFJC) do PS, sem se atender à particularidade de a impugnante ser um dos membros eleitos da Comissão Politica Distrital de Coimbra do PS, como é reconhecido a páginas 20 do Acórdão em apreço, onde se pode ler: "... Ora, este comportamento da arguida, que faz parte da Comissão Politica Distrital do PS, é suscetível de...".

b) Porém, tanto o disposto na alínea d) do Artigo 70.º dos Estatutos como o estipulado na alínea d) do n.º 1 do Artigo 40 do RPD do PS obrigam a que os processos disciplinares em que sejam arguidos membros dos Órgãos Nacionais ou das Federações do Partido sejam instruídos e julgados pela CNJ.

c) Pelo que tal processo disciplinar se encontra ferido de nulidade insanável já que a CFJC não tem competência para instruir os processos disciplinares que foram ou vierem a ser instaurados à impugnante enquanto ela for membro da Comissão Politica Distrital de Coimbra do PS.

d) Mas, mesmo que a CFJC fosse competente para instruir o processo disciplinar que instaurou à impugnante, competência essa que se não lhe reconhece, não seria por isso que o processo deixaria de estar ferido de nulidade grosseira, porquanto a arguida nunca foi devidamente notificada do Despacho de Acusação, o que constitui violação do n.º 2 do Artigo 22.º da retro citada Lei dos Partidos Políticos bem como do estipulado no Artigo 34.º do RPDPS pelo que, de acordo com o preceituado no n.º 2 do Artigo 17.º do mesmo RPDPS, a pena de expulsão do Partido que agora foi aplicada à impugnante terá de ser sempre considerada nula, não podendo produzir nenhum efeito.

e) E se é certo que ao longo do Acórdão agora impugnado, repetidas vezes se encontra a menção de que existe uma nota de culpa a qual em 21 de fevereiro de 2014 terá sido notificada à agora impugnante e então arguida, por carta registada com aviso de receção, nota de culpa essa à qual a então arguida não respondeu. Porém, como a seguir se demonstra, não é verdade que a CFJC tenha alguma vez deduzido acusação (nota de culpa), da qual a então arguida tenha sido notificada:

i) De acordo com o RPD, Artigos 33.º e 34.º, um qualquer Despacho de Acusação, que no Acórdão em apreço é apelidado de Nota de Culpa, é proferido depois do termo da instrução dum processo disciplinar quando o Relator desse processo disciplinar considere que existem indícios suficientes da prática de infração disciplinar, e esse Despacho de Acusação (ou, se assim o quiserem, Nota de Culpa) é notificado ao arguido, pessoalmente ou através de carta registada com aviso de receção, enviando-se lhe cópia dessa mesma acusação;

ii) pelo que não se pode deixar de concluir que para existir uma Nota de Culpa tem que existir sempre um arguido de um qualquer processo disciplinar que é o destinatário dessa Nota de Culpa...

iii) ora nessa tal hipotética Nota de Culpa que o Acórdão em apreço diz existir e cujo teor até transcreve (folhas 3 a 9 do Relatório do Acórdão), sintomaticamente nunca é mencionado qual é o processo disciplinar que a contextualiza nem nela aparece uma única vez o termo arguido/a;

iv) e como sem arguido/a não pode haver Nota de Culpa, então o texto transcrito no Acórdão em apreço não pode ser considerado uma Nota de Culpa;

v) tal texto é, isso sim, uma transcrição quase completa do Processo 15/2014, datado de 18 de fevereiro de 2014, elaborado pela CFJC, cuja cópia se encontra anexa ao doc. 02, o qual foi enviado à impugnante por carta registada com aviso de receção sem ser acompanhado por nenhum ofício, notificação ou outro documento qualquer que explicasse a razão/motivação de tal envio;

vi) e nessa tal transcrição que no Acórdão em apreço se faz do mencionado Processo 15/2014 apenas são omitidos os seus três primeiros parágrafos, intitulados de Questão Prévia, e onde se pode ler: "Ora, no caso em apreço e dada a sua aparente gravidade, entendeu a CFJ de Coimbra proceder ao presente inquérito por sua iniciativa...".

vii) percebe-se assim uma eventual razão para essa omissão, pois se a tal transcrição fosse completa ressaltaria à evidencia que o documento em questão não é uma Nota de Culpa (denominação que nunca aparece nesse documento) mas sim um Processo de Inquérito elaborado pela CFJC nos termos do n.º 2 do Artigo 50.º dos Estatutos e da alínea f) do n.º 2 do artigo 3.º do RPD do PS.

viii) Entendeu então a impugnante que esse Processo de Inquérito não cumpria com os quesitos estipulados pelo RPD do PS para os processos de inquérito (artigos 42.º a 44.º do RPD) por lhe parecer que a decisão nele tomada "...compete à Comissão Federativa de Jurisdição decretar a suspensão, após audição prévia... determina-se que a militante n.º 23778 Cristina Martins ...seja notificada da presente acusação e do prazo de 10 dias que dispõe para, querendo, vir exercer o seu direito de audição prévia à decisão juntando todos os meios de prova em direito permitidos." de ouvir em audição prévia a impugnante teria obrigatoriamente que ser tomada em sede de processo disciplinar e não em processo de inquérito, conforme estipulado no n.º 1 do Artigo 45.º do RPD, pelo que decidiu interpor o recurso ordinário cuja cópia faz parte dos documentos anexos ao doc. 02.

ix) Sabe agora a impugnante, após ter lido o Acórdão em apreço, que a CNJ levianamente decidiu não receber tal recurso por o considerar extemporâneo e de não visar ato passível de recurso... E este fechar de olhos da CJN validou o argumento charneira do processo disciplinar levantado pela CFJC que promovia o seu Processo 15/2014 a Nota de Culpa.

