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Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 6/2014, de 22 de Maio

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Sumário

Uniformiza a jurisprudência nos seguintes termos: Os artigos 483.º, n.º 1 e 496.º, n.º 1 do Código Civil devem ser interpretados no sentido de abrangerem os danos não patrimoniais, particularmente graves, sofridos por cônjuge de vítima sobrevivente, atingida de modo particularmente grave. (Processo n.º 6430/07.0TBBRG.S1)

Texto do documento

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2014

Processo 6430/07.0TBBRG.S1

Acordam em Plenário das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça:

1. Alexandre Dias Antunes Simões e esposa, Maria da Graça Sá Soares Antunes, instauraram a presente ação declarativa, sob a forma ordinária, contra:

BES - Companhia de Seguros, SA.

Alegaram, em síntese, que:

No dia 23.09.2004, em Braga, ele, autor, como cantoneiro de recolha do lixo, transitava de pé no estribo do veículo próprio para tal recolha, de matrícula 17-52-VZ;

No estribo embateu o veículo, seguro na ré, de matrícula 78-44-MH, em virtude de o seu condutor circular distraído, a velocidade superior, em mais 30 km/h, à limitada por placas existentes no local;

Do acidente resultaram para ele, autor, as consequências muito graves que detalhadamente descrevem;

Destas resultou para a autora, o sofrimento e alteração de vida que, também pormenorizadamente, precisam.

Pediram, em conformidade, a condenação da seguradora a pagar:

A ele, autor:

(euro) 361.215,69, acrescidos de juros legais a contar da citação e o montante a liquidar ulteriormente relativo à fisioterapia a fazer e a prótese a colocar;

A ela, autora:

(euro) 34.262 de despesas não reembolsadas, acrescidos de juros;

O que se vier a liquidar, como compensação pelo sofrimento próprio resultante do que aconteceu ao marido.

2. Contestou a ré.

Na parte que agora importa, defendeu:

Ser exorbitante a verba peticionada a título de danos não patrimoniais sofridos pelo autor;

Não ter a autora direito a compensação por danos não patrimoniais, por a nossa lei não a admitir relativamente a pessoa diferente da vítima sobrevivente.

3. E requereu:

A intervenção principal provocada da AXA - Portugal, Companhia de Seguros, SA, para a qual estava transferida a responsabilidade em que incorresse a entidade patronal do autor;

A intervenção acessória de Ricardo Gomes, por ter apresentado uma taxa de alcoolemia de 0,71 g/l na condução do MH.

Admitidas as requeridas intervenções, a AXA apresentou articulado no qual pediu a condenação da ré no pagamento da quantia de (euro) 65.870,05, suportada com os pagamentos ao autor e, bem assim, o que se liquidar ulteriormente.

O interveniente impugnou a versão do acidente apresentada pelos autores, imputando-o a conduta culposa do autor, pôs em causa a idoneidade do aparelho que efetuou o teste de alcoolemia e afirmou ter a ingestão do álcool sido indiferente à ocorrência do sinistro.

Os autores responderam, mantendo as posições anteriormente assumidas.

4. No prosseguimento da ação:

A interveniente AXA requereu a ampliação do pedido para (euro)150.503,02, admitida a fls. 540.

Os autores desistiram do pedido relativo a danos patrimoniais, desistência esta homologada por despacho de fls. 542.

5. Já em sede de julgamento, a ré e a interveniente transigiram em conformidade com o que consta de fls. 560 e 461, tendo a transação sido homologada por sentença de fls. 561.

6. Foi, na devida oportunidade, proferida sentença, cuja parte decisória é do seguinte teor:

"Pelo exposto, decide-se julgar a acção parcialmente procedente quanto à ré BES Companhia de Seguros, SA e, em consequência:

- condenar esta ré a pagar ao A Alexandre Dias Antunes Simões a quantia de (euro) 50.000,00 (cinquenta mil euros), acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até integral pagamento.

- condenar a R a pagar à A Maria da Graça Sá Soares Antunes a quantia de (euro) 15.000,00 (quinze mil euros), acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até integral pagamento."

7. Pede revista per saltum a ré.

Por entender que a questão, que esta levanta, relativamente à compensabilidade ou não dos danos não patrimoniais sofridos pela autora tal justificava, o Exmo. Presidente, a sugestão do relator, determinou que se procedesse a julgamento com intervenção do plenário das secções cíveis, nos termos do artigo 732.º-A do Código de Processo Civil (na redação anterior ao Decreto-Lei 303/2007, de 24.8, ainda aqui aplicável).

8. Conclui a recorrente as alegações do seguinte modo:

"I. A regra básica do nosso ordenamento jurídico (cf. artigos 483.º, 495.º e 496.º do CC) é a de que apenas o titular do direito violado ou do interesse imediatamente lesado com a violação da disposição legal deverá ser indemnizado dos seus danos; no que toca aos danos não patrimoniais, só serão ressarcíveis os sofridos pelo próprio ofendido, por serem direitos de carácter estritamente pessoal (cf. Ac. do STJ de 2/11/95).

II. Para além dessas situações, o legislador, consciente e propositadamente, estendeu a sua protecção a danos sofridos por terceiros no caso de ofensas corporais da vítima.

III. Porém, o legislador delimitou o âmbito dos titulares de direito a tal indemnização, admitindo-a, apenas, de forma excepcional e não em situações como a que se discute neste processo.

IV. Isso resulta dos trabalhos preparatórios do Código Civil, no âmbito dos quais foi expressamente ponderada a inclusão na Lei Civil de uma norma que preveria o direito de indemnização por danos não patrimoniais causados a familiares da vítima no caso de lesão corporal desta que não originasse a sua morte.

V. No entanto, tal solução legal não veio a ter acolhimento na redacção final do artigo 496.º n.º 2 do Código Civil, que apenas prevê indemnização por danos não patrimoniais a familiares da vítima no caso de morte desta.

VI. Por outro lado, analisando o texto final do artigo 496.º n.º 2 do CC, constata-se que o legislador não determinou as pessoas dos familiares da vítima com direito a serem indemnizadas no caso de lesão corporal da qual não tenha resultado a morte desta - ao contrário do que fez para os casos de morte -, o que também aponta para a interpretação no sentido de não ter querido admitir a ressarcibilidade deste tipo de danos.

VII. Além disso, como se sabe, a directiva 2005/14/CE do Parlamento Europeu e Conselho introduziu na directiva 90/232/CEE normas relativas à regularização de sinistros, tendo sido parcialmente transposta para o nosso ordenamento por via do Decreto-Lei 83/2006, de 3 de Maio e pelo 291/2007, de 21 de Agosto.

VIII. Um dos contributos preponderantes do legislador nacional para a prossecução desse fim foi a criação da "proposta razoável"; que as seguradoras devem apresentar ao lesado em cumprimento do disposto nos artigos 38.º e 39.º do Decreto-Lei 291/2007 (e, anteriormente, nos termos previstos no Decreto-Lei 83/2006).

IX. E, neste âmbito, os montantes e critérios definidos para a indemnização nas portarias acima mencionadas foram fixados tendo, precisamente, como fim garantir ao lesado a justa reposição do seu dano, o que resultará da sua adequação às regras respeitantes ao conteúdo da obrigação de indemnização previstas na lei geral.

X. Ora, o legislador do Decreto-Lei 83/2006, de 3 de Maio, do 291/2007, de 21 de Agosto e das portarias 377/2008 e 679/2009 pura e simplesmente não previu qualquer critério para determinação da indemnização devida a familiares da vítima de ofensas corporais das quais não adveio a morte.

XI. Mas fê-lo já no que toca aos danos não patrimoniais desses mesmos familiares no caso de morte da vítima.

XII. Atendendo ao princípio da unidade do sistema jurídico, não seria imaginável que o mesmo legislador, se alguma vez tivesse querido incluir na regra do artigo 496.º n.º 2 do Código Civil o direito de indemnização por danos não patrimoniais a familiares da vítima de ofensas à integridade física não causadoras de morte, não tivesse previsto nas disposições relativas à "proposta razoável" critérios de definição dessa mesma indemnização.

XIII. De facto, a existir tal direito - por força do artigo 496.º do CC - seria forçoso que o legislador tivesse definido os critérios para a fixação da indemnização, o que não fez, apesar de prever todos os danos patrimoniais e não patrimoniais efectivamente reconhecidos na lei.

XIV. E não o fez, precisamente, porque tal direito não existe à luz do nosso ordenamento jurídico.

XV. A norma em causa (496.º n.º 2) é de carácter excepcional, pelo que não pode ser aplicada analogicamente, ou interpretada extensivamente, de forma a abranger situações que extravasam a sua previsão legal, que é a exclusividade do direito a indemnização por danos morais de familiares da vítima apenas no caso de morte desta.

XVI. E seria inconstitucional a interpretação da norma do artigo 496.º do Código de Civil no sentido de que abrangerá, igualmente, os danos não patrimoniais sofridos pelos familiares da vítima em caso de lesão corporal da qual não resultou a morte da vítima, por violação do Princípio da Separação de Poderes (artigos 2.º e 111.º n.º 1 da CRP), já que corresponderia a uma substituição do Poder Legislativo (devidamente expresso e exercido de forma consciente) pelos Tribunais.

XVII. Não cabe, portanto, à A mulher direito a indemnização por danos não patrimoniais "reflexos", devendo, nessa parte, ser revogada a douta sentença e absolvida a Ré do pedido.

XVIII. De todo o modo, atendendo a que não foi a demandante mulher directamente lesada no sinistro e caso se entendesse acudir-lhe o direito a compensação, não deveria esta exorbitar os 10.000,00 (euro).

XIX. Apesar da gravidade das lesões sofridas pelo A marido, a compensação arbitrada é excessiva em face dos factos dados como provados, sendo mais adequada a de 40.000 (euro);

XX. A douta sentença sob censura violou as normas dos artigos 496.º n.º 1 e fez menos boa interpretação da regra do n.º 2 dessa disposição.

XXI. No presente recurso suscitam-se, apenas, questões de direito, sendo certo que o valor da causa e o da sucumbência são superiores ao da alçada do Tribunal da Relação.

XXII. Assim, requer a recorrente, de harmonia com o n.º 1 do artigo 725.º do CPC, que o recurso suba per saltum para o Supremo Tribunal de Justiça."

Contra-alegaram os recorridos, concluindo, na parte que agora importa, que:

"...

III - O demandante sofreu traumatismo crânio-encefálico; traumatismo fechado do tórax, traumatismo fechado do abdómen; traumatismo do membro inferior esquerdo e traumatismo do membro inferior direito que foi amputado.

IV - Do local do acidente foi transportado para o Hospital de S. Marcos - Braga sendo operado e submetido a By-Pass poplíteo arterial e venoso no membro inferior esquerdo; osterotaxia com Hoffman II do membro inferior esquerdo e igual tratamento ao membro inferior direito.

V - Durante o internamento desenvolveu insuficiência renal aguda, tendo sido submetido a hemodiálise, desenvolveu insuficiência renal aguda e hemotórax que obrigam a drenagem.

VI - E sofreu muitas mais lesões e sequelas que seria fastidioso estar a transcrever, mas é significativo dizer que esteve internado no Hospital de S. Marcos durante mais de 10 meses.

VII - E ficou, para sempre, "pregado" a uma cadeira de rodas, dependente de terceira pessoa, de quem depende inteiramente para sobreviver, isolando-se, com um sentimento de desesperança, ausência de relacionamento afectivo conjugal. Cada dia que se aproxima não é um dia de esperança de melhorar. Bem pelo contrário.

VIII - A demandante Maria da Graça passou por tudo isto. Nunca pensou ser capaz de passar por tanta dor e tanto sofrimento. Com igual dor e sofrimento com uma tristeza e angústia, viu o marido sofrer, sofrimento que, por ricochete se reflectiu, intensamente, nos meses e anos que se seguiram ao acidente e que se vai repetir até ao falecimento do último.

IX - Não obstante a medicação com ansiolíticos, anti-depressivos e indutores do sono, mantém manifestações de ansiedade, flutuações do humor e do estado de ânimo e instabilidade, por vezes, mas com muita frequência, torna-se insuportável,

X - O que se reflecte, necessariamente, na demandante, sua mulher, Maria da Graça, transformando-lhe a sua vida num autêntico inferno. Só com paciência de santo é que é possível aturá-lo...

XI - Que por uma questão de equidade, quer por uma questão de humanidade, é possível poder aceitar-se - salvo um qualquer coração de pedra, que a demandante Maria da Graça sofre com o sofrimento do marido que, obviamente, se reflecte nela, e que é um dano digno de merecer a tutela do direito.

XII - A posição sustentada por Vaz Serra quanto ao dano reflexo não vingou na Comissão Revisora do Código Civil no que respeitou à ressarcibilidade dos danos dos familiares da vítima de acidente que não faleceu, significa, necessariamente, de forma inequívoca, o acolhimento da tese contrária.

XIII - Deverá ser rejeitada a doutrina clássica, eivada de uma lógica demasiadamente formal, sem atentar que o direito deve servir para a vida e a jurisprudência que tem desempenhado um papel preponderante na reelaboração do direito de responsabilidade civil, designadamente no âmbito dos acidentes de viação.

