Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 6/2017
Acórdão do STA de 08-06-2017, no Processo 1469/16 - Pleno da 1.ª Secção
Acordam em conferência no Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
1 - Relatório
1.1 - A..., inconformado com o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul [TCA/S], datado de 05.05.2016, que no âmbito de reclamação deduzida por B... contra aquele e o Município de Santa Cruz, impugnando o despacho do juiz do TAF/Funchal de não admissão do recurso jurisdicional interposto na ação administrativa especial do despacho saneador [no qual se julgou procedente exceção de ilegitimidade ativa do A./Reclamante e absolveu da instância os referidos demandados], manteve o despacho do ali Relator, proferido em 09.02.2015, que havia revogado e admitido aquele recurso, veio interpor recurso para uniformização de jurisprudência nos termos do art. 152.º do CPTA, apresentando o seguinte quadro conclusivo que se reproduz [cf. fls. 03 e segs. - paginação processo suporte físico tal como as referências posteriores a paginação salvo expressa indicação em contrário]:
"...
1 - Ao considerar que do despacho saneador que, julgando procedente exceção de ilegitimidade processual ativa, absolveu os demandados da instância cabe recurso e não reclamação para a conferência, o Acórdão recorrido faz errada interpretação do art. 87.º do CPTA, já que este preceito não autoriza qualquer diferenciação de regime face às restantes decisões do juiz relator.
2 - Assim como viola claramente o disposto no art. 27.º, n.º 2 do CPTA do qual resulta uma regra aplicável a todas as decisões proferidas pelo juiz relator, seja em que fase processual for.
3 - Regra essa que impõe a reclamação para a conferência como meio de impugnação das decisões singulares proferidas pelo relator e não o recurso de apelação.
4 - Deverá, pois, este Venerando STA, anular o Acórdão recorrido, substituindo-o por decisão uniformizadora de jurisprudência no sentido de que no âmbito da redação do CPTA na versão anterior ao DL n.º 214-G/2015, em sede de ação administrativa especial de valor superior à alçada do Tribunal Administrativo de Círculo do despacho saneador cabe reclamação para a conferência, nos termos do art. 27.º, n.º 2, do CPTA e não recurso de apelação ...".
1.2 - Devidamente notificados os recorridos não vieram produzir contra-alegações [cf. fls. 18 e segs.].
1.3 - A Digna Magistrada do Ministério Público (MP) junto deste Tribunal notificada nos termos e para efeitos do disposto no art. 146.º do CPTA não emitiu qualquer pronúncia [cf. fls. 84 e segs.].
1.4 - Dispensados os vistos legais cumpre apreciar e decidir.
2 - Fundamentação
2.1 - Dos Pressupostos de Admissão do Recurso e Sua Verificação
Os recursos para uniformização da jurisprudência destinam-se a obter decisão que fixe a orientação jurisprudencial nos casos em que se verifiquem cumulativamente os seguintes pressupostos: i) existência de decisões contraditórias entre acórdãos do STA ou deste e do TCA ou entre acórdãos do TCA; ii) contraditoriedade decisória "sobre a mesma questão fundamental de direito"; iii) verificação do trânsito em julgado, quer do acórdão recorrido, quer do acórdão fundamento [trânsito em julgado cuja existência se presume - cf. art. 688.º, n.º 2, do CPC/2013 ex vi do art. 140.º do CPTA - na redação anterior à introduzida pelo DL n.º 214-G/2015, de 02.10 - redação essa a que se reportarão todas as demais citações de normativos daquele Código sem expressa referência em contrário] e o recurso se mostrar deduzido no prazo de 30 dias contado do trânsito do acórdão recorrido; iv) não conformidade da orientação perfilhada no acórdão impugnado com a jurisprudência mais recentemente consolidada do STA [cf. art. 152.º, n.os 1, 2 e 3, do CPTA].
E no que diz respeito aos elementos caracterizadores do pressuposto da "mesma questão fundamental de direito" sobre a qual deverá existir contradição decisória valem aquilo que eram os critérios acolhidos pela jurisprudência fixada ainda no domínio da LPTA.
Assim: i) os quadros normativos [sejam eles substantivos ou processuais] e as realidades factuais subjacentes àquelas decisões devem ser substancialmente idênticos e, por isso, quando essa contradição tenha decorrido de divergente interpretação jurídica; ii) a oposição tem de decorrer de decisões expressas e não de julgamentos implícitos; iii) só releva a oposição entre decisões e não entre a decisão de um e os fundamentos de outro [cf., entre outros e nos mais recentes, Acs. do Pleno desta Secção de 16.12.2015 - Procs. n.os 01011/15 e 0517/14, de 18.02.2016 - Proc. n.º 0581/11, de 21.04.2016 - Proc. n.º 0698/15, de 19.05.2016 - Proc. n.º 01430/15, de 16.06.2016 - Proc. n.º 0201/16, de 26.01.2017 - Proc. n.º 0970/16, e de 23.02.2017 - Proc. n.º 01268/16 todos consultáveis in: «www.dgsi.pt/jsta» - sítio a que se reportarão também todas as demais citações de acórdãos do Tribunal sem expressa referência em contrário].