x) É certo que a impugnante, ao apresentar o recurso que apresentou, acabou por não exercer o seu direito de audição prévia; porém tinha presente que se a CFJC entretanto decretasse a sua Suspensão Preventiva a impugnante poderia sempre recorrer de tal decisão ao abrigo do estipulado no n.º 2 do Artigo 48.ºdo RPD do PS.

xi) Mas tal suspensão preventiva nunca chegou a ser decretada e a impugnante viu-se envolvida, sem o saber, num processo disciplinar fantasma, processo esse que foi conduzido literalmente à margem dos Estatutos e do RPD do PS, onde nunca foi dada à impugnante possibilidade de se defender apesar de o RPDPS estipular no mínimo dois momentos em que obrigatoriamente terá de ser dada a um qualquer arguido a possibilidade de se defender:

. Antes de ser ultimada a instrução do processo disciplinar, conforme estipulado no n.º 2 do Artigo 30.º do RPD do PS;

. Em resposta ao Despacho de Acusação, conforme estipulado nos artigos 35.º e 36º do RPD do PS

xii) Ressalta assim à evidência que a sanção que o CNJ decidiu aplicar à impugnante é abrangida pelo estipulado no n.º 2 do Artigo 17.º do RPD do PS, pelo que tal sanção deverá ser imediatamente declarada nula.

ASSIM

7 - A reclamante pretende que seja declarada nula e sem nenhum efeito a pena de expulsão do Partido Socialista que lhe foi aplicada.» (fls. 2 a 8)

2 - Devidamente notificado para o efeito, ao abrigo do n.º 5 do artigo do artigo 103.º-C da LTC, o Partido Socialista apresentou a seguinte resposta, que ora se sintetiza:

«I. Por Exceção

A. Da Intempestividade

1.º Do pedido formulado decorre que a impugnante, com a presente ação, pretende questionar o acórdão da Comissão Nacional de Jurisdição do Partido Socialista (CNJ) de 11 de julho de 2014, que determinou a sua expulsão do Partido Socialista,

2.º Decisão essa notificada à impugnante em 18 de julho de 2014, conforme a mesmo alega no artigo 1.º do seu articulado.

3.º A presente ação foi apresentada em juízo em 18 de agosto de 2014.

4.º Nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 103.º-C, da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), por remissão do n.º 3 do artigo 103.º-D do mesmo diploma, a petição pela qual se impugnam as decisões punitivas dos respetivos órgãos partidários, tomadas em processo disciplinar, deve ser apresentada no Tribunal Constitucional no prazo de cinco dias a contar da notificação da deliberação do órgão que, segundo os estatutos, for competente para conhecer, em última instância, da validade ou regularidade do ato eleitoral impugnado.

5.º A decisão em causa foi tomada pela CNJ que, como resulta do n.º 1 do artigo 69.º dos Estatutos do Partido Socialista, é o seu máximo órgão jurisdicional e competente para conhecer em última instância da validade ou regularidade do ato eleitoral impugnado,

6.º Sendo a ela, e só a ela, CNJ, quem, nos termos do artigo 50.º, n.º 2, alínea g) dos Estatutos, conjugado com o disposto na alínea g) do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento Processual e Disciplinar do Partido Socialista (doravante RPDPS), cabe deliberar sobre a expulsão de militantes.

7.º As decisões da CNJ, órgão jurisdicional que decide em última instância, são definitivas e delas não cabe recurso, salvo nos casos de revisão previstos no Regulamento e na Lei dos Partidos Políticos (artigo 53, n.º 2, do RPDPS),

8.º Sendo certo que, nos termos do disposto no artigo 66 do RPDPS, "Das deliberações tomadas pela Comissão Nacional de Jurisdição, e apenas desta, cabe recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos da lei de organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional".

9.º Ou seja, é através do recurso e não da reclamação que os direitos de defesa previstos nos artigo 22.º, n.º 2 da Lei dos Partidos Políticos ficam assegurados aos militantes do PS, que, nos termos do disposto naquele artigo 66 do RPDPS, podem recorrer para o Tribunal Constitucional das decisões proferidas pela CNJ, como é o caso dos autos.

10.º Dito isto, dir-se-á que, tendo a impugnante sido notificado em 18 de julho de 2014 da deliberação que decidiu expulsá-lo de militante do Partido Socialista, deliberação essa tomada em 11 de julho de 2014 pela Comissão Nacional de Jurisdição,

11.º Devia ter apresentado em juízo a presente petição dentro do prazo de 5 dias a contar dessa notificação (artigo 103.º-C, n.º 4, da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), por remissão do n.º 3 do artigo 103.º-D do mesmo diploma), ou seja, deveria ter apresentado a ação até ao dia 23 de julho de 2014.

12.º Porém, apenas o fez em 18 de agosto de 2014, pelo que, a presente ação é intempestiva, impondo-se, por isso, a sua rejeição, não fazendo sentido a apreciação do seu mérito.

De qualquer forma, e sem prescindir,

13.º Sempre se dirá que, a decisão punitiva de expulsão aplicada à impugnante não merece qualquer censura, pois que o respetivo processo disciplinar observou os comandos constitucionais em matéria de direitos, liberdades e garantias, em particular as garantias da audiência e defesa aplicáveis e nos termos do artigo 32.º, n.º 10 da Constituição, não violando qualquer regra estatutária e observando em tudo a lei aplicável.

14.º Carecendo a presente ação ostensivamente de fundamento jurídico.

15.º A arguida parece invocar (ou invoca mesmo) a incompetência da Comissão Federativa de Jurisdição de Coimbra e bem assim, jogando com as palavras, a falta da Nota de Culpa, mas não tem razão alguma como se irá demonstrar.