XIV - Vaz Serra, que via melhor a dormir que muitos acordados, não se terá considerado vencido por uma razão muito simples: - conhecia perfeitamente o teor do n.º 1 do artigo 9.º do Cód. Civil no sentido que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos, o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias específicas do tempo em que é aplicada, motivo por que se afigura não existirem obstáculos de natureza hermenêutica que impeçam uma tal interpretação, que era a sua.

XV - Vaz Serra também conhecia o disposto no n.º 2 do artigo 495.º do Cód. Civil: - neste caso, como em todos os outros de lesão corporal, tem direito a indemnização aqueles que socorreram o lesado, bem como os estabelecimentos hospitalares, médicos ou outras pessoas ou entidades que tenham contribuído para o tratamento ou assistência da vítima.

XVI - Bem como o disposto no n.º 2 do artigo 496.º do Cód. Civil em vigor à data do acidente que é do seguinte teor: - por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes... e, por último aos irmãos ou sobrinhos que os representem.

XVII - Em conclusão e em resumo, de acordo com o Ven. Juiz Conselheiro António Santos Abrantes Geraldes, no seu trabalho em Temas de Responsabilidade Civil - II Volume - Indemnização dos danos reflexos, temos que: - são ressarcíveis os danos não patrimoniais suportados por pessoas diversas daquela que é directamente atingida, designadamente quando fique gravemente prejudicada a sua relação com o lesado ou quando as lesões causem neste grave dependência ou perda de autonomia que interfira fortemente na esfera jurídica de terceiros.

Tal direito de indemnização deve ser circunscrito, por ora, às pessoas indicadas no n.º 2 do artigo 496.º do Cód. Civil."

9. Como emerge das respectivas conclusões das alegações, a recorrente levanta as questões consistentes em saber se:

Deve ser minorado o montante compensatório atribuído ao autor pelos danos não patrimoniais, de (euro) 50.000 para (euro) 40.000;

A atribuição de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pela autora, viola:

O princípio constitucional da separação de poderes (artigos 2.º e 111.º, n.º 1 da CRP);

O constante da Diretiva n.º 2005/14/CE do Parlamento e do Conselho e das normas internas que a transpuseram;

"A regra básica do nosso ordenamento jurídico ..., de que apenas o titular do direito violado ou do interesse imediatamente lesado com a violação da disposição legal deverá ser indemnizado pelos seus danos".

Entendendo-se que é de compensar tais danos, o respectivo montante deve ser minorado de (euro) 15.000 para (euro) 10.000.

10. Relativamente à compensabilidade dos danos não patrimoniais reflexos, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, nos termos do artigo 732.º-B do Código de Processo Civil (na referida redação anterior ao Decreto-Lei 303/2007, de 24.8).

Concluiu nos seguintes termos:

"São ressarcíveis os danos não patrimoniais suportados por pessoas diversas daquela que é directamente atingida por lesões de natureza física ou psíquica graves, nos termos gerais do artigo 496.º, n.º 1 do Código Civil, designadamente quando fique gravemente prejudicada a sua relação com o lesado ou quando as lesões causem neste grave dependência ou perda de autonomia do lesado. Tal direito de indemnização deve ser circunscrito às pessoas indicadas no n.º 2 do artigo 496.º do Código Civil."

...

11. Vem provada a seguinte matéria de facto:

"1. No dia 23.09.2004, pelas 3 horas, na Av. António Macedo, Braga, ocorreu um embate em que foram intervenientes o veículo de matrícula 78-44-MH, ligeiro de mercadorias, pertencente a Isália Maria da Silva Gomes e conduzido por Ricardo Daniel da Silva Gomes, e o veículo de matrícula 17-52-VZ, pertencente à Agere e conduzido por Domingos Oliveira Magalhães - al. A dos Factos Assentes (FA).

2 - Naquelas circunstâncias, o MH circulava pela referida Avenida, no sentido Feira Nova/Estação da CP, pela hemi-faixa de rodagem do meio, dentro do perímetro urbano da cidade de Braga, a uma velocidade superior a 50 km/h - al. B dos FA e resp. 3.º e 4.º da Base Instrutória (BI).

3 - Aquando do embate era de noite e o piso encontrava-se seco e limpo - al. F dos FA.

4 - O local onde ocorreu o embate permitia uma visibilidade de toda a faixa de rodagem a mais de 50 metros, sendo a faixa de rodagem dotada de três hemi-faixas, atento o sentido Feira Nova/Estação da CP, sendo a da direita para quem sai da avenida e muda de direcção para a direita e as outras duas para quem pretende seguir em frente - resp. 1.º e 2.º da BI;

5 - À frente do MH seguia o VZ, de recolha de lixo e com o pirilampo ligado, com as faixas reflectorizantes, com dois cantoneiros nos estribos da parte de trás, ambos com fatos reflectorizantes, podendo o VZ e os cantoneiros ser vistos a mais de 200 metros de distância - resp. 5.º a 8.º da BI.

6 - Estando, na ocasião, a hemi-faixa da esquerda livre e desocupada de outras viaturas, o MH embateu, de frente, na parte de trás do lado esquerdo do VZ, no autor e no estribo onde este seguia - resp. 9.º, 10.º e 103.º da BI.

7 - Como consequência directa e necessária do embate, o autor sofreu traumatismo crânio-encefálico com hematoma sub-dural agudo (HSA) ao nível da inserção da tenda do cerebelo e fractura do frontal à esquerda; traumatismo fechado do tórax com hemotórax bilateral com maior expressão à esquerda e hemotórax e depois quilotórax à direita; traumatismo fechado do abdómen com hemorragia peri-hepático e peri-renal à esquerda; traumatismo do membro inferior esquerdo com fractura exposta supra e inter condiliana do fémur, fractura dos pratos tibiais e lesão vascular grave com laceração da artéria e veia poplítea; traumatismo do membro inferior direito com fractura exposta supra condiliana do fémur e fractura dos ossos da perna - resp. 11.º a 15.º da BI.

8 - Foi transportado para o Hospital de S. Marcos - Braga, onde foi assistido e, de seguida, transferido para o H. de S. João - Porto - resp. 16.º da BI.

9 - Apresentava choque hipovolémico que obrigou a tratamento adequado no perioperatório, tendo sido operado e submetido a By-Pass poplíteo arterial e venoso no membro inferior esquerdo, osteotaxia com Hoffman II do membro inferior esquerdo (fixadores externos), osteotaxia com Hoffman II do membro inferior direito (fixadores externos) e fascotomias anterior e mediana da perna direita e dorsal do pé direito, por hemorragia incontrolável e isquemia irreversível do membro inferior esquerdo, sem lugar a viabilidade do membro, foi submetido a amputação do membro inferior esquerdo pelo terço médio da coxa - resp. 17.º a 19.º da BI.

10 - Durante o internamento desenvolveu insuficiência renal aguda a partir do 3.º dia pós-operatório, pelo que foi submetido a hemodiálise que suspendeu ao 17.º dia pós-operatório; desenvolveu hemotórax bilateral que obrigou à drenagem torácica; posteriormente desenvolveu quilotórax à direita com colocação de novo dreno torácico entre 16.10.2004 e 18.10.2004 - resp. 20.º a 22.º da BI.

11 - Do traumatismo abdominal resultaram derrames hemáticos peri-hepático e peri-renal à esquerda que evoluíram favoravelmente sem necessidade de recurso a intervenção cirúrgica - resp. 23.º da BI.

12 - Manteve-se com ventilação mecânica até ao 17.º dia do internamento na U.C.I. do Serviço de Urgência e em 12.10.2004 foi transferido para a Unidade de Cuidados Intermédios do Serviço de Urgência - resp. 24.º e 25.º da BI.

13 - Desenvolveu várias intercorrências durante o internamento com infecção do coto de amputação do membro inferior esquerdo, do cateter da veia central, das feridas das fasciotomias; desenvolveu um quadro psiquiátrico de depressão com negação e mutismo, pelo que foi acompanhado por médico da especialidade - resp. 26.º e 27.º da BI.

14 - Em 28.10.2004 teve alta da Unidade de Cuidados Intensivos do Serviço de Urgência do Hospital de S. João no Porto, com transferência para o Hospital de S. Marcos - Braga onde ficou internado pelo Serviço de Ortopedia - resp. 28.º e 29.º da BI.

15 - No Hospital de S. João, no Porto, foi submetido a fixação externa da perna direita; a encavilhamento da tíbia; a plastia da perna direita com enxerto de pele retirado da face anterior da coxa direita - resp. 30.º a 32.º da BI.

16 - Iniciou tratamento fisiátrico ainda no Serviço de Ortopedia e era também assistido por Cirurgia Plástica - resp. 33.º da BI.

17 - Em 09.12.2004 foi transferido para o Serviço de Medicina Física e de Reabilitação, altura em que apresentava úlcera de pressão do calcanhar direito e ferida infectada ao nível da perna direita na face ântero-externa, zona receptora de enxerto cutâneo - resp. 34.º e 35.º da BI.

18 - Em 15.12.2004 foi submetido a electromiografia do membro inferior direito, que revelou atrofia neurogénea dos músculos: - tibial anterior, longo peroneal e pedioso por degenerescência axonal do nervo tibial anterior - resp. 36.º da BI.

19 - Em 04.03.2005 teve alta do internamento hospitalar para o domicílio com indicação para ser seguido na Consulta Externa do H. S. M. - Braga e também pelos Serviços Clínicos da Companhia de Seguros AXA (seguradora, no caso, do ramo Trabalho) e à data da alta apresentava Glasgow 14/15 com desorientação no espaço e no tempo, amnésia retrógrada para o acidente em questão, amputação do membro inferior esquerdo pelo 1/3 médio da coxa, com o coto cirúrgico bem almofadado, rigidez da anca esquerda com défice na abdução (até 50.º), rigidez do joelho direito com flexão de: 110.º e extensão de: - 20º e pé pendente à direita - resp. 37.º e 38.º da BI.

20 - Em 26.07.2005 foi operado no H. S. Maria - Porto para correcção do equinismo do pé direito, com alongamento do tendão de Aquiles e capsulotomia posterior e em 27.07.2005 teve alta do internamento hospitalar - resp. 39.º e 40.º da BI.

21 - Não obstante os tratamentos a que foi submetido ficou a padecer definitivamente de cefaleias, alteração da capacidade de memória e atenção, mantendo amnésia para o sucedido; amputação do membro pelo terço médio da coxa, coto bem almofadado; rigidez do joelho com flexão entre 0º e 90º e défice de extensão entre 0º e 10º, crepitação e gonalgia persistente; consolidação das fracturas da tíbia e peróneo em posição viciosa com angulação de convexidade externam, hipotrofia dos músculos da perna de cerca de 2 cm, cicatrizes distróficas múltiplas, cicatriz de 19x5 localizada na face ântero-externa, cicatriz de 11x1 cm localizada na face interna do joelho e cicatriz de 7 cm de extensão, longitudinal, localizada na face anterior do joelho; pé pendente por lesão neurológica (lesão do nervo tibial anterior), com atrofia dos músculos tibial anterior, longo peroneal e pedioso - resp. 42.º a 46.º da BI.

22 - Ficou a padecer de depressão reactiva prolongada/stress pós-traumático, associada a síndrome pós-traumática que lhe causam diminuição nas relações ao nível pessoal, profissional, social e familiar; diminuição da auto-estima, tendência para o isolamento e um sentimento de desesperança; irritabilidade exacerbada e diminuição da capacidade de relacionamento afectivo conjugal - resp. 47.º a 50.º da BI.

23 - Mercê do embate e decorrentes lesões, o autor ficou a padecer de incapacidade total para a sua profissão e para outras que envolvam a locomoção permanente ou carga e esforço - resp. 51.º da BI.

24 - Apesar da medicação que faz com ansiolíticos, indutores de sono e anti-depressivos mantém manifestações de ansiedade, flutuações de humor e do estado de ânimo e instabilidade emocional - resp. 52.º da BI.

25 - As sequelas de que ficou a padecer determinam-lhe uma incapacidade parcial permanente para o trabalho de 80 % - resp. 53.º da BI.

26 - Na data do embate, o autor não tinha qualquer doença ou deformidade e era dinâmico e trabalhador - resp. 54.º da BI.

27 - A A passou a viver para o marido que não é capaz de sair de casa sozinho - resp. 58.º da BI.

28 - A autora sente-se triste e confrangida por ver que o marido, que era pessoa alegre e bem disposta, dinâmica e trabalhadora, está um homem triste e desanimado, sente-se amargurada, com desesperança, sem qualquer esperança de que esta situação possa melhorar - resp. 59.º e 60.º da BI.

29 - Na data do embate, o autor era cantoneiro ao serviço da empresa Municipal Agere - resp. 61.º da BI.

30 - Desde a data do choque esteve completamente impossibilitado de trabalhar até hoje - resp. 66.º da BI.

31 - O autor precisa de ajuda permanente de uma terceira pessoa que o ajude a vestir, a tomar banho, a barbear, a acompanhá-lo para ir tomar um café - resp. 68.º da BI.

32 - Após a alta hospitalar em 04.03.2005 foi a esposa que passou a cuidar dele - resp. 69.º da BI.

33 - Antes do embate, a A encontrava-se de baixa médica para prestar assistência ao seu pai que com ela residia - resp. 70.º e 90.º da BI.