Vejamos, no caso em apreço, do seu preenchimento.
Sustenta-se no presente recurso para uniformização de jurisprudência que o acórdão recorrido proferido pelo «TCA/S» e que o acórdão fundamento deste Supremo de 25.11.2015 [Proc. n.º 0733/15] decidiram de forma oposta, no contexto do mesmo quadro factual e jurídico, aquilo que, no âmbito de ação administrativa especial com valor superior à alçada do tribunal administrativo de círculo, constitui o meio adequado de impugnação do despacho saneador que nela viesse a ser proferido, ou seja, se a via do recurso jurisdicional de apelação [propugnada pelo acórdão recorrido], ou se a via da necessária e prévia reclamação para a conferência [afirmada no acórdão fundamento].
No acórdão recorrido, proferido no quadro de reclamação do despacho do juiz do TAF/Funchal que não havia admitido o recurso jurisdicional interposto na ação administrativa especial do despacho saneador nela prolatado, sustentou-se que o meio adequado de impugnação seria o recurso jurisdicional de apelação e, nessa medida, revogou o despacho que não o havia admitido.
Por sua vez, no acórdão fundamento, proferido no quadro igualmente de ação administrativa especial de valor superior à alçada de tribunal administrativo de círculo e em sede de recurso de revista interposto de acórdão do TCA/Norte [que não conheceu de recurso deduzido de despacho saneador que na mesma havia sido proferido por entender que tal decisão era impugnável mediante reclamação para a conferência], sustentou-se que este acórdão não padecia do erro de julgamento que lhe foi assacado, porquanto, efetivamente, o meio adequado para impugnar aquela decisão era não a via do recurso jurisdicional, mas, ao invés, a da reclamação para a conferência.
Presentes os termos das pronúncias jurisdicionais postas em confronto e analisados os autos impõe-se concluir pelo preenchimento, in casu, dos pressupostos exigidos para a admissão do recurso sub specie, porquanto, para além da tempestividade do recurso e do facto de estarmos perante decisões transitadas em julgado [dado as mesmas não se mostrarem já suscetíveis de recurso ordinário ou de reclamação - cf. art. 628.º do CPC/2013 - ex vi dos arts. 01.º e 140.º ambos do CPTA] [cf., ainda, quanto ao acórdão recorrido o teor de fls. 02, 12/16 dos autos e da certidão junta aos mesmos a fls. 47/83], estamos perante pronúncias jurisdicionais contraditórias quanto à "mesma questão fundamental de direito" já que, de um ponto de vista jurídico-normativo e tendo na base situações litigiosas análogas ou equiparáveis, as mesmas expressam interpretações divergentes do mesmo regime normativo [cf. arts. 27.º do CPTA, e 40.º, n.º 3, do ETAF - igualmente na redação anterior à introduzida pelo DL n.º 214-G/2015 - redação essa a que se reportarão todas as demais citações de normativos daquele Estatuto sem expressa referência em contrário], existindo um claro conflito jurisprudencial expresso na contradição das soluções neles firmadas.
Preenchidos que se mostram os pressupostos exigidos pelo art. 152.º do CPTA para a admissão do recurso impõe-se, assim, passar ao seu conhecimento.
2.2 - Do Mérito do Recurso
Insurge-se o Recorrente contra o entendimento e julgamento firmado no acórdão recorrido, porquanto considera que o mesmo infringe o que resultava previsto nos arts. 27.º e 87.º ambos do CPTA, e 40.º, do ETAF, já que, no âmbito da redação detida pelo referido quadro normativo e então vigente, o meio de impugnação do despacho saneador proferido em ação administrativa especial seria a reclamação para a conferência, nos termos do n.º 2 do art. 27.º do CPTA, e não o recurso jurisdicional, tal como se afirmou e concluiu no acórdão fundamento deste STA.
Analisemos cotejando, previamente, o quadro normativo aplicável.
Decorria do art. 40.º do ETAF, no que para aqui releva, que "[o]s tribunais administrativos de círculo funcionam como juiz singular, a cada juiz competindo o julgamento, de facto e de direito, dos processos que lhe sejam distribuídos" [n.º 1] e que "[n]as ações administrativas especiais de valor superior à alçada, o tribunal funciona em formação de três juízes, à qual compete o julgamento da matéria de facto e de direito" [n.º 3].