16.º De acordo com o artigo 25.º, n.º 1 do RPDPS "O procedimento disciplinar depende da participação de órgão ou filiado do Partido no pleno gozo dos seus direitos", sendo certo que o respetivo processo disciplinar o foi com o impulso da dita CJ de Coimbra.

17.º A qual, por sua vez, procedeu à instrução, elaboração e notificação à arguida da respetiva Nota de Culpa, pois que é das suas atribuições o "exercício de competência disciplinar ao nível da respetiva Federação" (artigo 50, n.º 1 dos Estatutos),

18.º Concedendo-lhe todas as garantias de defesa nos termos do respetivo Regulamento Processual, dos Estatutos e da Constituição, nomeadamente a exigida audiência prévia.

19.º Pois que, e já se disse, às Comissões Federativas de Jurisdição compete "...em geral funcionar como instância ...e de exercício da competência ao nível da respetiva Federação" (artigo 50, n.º 1 dos Estatutos).

20.º A impugnante, independentemente de ser ou não membro do órgão distrital - no caso a Comissão Política Distrital - é militante residente na área da Federação de Coimbra, da Secção da Sé Nova - Coimbra.

21.º E, como tal, a CFJ de Coimbra tem competência para proceder à instrução do processo disciplinar que instruiu.

22.º É que, a competência atribuída à Comissão Nacional de Jurisdição para instruir e julgar os processos disciplinares membros dos órgãos das Federações do Partido, não exclui a competência disciplinar genérica atribuída às Comissões Federativas de Jurisdição ao nível da Federação de Coimbra.

23.º Do que se trata é da organização jurisdicional interna do Partido, em ordem à sua funcionalidade, em termos de melhor realizar a justiça político-partidária e da necessidade de eficácia da jurisdição em função do número de destinatários e da sua territorialidade.

24.º E isto no âmbito da autonomia partidária e de auto organização que constitucionalmente é reconhecida aos partidos políticos.

25.º Sendo que "A instrução inicia-se com a autuação da participação e documentos que a instruem" (artigo 27.º do Regulamento), e com a sua conclusão é proferido despacho de acusação (artigo 33.º, n.º 2) o qual "deve especificar a identidade dos arguidos, os factos imputados, localizados no tempo em que ocorreram e acompanhadas das circunstâncias em que foram praticadas, caracterizar a infração imputada, indicar as normas infringidas e referenciar meios de prova, bem como fixar o prazo para apresentação de defesa" (artigo 34.º).

26.º E de tudo, e em conformidade, foi a arguida notificada através de carta registada com aviso de receção conforme, aliás, a impugnante confessa no ponto 6 alínea e), n.os 4 e 6, do seu articulado.

27.º Nem se diga, como pretende fazer querer a arguida (jogando com palavras) que a notificação efetuada, o foi em processo de inquérito.

28.º É que, o processo de inquérito, sendo uma faculdade, só é "... ordenada a abertura do processo de inquérito sempre que não esteja concretizada a infração ou não seja conhecido o infrator e ainda quando se tome necessário proceder a averiguações destinadas a um melhor esclarecimento dos fatos constantes da participação" (artigo 42.º do RPDPS).

29.º O que não é o caso dos presentes autos, onde tudo estava objetivamente apurado e concretizado, como aliás consta do despacho de sustentação da Comissão Federativa de Jurisdição de Coimbra cujo teor se encontra transcrito no acórdão impugnado.

30.º Basta uma simples leitura da Nota de Culpa para facilmente se alcançar e concluir que não se mostrava necessário à instauração do processo prévio de inquérito.

31.º Sustenta ainda a recorrente, por outro lado, que deve ser ouvido por duas vezes, em momentos diferentes, o primeiro antes de se ultimar a instrução (artigo 30.º, n.º 2 do RD do PS) e o segundo depois do despacho de acusação para organizar a sua defesa (artigo 34.º e 35.º do RDP PS). Mas não é assim.

32.º Na verdade, dispõe o artigo 26.º do RDPPS que "A instrução do processo disciplinar é sumária, devendo o Relator remover os obstáculos que se oponham ao seu regular e rápido andamento e recusar o que for impertinente, inútil e dilatório".

33.º A instrução do processo disciplinar tem pois natureza "sumária".

34.º Só quando o relator, durante a instrução tiver de proceder a investigação, ouvindo o participante e testemunhas (artigo 30.º, n.º 1 - "O relator procederá à investigação começando por ouvir..."), é que tem de ouvir também o arguido e antes de proferir a acusação, ou seja, antes de terminar a instrução.

35.º Já assim não é quando não houver lugar a quaisquer investigações - como é o caso dos autos - nomeadamente por se conhecerem já os elementos essenciais das infrações e da sua relevância disciplinar.

36.º Ora, no caso dos autos, houve um conhecimento imediato de todos os factos infratores, verificando a Comissão de Jurisdição diretamente as infrações e a relevância disciplinar das imputações objetivamente ofensivas nelas contidas, e que foram praticadas de forma pública e notória, aliás, em jornais de grande circulação nacional, como da Nota de Culpa ou acusação consta.

37.º Não ocorrendo, nem havendo quaisquer dúvidas ou suspeitas de comportamento disciplinar punível, pelo contrário, ao invés, conhecendo-se diretamente a totalidade dos factos infracionais e seus detalhes, as suas circunstâncias relevantes, não há lugar a nada investigar, por tudo já ser objetivamente conhecido do instrutor.

38.º E, quando assim, é entendimento, é parecer da Comissão Nacional de Jurisdição, porque assim interpreta tal norma (no âmbito da sua competência prevista no artigo 70.º, n.º 1, alínea h) dos Estatutos), que só há lugar à audição do arguido antes de terminar a instrução e nos termos do artigo 30.º, n.º 2 RPD, ou seja, só há lugar à audição do arguido anteriormente à acusação, quando se proceda a investigações no decurso da instrução do processo disciplinar e não já quando isso não ocorre, por as infrações com relevância disciplinar serem já objetivamente conhecidas e suficientes para fundamentar a acusação.