34 - O A vai precisar de efectuar fisioterapia de manutenção durante toda a vida mas de forma não continuada - resp. 73.º da BI.

35 - A A continua a cuidar do autor, pois não tem possibilidades financeiras para contratar uma terceira pessoa - resp. 82.º da BI.

36 - O autor nasceu no dia 24 de Julho de 1957 - al. C dos FA.

37 - Entre Isália Maria Silva Gomes e a ré foi celebrado, por escrito, um acordo mediante o qual esta se comprometeu a pagar os danos emergentes para terceiros em virtude da circulação do veículo de matrícula 78-44-MH, acordo esse titulado pela apólice n.º 376320001 e em vigor na data do embate - al. D dos FA.

38 - Entre "Agere - Empresa de Águas, Efluentes e Resíduos de Braga" e a "Companhia de Seguros Axa Portugal" havia sido celebrado um acordo mediante o qual este se abrigada a indemnizar os trabalhadores daquela em caso de acidente de trabalho, acordo esse titulado pela apólice n.º 0010.10.012394 e em vigor na data do embate - al. E dos FA.

39 - Naquele mesmo momento, o condutor do MH seguia com uma TAS de 0,71 g/l - al. G dos FA."

...

12. A primeira das questões enumeradas em 9 diz respeito ao montante compensatório relativamente aos danos não patrimoniais sofridos pelo autor.

Chega-nos a quantia de (euro) 50.000 e a recorrente pretende que se minore para (euro) 40.000.

A fixação dos montantes compensatórios relativamente a este tipo de danos encerra um dos casos em que a lei deixa aos tribunais um caminho particularmente longo a percorrer.

O n.º 4 do artigo 496.º do Código Civil (Diploma a que pertencem também os artigos que se vão referir sem menção de inserção) impõe-nos o recurso à equidade - ela mesma sempre a exigir um grande esforço jurisprudencial - e nada resulta de concreto - acentuadamente para casos, como este, de acidente de viação - da remissão daquele preceito para as circunstâncias referidas no artigo 494.º

Vem, então, ao de cima, com particular acuidade, o disposto no n.º 3 do artigo 8.º, a impor particular atenção aos montantes que os tribunais, mormente este Supremo Tribunal, vêm fixando para casos semelhantes.

No sítio deste Tribunal, entrando-se em "jurisprudência", depois em "jurisprudência temática" e, finalmente, em "danos não patrimoniais" pode ver-se uma resenha bem elucidativa dos montantes que vêm sendo fixados, com referência, no essencial, ao grau de gravidade das lesões e ao correspondente sofrimento dos lesados.

E ali se vê, claramente, que o montante pretendido, de (euro) 40.000, tem correspondido a lesões e inerente sofrimento claramente inferiores. Tão nítida é essa conclusão que consideramos dispensável a citação concreta de arestos.

Não foram os limites impostos pelas normas processuais, seriam mesmo de majorar, e exponencialmente, os (euro) 50.000 que nos chegam.

13. Este montante é inferior ao que - como se pode ver em tal sítio - se vem fixando pela perda do direito à vida.

Não há, pois, necessidade de afastar a ideia de que, constituindo o direito à vida o bem supremo, a compensação, por danos não patrimoniais relativos a alguém que continua vivo teria de se situar em quantia inferior.

De qualquer modo, sempre o afastamento seria fácil, atenta, além do mais, a torrente jurisprudencial traduzida nos Ac.s deste Tribunal de 8.3.2005, 23.10.2008, 29.10.2009, 20.1.2010, 9.9.2010 e 16.2.2012, processos, respectivamente, n.os 05A395, 08B2318, 523/2002.S1, 60/2002.L1.S1, 2572/07.OTBTVD.L1 e 1043/03.8TBMCN.P1.S1, todos com texto disponível em www.dgsi.pt.

14. A autora não ficou ferida no acidente.

Pretende apenas compensação pelos danos não patrimoniais que lhe advieram do que aconteceu ao marido.

Para o nosso caso não interessa discorrer sobre os danos nos casos em que o sinistrado falece em consequência das lesões.

É, pois, na figura dos danos não patrimoniais sofridos por outrem nos casos em que a vítima sobrevive, que temos de nos situar.

15. Não vemos no texto constitucional qualquer imposição de afastamento da tutela deste tipo de danos.

Pelo contrário, o Acórdão deste Tribunal de 25.11.98, transcrito no BMJ n.º 481, 470, estribou-se no n.º 1 do artigo 68.º da Constituição da República Portuguesa, para considerar que os pais cujo filho de tenra idade ficou gravemente ferido num acidente de viação, tinham direito a compensação pelo sofrimento que para eles mesmos adveio.

Dos artigos 2.º e 111.º, n.º 1 daquele Diploma - invocados pela recorrente - emerge, efetivamente, a separação de poderes.

Este Tribunal, contudo, está a mover-se dentro do círculo de abrangência traduzido pelas várias interpretações possíveis das normas vigentes - concretamente do n.º 1 do artigo 483.º e do n.º 1 do artigo 496.º - e não a criar "ex novo" norma que tutele o direito da autora. Não dirá, simplesmente, que "tem lugar compensação por danos não patrimoniais de pessoa diferente da vítima", mas que a jurisprudência deve ser uniformizada no sentido da interpretação, que se vai precisar, dos mencionados preceitos.

Acresce que a uniformização se distingue da lei ainda porque a vinculação dela derivada cede quanto a decisões futuras deste Tribunal e quanto aos Tribunais não judiciais. Estamos assim longe da declaração de inconstitucionalidade, até com força obrigatória geral, dos Assentos (cfr-se, a este propósito, por todos e no respectivo sítio, os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 810/2013, de 7.12 e 1197/96, de 21.11.).

16. De acordo com o estatuído no artigo 8.º, n.º 4, da Constituição - em sintonia com outras disposições do texto constitucional - as normas emanadas das instituições da União Europeia, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático.

Os termos definidos pelo Direito da União situam estas normas em posição hierarquicamente superior ao das normas ordinárias de origem interna. É o princípio do primado do Direito Comunitário, sobre o qual não existem discrepâncias que justifiquem que nos demoremos por aqui.

Conforme se precisou no Ac. deste Tribunal de 20.1.2010, processo 346/1998.P1.S1 (disponível no sítio referido) as diretivas, à partida, ainda que integrando-se imediatamente na ordem jurídica interna, não são de aplicar diretamente. Podem sê-lo, em certos casos, mas nas relações entre os particulares e o Estado e não nas relações entre aqueles.

Carecem de ser transpostas, passando, depois, a relevar na interpretação das normas que as transpuseram, em ordem à fixação dum sentido e alcance conforme aos objetivos traçados pelo texto comunitário.

O sentido e alcance deste texto pode ser objeto de reenvio prejudicial junto do Tribunal de Justiça e o que ali for decidido é vinculativo na ordem interna dos Estados-membros, nomeadamente relativamente aos tribunais nacionais.

É neste quadro - e seguindo a argumentação da seguradora - que temos que atentar na Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho n.º 2005/14/CE , de 11.5 e no Decreto-Lei 291/2007, de 21.8 que a transpôs quanto a danos pessoais.

Estes diplomas encerram estatuição sobre o seguro obrigatório automóvel.

Com as decisões sobre os casos Candolin (Acórdão de 30.6.2005, cujo texto se pode ver na CJ STJ XIII, II, 7) e Elaine Farrel (Acórdão de 19.4.2007, com texto acessível no sítio do respectivo Tribunal) pareceu que o Tribunal de Justiça invadia o regime substantivo relativamente à responsabilidade civil emergente de acidentes de viação com veículos a motor.

Mas, na feliz expressão de Sinde Monteiro (RLJ, Ano 142, 122), fez - pelo menos quanto ao que aqui nos importa - "marcha à ré" e passou a separar nitidamente o âmbito da cobertura do seguro obrigatório automóvel do regime substantivo acabado de referir.

Entre outros, no Ac. de 9.6.2011 (também disponível no sítio do próprio Tribunal), em ação movida por Ambrósio Lavrador e Maria Bonifácio contra Fidelidade-Mundial decidiu nos seguintes termos:

"A Directiva 72/166/CEE do Conselho..., a Segunda Directiva 84/5/CE do Conselho... e a Terceira Directiva 90/232/CEE ... devem ser interpretadas no sentido de que não se opõem a disposições nacionais do domínio do direito da responsabilidade civil que permitem excluir ou limitar o direito da vítima de um acidente de exigir uma indemnização a título de seguro de responsabilidade civil do veículo automóvel envolvido no acidente, com base numa apreciação individual da contribuição exclusiva ou parcial dessa vítima para a produção do próprio dano."

Dele constando as considerações seguintes:

"Contudo, deve recordar-se que a obrigação de cobertura pelo seguro de responsabilidade civil dos danos causados a terceiros por veículos automóveis é distinta da questão do âmbito da indemnização a pagar a estes a título de responsabilidade civil do segurado. Com efeito, enquanto a primeira é definida e garantida pela legislação da União, a segunda é regulada, essencialmente, pelo direito nacional (acórdão Carvalho Ferreira Santos...)

O Tribunal de Justiça já declarou, com efeito, que resulta da Primeira, Segunda e Terceira Directivas, bem como da sua redação, que estas não visam harmonizar os regimes de responsabilidade civil dos Estados-Membros e que, no estado atual do direito da União, estes são livres de determinar o regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação de veículos...

Todavia os Estados-membros são obrigados a garantir que a responsabilidade civil aplicável segundo o seu direito nacional seja coberta por um seguro conforme as disposições das três diretivas acima referidas..."

Esta separação e inerente respeito pelas disposições do direito interno, quanto à responsabilidade civil, está, aliás, patente no artigo 1.º A, que a mencionada Directiva aditou à Directiva 90/232/CEE .

Podemos, então, inferir, com a necessária segurança, que o Direito Comunitário não bole com a compensabilidade ou não compensabilidade dos danos de pessoa diferente da vítima sobrevivente.

De qualquer modo e se necessário fosse, ainda haveria que considerar, em desfavor da argumentação da seguradora, que a Diretiva em que se apoia veio a lume depois do acidente que agora apreciamos, de sorte que, relativamente a este, não vigora imposição de "proposta razoável".

17. Outrossim, o Decreto-Lei 291/2007, de 21.8, que a transpôs quanto aos danos pessoais, nada dispõe que afaste qualquer das interpretações aqui interessantes dos artigos 483.º, n.º 1 e 496.º, n.º 1.

É certo que, na ideia de proposta razoável a que confere concretização, não cabe a compensação por danos não patrimoniais de pessoa diferente do sinistrado. E que, consequentemente, nas Portarias que foram elaboradas em ordem a precisar tal proposta razoável, é ignorada a compensabilidade por tal tipo de danos.

Mas a interpretação "a contrario sensu" - que permitiria o afastamento desta mesma compensabilidade - não se justifica no presente caso, em que se pretendeu transpor uma diretiva, quando, no âmbito do Direito Comunitário, tem sido reiterada a não ingerência no regime da responsabilidade civil próprio de cada Estado-membro. O princípio da interpretação conforme a que já aludimos não se compadece com a ideia de que a norma de transposição tenha um âmbito maior quanto aos objetivos a atingir do que o da ou das diretivas transpostas.

Seja como for, também aqui, se necessário fosse, haveria que ter em conta a data do acidente, anterior à entrada em vigor deste decreto-lei.

Temos, pois, que nos situar na interpretação dos artigos 483.º, n.º 1 e 496.º, n.º 1.

18. A respeito dos danos não patrimoniais, o Estudo/Projeto de Vaz Serra, incluía, no artigo 759.º, o § 5 (que se pode ver no BMJ, n.º 101, página 138), assim redigido:

"No caso de dano que atinja uma pessoa de modo diferente do previsto no § 2.º, têm os familiares dela direito de satisfação pelo dano a eles pessoalmente causado. Aplica-se a estes familiares o disposto nos parágrafos anteriores; mas o aludido direito não pode prejudicar o da vítima imediata."

Este texto não passou para o Código Civil, sendo ignorado nos artigos 483.º, n.º 1 e 496.º

No n.º 3 (agora n.º 4) deste último consignou-se mesmo que:

"... no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos do número anterior."

Face ao constante do projeto e, bem assim, ao acabado de transcrever, podemos mesmo inferir que a lei trouxe consigo a opção consciente pela recusa relativamente à tutela de direitos não patrimoniais de pessoa diferente vítima, quando esta se mantém viva.

É a posição de Antunes Varela (Das Obrigações em Geral, 9.ª ed., 644) e Sinde Monteiro (Revista de Direito e Economia, XV, 370), tendo encontrado acolhimento em vários arestos deste Tribunal: de 21.3.2000, revista n.º 1027/99, 26.2.2004, revista n.º 4298/03 (com texto disponível no referido sítio), 31.10.2006, revista n.º 3244/06, 1.3.2007, revista n.º 4025/06 e 17.9.2009, revista n.º 292/1999.S1, este (com texto disponível no mesmo sítio) com um voto de vencido e uma declaração de voto.

Logo, porém, Vaz Serra (RLJ, Ano 103, 14) defendeu interpretação extensiva dos, então recentes, preceitos legais em ordem a manter-se a orientação que revelara no texto do projeto.