Dispunha-se no n.º 2 do art. 27.º do CPTA que "[d]os despachos do relator cabe reclamação para a conferência, com exceção dos de mero expediente, dos que recebam recursos de acórdãos do tribunal e dos proferidos no Tribunal Central Administrativo que não recebam recursos desse tribunal", prevendo-se no n.º 1 do art. 87.º do mesmo Código que "[f]indos os articulados, o processo é concluso ao juiz ou relator, que profere despacho saneador quando deva: a) Conhecer obrigatoriamente, ouvido o autor no prazo de 10 dias, de todas as questões que obstem ao conhecimento do objeto do processo; b) Conhecer total ou parcialmente do mérito da causa, sempre que, tendo o autor requerido, sem oposição dos demandados, a dispensa de alegações finais, o estado do processo permita, sem necessidade de mais indagações, a apreciação dos pedidos ou de algum dos pedidos deduzidos, ou, ouvido o autor no prazo de 10 dias, de alguma exceção perentória; c) Determinar a abertura de um período de produção de prova quando tenha sido alegada matéria de facto ainda controvertida e o processo haja de prosseguir".
O Pleno da 1.ª Secção deste Supremo, no seu referido Acórdão 3/2012, de 05.06.2012 [Proc. n.º 0420/12], firmou jurisprudência no sentido de que das "...decisões do juiz relator sobre o mérito da causa, proferidas sob a invocação dos poderes conferidos no artigo 27.º, n.º 1 alínea i), do CPTA, cabe reclamação para a conferência, nos termos do n.º 2, não recurso ..." [publicado no DR 1.ª série, n.º 182, de 19.09.2012].
Por sua vez, este Supremo Tribunal, com julgamento em formação alargada nos termos do art. 148.º do CPTA, proferiu acórdão datado de 05.12.2013 [Proc. n.º 01360/13], no qual se sustenta que das "... decisões sobre o mérito da causa proferidas pelo juiz relator, nas ações administrativas especiais de valor superior à alçada do Tribunal (cujo julgamento de facto de direito cabe a uma formação de três juízes, nos termos do art. 40.º, 3 do ETAF), cabe reclamação para a conferência, nos termos do art. 27.º, 2, do CPTA, quer tenha sido ou não expressamente invocado o disposto no art. 27.º, 1, alínea i) do mesmo diploma legal ...".
E, na mesma formação, este Supremo Tribunal proferiu ainda o acórdão datado de 26.06.2014 [Proc. n.º 01831/13], sustentando que só "... é possível a convolação do requerimento de interposição de um recurso em reclamação para a conferência se o requerimento tiver dado entrada dentro do prazo da reclamação ...", sendo que a "... circunstância de ter havido alguma prática jurisprudencial dos TCA's admitindo recurso em vez de reclamação, nos casos a que se referem os artigos 40.º, 3, do ETAF e 27.º, 2, do CPTA, não justifica modificar o entendimento referido em I, dado que (i) tal prática não era exata (como veio a decidir-se em acórdão uniformizador de jurisprudência 3/2012, DR 1.ª série, 182, de 19-9-2012) (ii) não era uniforme pois contrariava a jurisprudência do STA (acórdão de 19-10-2010, proc. 0542/10) e (iii) não tratava de modo igual os interesses da parte ao trânsito em julgado de decisão favorável e os interesses da parte contrária a ver admitida a reclamação para além desse prazo ..." [publicado no DR 1.ª série, n.º 199, de 15.10.2014].
Por último, na 1.ª Secção deste Supremo e quanto à questão aqui objeto de controvérsia [determinar se do despacho saneador absolutório proferido numa ação administrativa especial de valor superior à alçada do tribunal administrativo de círculo o autor pode apelar imediatamente ou se, previamente a um eventual recurso, tem de reclamar para a conferência], foram proferidos vários acórdãos, entre os quais o acórdão fundamento, nos quais se sustentou, em suma, que aquele despacho saneador deve ser impugnado mediante prévia reclamação para a conferência e não imediatamente através de recurso jurisdicional [cf., entre outros, os Acs. de 29.01.2015 (Proc. n.º 099/14), de 25.11.2015 (Proc. n.º 0733/15), de 03.12.2015 (Proc. n.º 0204/15), de 03.12.2015 (Proc. n.º 059/15), de 07.01.2016 (Proc. n.º 01886/13), de 28.01.2016 (Proc. n.º 01285/15), e de 28.04.2016 (Proc. n.º 066/15)].
Estriba-se este entendimento, sucessivamente afirmado e reiterado de forma uniforme, naquilo que, no essencial, constitui a linha argumentativa constante primeiramente do citado Acórdão de 29.01.2015 [Proc. n.º 099/14] [este tirado apenas por maioria] e, depois, aprofundada pelo Acórdão de 25.11.2015 [Proc. n.º 0733/15] [este tirado já por unanimidade].