39.º E é o caso dos autos, como é também em muitíssimos outros em que a infração é objetivamente conhecida.

40.º Atente-se por exemplo num militante que integrou uma lista de outro partido, contra a do PS, em eleições autárquicas. Tudo está bem conhecido e demonstrado mediante a certidão judicial da candidatura do militante arguido em processo disciplinar. Será necessário ainda assim ouvi-lo duas vezes? Uma antes da acusação e outra depois dela? Obviamente que não parece razoável!

41.º Efetivamente, "A instrução do processo disciplinar é sumária..." (artigo 26.º do RDPPS).

42.º E, é certo que o n.º 3, do artigo 269.º da CRP, estipula a garantia de audiência e defesa capaz do arguido em processo disciplinar. Mas tal direito tem de reputar-se, porém, satisfeito, quando e logo que sejam perfeitamente percetíveis os factos imputados, em termos de o arguido compreender o respetivo objeto-conteúdo pelas coordenadas da sua existência material - tempo, lugar e modo.

43.º E tudo nos autos se mostra bem demonstrado, e de tudo a impugnante teve oportunamente conhecimento, pelo que se não exerceu o seu direito de defesa foi pura e simplesmente porque não quis.

Por último,

44.º Dá-se aqui, como reproduzido, para os devidos e legais efeitos, o teor do acórdão da CNJ ora impugnado, e que constitui o documento n.º 1 junto com a ação pelo impugnante, cujos fundamentos de facto e de direito nele vertidos justificam a decisão tomada de expulsar a impugnante,

45.º Sendo que a sanção, decretada pelo órgão competente, CNJ, que é estatutária e regulamentar, decorre do facto de ter ficado provado no processo, que a impugnante,

46.º Ao atuar da forma que atuou, praticou atos disciplinarmente ilícitos, seja na sua forma, seja no seu conteúdo, que não podem deixar de envolver juízos de censura e reprovação, já que praticados com culpa grave.

Na verdade,

47.º A impugnante, cometeu infração disciplinar grave, causando sério prejuízo ao prestígio, ao bom nome, à credibilidade, honorabilidade e imagem pública do Partido Socialista,

48.º Comportamento que constitui grave violação dos deveres de disciplina partidária, integrando o conceito de "falta grave" previsto no artigo 10.º, n.º 2 e no n.º 1 do artigo 19.º do citado Regulamento Processual e Disciplinar, por violação dos deveres a que se reporta o estatuído nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 11.º dos Estatutos do Partido, sendo que a sua conduta é agravada nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 21.º daquele Regulamento Disciplinar, já que a infração causou mau ambiente entre os militantes do Partido, e teve grande repercussão pública, comprovada pelo conjunto de notícias divulgadas nos órgãos de comunicação social, conforme documentos juntos aos autos.

49.º Pelo que se deixou dito, aferindo a culpa e a gravidade do comportamento da arguida com o grau de lesão dos interesses e dos valores da lealdade, do respeito pelos Estatutos, da verdade e legalidade, afigura-se que, segundo critérios de objetividade e razoabilidade a sanção de expulsão é adequada.» (fls. 95 a 102)

3 - Na medida em que o Partido Socialista invocou a exceção de intempestividade da ação de impugnação instaurada, a Relatora proferiu despacho, em 16 de setembro de 2014 (fls. 185), nos termos do qual convidou a impugnante a pronunciar-se sobre aquela exceção. Respondendo a tal convite, a impugnante esclareceu que:

«1 - Da leitura dos Estatutos e do Regulamento Processual e Disciplinar do Partido Socialista verifica-se que as decisões de aplicação da pena de expulsão do Partido Socialista são tomadas em primeira e única instância decisória interna pela Comissão Nacional de Jurisdição, não estando previsto expressamente nem nos Estatutos nem no Regulamento Processual e Disciplinar do Partido Socialista qualquer mecanismo de reapreciação interna deste tipo de deliberações.

2 - Contudo, o artigo 22.º, n.º 2, da Lei Orgânica 2/2003, de 22 de agosto, na redação dada pela Lei Orgânica 2/2008, de 14 de maio (Lei dos Partidos Políticos), determina que compete aos órgãos próprios de cada partido a aplicação das sanções disciplinares, sempre com garantias de audiência e defesa e possibilidade de reclamação ou recurso.

3 - Estamos perante uma norma imperativa que não pode ser contrariada pelos estatutos e outros regulamentos partidários e que, no caso destes serem omissos sobre a consagração e regulamentação destas garantias, é diretamente aplicável.

4 - Daí que o Tribunal Constitucional teve já, por diversas vezes, o ensejo de decidir pelo não conhecimento da impugnação em processos de contencioso partidário onde os impugnantes, aí em causa, recorriam de deliberação punitiva tomada pelo Conselho Nacional de Jurisdição do respetivo partido sem que antes tivessem esgotado internamente as hipóteses de reclamação ou recurso previstas na Lei.

5 - E sempre o Tribunal Constitucional fundamentou tais decisões de não tomar conhecimento dessas impugnações com a argumentação de que dos artigos 22.º, n.º 2, e 30.º da Lei dos Partidos Políticos (Lei Orgânica 2/2003, de 22 de agosto, na redação dada pela Lei Orgânica 2 /2008, de 14 de maio) resulta que o recurso judicial perante o Tribunal Constitucional só é admissível se houver impugnação prévia (reclamação ou recurso) da decisão do órgão partidário que aplique sanção disciplinar, perante o órgão de jurisdição competente.