Entretanto foi decorrendo o tempo e intensificou-se o entendimento no sentido de que o mencionado artigo 496.º e, bem assim, os preceitos com ele relacionados, devem ser interpretados em ordem a encerrarem, pelo menos nos casos mais graves, a compensabilidade dos danos não patrimoniais sofridos por pessoa diferente da vítima, quando esta se mantém viva.

Assim, Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, I, 491, nota de pé de página, Abrantes Geraldes, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, IV, 262 e seguintes e Temas da Responsabilidade Civil, II, Armando Braga, A Reparação do Dano Corporal na Responsabilidade Civil Extracontratual, 188 e Américo Marcelino, Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil, 7.ª ed., 348 e seguintes.

Sendo já vários os Ac.s deste Tribunal que acolhem esta interpretação: de 8.3.2005, revista n.º 4486/04, 30.5.2006, processo 1259/06 (com um voto de vencido), 8.9.2009, revista n.º 2733/06.9TBBCL.S1, 26.5.2009, revista n.º 3413/03.2TBVCT.S1 (estes dois com texto disponível no dito sítio), 8.2.2011, revista n.º 1469/07.8TBAMPT.P1.S1, 28.2.2013, processo 60/2001.E1.S1 (também com texto disponível no mesmo sítio) e 23.4.2013, processo 291/04.8 TBRMR-A.L1.S1.

19. No plano internacional, o n.º 13.º da Resolução 75-7 do Conselho da Europa, de 14.3.1975 (1), tem a seguinte redação:

"O pai a mãe e o cônjuge da vítima que, em razão, duma ofensa à integridade física ou mental desta, tiverem sofrimentos psíquicos, não podem obter reparação deste dano a não ser em presença de sofrimentos de carácter excecional; outras pessoas não podem pretender uma tal reparação."

Por sua vez, o artigo 10:301, dos Princípios de Direito Europeu da Responsabilidade Civil (2) (um embrião do que pode ser a estatuição comunitária futura em tal matéria) é do seguinte teor:

"... A violação dum interesse poderá justificar a atribuição de uma compensação por danos não patrimoniais, em especial nos casos de danos pessoais ou de ofensa à dignidade humana, à liberdade ou a outros direitos de personalidade. Nos casos de morte e de lesão corporal muito grave, pode igualmente ser atribuída uma compensação pelo dano não patrimonial às pessoas que tenham uma relação de grande proximidade com o lesado."

20. Na ordem interna de vários países com os quais temos particulares afinidades, a compensabilidade tem sido aceite.

Em Espanha, quanto a indemnizações derivadas de acidentes de viação (mas com extensão interpretativa a outros casos de responsabilidade civil extracontratual), vigora a Ley 30/95 de 8.11 (3). Na "Tabla IV - Factores de correccion para las indemnizationes básicas por lesiones permanentes" - inclui um item relativo a "Perjuicios morales de familiares, destinados a familiares próximos al incapacitado en atención a la sustancial alteración de la vida y convivencia derivada de los cuidados y atención continuada, según circunstancias."

Em França, como nos dão conta Philippe Le Touneau e Löic Cadiet (Droit de la Responsabilité et des Contrats, 135), com citação abundante de decisões, a Cour de Cassation tem, desde longa data, mostrado abertura - e cada vez menos exigente - ao ressarcimento das vítimas indiretas pelo seu "préjudice d'affection"; aludindo também Yvonne Lambert-Faivre (Droit Du Dommage Corporel, Systèmes d'indemnisation, 298), em defesa da ressarcibilidade, com apoio no texto da Resolução 7/75, supra referido, e da jurisprudência do seu país, à "trouble dans les conditions d'existence" sofridas por pessoa diferente da vítima.

Em Itália as Sezione Unite da Cassazione Civile proferiram, em 1.7.2002, com o n.º 9556-D, um extenso acórdão (4). Nos pontos 12 e 13 começam por dar conta da orientação tradicional consistente na denegação de ressarcimento relativamente aos danos não patrimoniais de pessoa diferente da vítima ("in casu" do cônjuge), aludem, depois, à evolução no sentido positivo e discorrem longamente sobre os argumentos a favor e contra, concluindo pelo ressarcimento. Esta orientação tem-se mantido como atesta o Acórdão de 6.4.2011, da III Cassazione Civile (5).

Na Alemanha, vinda já do Acórdão de 11.5.1971 - VI ZR 78/70, a jurisprudência do Supremo Tribunal tem seguido uma linha de orientação firme e uniforme, plasmada, entre outros, nos Acórdãos de 14.6.2005 - VI ZR 179/04, de 6.2.2007 - VI ZR 55/05 e de 20.3.2012 - VI ZR 114/11 (6) (7).

A fundamentação caminha interpenetrada, quer se trate de lesado que sobreviva com lesões graves, quer de lesado que faleça em consequência das lesões.

Para que tenha lugar indemnização de outrem exige-se que o dano psíquico por este sofrido seja grave, que seja compreensível face ao seu motivo e que exista entre ele e o lesado uma relação pessoal especial.

Mais concretamente - sempre pressupondo o atingimento do lesado de modo grave ou mortal - exige-se que o dano tenha atingido o chegado àquele na sua saúde de modo nítido e tenha ultrapassado claramente o normalmente sofrido por outras pessoas colocadas na mesma situação, sendo excluído se corresponder ao "normal risco da vida" em virtude da "envolvência nos acontecimentos do mundo." (cit. aresto de 20.3.2012).

Na vertente subjetiva abre-se leque muito extenso, com inclusão de parentes próximos, do que vive ou vivia com o lesado em união de facto e até do noivo ou noiva, mas logo muito limitado com as exigências acabadas de referir.

O Supremo Tribunal tem sido muito rigoroso na aferição concreta destes requisitos, de sorte que está longe de se poder dizer que o ressarcimento seja a regra.

21. Numa visão, os danos não patrimoniais sofridos por pessoa diferente da vítima sobrevivente são encarados sempre como "reflexos", "indiretos" ou "por ricochete". Haveria o "lesado direto" e o "lesado indireto".

Noutros entendimentos, porém, o leque de direitos desta pessoa diferente da vítima sobrevivente já abrangeria o direito a uma relação plena, saudável, com a mesma, de sorte que, com o atingimento desta, se desenharia um quadro de ofensa direta aos direitos daquela. Os danos não seriam "reflexos", mas "diretos" e não se deveria falar em "lesado direto", contraposto a "lesado indireto". Carneiro da Frada convoca mesmo a figura do "dano existencial" que seria atingido também nestes casos, ainda que, na enumeração que faz, inclua a expressão "reflexamente afetados" (Themis, Edição Especial de 2008, Código Civil Português, Evolução e Perspectivas Actuais, 52).

Casos há, efetivamente, em que a relação entre o dano provocado a uma pessoa que se mantém viva e o sofrimento também infligido a outra é tão estreita, que se pode dizer que o atingimento desta tem lugar, se não necessariamente, pelo menos em regra. Apontam-se como exemplo as situações em que alguém presencia ofensa de intensa gravidade a pessoa relativamente à qual tem uma relação de muita afetividade ou em que um cônjuge vê o outro sexualmente afetado.

Neste entendimento, quando o artigo 483.º, n.º 1 do Código Civil alude a "outrem", abrangeria os casos em que o atingimento duma pessoa também provocava danos noutra. A abrangência não determinava sequer interpretação extensiva deste ou do n.º 1 do artigo 496.º, tudo repousando na relação de causalidade.

A discussão sobre este ponto - quiçá de natureza mais terminológica do que concetual - seria longa, mas inócua na perspetiva do que aqui nos traz.

Importa saber se a autora tem direito a compensação e fixar jurisprudência no que concerne à existência ou inexistência do direito que está na base desta. Não interessa já determinar se os danos que ela invoca devem ser classificados como "diretos" ou "reflexos".

Por outro lado, a ideia de individualização do que invoca os danos não se compagina com a defesa da denegação da compensabilidade dos danos não patrimoniais, assente no argumento de que o tribunal pode fixar montante superior em favor da vítima sobrevivente, tendo em conta o sofrimento provocado também a outro ou outros. Embora em termos práticos as situações se prestem a esbatimento da distinção (aliás, corolário da relação de afeto que está na base do ressarcimento) temos que encarar cada titular do direito à compensação em termos individualizados.

22. Do que vem sendo dito, resulta que, para a solução do presente recurso e para a fixação do sentido da uniformização da jurisprudência:

Ou se entende que se deve manter a interpretação dos artigos 483.º, n.º 1 e 496.º, n.º 1, referida em 18 e reportada ao tempo em que vieram a lume;

Ou se considera atualisticamente alterada tal interpretação, em ordem a abranger os danos sofridos pelo cônjuge da vítima sobrevivente.

Relativamente ao entendimento de que este tipo de danos tem natureza indireta, reflexa ou por ricochete, a interpretação atualista encerra interpretação extensiva, que, todavia, não é vedada, atento o disposto no artigo 11.º

23. Importa, pois, tomar posição.

Nas palavras de Baptista Machado (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 223):

"Cabem ao direito duas funções diferentes, tendencialmente antinómicas: Uma função estabilizadora, capaz de garantir a continuidade da vida social e os direitos e expectativas legítimas das pessoas, e uma função dinamizadora e modeladora, capaz de ajustar a ordem estabelecida à evolução social e de promover mesmo esta evolução num determinado sentido.

Este segundo aspecto (o aspecto dinâmico e de mudança do direito) assume uma dimensão particular no nosso tempo. A "aceleração da história", as mudanças tecnológicas, económicas e sociais sucedem-se a ritmo vertiginoso... A sociedade pluralista de hoje assenta na ideia de uma modificabilidade do direito e postula um sistema jurídico aberto e dinâmico que resolva o problema de uma modificação e evolução ordenada..."

Também Oliveira Ascensão (R.O.A., 1997, n.º 3, 915) afirma:

"... a interpretação não se pode bastar nunca com o texto e o espírito da lei. Há um elemento essencial que é a base de toda a interpretação: é a própria ordem social em que o texto se situa.

De facto, a lei vigora numa ordem social. As palavras da lei são indecifráveis se não forem integradas naquela ordem social."

Do mesmo modo, Ferrara, Ensaio Sobre a Teoria da Interpretação das Leis, com tradução de Manuel de Andrade, deixou escrito:

"A chamada interpretação evolutiva é sempre mera aplicação do direito, e repousa em dois cânones: a ratio legis é objectiva (não a ratio subjectiva do criador da lei) e é actual (não a ratio histórica do tempo em que a lei foi feita). Assim pode acontecer que uma norma ditada para certa ordem de relações adquira mais tarde um destino uma função diversa.

É um fenómeno biológico que tem correspondência no campo do direito.

De sorte que uma disposição jurídica pode ganhar, com o tempo, um sentido novo que os intérpretes nunca lhe tinham atribuído e que também não estava nas previsões do legislador, ressalvado, já se entende, que daí não venha contradição com outras disposições ou desarmonia com o sistema. A interpretação evoluciona e satisfaz novas necessidades sem todavia mudar a lei. A lei lá está; mas porque a sua ratio, como força vivente móvel, adquire com o tempo coloração diversa, o intérprete sagaz colhe daí novas aplicações."

O próprio Manuel de Andrade, no projeto do Código Civil relativo à interpretação das leis (que se pode ver no BMJ, n.º 102, 144), não deixou de acolher esta ideia ("A interpretação não deve ficar atida à letra dos textos. Deve reconstruir o verdadeiro pensamento legislativo, integrando-o na totalidade do sistema jurídico e projectando-o nas condições do tempo actual.").

Pode-se mesmo dizer que a ideia de evolução no tempo é particularmente querida a todos os Autores que se debruçam sobre a interpretação das leis.

Devendo o intérprete ter bem presente que, no seguimento do projeto de Manuel de Andrade, o n.º 1 do artigo 9.º, manda atender, na interpretação, às condições específicas do tempo em que a lei é aplicada.

O que tem sido objeto de atenção reiterada também a nível jurisprudencial, podendo ver-se, exemplificativamente e, ainda que versando temas diferentes do ora sob apreciação, os Acórdãos deste Tribunal de 24.9.1996, processo 401/96, 30.10.2003 (com texto disponível no referido sítio), processo 2219/03, 20.9.2005, processo 1643/05, 22.11.2005, processo 2800/05, 3.2.2009, processo 3806/08 (com texto disponível também no referido sítio) e 29.5.2012, processo 397/2002.C2.S1.

24. O Código Civil entrou em vigor em 1967.

Então, a ideia de ressarcimento dos danos assentava fundamentalmente na culpa de outrem e, em casos muito limitados, no risco inerente a atividades perigosas.

A frequência com que não eram objeto de ressarcimento era muito grande e bem aceite pelo cidadão comum.

A intensificação dos direitos foi evoluindo intensamente, acompanhada de grande melhoria nas condições de vida.

Uma das vertentes em que isso se manifesta diz respeito à ampliação do leque indemnizatório.

Com tradução no regime securitário em geral e no seguro obrigatório automóvel em especial.

Relativamente a este, o limite máximo inicial, particularmente reduzido, tem sido exponencialmente aumentado por imposição comunitária.