Assim e após convocação do quadro normativo em referência sustentou-se o seguinte "...[u]m dos poderes concedidos, ao relator é o de, findos os articulados, proferir despacho saneador, quando deva conhecer obrigatoriamente de todas as questões que obstem ao conhecimento do objeto do recurso (cf. art. 87.º, n.º 1, al. a), do CPTA). [...] Ora, a decisão proferida foi-o precisamente ao abrigo do disposto no art. 87.º, n.º 1, al. a), do CPTA, tendo a 1.ª instância julgado procedente a exceção [...]. [...] Mas por se tratar de um despacho do relator, daquela decisão cabia reclamação para a conferência, no prazo de 10 dias, por aplicação do artigo 29.º, n.º 1, do CPTA e não diretamente recurso jurisdicional. [...] Tal reclamação é para a conferência do próprio tribunal de 1.ª instância. [...] Conforme escreve o Conselheiro Carlos Alberto Fernandes Cadilha, in «Dicionário de Contencioso Administrativo», a pág. 620 [...]: «Dos despachos do relator cabe reclamação para a conferência, que constitui o único meio de reação de que dispõe a parte que se considere prejudicada, e que se destina a permitir que o relator leve o processo à conferência de modo a que sobre a matéria do despacho recaía um acórdão. Se a conferência confirmar o despacho do relator, o interessado poderá então lançar mão do recurso jurisdicional quando este seja admissível, impugnando a decisão colegial perante o TCA, quando seja proferida pelo tribunal administrativo de círculo funcionando em formação de três juízes [...]». [...] Também Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, in: «Código de Processo nos Tribunais Administrativos», Vol. 1, 2004, anotação IV ao art. 27.º do CPTA, págs. 221 e 222, referem que: «Quanto à competência do relator em matéria de atos e efeitos processuais específicos, há que tomar em conta não apenas o disposto nas diversas alíneas deste art. 27.º, mas também os demais poderes que lhe estejam esparsamente atribuídos no Código, de maneira explícita ou implícita, como sucede, por exemplo, no caso, do art. 58.º/4, da alínea a) do art. 87.º/1 e do art. 90.º/1 e 2». [...] Ou seja, de acordo com o estabelecido no art. 27.º, n.º 2 do CPTA, só não há lugar a reclamação para a conferência relativamente a despachos de mero expediente, a despachos que recebam recursos de acórdãos do tribunal e dos proferidos no TCA que não recebam recursos de acórdãos desse tribunal, havendo lugar a essa reclamação quanto a todos os outros despachos do relator. [...] É que, como escrevem Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, no CPTA anotado, 2.ª ed. revista, 2007, sobre o art. 27.º, n.º 2, págs. 223 e 224: «Estes poderes do relator, alguns verdadeiramente decisivos - porque não apenas moldam mas, às vezes, definem o destino do processo ou do pedido, a sua procedência ou decadência - tinham de ter uma 'válvula de escape' para assegurar que quem controla ou julga o processo é, em última instância, o tribunal coletivo, não um dos seus juízes. Daí que a possibilidade prevista neste n.º 2 de as partes reclamarem para a formação de juízes, para a conferência dos atos e despachos do relator, a fim de os fazer reapreciar (e revogar ou substituir) em acórdão subscrito por todos os juízes, incluindo o reclamado. É nesta reclamação que reside o contrapeso dos poderes que a lei por inquestionáveis regras de eficiência, desafogo e celeridade judicial, conferiu ao relator em detrimento da competência 'natural' do coletivo». [...] Tal é o entendimento que desde sempre resultou das disposições legais indicadas, e, muito antes do acórdão uniformizador de jurisprudência de 05.06.2012 (proferido no processo 420/12), já este STA tinha decidido que a forma adequada de reagir contra a decisão do relator, era a reclamação e não o recurso (cf. acórdão desta Secção de 19.10.2010, proc. 0542/10 e da 2.ª Secção, acórdãos de 15.03.2006, proc. 01173/05 e de 30.06.2010, proc. 0156/10, estes últimos em casos semelhantes aos dos autos), havendo, igualmente, acórdãos dos TCA's nesse sentido. [...] Esta interpretação é a que resulta da decisão tomada pelo STA em Pleno, no Acórdão uniformizador [...] de 05.06.2012 [...], sendo aqui também aplicável (embora nele se tenha apreciado uma questão diretamente relacionada com a aplicação do art. 27.º, n.º 1, al. i), do CPTA). [...] E, não se vê que este entendimento conflitue com o que resulta da conjugação dos n.os 1 e 3 do artigo 40.º do ETAF e da alínea b) do n.º 2 do artigo 31.º do CPTA [...], já que este último preceito, referente ao valor da causa, apenas estabelece que nas ações administrativas especiais o processo é julgado por juiz singular ou em formação de três juízes conforme o valor da causa (superior ou não ao valor da alçada), face ao disposto no art. 27.