6 - Nestes termos, tendo presente a jurisprudência reiterada deste Tribunal Constitucional, (vide, entre outros, os acórdãos n.os 361/2002, 421/2002, 428/2009, 44/2010, 250/2010, 395/2010, 497/2010, 219/2011 e in www.tribunalconstitucional.pt) deve a mesma ser transposta para os presentes autos

7 - Acresce ainda que o Partido Socialista é bem conhecedor desta jurisprudência pois dela se tem servido para suscitar a intempestividade de impugnações de que têm sido objeto deliberações do seu Conselho Nacional de Jurisdição, como se pode verificar pela consulta do acórdão 219/2011 do Tribunal Constitucional

8 - Do relatório desse acórdão se pode extrair (sublinhados da autora):

"2 - O Partido Socialista contestou, invocando, no que ora importa, para a decisão da presente ação de impugnação, que:

1.º Por uma questão de economia processual e fundamentalmente por respeito a este douro Tribunal o respondente não irá entrar em considerações laterais de resposta a insinuações gravosas, deselegantes e despromovidas do mais elementar sentido feitas pelo impugnante no seu petitório;

2.º Deixando as lateralidades diremos que nenhuma razão substantiva assiste ao ora impugnante;

Por exceção - Inadmissibilidade da impugnação apresentam,

3.º À luz do disposto pelo artigo 103.º-C aplicável por remissão expressa do art. 103.º-D, ambos da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), vários requisitos têm de estar reunidos para que este Tribunal possa apreciar recurso interposto de uma deliberação tomada por órgão de partido político.

4.º Um deles é considerar que o recurso para o Tribunal Constitucional só é possível quando estiverem 'esgotados todos os meios internos previstos nos estatutos para apreciação da validade e regularidade do ato, conforme art. 103.º-C n.º 3.

5.º Aliás, tal é expressamente invocado pelo impugnante nos autos em apreço.

Porém,

6.º Tal não corresponde, in casu, à verdade.

7.º Uma vez que, o ato impugnado é a deliberação da Comissão Nacional de Jurisdição (CNJ) tomada em 8 de agosto de 2010 e que determinou a expulsão do impugnante por violação grave dos Estatutos do Partido Socialista, conforme art. 94.º/1/ d) e 5 dos Estatutos do PS.

8.º Em causa está, a participação do impugnante em lista autárquica adversária da lista apresentada pelo Partido Socialista no concelho de Matosinhos, facto não contestado, nem negado pelo ora impugnante.

9.º Por participação efetuada à Comissão Federativa de Jurisdição do Porto, órgão estatutariamente competente (Artigo 57.º n.º 2 alínea a) dos Estatutos do PS) foi instruído o processo disciplinar e os autos remendos à Comissão Nacional de Jurisdição para apreciação e deliberação quanto à proposta sanção de expulsão (artigos 57.º, n.º 2, alínea f) e 31.º n.º 1 al. a) dos Estatutos do PS).

10.º A deliberação foi tomada pela Comissão Nacional de Jurisdição em 5 de agosto de 2010, tudo conforme, de resto, resulta da alegação do impugnante e decorre do processo disciplinar que ora se junta, doc. 1.

11.º O impugnante refere que apenas tomou conhecimento de tal deliberação no dia 12 de janeiro de 2011, invocando a falta de notificação da decisão;

12.º Isto é, o impugnante pede a declarado de nulidade de todo o processo disciplinar, incluindo a deliberação da CNJ de 5 de agosto de 2010 que determinou a sua expulsão como militante do Partido Socialista.

Sucede que,

13.º De acordo com o disposto no artigo 22.º n.º 2 da denominada Lei dos Partidos Políticos (Lei Orgânica 2/2003, de 22 de agosto, na redação que lhe foi dada pela Lei Orgânica 2/2008. de 14 de maio), que se transcreve: "Compete aos órgãos próprios de cada partido, aplicação de sanções disciplinares, sempre com garantias de audiência e defesa e possibilidade de reclamação ou recurso,'

14.º Acresce que este preceito terá de ser articulado com a norma contida no artigo 30.º, n.º 1 da mesma Lei, quando este prevê que 'as deliberações de qualquer órgão partidário são impugnáveis com fundamento em infração de normas estatuárias ou de normas legais, perante o órgão de jurisdição competente:

Ou seja,

15.º Mesmo a deliberação do órgão Jurisdicional hierarquicamente superior admite impugnação - sob a forma de reclamação ou recurso - e só dessa decisão poderá o filiado lesado recorrer judicialmente' para o Tribunal Constitucional conforme artigo 30.º n.º 2.

16.º No caso sub judice tal não aconteceu

17.º Da deliberação tomada em 5 de agosto de 2010 pela Comissão Nacional de Jurisdição do Partido Socialista - e que o impugnante clama só ter rido conhecimento em 12 de janeiro do corrente ano - recorreu este diretamente para o Tribunal Constitucional, quando deveria, isso sim, tê-la impugnado, junto daquele órgão.

18.º Ao não o fazer, não se verificam os requisitos legais para admissão do presente recurso, conforme exigência expressa do disposto no já citado artigo 103-C, artigo 3 da LTC.

19.º E nem se invoque Que nem os Estatutos do Partido Socialista, nem o seu Regulamento Disciplinar preveem tal possibilidade de impugnação, porquanto o entendimento deste Tribunal é Que as normas em causa têm aplicação imperativa e imediata".

TERMOS EM QUE, DEVE A QUESTÃO PRÉVIA PELA QUAL O PARTIDO SOCIALISTA EXCECIONA A INTEMPESTIVIDADE DA IMPUGNAÇÃO DEVE SER LIMINARMENTE REJEITADA, POR NEGAR À IMPUGNANTE A POSSIBILIDADE DE RECLAMAÇÃO OU RECURSO PREVISTA, NO ARTIGO 22.º, N.º 2 DA LEI DOS PARTIDOS POLÍTICOS.» (fls. 187 a 190)

Posto isto, cumpre, então, apreciar e decidir.