A responsabilidade civil, no domínio dos acidentes de viação, deixou de ser vista no prisma de quem age ("aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem...", refere o artigo 483.º) para o ser no prisma de proteção das vítimas (o que é patente em todas as diretivas sobre seguro obrigatório automóvel, tem sido afirmado pelo legislador, inclusive em diplomas com o mesmo valor hierárquico do Código Civil - veja-se, por exemplo, o preâmbulo do, referido supra, Decreto-Lei 291/2007 - e tem sido reconhecido por este Tribunal: por todos, ainda em www.dgsi.pt, os Acórdãos de 7.5.2009, processo 512/09 e de 16.1.2007, processo 2892/06).

Passou a compreender-se mal e até a não se aceitar sem reservas, mesmo para além do domínio dos acidentes de viação, que a produção de danos não seja acompanhada de ressarcimento.

Por outro lado, o nosso país passou a ser um país aberto, convivendo estreitamente com outros países, de sorte que, não merecendo o que se passa a nível internacional ou mesmo na ordem interna de cada país um seguidismo sem censura, não deve deixar de se atentar numa realidade, ela mesma reforçadora da ideia de que os tempos mudaram.

Noutro prisma, repare-se que, no caso dos danos como o que aqui está em apreciação, estamos a lidar com sofrimentos intensíssimos, arrastando toda uma alteração de vida, com perda quase total de momentos positivos e de liberdade pessoal.

Tudo isto justifica que se vá para uma interpretação atualista do n.º 1 do artigo 483.º e do n.º 1 do artigo 496.º, em ordem a considerar ali tutelados este tipo de danos.

25. Mas chegados aqui, impõe-se a delimitação, quer subjetiva, quer objetiva.

Não pode "abrir-se" a compensabilidade a todos os que, chegados ao lesado, sofram com o que aconteceu a este. Como refere Philippe Brun (Responsabilité Civile Extracontractuelle, 354): "...supondo admitido o princípio da reparação do prejuízo moral por ricochete, seria bom fixar-se regras simples evitando a inflação do coro de chorosos."

No reverso, não pode questionar-se que, para além do cônjuge, outros podem e devem beneficiar da tutela deste tipo de danos.

Todavia, não nos compete determinar aqui quais, dos chegados ao lesado, podem pedir compensação pelo sofrimento próprio. Estaríamos a ir para além do objeto do processo e a invadir terreno próprio do poder legislativo. O que temos de deixar bem claro é que a nossa referência ao cônjuge não pode ser interpretada como excluidora de outros.

Ponderando apenas o caso do cônjuge, não nos parece restarem dúvidas: está presente em praticamente toda a argumentação que desemboca na compensabilidade.

26. Assim como não podemos abrir a compensabilidade a todo um "coro de chorosos", também não a podemos abrir a todo o dano não patrimonial que, no caso do lesado, justificaria a tutela do direito.

Toda a argumentação que justifica a interpretação atualista que vimos assumindo tem como pressuposto que os danos do lesado sejam particularmente graves e que tenham determinado no outro sofrimento muito relevante. Já Vaz Serra, no apontado texto da RLJ, justificava a sua posição com o caso dum filho que é atingido tão gravemente que os pais têm sofrimento não inferior ao que teria lugar se tivesse falecido. Do mesmo modo os textos internacionais citados supra são especialmente limitadores.

A interpretação atualista arrasta consigo, limitando-a, a sua própria justificação.

Que inexiste no caso em que as lesões não são graves e ou o chegado ao lesado não tem sofrimento intenso. Repare-se que lesões ligeiras, demandando, por regra, compensação por danos não patrimoniais, demandam também, principalmente no caso de crianças ou outros dependentes, danos não patrimoniais aos ligados afetivamente àqueles. Por isso, não podemos interpretar o artigo 496.º, n.º 1 equiparando a vítima ao que lhe está afetivamente ligado. Passaria a ser regra a "pulverização" indemnizatória, em dissintonia com o princípio-base de que é àquela que assiste o direito à compensação.

Temos de ter sempre presente que estamos a abrir uma brecha na dogmática geral de que é a vítima, se sobreviver, a pessoa a indemnizar. Não podemos interpretar o preceito acabado de referir como se dissesse "Na fixação das indemnizações ...".

Por isso, entendemos dever reservar a extensão compensatória apenas para os casos de particular gravidade.

Decerto que, com esta posição, fica uma linha delimitadora algo incerta. Nalguns casos a subsunção é evidente, mas noutros será sempre exigido esforço jurisprudencial. Contudo, cremos não poder, nem dever ir mais além na tentativa, que seria vã, de procurar nitidez. O que cremos dever ser precisada é a exigência de particular gravidade em duas vertentes: uma, quanto aos ferimentos da vítima sobrevivente e outra quanto ao sofrimento do cônjuge.

Geralmente uma determina a outra mas pode assim não ser e a argumentação no sentido da interpretação atualista só se concebe, verificadas as duas.

E aqui, ao contrário do referido no número anterior, não se coloca a questão da invasão do poder legislativo, porquanto a alusão à "particular gravidade", não deixa de fora, quanto aos limites objetivos, o que quer que seja que careça de estatuição.

27. No presente caso, as lesões que sofreu o sinistrado foram gravíssimas e gravíssimo foi e é o sofrimento que determinaram relativamente à cônjuge/autora.

Impõe-se a compensação.

Cujo montante de (euro) 15.000 não é exagerado para quem viu toda uma vida profundamente alterada, nos termos que os factos pormenorizadamente descrevem (pontos 26, 27, 28, 31, 32 e 35).

28. Face a todo o exposto:

Nega-se a revista;

Uniformiza-se a jurisprudência nos seguintes termos:

Os artigos 483.º, n.º 1 e 496.º, n.º 1 do Código Civil devem ser interpretados no sentido de abrangerem os danos não patrimoniais, particularmente graves, sofridos por cônjuge de vítima sobrevivente, atingida de modo particularmente grave.

Custas pela recorrente.

(1) Cujo texto se pode ver em Armando Braga, obra citada, 295.

(2) Acessível, em português, inserindo no motor de busca da internet o respectivo título.

(3) O texto base, sujeito a atualizações anuais em consonância com a inflação, pode-se ver, nomeadamente, em Elsa Bayle, El Baremo para la Valoración de los Danos Personales.

(4) Cujo texto se pode ver com facilidade inserindo no motor de busca da internet "Cassazione Civile Sezione Unite 2002".

(5) Que se pode alcançar também com recurso ao motor de busca da internet.

(6) As orientações firmes e constantes da jurisprudência do Tribunal emergem naturalmente da sua organização interna. Está dividido em Senados correspondentes às nossas Secções, mas cada um deles tem competência própria, de sorte que as mesmas questões são tratadas pelo mesmo Senado. Repare-se que todos os arestos citados são do VI porque é este que tem competência, além do mais, para julgar sobre "as consequências do ato ilícito". Cada acórdão proferido - e só são proferidos se, em decisão liminar, se entender que o caso merece conhecimento - é subscrito por todos os membros do Senado, sem rotação frequente de elementos e, consequentemente, de entendimentos.

(7) Estes três acórdãos podem ver-se no sítio oficial do Tribunal (www.Bundesgerichtshof.de), depois, "Entscheidungen", depois a data e, finalmente, a referência supra indicada (VI ZR 179/04, para o primeiro e assim sucessivamente para os outros)

Lisboa, 9 de Janeiro de 2014. - João Luís Marques Bernardo (Relator) - João Moreira Camilo (Vencido conforme declaração junta) - Paulo Armínio de Oliveira e Sá (Vencido quanto à atribuição de indemnização por entender que a factualidade provada não configura a gravidade requerida) - Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza (Com declaração que junto) - Fernando Manuel de Oliveira Vasconcelos - António José Pinto da Fonseca Ramos - Ernesto António Garcia Calejo - Henrique Manuel da Cruz Serra Baptista (Acompanhando a declaração de voto do Exmo. Conselheiro Lopes do Rego) - Helder João Martins Nogueira Roque (Vencido, nos termos da declaração que junto) - José Fernando de Salazar Casanova Abrantes (Acompanhando a declaração de voto do Senhor Conselheiro Lopes do Rego) - Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues (Vencido nos termos da declaração de voto que junto) - Carlos Francisco de Oliveira Lopes do Rego (Com declaração de voto, que junto) - Orlando Viegas Martins Afonso - Paulo Távora Victor - Sérgio Gonçalves Poças - Gregório Eduardo Simões da Silva Jesus - José Augusto Fernandes do Vale - Manuel Fernando Granja Rodrigues da Fonseca - Fernando da Conceição Bento (Acompanho a declaração de voto do Exmo. Conselheiro Lopes do Rego) - João José Martins de Sousa - Gabriel Martim dos Anjos Catarino (Acompanho a declaração de voto lavrada pelo Senhor Conselheiro Lopes do Rego) - João Carlos Pires Trindade - José Tavares de Paiva - António da Silva Gonçalves - António dos Santos Abrantes Geraldes - Ana Paula Lopes Martins Boularot (Vencida nos termos da declaração de voto que junto) - Maria Clara Pereira de Sousa de Santiago Sottomayor - Fernando de Azevedo Ramos (Com a declaração de voto que junto) - Manuel José da Silva Salazar (Vencido, conforme declaração que junto) - Sebastião José Coutinho Póvoas (Vencido, nos termos da declaração de voto junta) - António Manuel Machado Moreira Alves - Nuno Pedro de Melo e Vasconcelos Cameira (Vencido, nos termos da declaração de voto que junto) - António Alberto Moreira Alves Velho (Com declaração de voto, que junto) - João Mendonça Pires da Rosa (Com declaração que junto) - Carlos Alberto de Andrade Bettencourt de Faria - José Joaquim de Sousa Leite - José Amílcar Salreta Pereira - Joaquim Manuel Cabral e Pereira da Silva (Vencido, consoante declaração de voto que junto) - António Silva Henriques Gaspar (Presidente).

Declaração de vencido

Tal como já decidimos no acórdão proferido em 17-09-2009, na revista n.º 292/1999-S1, de que fomos Relator por vencimento, entendemos que a nossa lei não quis que os danos reflexos sejam objecto de ressarcimento.

Assim sobre a questão dissemos naquele acórdão o seguinte:

"Esta questão foi decidida no sentido de não haver fundamento legal para a concessão desta indemnização na sentença de 1.ª instância.

Já no douto acórdão recorrido, servindo-se dos mesmos factos apurados, foi a mesma indemnização concedida como tendo apoio na lei.

Pese embora as considerações brilhantes desta decisão, entendemos que a melhor aplicação da lei impõe a repristinação da decisão negatória da 1.ª instância.

Vejamos.

Está aqui em causa a questão de saber se em caso de responsabilidade civil extracontratual, de que resultou lesão que não foi mortal para a vítima, ainda assim, poderão ser indemnizados terceiros que indirecta ou reflexamente tenham sofrido danos, nomeadamente de ordem não patrimonial.

A doutrina tradicional não admite tal ressarcimento senão nos casos excepcionais previstos no artigo 494.º, n.º 2 do Cód. Civil - cf. o Prof. A. Varela, no seu livro "Das Obrigações em Geral", I vol. pág. 644-645, da 9.ª ed.; o Prof. Almeida Costa, no seu "Direito das Obrigações", pág. 527-529, da 7.ª ed. e Meneses Cordeiro, no seu "Direito das Obrigações", 2.º vol., 1986, pág. 291-292.

Apenas o Prof. Vaz Serra - RLJ, ano 104.º, pág. 16 - desde sempre defendeu opinião contrária que veio a ser acolhida por Ribeiro de Faria - Direito das Obrigações, vol. I, pág. 491, nota 2.

A jurisprudência tradicional era no sentido da inadmissibilidade da ressarcibilidade dos chamados danos reflexos ou indirectos - cf. acórdão deste Supremo Tribunal de 25-11-98, na revista n.º 865/98 da 2.ª secção.

Mais recentemente surgiram mais defensores da opinião seguida na controvérsia por Vaz Serra, sobretudo na jurisprudência - que nos parece, porém, continuar acentuadamente maioritária no sentido que seguimos - na sequência do notável estudo do Desembargador A. Abrantes Geraldes, publicado em "Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Teles", IV vol., 263 e segs., onde se defendeu uma interpretação actualista da lei no sentido de a lei permitir a ressarcibilidade daquele tipo de danos.

Pese embora o brilho deste estudo, pensamos que o mesmo pode funcionar como óptimo elemento de trabalho para motivar o legislador a fazer uma alteração na lei no sentido da previsão e regulamentação do direito de indemnização dos lesados reflexamente, em caso de lesão de que o lesado directo não perdeu a vida, se esta for a opção que o legislador decida tomar.

Mas vejamos as razões que nos parecem determinantes para a interpretação da lei que seguimos.

Do disposto no artigo 483.º, n.º 1 do Cód. Civil resulta que em caso de responsabilidade civil extracontratual o lesado é o titular do direito que é violado pela conduta do agente.

Estão aqui apenas incluídos, em princípio, os danos causados directamente pela conduta do agente, no sentido de que a conduta lesiva produz, em primeira linha, uma violação de um direito do lesado, como a vida, a integridade física ou moral, bens estes que integram o seu património.

Porém, é concebível que a situação possa ser mais complexa, nomeadamente no caso de os sofrimentos padecidos pela vítima de um acidente de viação, ou a sua morte, também causarem a familiares ou amigos daquela um enorme desgosto.