º, n.os 1 e 2, ao prever a reclamação para a conferência dos despachos do relator (com as exceções enunciadas supra). [...] Aliás, é da própria especificidade que o CPTA introduziu na previsão da tramitação da ação administrativa especial, conforme decorre do disposto nos arts. 46.º e seguintes, que resulta o afastamento das regras estabelecidas no processo civil, nomeadamente, em sede de recurso (contrariamente ao que sucede na ação administrativa comum - art. 42.º, n.º 1, do CPTA). No entanto, o facto de se estabelecer a obrigatoriedade de reclamação para a conferência dos despachos do relator não torna inaplicável a regra do n.º 5 do art. 142.º do CPTA, uma vez que do despacho interlocutório se reclama no prazo do art. 29.º, n.º 1, do CPTA, e, desta decisão recorre-se no momento em que se impugna a decisão final. [...] Igualmente não se vê que esta interpretação colida com o direito fundamental a um processo equitativo, já que não implica a amputação de dois terços do prazo geral previsto para a interposição do recurso. O prazo para o recurso mantém-se o mesmo, e a este (e antes deste), nos casos dos despachos do relator previstos no art. 27.º, acresce um prazo de 10 dias para reagir contra aqueles despachos. Quanto à alegada inconstitucionalidade do n.º 2 do art. 27.º do CPTA, por violação dos arts. 18.º, n.º 2 e 3 e 20.º, n.º 4 da CRP, também não se verifica. Como se sumariou no ponto III do Acórdão de 05.06.2012, uniformizador de jurisprudência: «A reclamação para a conferência prevista no n.º 2 é uma forma como outra qualquer de reagir contra decisões desfavoráveis que não limita - antes acrescenta - as formas de reação, não padecendo de qualquer inconstitucionalidade» [...]".
E ainda que "... a norma organizativa prevista no art. 40.º, n.º 3, do ETAF tem primazia sobre as regras processuais constantes ou deduzíveis do CPTA e do CPC. [...] Essa norma rege para as «ações administrativas especiais de valor superior à alçada». E ela não se limita a afirmar que o julgamento dessas ações compete a uma «formação de três juízes»; pois também diz que, nessas ações, o TAC «funciona em formação de três juízes». [...] Ao estatuir que o TAC «funciona» assim, o art. 40.º, n.º 3, do ETAF está evidentemente a dizer que tais ações estão, «ab initio et interim», sujeitas a esse regime de funcionamento - em vez dessa «formação de três juízes» só aparecer na fase de julgamento propriamente dita, se e quando existir", já que "[...] [a]liás, o art. 40.º, n.º 3, não distingue entre as fases de saneador e de julgamento. A falta dessa distinção aponta logo para que não devamos distingui-las («ubi lex non distinguit...»), pelo que o «julgamento» referido na norma não será apenas o realizável «in fine». E isto, que é meramente sugerido pela parte final da norma, recebe plena confirmação da sua parte inicial - onde se diz que, ao longo das ações aí previstas, o tribunal «funciona em formação de três juízes». [...] E a simples presença desta regra traz uma consequência imediata: funcionando o TAC «em formação de três juízes», algum deles terá de processar os autos, intervindo neles como relator. Portanto, o juiz do TAC a quem o processo for distribuído intervém nele na qualidade de relator. [...] Sendo assim, o despacho saneador em que o relator decida uma ação administrativa especial de valor superior à alçada está sujeito a reclamação para a conferência, nos termos do art. 27.º, n.º 2, do CPTA; pois só este meio impugnatório intercalar permite que as ações do género sejam julgadas nos TAC's pela «formação de três juízes» encarada - no art. 40.º, n.º 3, do ETAF - como o modo próprio de funcionamento desses tribunais de 1.ª instância ...".
Cientes do quadro normativo e dos entendimentos firmados em sede jurisprudencial importa, então, passar ao conhecimento da questão objeto de divergência, questão essa que, como acabámos de constatar, não é nova neste Supremo Tribunal e que motivou a emissão de várias pronúncias, aliás, em sentido decisório uniforme.
Com efeito, uma vez confrontado com a questão o STA, nos acórdãos anteriormente citados, firmou, no quadro do regime normativo então vigente e anterior à redação que veio a ser introduzida pelo DL n.º 214-G/2015, entendimento uniforme de que o despacho saneador proferido numa ação administrativa especial de valor superior à alçada do tribunal administrativo de círculo deve ser impugnado mediante prévia reclamação para a conferência e não imediatamente através de recurso jurisdicional, entendimento este que aqui se reafirma e reitera.