II - Fundamentação

Da tempestividade da ação

4 - O Partido Socialista sustenta que a presente ação de impugnação não deve proceder, por extemporaneidade da mesma. Com efeito, a ação foi instaurada dentro do prazo de cinco dias contados da notificação à impugnante, ocorrida em 11 de agosto de 2014 (fls. 157) de despacho proferido pelo Vice-Presidente da Comissão Nacional de Jurisdição (CNJ), datado de 4 de agosto de 2014 (fls. 85 a 87), que não admitiu reclamação de acórdão anteriormente proferido, pelo Plenário da CNJ, em 11 de julho de 2014 (fls. 37) - apesar de datado de 20 de junho de 2014 (fls. 36) -, que lhe foi notificado, por carta registada com aviso de receção, em 18 de julho de 2014 (conforme admitido pela impugnante). Argumenta o impugnado que, competindo à CNJ deliberar, em primeira e única instância decisória, sobre a expulsão de militantes [artigo 50.º, n.º 2, alínea g), dos Estatutos, e artigo 3.º, n.º 2, alínea g), do Regulamento Processual e Disciplinar do Partido Socialista (RPDPS)], pelo que da decisão de expulsão do impugnante não cabia reclamação mas apenas recurso para o Tribunal Constitucional (artigo 66.º do RPDPS), que não teria sido tempestivamente interposto.

Com efeito, pela análise dos referidos Estatutos e do RPDPS, resulta que compete exclusivamente à CNJ a "expulsão dos militantes que integrem ou apoiem listas contrárias à orientação definida pelos órgãos competentes do Partido Socialista" [artigo 50.º, n.º 2, alínea g), dos Estatutos, e artigos 3.º, n.º 2, alínea g), e 4.º, n.º 2, alínea b), do RPDPS], não estando expressamente previsto qualquer mecanismo interno de reapreciação dessa categoria de deliberações. Porém, competindo aos órgãos próprios de cada partido político o exercício do poder disciplinar, com respeito pelas garantias de audiência e defesa constitucionalmente consagradas (artigo 32.º, n.º 10, da CRP), é legalmente reconhecido aos arguidos visados o direito de impugnar internamente, seja pela via do recurso, seja pela via da reclamação, as decisões de aplicação de sanções disciplinares (artigo 22.º, n.º 2, da Lei dos Partidos Políticos, aprovada pela Lei Orgânica 2/2003, de 22 de agosto, e alterada pela Lei Orgânica 2/2008, de 14 de maio).

Conforme este Tribunal tem afirmado, em jurisprudência constante, a consagração legal desse direito processual à reclamação constitui uma garantia dos indivíduos que se impõe aos partidos políticos que os integram, não podendo ser contrariada ou eliminada pelos seus estatutos (nesse sentido, Acórdãos n.º 317/2000, n.º 361/2002, n.º 421/2002, n.º 428/2009, n.º 44/2010, n.º 250/2010, n.º 395/2010, n.º 497/2010, n.º 219/2011, todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/). Assim, a omissão de previsão, por estatutos partidários - conforme sucede no caso dos Estatutos do PS -, dessa possibilidade de reclamação não pode senão ser suprida pela aplicação direta do referido artigo 22.º, n.º 2, da Lei dos Partidos Políticos, que, por constar de ato legislativo, se impõe à autonomia estatutária dos partidos.

E tratando-se de uma garantia prevista na lei, que não pode ser contrariada pelos estatutos partidários, é evidente que a omissão de previsão estatutária do correspondente direito deve ser suprida pela aplicação direta do citado preceito legal (neste sentido, cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 317/2000).

Assim sendo, quando deduziu a sua reclamação para o CNJ, a impugnante limitou-se a exercer um direito que lhe assiste, nos termos do n.º 2 do artigo 22.º da Lei dos Partidos Políticos, ainda mais quando estava em causa uma sanção disciplinar de intensidade máxima; isto é, de expulsão. Aliás, o exercício desse direito consubstanciava mesmo condição de cumprimento do ónus de exaustão dos meios internos de impugnação previsto pelo n.º 3 do artigo 103.º-C da LTC, que também é condição de conhecimento das ações de impugnação de decisões punitivas (artigo 103.º-D, n.º 3, da LTC), mesmo nos casos em que o meio impugnatório interno, não estando estatutariamente previsto, resulte de imposição legal, como sucede no caso sub judicio.

Nesse pressuposto, é de concluir pela tempestividade da ação.

Com efeito, tendo o impugnante reclamado junto da CNJ da decisão sancionatória de expulsão, o prazo de cinco dias previsto para a interposição da ação de impugnação apenas começou a correr com a notificação da decisão da reclamação (artigo 103.º-C, n.º 4, da LTC, aplicável) - que ocorreu, em 11 de agosto de 2014 (fls. 37) -, sendo irrelevante, para o efeito, que o Vice-Presidente da CNJ, na sua qualidade de Relator, ignorando o disposto no artigo 22.º, n.º 2, da Lei dos Partidos Políticos, tenha julgado tal incidente pós-decisório inadmissível e, com esse fundamento, concluído pelo seu não conhecimento. Ora, como se julgou provado, o impugnante foi notificado, em 11 de agosto de 2014, da decisão que não conheceu da reclamação, pelo que o prazo para recorrer da decisão de expulsão visada por tal incidente pós-decisório apenas terminaria, em 18 de agosto de 2014, sendo, pois, tempestiva a presente ação de impugnação, por ter sido instaurada, em 14 de agosto de 2014.