Nestas situações, há terceiros que sofrem danos reflexamente dos que a vítima sofreu, ou seja, há uma ou mais consequências indirecta da conduta do lesante que violou os direitos da vítima.

São geralmente apontados dois tipos de danos indirectos nesta discussão:

- O primeiro tipo de danos é o dano de cariz não patrimonial dos pais que vêem o seu filho menor saudável em quem depositavam as maiores esperanças num futuro promissor, ficar estropiado de forma irreversível, ficando reduzido a uma vida de qualidade muito limitada e ou até dependente de terceiros para a satisfação das mais elementares necessidades físicas.

- O segundo tipo de danos é o dano de igual natureza decorrente para a mulher casada que viu o seu jovem e saudável cônjuge ficar em situação igualmente dependente de terceiros para a satisfação das mais elementares necessidades físicas e ficar, ainda, também impotente, frustrando, assim, as suas legítimas expectativas de uma vida conjugal rica e plena de satisfações e de felicidade.

Temos, obviamente, de reconhecer que tais danos, embora revestindo a natureza reflexa ou indirecta, se mostram, com alguma frequência, com uma gravidade muito superior à maioria dos danos directos que as vítimas sofrem na generalidade dos acidentes de viação que chegam aos tribunais.

Porém, como simples intérpretes da lei, temos de respeitar as regras legais com que o nosso legislador nos contemplou.

Do disposto nos arts. 483.º, 495.º, n.º 2 e 496.º, n.º 2, todos do Cód. Civil, resulta a regra de que a ressarcibilidade dos danos está reservada aos danos directos sofridos pela vítima da conduta do lesante, salvo as excepções fixadas no n.º 2 do artigo 495.º referido, aplicável quer em caso de morte da vítima quer em caso de simples lesão corporal não mortal, e salvo o caso de morte da vítima, segundo o previsto na n.º 2 do artigo 496.º mencionado.

Destas disposições resulta, em nosso entender, que apenas nessas situações excepcionais ali previstas, a lei permite o ressarcimento destes danos de terceiros, sendo a regra a da não ressarcibilidade destes danos de terceiros que decorrem indirecta ou reflexamente dos danos causados à vítima directa.

A entender-se da forma oposta, ficava sem razão de ser a previsão da ressarcimento constante do n.º 2 do artigo 495.º referido, pois tal já estaria contido na regra geral da ressarcibilidade de todos os lesados quer fossem lesados directos quer reflexos.

Poder-se-ia dizer que o citado preceito apenas visava delimitar as pessoas a quem a lei atribui esse direito.

Não é essa a nossa opinião pois a interpretação oposta impõe-se com o recurso ao elemento de interpretação histórico.

Com efeito, conforme se pode ver no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 101, pág. 138 e segs., o Prof. Vaz Serra que interveio activamente nos trabalhos preparatórios do Cód. Civil de 1966, formulou uma norma que previa clara e directamente a ressarcibilidade daquele tipo de danos, no § 5 da proposta de redacção oferecida para o artigo 759.º da parte do Direito das Obrigações daquele código, preceito este que não passou para o texto final por ter essa pretensão sido rejeitada.

Por outro lado, tendo o legislador regulamentado os familiares que têm direito a serem indemnizados em caso de morte da vítima, não o fez para o caso de a mesma não haver falecido, o que também aponta para a interpretação no sentido da não ter querido admitir a ressarcibilidade deste tipo de danos.

Foi assim uma opção consciente do legislador que pode ser discutível e que o tempo pode ter tornado ainda mais discutível, mas que temos de respeitar sob pena de o intérprete estar a invadir o campo de actuação do legislador, violando o princípio constitucional da separação dos poderes soberanos.

Neste entendimento, só excepcionalmente os danos sofridos por terceiros serão indemnizáveis, tendo sido para assegurar esse objectivo que foram introduzidos os dispositivos do n.º 2 do artigo 495.º e o n.º 2 do artigo 496.º já mencionados.

Foi este o sentido seguido no acórdão deste Supremo de 21-03-2000, na revista n.º 1027/99 que seguimos em vários pontos na exposição que acabamos de fazer. No mesmo sentido se podem apontar, ainda, os acórdãos deste Tribunal de 26-02-2004, na revista n.º 4298/03, de 31-10-2006, na revista n.º 3244/06 e ainda o recente acórdão de 01-03-2007, na revista n.º 4025/06."

Analisados cuidadosamente os mui doutos argumentos expendidos no projecto elaborado pelo Relator, e pese embora o muito respeito por opinião contrária, parece-nos que a melhor interpretação da lei é a que acabamos de expor e por isso, defendemos que a queixa respectiva colocada pela recorrente deveria obter provimento e proporia que fosse uniformizada a jurisprudência nos termos seguintes:

Em matéria de responsabilidade extracontratual, em princípio, apenas são indemnizáveis os danos sofridos pelo lesado, ou seja, o titular do direito violado ou do interesse protegido pela disposição legal violada.

Apenas nos casos excepcionais previstos nos arts. 495.º e 496.º, n.º 2 do Cód. Civil, a lei admite o ressarcimento dos danos indirectos provocados a terceiros.

Não são, assim, indemnizáveis os danos vulgarmente chamados "reflexos" ou indirectos que, fora dos casos previstos nos referidos arts. 495.º e 496.º, sejam indirectamente causados a terceiros.

João Moreira Camilo.

Processo 6430/07.0TBBRG.G1

Votei o acórdão porque entendo que se verificou, no caso, a lesão directa e grave de um direito da autora, nos termos exigidos pelo n.º 1 do artigo 483.º e pelo n.º 1 do artigo 496.º do Código Civil: o direito fundamental ao desenvolvimento da personalidade, especificamente entendido no contexto dos efeitos pessoais do casamento, tal como a lei civil os enuncia (os direitos e deveres recíprocos que integram a comunhão plena de vida que o define, nas palavras do acórdão deste Supremo Tribunal de 8 de Setembro de 2009, www.dgsi.pt, proc. n.º 2733/06.9TBBCL.Sl).

Trata-se de um direito com tutela constitucional directa (artigo 26.º da Constituição) e imediatamente vinculativa, mesmo entre particulares (n.º 1 do artigo 18.º da Constituição); e que no plano do direito ordinário se enquadra ainda no âmbito da protecção geral da personalidade (artigo 70.º do Código Civil).

E a sua lesão, numa perspectiva simultaneamente actual (confronto com o tempo anterior ao acidente) e prospectiva (vida futura), é suficientemente intensa para justificar a fixação de uma compensação por danos não patrimoniais, preenchendo o requisito da gravidade imposto pelo n.º 1 do citado artigo 496.º do Código Civil para que os danos não patrimoniais possam ser indemnizados.

Não se questionam no recurso os pressupostos da causalidade e da culpa, no que à lesão do direito da autora se refere. - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza.

I - O direito de indemnização compete ao titular do direito subjectivo ou do interesse legítimo protegido, atingido, directamente, pela acção ou omissão geradora da obrigação de indemnizar, com base em facto ilícito, como resulta dos artigos 495.º e 496.º, n.os 2 e 3, ambos do Código Civil, revestindo, portanto, natureza excecional a ressarcibilidade daqueles danos a terceiros, de acordo com o paradigma do direito nacional, que, apenas, o contempla, nos casos, expressamente, previstos na lei.

II - No que se reporta aos danos não patrimoniais, consagrou-se a regra da compensabilidade, em relação ao lesado directo ou imediato, apenas, no caso de morte do, directamente, prejudicado, conferindo-se, nessa eventualidade, um direito de indemnização às pessoas indicadas no n.º 2, do artigo 496.º, do Código Civil.

III - Contudo, se o legislador nacional teve o propósito de restringir o direito de indemnização, por danos não patrimoniais, com base em facto ilícito, à pessoa, directamente, lesada com a acção ou omissão geradora da obrigação de indemnizar fundada em facto ilícito, a previsão do artigo 495.º, n.º 2 (constitui exceção à regra de que só o lesado goza do direito de exigir a indemnização), a do n.º 3 (constitui exceção à regra de que só o titular do direito violado ou do interesse, imediatamente, lesado com a violação da disposição legal tem direito a indemnização, e não os terceiros que, apenas, reflexa ou indiretamente, sejam prejudicados), a previsão do artigo 496.º, n.º 2 (constitui exceção a indemnização pela morte da vítima casada) e a do n.º 3 (constitui exceção a indemnização pela morte da vítima que vivia em união de fato), ambos do Código Civil, que apresentam uma nítida vocação de ampliação do leque daqueles que têm direito a indemnização com fundamento na prática de acto ilícito, mas sempre com o denominador comum da "lesão de que proveio a morte", ou seja, de lesado não sobrevivente.

IV - Admitindo-se que essas previsões sejam lacunosas, reveladoras de um caso omisso, no que se reporta ao cônjuge de lesado sobrevivente, porque se trata de "lacunas impróprias», não são susceptíveis de ser supridas por um procedimento analógico, dado estarem em causa normas excepcionais, isto é, normas relativamente às quais o legislador exclui a aplicação analógica, atento o disposto pelo artigo 11.º, do Código Civil, e, enquanto "lacunas próprias», não são reveladoras de uma "incompletude insatisfatória no seio de um todo jurídico".

V - Mas, também, não será defensável uma interpretação extensiva, actualista e evolutiva dos artigos 483.º, n.º 1 e 496.º, n.º 1, do Código Civil, em ordem a abranger os danos não patrimoniais do cônjuge de lesado sobrevivente, com base no princípio da unidade do sistema jurídico, porquanto se trata de uma situação que o legislador de 1966 já conhecia, previu, e, expressamente, não quis consagrar.

VI - Não são, pois, ressarcíveis os danos não patrimoniais suportados por pessoas diversas daquela que é, directamente, atingida por lesões de natureza física ou psíquica graves, nos termos gerais do artigo 496.º, n.º 1 do Código Civil. - Hélder Roque.

AUJ 6430/07

Declaração de Voto

Com o subido respeito pela tese que fez vencimento e a maior consideração pelos seus ilustres subscritores, votei vencido por entender que a jurisprudência fixada, ao assentar numa interpretação actualista e extensiva dos artigos 483.º, n.º 1 e 496.º, n.º 1 do Código Civil, penetra, pela "extensão" outorgada, num domínio exclusivo do poder legislativo.

Na verdade, dispondo o n.º 4 do art.º 496.º do C. Civil que "no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito à indemnização nos termos do número anterior» circunscreve expressamente tal direito apenas para o caso de morte da vítima.

Aliás, como se reconhece na fundamentação do Acórdão Uniformizador, o insigne e saudoso Prof. Vaz Serra incluía, no art.º 759.º do seu Estudo/Projecto, § 5 (que se pode ver in BMJ, n.º 101-138) uma disposição do seguinte teor:

"No caso de dano que atinja uma pessoa de modo diferente do previsto no § 2.º, têm os familiares dela direito de satisfação pelo dano a eles pessoalmente causado. Aplica-se a estes familiares o disposto nos parágrafos anteriores; mas o aludido direito não pode prejudicar o da vítima imediata»

Porém, como também reconhece o próprio Acórdão, "este texto não passou para o Código Civil, sendo ignorado nos artigos 483.º, n.º 1 e 496.º»

Acrescenta ainda o dito AUJ que no n.º 3 (agora n.º 4) deste último, consignou-se expressamente que:

"... no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos do número anterior."

Daqui, extrai o douto AUJ a seguinte inferência:

"Face ao constante do projeto e, bem assim, ao acabado de transcrever, podemos mesmo inferir que a lei trouxe consigo a opção consciente pela recusa relativamente à tutela de direitos não patrimoniais de pessoa diferente da vítima, quando esta se mantém viva».

Pois bem, se o texto de Vaz Serra não passou para o nosso compêndio substantivo civil e se a lei fez uma opção consciente de recusa (na sugestiva formulação do Acórdão) relativamente à tutela dos direitos não patrimoniais de pessoa diferente da vítima, quando esta se mantém viva e, ainda, se nada no texto legal (littera legis) permite concluir que o legislador actual, que até modificou a redacção do citado preceito, aditando-lhe o n.º 3 e passando o anterior 3 para 4 mas deixando incólume o texto anterior, que ora nos ocupa, não se vê como possa o tribunal atribuir tal direito à compensação dos familiares da vítima do acidente, quando esta sobrevive ao mesmo, não obstante padecer de lesões graves.

Está patente, a nosso ver, que o legislador não quis ampliar tal direito à indemnização aos familiares da vítima quando esta sobrevivesse ao sinistro!

Não se trata de qualquer lacuna da lei a demandar integração ou interpretação por via extensiva, nem tal se mostra desactualizada, antes se revelando uma opção bem consciente do legislador e, por isso, não se diga que o mesmo dixit minus quam voluitl!

A denominada interpretação actualista, como bem se ponderou no Acórdão deste Supremo Tribunal, de 10-07-2008, brilhantemente relatado pelo Exm.º Conselheiro Santos Bernardino (P.º 08B1480, disponível in www.dgsi.pt) "deverá ser aplicada com a necessária prudência, estando logo à partida condicionada pelos factores hermenêuticos, designadamente pela ratio da norma e pelos elementos gramatical e sistemático».