Firmado que se mostra o entendimento quanto à questão jurídica objeto de divergência importa, então, centrar nossa atenção na aferição do acerto do julgamento feito pelo acórdão recorrido da situação jurídica sob apreciação.
E para concluir pelo desacerto do mesmo já que prolatado em desconformidade com a interpretação do quadro legal à data vigente e aplicável firmada por este Supremo, julgamento esse que, assim, não se pode manter ou sufragar.
4 - Decisão
Nestes termos, acordam em conferência os juízes do Pleno da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202.º da Constituição da República Portuguesa, em:
A) Conceder provimento ao recurso sub specie, e, em consequência, anular o acórdão recorrido;
B) Uniformizar a jurisprudência do seguinte modo:
"Do despacho saneador proferido em ação administrativa especial de valor superior à alçada do tribunal administrativo de círculo cabe prévia dedução de reclamação para a conferência do próprio tribunal de 1.ª instância, por aplicação dos arts. 27.º, n.º 2, 29.º, n.º 1, e 87.º do CPTA e 40.º, n.º 3, do ETAF na redação anterior à introduzida pelo DL n.º 214-G/2015, de 02 de outubro, e não imediata interposição de recurso jurisdicional".
Não são devidas custas.
Notifique-se e publique-se [art. 152.º, n.º 4, do CPTA].
Lisboa, 8 de Junho de 2017. - Alberto Acácio de Sá Costa Reis (relator) - Jorge Artur Madeira dos Santos - António Bento São Pedro - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa - José Francisco Fonseca da Paz - Ana Paula Soares Leite Martins Portela - Maria do Céu Dias Rosa das Neves - Carlos Luís Medeiros de Carvalho (vencido nos termos do voto que junto) - José Augusto Araújo Veloso (Vencido, com a fundamentação do voto de vencido junto pelo Cons. Carlos Carvalho, e revendo a minha posição sobre a questão) - Maria Benedita Malaquias Pires Urbano (Vencida, subscrevendo o voto de vencido e respetivos fundamentos junto pelo Conselheiro Carlos Carvalho, e revendo a minha posição sobre essa parte).
Vencido, não acompanhando a argumentação e o entendimento que em sede de análise do mérito do recurso logrou obter vencimento e máxima uniformizadora de jurisprudência firmada em sua decorrência, discordância essa que assenta nas razões expostas no projeto de acórdão que, enquanto relator, elaborei e que são, no essencial, as seguintes:
I. Do regime inserto no art. 27.º e 87.º do CPTA e 40.º do ETAF [na redação anterior à introduzida pelo DL n.º 214-G/2015, de 02.10 - redação essa a que se reportarão todas as demais citações de normativos daquele Código e Estatuto sem expressa referência em contrário], não se pode extrair a leitura propugnada pelo Recorrente e que obteve vencimento no presente acórdão, isto é, de que no âmbito do referido quadro normativo o despacho saneador proferido em ação administrativa especial de valor superior à alçada do tribunal administrativo de círculo estava sujeito a prévia dedução de reclamação para a conferência do próprio tribunal de 1.ª instância e não a imediata interposição de recurso jurisdicional.
II. Dissentimos de tal entendimento já que, nomeadamente, contrário: i) à estrutura e funcionamento dos tribunais administrativos de 1.ª instância; ii) à dinâmica e tramitação processual nos mesmos desenvolvida nas ações administrativas especiais; e iii) à natureza e função conferida à reclamação para a conferência enquanto meio processual de impugnação de certas decisões.
III. Explicitando a interpretação que fazemos do citado quadro legal temos que se extrai, desde logo, da análise do art. 40.º do ETAF o princípio de que os tribunais administrativos de círculo funcionam, em regra, em juiz singular [cf. seu n.º 1], constituindo exceção a essa regra a norma contida no seu n.º 3, e da qual resulta que a formação de três juízes ali prevista, competente para o julgamento da matéria de facto e de direito, só funciona nas ações administrativas especiais de valor superior à alçada daqueles tribunais.
IV. Já, por sua vez, a matriz estruturante do funcionamento e do julgamento nos tribunais superiores [STA e TCA's], sejam decisões tomadas em primeiro grau de jurisdição sejam em sede de recurso jurisdicional, assentam na colegialidade, exigindo a intervenção duma formação coletiva, por regra, de três juízes [relator e dois juízes adjuntos] e cujas decisões são tomadas em conferência [cf. arts. 12.º, 16.º, 17.º, 32.º, 34.º, e 35.º, todos do ETAF], sendo que só as decisões desse coletivo exprimem a decisão final do tribunal, tanto mais que as decisões do relator assumem uma natureza ou carácter provisório, já que passíveis de serem eliminadas ou modificadas pela conferência quando objeto de reclamação para a mesma.