Da incompetência do CFJ e da falta de audição prévia

Cumpre, pois, apreciar a questão da incompetência do CFJ para proceder à instrução do procedimento disciplinar, por a impugnante ser titular de um órgão partidário federativa. Ora, no caso destes dirigentes do Partido Socialista, o poder sancionatório disciplinar - isto é, quer a competência instrutória, quer a competência decisória - cabe, exclusivamente e em 1.ª instância, à CNJ, conforme demonstra o artigo 70.º, n.º 1, alínea d), dos Estatutos:

«Artigo 70.º

(Competência)

1 - Compete à Comissão Nacional de Jurisdição:

[...]

d) Instruir e julgar os processos disciplinares em que sejam arguidos membros dos órgãos nacionais ou das Federações do Partido;

[...]»

E o artigo 4.º, n.º 1, alínea d), e n.º 2, alínea b), do RPDPS, mais determina que a competência para instruir procedimentos disciplinares e para aplicar as respetivas sanções contra membros de órgãos federativos apenas cabe a um Relator que seja membro da CNJ:

«Artigo 4.º

(Competência da Comissão Nacional de Jurisdição)

1 - Compete à Comissão Nacional de Jurisdição:

[...]

d) Instruir e julgar os processos disciplinares em que sejam arguidos membros dos órgãos nacionais ou das Federações do Partido;

2 - Compete ainda à Comissão Nacional de Jurisdição:

[...]

b) Decretar, nos termos da alínea g) do n.º 2 do artigo 50.º dos Estatutos, a expulsão dos militantes que integrem ou apoiem listas contrárias, à orientação definida pelos órgãos competentes do Partido, inclusive nos atos eleitorais em que o Partido se não faça representar;

[...]»

Daqui decorre que, tratando-se de titular da Comissão Política Distrital do PS - conforme reconhece o acórdão condenatório (fls. 29, 4.º parágrafo) -, a impugnante só poderia ser alvo de procedimento disciplinar instruído e julgado pela CNJ.

Importa, porém, verificar o que deve entender-se por "instrução". E o próprio RPDPS contribui para o esclarecimento de eventuais dúvidas, na medida em que contém toda uma Secção ("Secção II - Da instrução do processo disciplinar") dedicada a essa fase do procedimento sancionatório disciplinar. O artigo 25.º do RPDPS determina que o início de um procedimento disciplinar depende de participação:

«Artigo 25.º

(Participação)

1 - O procedimento disciplinar depende da participação de órgão ou filiado do Partido no pleno gozo dos seus direitos.

2 - A participação revestirá a forma escrita e deverá vir assinada com a indicação da morada ou sede do participante e ainda da sua Secção quando se trate da pessoa singular.

3 - O participante deverá descrever sumariamente os factos imputados e fornecer os meios de prova.

4 - Verificando-se que a participação não satisfaz os requisitos indicados nos números anteriores, deverá o participante ser notificado para a corrigir ou completar no prazo de cinco (5) dias sob pena de, não o fazendo, se ordenar o arquivamento do processo.» (com sublinhado nosso)

Isto significa que a deliberação do CFJ de Coimbra, proferida em 6 de março de 2014 - por si denominada por "Relatório Final" e junta pelo próprio Partido Socialista, junto com a sua resposta (fls. 122 a 126) - apenas constituiu uma "participação de órgão [...] do Partido", nos termos e para os efeitos do artigo 25.º, n.º 1, do RPDPS. Ou seja, ela apenas configura uma condição indispensável para a abertura de procedimento disciplinar, mas não se substitui ao procedimento sancionatório disciplinar propriamente dito. E, em especial, não dispensa todas as diligências posteriores, inerentes à fase de instrução, que, conforme resulta dos já supra citados artigos 70.º, n.º 1, alínea d), dos Estatutos, e 4.º, n.º 1, alínea d), do RPDPS, cabem, em exclusivo, à CNJ. Entre essas diligências instrutórias figuram as seguintes:

«Artigo 30.º

(Diligências instrutórias)

1 - O Relator procederá à investigação começando por ouvir o participante e as testemunhas por este indicadas ou outras que entenda convenientes, procedendo a exames e demais diligências que possam contribuir para o esclarecimento da verdade e providenciando pela junção aos autos de cópia da ficha do arguido.

2 - O Relator deverá ouvir o arguido sempre que o entenda conveniente, sendo obrigatório que o oiça antes de ultimar a instrução.

[...]

Artigo 33.º

(Termos da instrução)

1 - A instrução deve ser concluída no prazo de quarenta e cinco (45) dias.

2 - Finda a instrução, o Relator profere despacho de acusação ou emite parecer fundamentado em que conclua pelo não prosseguimento do processo, consoante considere que existem ou não indícios suficientes da prática da infração disciplinar.

[...]

Artigo 34.º

(Despacho de acusação)

1 - O despacho de acusação deve especificar a identidade do arguido, os factos imputados, localizados no tempo em que ocorreram e acompanhados das circunstâncias em que foram praticados, caracterizar a infração imputada, indicar as normas infringidas e referenciar meios de prova, bem como fixar o prazo para apresentação da defesa.

2 - O arguido é notificado da acusação pessoalmente ou através de carta registada com aviso de receção, enviando-se-lhe cópia da mesma.

Artigo 35.º

(Prazo para a defesa)

1 - O prazo para a defesa é fixado pelo Relator, não podendo ser inferior a dez (10) nem superior a vinte (20) dias.

2 - Se o arguido for notificado no estrangeiro ou nas regiões autónomas, o prazo para defesa não pode ser inferior a trinta (30) dias nem superior a sessenta (60) dias.

3 - O prazo para a defesa é perentório, podendo porém ser prorrogado pelo Relator a requerimento do arguido, quando a complexidade do processo, o número e a natureza das infrações ou o número de arguidos o justifique, até ao limite de 60 dias.