O mesmo douto aresto, fazendo apelo à magistral lição de J. Baptista Machado, recorda que a letra da lei é o ponto de partida da interpretação e que lhe cabe, desde logo, uma função negativa: eliminar aqueles sentidos que não tenham, qualquer apoio ou, pelo menos, qualquer correspondência ou ressonância nas palavras da lei (art.º 9.º/2).

Não se põe em causa o mérito da douta fundamentação do Acórdão Uniformizador em apreço, onde, aliás, pontifica um cunho humanista e pletórico de sentido de justiça, mas cremos, convictamente, que tal solução entusiasticamente defensável no plano de jure condendo (seria até altamente desejável que pudesse inspirar uma alteração legislativa), não encontra ressonância legítima no plano do direito positivo.

Finalmente, não se vislumbra onde radica a legitimidade ou a auctoritas dos tribunais para restringir - em termos de fixação uniformizadora - o direito à compensação ao cônjuge da vítima sobrevivente, arredando os restantes familiares, referidos no n.º 2 do citado preceito legal, de tal direito.

Manteria assim, em sede de fixação de jurisprudência, a interpretação literal, isto é, no sentido de que os artigos 483.º/1 e 496/1 do Código Civil, conferem o direito à indemnização, por danos não patrimoniais directos, ao lesado e, apenas em caso de morte da vítima, aos terceiros referidos nos n.os 2 ou 3 do art.º 496.º do Código Civil, por se me afigurar que é a única que se mostra consonante com a lei em vigor.

Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 16 de Janeiro de 2014. - Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues.

P. 6430/07.0TBBRG.S1

Declaração de voto

Aderindo inteiramente à solução normativa propugnada, entendo que - ao menos nos casos com a configuração do dos presentes autos - o reconhecimento do direito à indemnização pelo dano moral sofrido pelo cônjuge do acidentado, gravemente incapacitado, é ainda enquadrável na norma do art. 483.º, n.º l, do CC, conjugada com a tutela dos direitos de personalidade, já presente no art. 70.º do CC e substancialmente ampliada e reforçada pela actual redacção do art. 26.º da Constituição, ao conferir relevo a um direito ao livre desenvolvimento da personalidade.

Na verdade, nas situações em que a vítima sobrevivente fica irreversivelmente afectada por um severo grau de incapacidade, envolvendo perda da autonomia pessoal, o familiar próximo (no caso, o cônjuge), vinculado a um dever de auxílio e assistência, vê drasticamente comprometidas as suas normais possibilidades de realização pessoal, em termos de tal afectação traduzir lesão de um direito subjectivo próprio de personalidade - a qual fundamenta, em termos bastantes, a atribuição da indemnização pelo dano moral próprio sofrido, sem necessidade de abordar sequer a questão da ressarcibilidade dos danos reflexos. - Lopes do Rego.

Declaração de voto

Não acompanho a tese que faz vencimento, porquanto.

Dispõe o artigo 11.º do CCivil que as normas excepcionais, embora não comportando uma aplicação analógica, podem ser objecto de interpretação extensiva.

Por seu turno e a propósito das regras de interpretação predispõe o artigo 9.º daquele mesmo diploma:

"1 - A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei fui elaborada e as condições especificas do tempo em que é aplicada.

2 - Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal ainda que imperfeitamente expresso.

3 - Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.»

Queremos nós dizer que a interpretação que é feita pelos Tribunais, vulgo interpretação judicial, está sujeita às regras legai sobre interpretação, não lhe cabendo, por princípio, sob a aparência da simples interpretação, o poder de criar norma, a não ser nos casos especialmente previstos em que essa criação da norma se impõe, por inexistência de caso análogo, nos termos do normativo inserto no artigo 10.º, n.º 3 do CCivil, já que o Tribunal não se pode abster de julgar, além do mais, por falta de lei aplicável ao caso concreto, cfr. artigo 8.º, n.º 1, do mesmo diploma legal.

A nossa actividade enquanto julgadores passa por fixar o sentido e o alcance que o texto legislativo deverá ter, sendo que não poderá ser um qualquer sentido de entre os possíveis (caso haja mais do que um), procurando fazer extrair da lei, enquanto instrumento de conformação e ordenação da vida em sociedade, dirigida à generalidade das pessoas e abarcando uma miríade de casos, um sentido decisivo que garanta um mínimo de uniformidade de soluções, por forma a evitar-se o casuísmo e o arbítrio de cada julgador, incompatíveis com a necessária segurança jurídica, cfr. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 1987, 176.

No caso sujeito, sempre s.d.r.o.c., sob a égide de um AU] não se está mais do que a afirmar uma doutrina interpretativa com uma especial relevância jurídica para os casos futuros, que não deve ser cometida aos Tribunais.

Se não.

A questão que nos é suscitada é a do ressarcimento ou não ressarcimento do danos não patrimoniais "reflexos» de terceiro, especificamente do cônjuge, em caso de vida do lesado em acidente de viação.

A este propósito convém chamar à colação os trabalhos preparatórios do CCivil e a solução então propugnada por Vaz erra, a que o ALIJ faz referência, a qual não mereceu acolhimento em sede de jure constituto, não tendo a hipótese do direito a indemnização de pessoa diversa do lesado em caso de vida deste vindo a ser contemplada pelos normativo insertos nos artigos 483.º e 496.º do CCivil: aí apenas e prevê a compensação do lesado e de terceiros aqui apenas nos casos específico em que sobreveio a morte daquele.

Pretende-se com a tese que faz vencimento a efectivação de uma interpretação actualista do n.º 1 do artigo 483.º e do n.º 1 do artigo 496.º, em ordem a considerar ali tutelados este tipo de danos e determinado tipo de pessoas atingidas reflexamente, estabelecendo que aqueles - o danos - deverão ser particularmente graves e o eventual/ais beneficiário/s (entre outros, não especificado, mas que não serão todos e quaisquer uns.), no que aqui concerne, restringe-se apenas ao cônjuge o que, no dizer do AUJ "[...] não pode ser interpretada como excluídora de outros.)».

Esta tese, não é mais do que uma criação normativa, ao jeito de legislador-interprete, que faz tábua rasa não só do que o legislador poderia ter consagrado, mas que voluntaria e especificamente não consagrou, antes afastou, não só aquando da publicação do CCivil, em 1967, mas subsequentemente, com a alterações legislativas em que e arrima o AUJ, nomeadamente no Decreto-Lei 291/2007 de 21 de Agosto, que transpôs a Directiva 90/232/CEE , podendo ter acrescentado algo aos normativos em questão, não o fez, e, tão pouco o fez aquando da recente alteração ao artigo 496.º ao colocar no âmbito da sua aplicação aquele que com a vítima vive e em união de facto, bem como o filhos dessa união, de onde se poder facilmente concluir que, mais uma vez, o legislador quis afastar a compensação directa por esta via nos casos em que não sobreveio a morte da vítima.

Nestas especificas situações de terceiros que se possam ver atingidos nos seus direitos, seguindo os princípios gerais da indemnização em sede de responsabilidade civil, posto que de um mesmo facto ilícito poderão resultar danos morais próprios não apenas para o lesado sendo este a vítima do acidente - mas também para outras pessoas, quer por força de deveres legais que as liguem (imagine-se o caso de direitos/deveres conjugais violados), quer por força de direitos pessoais que são directamente atingidos (direito à saúde do cônjuge, do companheiro ou de filho. atingidos por uma depressão profunda, por exemplo, ao ver o estado de saúde degradado da vítima. ou qualquer outro direito da personalidade), poderão estes vir por direito próprio (não reflexo, por ricochete ou indirecto, como se defende terminologicamente na tese que faz vencimento), pedir contra os responsáveis o ressarcimento dos danos que lhes tiverem sido causados, cfr. entre outro Sousa Diniz, CJ, STJ IX, tomo I, 11/12, J. Duarte Pinheiro, in Núcleo intangível da comunhão conjugal, os deveres conjugais sexuais, 737, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume 1, 2.ª edição, 434/436, Almeida Costa, Direito das Obrigações, 6.ª edição, 508/511.

Estamos aqui na mesma situação dos chamados acidentes "em cadeia»: um mesmo facto ilícito poderá dar origem a vários lesados e a vários danos indemnizáveis

Mas esta é situação diversa da configurada no AUJ: ali interpreta-se extensivamente uma norma que apenas permite que o direito seja exercido em caso de morte da vítima; aqui fazemos aplicar normalmente a regra da responsabilidade civil, isto é "Aquele que, como dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheio fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.», cfr. artigo 483.º, n.º 1 do Civil.

Podemos então concluir que no AUJ mais não se fez do que criar uma norma através de um processo de fundamentação jurídica m que e fundiu a interpretação extensiva com analogia concluindo-se num segmento uniformizador mais apertado que a própria lei "interpretada», ao impor o sentido do artigo 483.º, n.º 1 e 496.º, n.º 1, como abrangendo os danos patrimoniais "particularmente graves», quando este ínsitos apenas se referem aos danos "graves», "tout court», que mereçam a tutela do direito, que sejam sofridos pelas pessoas aí referidas, reiterando-se contudo que apenas nos casos de morte da vítima, afastada se encontrando a precisão aqui achada de que o cônjuge do sobrevivente seja atingido de modo particularmente grave, efectuando-se desta feita uma criação legislativa que, de todo em todo, transcende a competências deste Supremo Tribunal de Justiça e contende com a declaração de inconstitucionalidade do artigo 2.º do CCivil.

Na especie, face à factualidade dada como provada, a qual diga-se que nem sequer é chamada à colação para a solução preconizada, não resultam quaisquer danos próprios do cônjuge que urja ressarcir, maxime, por não serem graves e merecedores da tutela do direito, nem tão pouco pela sua particular gravidade (cfr. os decorrentes das respostas aos pontos 58. a 60. da base instrutória, constituídos pela tristeza que assalta qualquer pessoa ao ver um seu próximo doente, deprimido e cabisbaixo), pelo que a solução preconizada na tese que faz vencimento encontra-se desde logo inquinada neste conspectu porque lhe falta o respaldo da particular gravidade das consequências pessoais do cônjuge do sinistrado sobrevivente, aqui não verificadas, sem embargo de as sequelas advindas para este terem sido, efectivamente, bastante graves, cfr. factualidade assente resultante das respostas aos pontos 21. a 23. da base instrutória, pelo que concederíamos parcialmente a Revista e em consequência revogaríamos a decisão plasmada no Acórdão recorrido na parte em que àquela se concedeu a indemnização peticionada.

Finalmente, a título de segmento uniformizador proporia, na esteira da posição que assumi no sentido de estar afastado do espírito e da letra do artigo 496.º do CCivil, o ressarcimento do cônjuge de vítima sobrevivente, o seguinte enunciado:

Os normativos insertos nos artigos 483.º, n.º 1 e 496º, n.º 1 do CCivil, restringem a indemnização por danos não patrimoniais ao lesado e, aos terceiros atingidos, apenas no caso de morte daquele, não comportando tais ínsitos qualquer tipo de interpretação extensiva por forma a neles serem incluídos os danos reflexos ou indirectos provocado a terceiros nos casos em que sobrevenha a vida da vítima.

Ana Paula Boularot.

Proc. 6430/07.OTBBRG.S1

Voto de vencido

Votei vencido, por considerar que, no caso concreto, face à parca matéria provada no ponto 28º do elenco dos factos provados, não se apurou que a autora Maria da Graça Sá Soares Antunes, como cônjuge do lesado, tivesse sofrido danos não patrimoniais particularmente graves, que mereçam ser indemnizados, por via da interpretação extensiva dos artigos 483, n.º l e 496, n.º l, do Código Civil.

A situação decorrente dos factos provados nos pontos 26.º, 27.º, 31.º, 32.º e 35.º, invocada na fundamentação do Acórdão, só poderia justificar um pedido de indemnização pelo próprio lesado, por danos patrimoniais, devidos pelas despesas com o pagamento de assistência, a ser-lhe prestada por terceira pessoa.

Lisboa, 9-1-2014. - Azevedo Ramos.

Vencido. Concederia a revista, na parte respeitante aos danos indiretos, por entender que o nosso ordenamento jurídico não reconhece direito a indemnização por danos não patrimoniais próprios, originados pelos danos sofridos por lesado sobrevivente em sinistro determinante de responsabilidade civil extracontratual, a familiares do mesmo.

Só assim se compreende que tenha sido rejeitada a inclusão no Cód. Civil de uma norma que estabeleceria o direito de indemnização por tais danos quando não ocorresse a morte do lesado direto, apesar do entendimento favorável à consagração dessa norma expresso pelo Prof. Vaz Serra quando interveio nos trabalhos preparatórios do Cód. Civil de 1966. Tem, assim, a meu ver, de se considerar que foi nesse sentido, de recusa de concessão de tal direito a familiares de lesado sobrevivente que tenham sofrido danos não patrimoniais em consequência dos danos causados àquele, a vontade do legislador, que por isso mesmo consagrou no art..º 496.º, n.º 2, do Cód. Civil, tal direito de terceiros apenas no caso de morte do lesado direto, só para essa hipótese determinando quais os familiares que poderiam ter direito à correspondente indemnização.