V. Afigura-se que o art. 27.º do CPTA, tendo por antecedente normativo, nomeadamente, aquilo que era o quadro decorrente do art. 09.º da LPTA, mostrava-se e mostra-se gizado, no essencial, para aquilo que era e é a estrutura de funcionamento e de julgamento em coletivo dos tribunais superiores.
VI. Se é certo que na sua redação inicial, aqui aplicável, o legislador não foi muito feliz, ao invés do que deriva do atual art. 27.º do CPTA/2015 [respeitante «poderes do relator nos processos em primeiro grau de jurisdição em tribunais superiores»] e da que derivava do regime inserto no art. 09.º da LPTA no qual se restringia, desde logo, expressamente a sua aplicabilidade ao STA e aos TCA's, afastando os TAC's do mesmo, o que, aliás, até não se mostraria necessário considerando que estes últimos funcionavam praticamente sempre em juiz singular [tramitação, saneamento e sentença final], com a exceção do julgamento de facto nas ações declarativas sobre contratos, sobre responsabilidade e ações não especificadas [cf. arts. 71.º, 72.º e 73.º, da LPTA e 47.º, n.os 1 e 3 do ETAF/84] ou, em certas circunstâncias, as de reconhecimento de direito [cf. arts. 70.º, n.os 2 e 3, da LPTA e 47.º, n.os 1 e 3 do ETAF/84] da competência do tribunal coletivo [constituído pelo juiz do processo, que preside, e pelos dois juízes do mesmo tribunal que se lhe sigam em ordem de antiguidade ou, na sua ausência, falta ou impedimento, pelos respetivos substitutos], e sem que nos mesmos existisse a figura do relator, temos que, ainda assim, os elementos da interpretação da lei [literal, histórico, racional e teleológico - cf. art. 09.º do CC], apontam, no nosso entendimento, no sentido de que a sua aplicação se mostra restrita aos processos tramitados e julgados nos tribunais superiores em primeiro grau de jurisdição.
VII. Na verdade, milita para uma tal interpretação, desde logo, a nossa tradição jurídica assente numa clara distinção, que perpassa nos vários diplomas e códigos que foram sendo publicados, entre as figuras do "relator" [relativa ao juiz do tribunal superior a quem o processo é distribuído e que detém funções, mormente, de condução e preparação do julgamento] e do "juiz da causa"/"juiz do processo" [reservada tradicionalmente aos juízes nos tribunais de 1.ª instância], e, bem assim, da fonte de inspiração histórica próxima inscrita no citado art. 09.º da LPTA.
VIII. Temos, por outro lado, que em termos lógicos, daquilo que são os fins e objetivos que a norma [art. 27.º do CPTA] visa realizar e prosseguir, também a sua aplicabilidade se mostra circunscrita aos tribunais superiores.
IX. É apenas nestes, em que é no coletivo que reside o poder jurisdicional de decisão do litígio, funcionando o relator como uma emanação desse coletivo e sem que, isoladamente, seja detentor de todos os poderes processuais na e para o julgamento da instância, que fará pleno sentido todo regime que se mostrava gizado no art. 27.º do CPTA, incluindo os meios e mecanismos de impugnação das decisões proferidas pelo relator e prazos para o mesmo previstos.
X. Porque o relator não é o tribunal e a natureza deste, necessariamente colegial, exige e impõe a emissão duma decisão coletiva do tribunal, então se prevê a reclamação para a conferência no n.º 2 do preceito, reclamação essa que existe independentemente do valor da ação e que, nessa medida, não está dependente de da mesma caber ou não recurso, visto o que se prossegue e visa é a emissão duma decisão pelo tribunal coletivo, único e efetivo detentor do poder jurisdicional.
XI. Foram e são, por conseguinte, claramente razões de celeridade, de operacionalidade e de eficácia para o funcionamento e julgamento nos tribunais superiores, em estrutura necessariamente colegial, que ditaram e ditam a solução prevista para a condução/tramitação e preparação de julgamento confiada a um juiz relator, sob pena de, então, a assim não ser todos os atos necessários na e para a tramitação, saneamento e instrução do processo deverem ter de ser praticados e decididos em conferência, o que tornaria impraticável, diríamos mesmo totalmente impossível, o funcionamento e processo de decisão naqueles tribunais.