Artigo 36.º

(Da defesa)

1 - A defesa, que revestirá a forma escrita, deve expor, clara e concisamente, os factos e as razões que a fundamentem.

2 - Com a defesa deve o arguido apresentar rol de testemunhas, juntar documentos e requerer quaisquer diligências, que podem ser recusadas, quando manifestamente impertinentes ou desnecessárias para o apuramento dos factos. Desta recusa cabe reclamação, sem efeito suspensivo, para o Plenário da Comissão de Jurisdição em causa, a deduzir no prazo de cinco (5) dias a contar da notificação.

3 - O arguido deve indicar os factos sobre os quais incidirá a prova, não podendo ser indicadas mais de dez (10) testemunhas, na globalidade, nem mais de três a cada facto, sem prejuízo do disposto no artigo seguinte.

Ora, sobre o cumprimento destas diligências, o acórdão sancionatório impugnado, limita-se a referir que:

«Compulsados os autos, verifica-se que o processo está regular e adequadamente instruído, em condições de ser apreciado e decidido, por terem sido cumpridos todos os procedimentos legais, nomeadamente ter sido assegurado o direito de defesa da arguida» (fls. 11)

Sucede que, precisamente para aferir do cumprimento dessas garantias de defesa, a Relatora proferiu despacho, em 27 de agosto de 2014 (fls. 89 a 91), para apresentação de resposta e convite à entrega dos documentos exigidos pelo artigo 103.º-C, n.º 5, aplicável ex vi artigo 103.º-D, n.º 3, ambos da LTC, para que o Partido Socialista viesse aos autos fazer prova do cumprimento das diligências instrutórias expressamente exigidas pelo seu próprio RPDPS. Entre esses documentos relevantes, foram expressamente identificados:

«[...]

viii) Participação e respetivo comprovativo da data de entrega, perante o CNJ, nos termos do artigo 25.º do Regulamento Processual e Disciplinar (RPD-PS);

[...]

x) Comprovativo de audiência prévia da impugnante, nos termos do artigo 30.º, n.º 2, do Regulamento Processual e Disciplinar (RPD-PS);

xi) Despacho de acusação, nos termos do artigo 33.º, n.º 2, do Regulamento Processual e Disciplinar (RPD-PS)

[...]»

Porém, após ter sido notificado para juntar aos autos esses documentos elementares de suporte do procedimento disciplinar, o Partido Socialista limitou-se a juntar um acórdão proferido pelo CFJ de Coimbra, em 18 de fevereiro de 2014 (fls. 104 a 110), e uma deliberação de envio para o CNJ, denominada de "Relatório Final", proferida em 6 de março de 2014 (fls. 122 a 126). Ou seja, não juntou qualquer documentação que comprove ter ocorrido qualquer diligência instrutória levada a cabo pela CNJ ou pelo respetivo Relator.

No fundo, dos documentos juntos aos autos, conclui-se que o procedimento sancionatório disciplinar se resume ao procedimento de inquérito, levado a cabo pela CFJ de Coimbra, ao abrigo dos artigos 50.º, n.º 2, alínea f), dos Estatutos, e 3.º, n.º 2, alínea f), do RPDPS. Sucede, porém, que a instrução de procedimentos sancionatórios disciplinares contra membros de órgãos de federações do partido impugnado - como sucede com o caso em apreço nos presentes autos - cabe, exclusivamente, ao órgão jurisdicional de âmbito nacional (isto é, à CNJ), e não a um órgão jurisdicional federativo.

Não tendo sido produzida prova, pelo Partido Socialista, conforme convite formulado pelo despacho proferido pela Relatora, em 27 de agosto de 2014, da prática, pela CNJ (ou pelo respetivo Relator nesse órgão nacional) daquelas diligências instrutórias, mais não resta que concluir que os Estatutos e o RPDPS foram alvo de flagrante e manifesta violação, visto que a instrução do procedimento sancionatório disciplinar cabia à CNJ e não à CFP de Coimbra. Assim sendo, a CFP de Coimbra não tem competência para proceder à instrução de um procedimento sancionatório disciplinar contra um membro de órgão da respetiva federação, como sucede com o caso em apreço nos presentes autos.

Por conseguinte, conclui-se que não foi aberto qualquer processo disciplinar pelo órgão competente para tal - o CNJ - e que, por isso mesmo, não se verificou a necessária audição prévia da impugnante.

III - Decisão

Pelos fundamentos expostos, decide-se conceder provimento ao pedido formulado, declarando inválida a decisão impugnada, por violação do princípio da segurança jurídica (artigo 2.º da CRP), na sua dimensão de proibição de imprevisibilidade na aplicação de sanções disciplinares (artigo 18.º, n.º 2, da CRP) e por violação do n.º 10 do artigo 32.º da CRP, do n.º 2 do artigo 22.º da Lei dos Partidos Políticos, aprovada pela Lei Orgânica 2/2003, de 22 de agosto, e alterada pela Lei Orgânica 2/2008, de 14 de maio e do artigo 70.º, n.º 1, alínea d) dos Estatutos do Partido Socialista.

Sem custas, por não serem legalmente devidas.

Lisboa, 15 de outubro de 2014. - Ana Guerra Martins - Fernando Vaz Ventura - João Cura Mariano - Pedro Machete - Joaquim de Sousa Ribeiro.

208207741

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/3761991.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 2003-08-22 - Lei Orgânica 2/2003 - Assembleia da República

    Aprova a lei dos Partidos Políticos.

  • Tem documento Em vigor 2008-05-14 - Lei Orgânica 2/2008 - Assembleia da República

    Altera (primeira alteração) a Lei Orgânica 2/2003, de 22 de Agosto, que aprova a Lei dos Partidos Políticos, e procede à sua republicação, com a redacção actual e demais correcções formais.

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