Tendo sido essa, segundo me parece, a clara intenção do legislador, apenas poderia ter lugar uma interpretação extensiva atualista, no sentido de incluir familiares de lesado direto sobrevivente no número dos titulares de direito a indemnização por danos não patrimoniais indiretos, se o próprio legislador tivesse manifestado abertura nesse sentido, o que não se verificou, nem mesmo aquando de alteração feita em 2010 ao disposto no dito art.º 496.º, altura que podia ter aproveitado para o efeito se fosse essa a sua intenção, pelo que não se pode concluir que uma tal interpretação fosse de encontro ao espírito, mesmo atual, da lei.

Daí que se me afigure que a adoção dessa denominada interpretação atualista constitua uma intromissão do poder judicial no legislativo, ao reconhecer direitos que o legislador português não quis conceder, em violação do princípio da separação de poderes constitucionalmente consagrado, apesar de, de jure constituendo e em casos mais graves em que se prove enorme sofrimento, parecer que, humanamente, o direito que por essa interpretação se concede deveria ser objeto de criação e proteção legal.

Assim, entendo que a jurisprudência deveria ser uniformizada em sentido contrário ao que fez vencimento. - Silva Salazar.

Processo 6430/07.0TBBRG.S1

Declaração de voto

Fui vencido pelas razões que, no essencial, passo a expor.

É evidente que esta declaração não será fastidiosa em termos de reproduzir, tal qual, os argumentos, e fontes, que o douto Acórdão a que vai apendiculada já contém como contrários à tese que fez vencimento.

Direi, contudo, o seguinte:

1 - Aquando dos trabalhos preparatórios do Código Civil o Professor Vaz Serra propôs um § 5.º ao artigo 759.º garantindo aos familiares do lesado indemnização pelo dano que lhes fosse "pessoalmente causado", ainda que atingidos "de modo diferente do previsto no § 2.º" (BMJ 101-138).

Porém, esta tese/formulação não foi aceite na redacção final constante do artigo 496.º

Numa primeira abordagem é cristalino saber quem tem direito à indemnização já que o mesmo cabe, em princípio, ao lesado.

E lesado é todo o que sofreu um dano na sua pessoa ou no seu património.

Dano que pode ser patrimonial (imediato ou mediato) ou não patrimonial.

Para além do lesado, em sentido estrito, outras pessoas podem sê-lo desde que sofram um dano próprio causalmente ligado ao evento.

Porém, a lei vigente limita o ressarcimento de terceiros aos danos patrimoniais - despesas feitas ou perda de alimentos - que não a quaisquer outros.

A única excepção para o dano não patrimonial ocorre no caso de morte da vítima, sendo a sua reparação exigida, por direito próprio, pelas pessoas taxativamente indicadas no n.º 2 do citado artigo 496.º

2 - Vejamos, então, os direitos à indemnização:

A - Lesão corporal:

- Direito patrimonial próprio:

O lesado (artigos 483.º e 504.º do Código Civil); os que lhe podiam exigir alimentos - se aquele ficou incapacitado para trabalhar - ou aqueles a quem o lesado os prestava em cumprimento de uma obrigação natural (artigo 495.º, n.º 3 CC); os que fizeram despesas ou prestaram serviços para salvar o lesado, mas limitados a essas despesas (artigo 495.º n.os 1 e 2 CC); os estabelecimentos hospitalares, médicos ou outras pessoas que contribuíram para a assistência ou tratamento do lesado (artigo 495.º n.º 2 CC).

- Dano não patrimonial próprio:

- O lesado (artigos 483.º e 496.º do Código Civil).

B - Morte da vítima:

- Dano patrimonial:

Os que podiam exigir alimentos à vítima ou aqueles a quem esta os prestava no cumprimento de uma obrigação natural (artigo 495.º n.º 3 CC); os sucessores da vítima das despesas para a salvar, incluindo as de funeral (artigo 495.º n.º 1 CC; os que fizeram despesas ou prestaram serviços para salvarem a vítima ou tiverem contribuído para o seu "tratamento ou assistência" (artigo 495.º n.º 2 CC)

- Dano não patrimonial

(Também no caso de morte da vítima)

O cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens em conjunto com os filhos, (artigo 496.º n.º 2 CC); na falta destes os pais ou outros ascendentes, (artigo 496.º n.º 2 CC); por último, os irmãos ou sobrinhos que os representem (artigo 496.º n.º 2 CC)

Cabem aqui todos os danos não patrimoniais sofridos pela própria vítima e o dano resultante da perda do direito à vida.

- Do que se expôs, resulta que o legislador não admitiu o ressarcimento dos danos não patrimoniais conexos ou reflexos sofridos pelo cônjuge do lesado, excepto se este perder a vida em consequência da lesão.

O cônjuge tem nessa sede apenas o direito a ser indemnizado pelos danos morais que a morte causou ao lesado - aqui "jure hereditario" - ou pelos mesmos que aquele decesso, em si, lhe causar (dor e sofrimento) - "jure proprio" - que não causado reflexamente pelo evento/dano.

Como ensina o Prof. Menezes Leitão (in "Direito das Obrigações", I, 9.ª ed., 422), "genericamente pode dizer-se que o titular do direito de indemnização é apenas o lesado. Quanto a terceiros mesmo que estes tenham sofrido reflexamente danos em consequência da actuação do lesante não serão abrangidos na indemnização" [...] Esta regra geral sofre, no entanto, algumas restrições, no âmbito das quais terceiros poderão ser igualmente titulares do direito de indemnização.

Não cabe aqui analisar a ressarcibilidade do dano morte e a transmissão da indemnização "jure hereditario", acima acenada.

Fomos apenas chamados a abordar a indemnização dos danos não patrimoniais do cônjuge do lesado em consequência das lesões por este sofridas.

E a conclusão é, como se disse, "jure condito", que implica não poder concluir-se pelo direito à indemnização.

3 - Mas, ainda que assim não se entendesse.

Diferente será se, mantendo-se embora viva, a vítima sofreu lesões de tal modo graves que, no seu cotejo da relação com o cônjuge, impedem o relacionamento conjugal normal.

Pode, então, entender-se ter-lhe sido provocado um dano biológico.

Como julgou o Acórdão do STJ de 27 de Outubro de 2009 - 560/09.0YFLSB - por mim relatado, "o dano biológico traduz-se na diminuição somático-psíquica do individuo, com natural repercussão na vida de quem sofre [...]

Tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial, tal como compensado a título de dano moral.

A situação terá de ser apreciada casuisticamente, verificando se a lesão originou no futuro, durante o período de vida activa do lesado ou da sua vida e, só por si, uma perda da capacidade de ganho ou se traduz, apenas, numa afectação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, para além do agravamento natural resultante da idade".

Há pois que apurar se o evento foi causa de "uma maior fragilidade adquirida a nível somático ou em sede psíquica. Ora, tal agravamento desde que não se repercuta directa - ou indirectamente - no estatuto remuneratório profissional ou na carreira em si mesma e não se traduza necessariamente numa perda patrimonial futura, ou na frustração de um lucro, traduzir-se-á num dano moral".

E é esse dano não patrimonial com contornos v. g. de dano biológico, por impedir o cônjuge de exercer qualquer outra actividade, que não o cuidar da vítima, e outrossim, privando-a da vida conjugal normal, que me parece ser de indemnizar.

Só que, terá de considerar-se que o acidente causou dois danos distintos (este último próprio do cônjuge, que não reflexo como se decidiu no aresto votado) sendo cada um indemnizável separadamente que não como reflexo do outro por o contrário a lei não permitir.

Concederia, assim, a revista, absolvendo a Ré quanto aos danos da Autora - mulher.

Lisboa, 9 de Janeiro de 2014. - Sebastião José Coutinho Póvoas.

Processo 6430/07.OTBBRG.S1

Vencido.

No acórdão deste STJ de 8/9/09 (P.º 2733/06.9TBBCL.S1), de que fui relator, decidiu-se que no quadro dos efeitos pessoais do casamento e da plena comunhão de vida que constitui o elemento essencial definidor deste contrato - artigo 157.º 7.º do CC - são indemnizáveis nos termos do artigo 496.º, n.º 1, isto é, se apresentarem gravidade merecedora da tutela do direito, os danos não patrimoniais sofridos pelo cônjuge da vítima sobrevivente. Mantenho a posição expressa naquele aresto; por isso, subscreveria agora uma fórmula uniformizadora de jurisprudência nesse concreto e preciso sentido.

Entendo, no entanto, que no caso presente os factos demonstrados no processo, designadamente o 28), são escassos para se poder concluir que os danos morais sofridos pela autora enquanto cônjuge do lesado assumiram a gravidade exigida por lei em ordem à sua compensação e, menos ainda, a particular ou especial gravidade a que a posição que fez vencimento se refere.

A situação que os factos provados nos pontos 26), 27), 31), 32) e 35) patenteia apenas poderia justificar um pedido de indemnização pelo próprio lesado, por danos patrimoniais devidos em razão das despesas com o pagamento de assistência a ser-lhe prestada por terceira pessoa. - Nuno Pedro de Melo e Vasconcelos Cameira.

Declaração de voto

Voto o acórdão e o seu segmento de uniformização.

No entanto, quanto aos fundamentos convocados, subscrevo o que assenta no entendimento que o reconhecimento do direito à indemnização pode repousar directamente nas normas dos artigos 483.º e 496.º-1 do Código Civil, enquanto decorrente a lesões de direitos de personalidade (dignidade da pessoa humana, saúde, família) tutelados pela Constituição da República e pela lei.

Estar-se-á, então, perante o sofrimento de um dano pessoal e autónomo em que o familiar da vítima de lesões ou sequelas profundas (imediatamente atingida pelo facto ilícito) será de considerar, ele mesmo, (directamente) lesado, com o âmbito e relevância reconhecidos pelo artigo 562.º do Código Civil. - A. Alves Velho.

Proc. n.º 6430/07.0TBBRG.S1

Declaração de voto

Subscrevo o segmento uniformizador de jurisprudência porquanto considero que os danos não patrimoniais suportados por alguém (cônjuge ou mesmo qualquer das pessoas elencadas no n.º 2 do art. 496.º do CCivil) em consequência (ou reflexo, se se quiser) de lesão directamente sofrida por outrem, só devem ser indemnizados - mas devem ser indemnizados - se o dano directamente suportado por esse outrem for particularmente grave e se, pela sua particular gravidade, se autonomizarem dentro do património moral desse alguém, como forma de garantir o cumprimento de uma obrigação legal (ou mesmo natural) a que esteja (ou se sinta) sujeito. - Pires da Rosa.

Processo 6430/07.0TBBRG.S1

Declaração de voto

Vencido.

Na concessão parcial da revista, absolveria a ré do pagamento à autora da indemnização a título de danos não patrimoniais reflexos por esta sofridos, a justeza de tal decisão ancorando, brevitatis causa, no, em sede de responsabilidade civil extracontratual, apenas serem, em princípio, indemnizáveis os danos sofridos pelo lesado, o titular do direito violado ou do interesse protegido pela disposição legal infringida (artigo 483.º n.º 1 do CC), normativo de carácter excepcional sendo o artigo 496.º n.º 2 de tal Corpo de Leis e cabida não se perfilando interpretação extensiva do mesmo, por forma a abranger os preditos danos, como sublinhado em arestos deste Tribunal, nomeados no acórdão, em consonância com doutrina naquele, outrossim, referida.

Destarte, aplaudindo embora alteração legislativa que venha a contemplar a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais graves sofridos pelo cônjuge do lesado, tenha, ou não, havido decesso deste, sem inflacionar o "coro dos chorosos", uniformizaria a jurisprudência nos termos seguintes:

Afora a hipótese contemplada no artigo 496.º n.º 2 do CC, não são indemnizáveis os danos não patrimoniais sofridos pelo cônjuge do lesado.

Lisboa, 9 de Janeiro de 2014. - Joaquim Manuel Cabral e Pereira da Silva.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/317129.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 2006-05-03 - Decreto-Lei 83/2006 - Ministério da Economia e da Inovação

    Transpõe parcialmente para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 2005/14/CE (EUR-Lex), do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio, e fixa as regras e os procedimentos a observar pelas empresas de seguros com vista a garantir, de forma pronta e diligente, a assunção da sua responsabilidade e o pagamento dos encargos daí decorrentes em caso de sinistro no âmbito do seguro automóvel.

  • Tem documento Em vigor 2007-08-21 - Decreto-Lei 291/2007 - Ministério das Finanças e da Administração Pública

    Transpõe parcialmente para ordem jurídica interna a Directiva n.º 2005/14/CE (EUR-Lex), do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio, que altera as Directivas n.os 72/166/CEE (EUR-Lex), 84/5/CEE (EUR-Lex), 88/357/CEE (EUR-Lex) e 90/232/CEE (EUR-Lex), do Conselho, e a Directiva 2000/26/CE (EUR-Lex), relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis («5.ª Directiva sobre o Seguro Automóvel»).

  • Tem documento Em vigor 2007-08-24 - Decreto-Lei 303/2007 - Ministério da Justiça

    Altera, no uso de autorização legislativa concedida pela Lei n.º 6/2007, de 2 de Fevereiro, o Código de Processo Civil, procedendo à revisão do regime de recursos e de conflitos em processo civil e adaptando-o à prática de actos processuais por via electrónica; introduz ainda alterações à Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais e aos Decretos-Leis n.os 269/98, de 1 de Setembro ( procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não (...)

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