XII. Ao invés um tal regime "joga mal" com aquilo que é a estrutura e funcionamento regra dos tribunais administrativos de 1.ª instância, ou seja, em juiz singular [a quem compete o julgamento, de facto e de direito, dos processos que lhe são distribuídos - cf. n.º 1 do art. 40.º do ETAF], e nas situações de exceção, como é aquela que, nomeadamente, se mostrava prevista no n.º 3 do art. 40.º do ETAF, em que o julgamento final [de facto e de direito - cf. arts. 91.º, 92.º, 94.º e 95.º, do CPTA e 40.º, n.º 3, do ETAF] estava confiado a uma formação de três juízes, também o mesmo regime não se revela como o adequado e ajustado.
XIII. Não se tem como acertado exigir que decisões prolatadas pelo juiz singular, como o despacho saneador [seja um saneador-sentença, ou seja um saneador que, sem se pronunciar sobre o mérito, ponha termo à causa (saneador absolutório da instância)], em ações administrativas especiais com valor superior à alçada do tribunal administrativo de círculo, careçam, para serem suscetíveis de recurso jurisdicional, de prévia reclamação para a conferência do mesmo tribunal.
XIV. É que, desde logo, aquela formação de julgamento só intervém na fase de discussão e julgamento [cf. arts. 91.º, 92.º, 94.º e 95.º, do CPTA e 40.º, n.º 3, do ETAF], estando a tramitação, condução e saneamento do processo até aí confiados única e exclusivamente ao juiz ou tribunal singular [cf. arts. 87.º, n.º 1, 88.º, 90.º, 91.º e 92.º, do CPTA, 40.º, n.os 1 e 3, do ETAF, e 595.º do CPC/2013], o qual, ao invés do relator nos tribunais superiores, detém todos os poderes processuais na respetiva instância, detendo uma competência que lhe é própria e não delegada, a ponto do despacho saneador por si prolatado, em qualquer das modalidades referidas, ser imediatamente impugnável através de recurso jurisdicional e sem dependência de prévia reclamação para a conferência [cf., nomeadamente, os arts. 37.º, al. a), do ETAF, 142.º, n.os 1 e 3, al. d), do CPTA e 644.º, n.os 1 e 2, do CPC/2013].
XV. Além disso, uma tal aplicação do regime do art. 27.º do CPTA revela-se de articulação difícil com aquilo que é o regime geral previsto em matéria de impugnação de atos jurisdicionais previsto no CPTA, mormente, o definido, quer quanto às decisões suscetíveis de recurso à luz do n.º 1 do art. 142.º do referido Código e ao modo de impugnação normal e próprio de decisões proferidas por juiz singular ou por tribunal coletivo [formação de três juízes], sem qualquer distinção ou diferenciação, e da possibilidade de impugnação da decisão se basear em fundamentos absolutos como sucede quando se alega a incompetência absoluta do tribunal, assim como quanto à forma de reação contra decisões interlocutórias inserta no n.º 5 do mesmo artigo, dado o mesmo acabar por afastar a possibilidade do uso ou apelo sucessivo às reclamações para a conferência no quadro do n.º 2 do art. 27.º
XVI. E conduz, por outro lado, a soluções perfeitamente ilógicas e irracionais, já que enquanto que numa ação administrativa especial de valor inferior à alçada um despacho saneador que, sem se pronunciar sobre o mérito, ponha termo à causa [despacho saneador absolutório da instância] é passível de imediato recurso jurisdicional [cf. art. 142.º, n.º 3, al. d), do CPTA] isso não é possível numa mesma ação administrativa especial mas com um valor superior a essa alçada visto uma decisão similar àquela para ser suscetível de recurso jurisdicional carecer de ser previamente objeto de reclamação para a conferência.
XVII. Veja-se, ainda, de todo o modo e no sentido da aplicação restrita aos tribunais superiores do mecanismo processual da reclamação para a conferência que se mostra previsto no n.º 2 do art. 27.º do CPTA o defendido na doutrina, nomeadamente, por Mário Aroso de Almeida e Carlos A. Fernandes Cadilha, quando sustentam que "a decisão sumária poderá ser adotada pelo juiz singular e, nos tribunais superiores, pelo relator, o que não impede, neste último caso, que o interessado possa deduzir reclamação para a conferência" [in: "Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos", 3.ª edição, (2010), pág. 567] [sublinhado nosso].
XVIII. Assim, de harmonia com o exposto, teria improcedido as conclusões da alegação do recorrente e, consequente, confirmaria o acórdão recorrido, uniformizando a jurisprudência conflituante nos seguintes termos: "Do despacho saneador proferido em ação administrativa especial de valor superior à alçada do tribunal administrativo de círculo cabe imediata interposição de recurso jurisdicional e não prévia dedução de reclamação para a conferência daquele tribunal, por aplicação dos arts. 27.º, n.º 2, 29.º, n.º 1, e 87.º do CPTA e 40.º, n.º 3, do ETAF na redação anterior à introduzida pelo DL n.º 214-G/2015, de 02 de outubro".
Carlos Luís Medeiros de Carvalho.